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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2020

 

ARTIGOS

 

Uma leitura psicanalítica sobre o corpo e as ressonâncias da violência sexual na infância complementar

 

A psychoanalytic reading of the body and the resonances of childhood sexual violence

 

Une lecture psychanalytique du corps et les résonances de la violence sexuelle dans l'enfance

 

 

Katherine Pohl*; Anamaria Silva NevesI**

IUniversidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo baseou-se na teoria psicanalítica e, a partir da construção de um caso clínico, teve o objetivo de analisar o corpo enquanto ló cus de expressão do sofrimento psíquico após a vivência de uma experiência traumática como a violência sexual incestuosa na infância. A paciente Lis, aos dezoito anos, foi encaminhada para acompanhamento psicológico após realizar a denúncia de violência física, psicológica e sexual contra o pai biológico. Os atendimentos perduraram por dois anos e a dimensão corporal emergiu como aspecto privilegiado de análise. As manifestações corporais da paciente desvelavam as experiências emocionais excluídas do seu discurso e se destacavam em suas formações sintomáticas. Ante a dificuldade significativa de Lis em discriminar, organizar e acolher seus afetos e suas experiências, o corpo se constituiu como principal via de comunicação entre analista e analisanda. A análise do caso sinalizou que o corpo ancorava marcas do excesso pulsional traumático e aparecia como palco de experiências primitivas. Dessa forma, a pesquisa apontou para a indissociabilidade entre o campo analítico e a problemática do corpo, testemunha dos não ditos e do que escapa ao discurso simbólico do sujeito.

Palavras-chave: corpo, violência sexual, incesto, infância, psicanálise.


ABSTRACT

This study was based on the psychoanalytical theory and, through the construction of a clinical case, aimed to analyze the body as a locus of expression of the psychic suffering after undergoing a traumatic experience such as incestuous sexual violence in childhood. The patient Lis, eighteen years old, was referred to psychological counseling after reporting physical, psychological and sexual violence against her biological father. The consultations lasted for two years and the body dimension emerged as a privileged aspect of the analysis. T he patient's body manifestations revealed emotional experiences excluded from her discourse, which stood out in her symptomatic formations. Faced with Lis's significant difficulty in discriminating, organizing and welcoming her affections and experiences, the body became the main channel of communication between analyst and analysand. The analysis of the case signaled that the body anchored marks of the traumatic drive excess and appeared as the stage for primitive experiences. Thusly, the research pointed to the inseparability between the analytical field and the problematic of the body, a witness of the unsaid and of what escapes the subject's symbolic discourse.

Keywords: body, sexual violence, incest, childhood, psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Cette étude était basée sur la théorie psychanalytique, et de la construction d'un cas clinique, avait comme objectif d'analyser le corps comme locus d'expression de la souffrance psychique après avoir vécu une expérience traumatique que telle que la violence sexuelle incestueuse dans l'enfance. La patiente Lis, à dix-huit ans, a été orientée vers un conseil psychologique après avoir signalé des violence physique, psychologiques et sexuelles contre le père biologique. Les consultations ont duré deux ans et la dimension corporelle est apparue comme un aspect privilégié de l'analyse. Les manifestations du corps du patient ont révélé les expériences émotionnelles de son discours et se sont distinguées dans leurs formations symptomatiques. Face à l'importante difficulté de Lis à discriminer, organiser et accueillir ses affections et ses expériences, le corps était le principal canal de communication entre l'analyste et l'analysant. L'analyse de cas a signalé que le corps a ancré les marques de l'excès des pulsions traumatique et est apparu comme une scène des expériences primitives. Ainsi, la recherche a mis en évidence l'inséparabilité entre le camp analytique et la problématique du corps, témoin du non-dit et qui échappe au discours symbolique du sujet.

Mots-clés: corps, la violence sexuelle, l'inceste, l'enfance, psychanalyse.


 

 

Inspirado por inquietações no exercício clínico psicanalítico e por um caso que mobilizou desafios no encontro transferencial, este trabalho foi construído como possibilidade de reflexão acerca das questões que efervesciam a cena clínica.

Tratava-se de uma paciente de dezoito anos, nomeada como Lis, atendida pela analista-pesquisadora ao longo de dois anos em uma instituição não governamental voltada para assistência psicológica e jurídica de mulheres em situação de violência doméstica. Lis chegou à análise com um histórico de violência sexual incestuosa e, no começo do processo analítico, sua postura defensiva chamava a atenção.

Apesar do discurso indiferente da jovem, o corpo se destacava em suas manifestações sintomáticas e se realçava no encontro clínico por meio das suas gestualidades e expressividade. Ao falarmos sobre o corpo, referimo-nos à concepção psicanalítica que versa sobre a sua dimensão imaginária, simbólica e real, ultrapassando a perspectiva biológica. Diz respeito a um corpo pulsional, marcado pela história do sujeito e pelos investimentos libidinais recebidos do ambiente, regido por fantasias e desejos (Ceccarelli, 2011).

A partir da peculiaridade das manifestações de angústia da paciente, esta pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de analisar o corpo enquanto lócus de expressão do sofrimento psíquico após a vivência de uma experiência traumática, como a violência sexual incestuosa na infância.

Fundamentado na psicanálise enquanto teoria e método de investigação, o estudo se realizou por meio da análise de caso clínico, mais especificamente o caso Lis. A narrativa se baseou na leitura dos escritos produzidos pela analista-pesquisadora após as sessões cujo conteúdo abarca relatos, cenas transferenciais e reflexões acerca do que era vivenciado junto à paciente.

A leitura do material foi inspirada na escuta analítica e guiada pela atenção flutuante e relação transferencial. Souza (1988, p. 117) nomeia essa forma de ler como "leitura-escuta", pois "é lendo na escuta que podemos sacar o ponto de um equívoco, de uma suspensão; ou seja, aquilo que desvela a própria enunciação".

Tal como Magtaz e Berlinck (2012) concebem, o caso foi construído pelo relato daquilo que, perante o estado de atenção flutuante da analista, se realçou, "saltou" aos olhos, constituindo o "surpreendente enigmático" (Magtaz, & Berlinck, 2012, p. 76) emergente na relação transferencial. Esses autores afirmam que somente no vínculo transferencial e mediante a atenção flutuante um enigma pode surgir e deslocar o clínico de suas convicções e da necessidade de comprovação teórica. A partir disso, foi possível formular uma questão e um caminho, compondo-se uma pesquisa em psicanálise.

Com a elaboração do estudo, as pesquisadoras realizaram o trabalho de interpretação e, assim, nomearam, representaram e colocaram em palavras o que foi vivido na transferência e contratransferência (Magtaz, & Berlinck, 2012). Todavia, como Herrmann (2004) afirma, as analistas, ao interpretarem, não se anteciparam na procura por uma verdade absoluta sobre a paciente, permaneceram abertas para outros sentidos, criando novas possibilidades de simbolização e construindo saberes provisórios.

Apoiada nessas considerações, a argumentação teórica, que precede a discussão interpretativa, intenta fomentar a reflexão acerca do caso, ampliando as possibilidades de elaboração sobre a cena clínica. Assim, o próximo tópico aborda a relação entre a dimensão corporal e a psíquica na formação subjetiva. Trata das experiências estruturantes para o desenvolvimento de um corpo erógeno, integrado e reconhecido como próprio. Além disso, resgata a argumentação freudiana sobre a centralidade do corpo na construção egoica e aprofunda a análise acerca da conexão entre as experiências da pele e a constituição psíquica com as teorias de Esther Bick e Didier Anzieu.

 

O corpo em psicanálise

Com a descoberta freudiana do inconsciente, novas perspectivas surgiram para a compreensão da relação entre o sujeito e sua dimensão corporal. Ao construir a teoria da sexualidade, Freud inicia uma verdadeira revolução na concepção de corpo, pois transpassa seu aspecto biológico, da pura necessidade, e desenvolve a "noção de corpo erógeno, inserido na linguagem, na memória, na significação e na representação" (Lazzarini, & Viana, 2006, p. 242).

Para o mestre vienense, o corpo está na origem da formação do sujeito e constitui a via primordial de contato do recém-nascido com o ambiente que o cerca. Conforme o texto "O ego e o id" (Freud, 1923/1996), o bebê inaugura a relação com o outro por meio do corpo, e é somente por intermédio de sintomas e manifestações corporais que ele pode comunicar seus conflitos e sofrimentos, pois está desprovido da capacidade de fala e simbolização ao nascer.

Tais manifestações são encaradas como apelo pelo adulto e ganham estatuto semântico diante das interpretações e significações atribuídas a elas (Pereira, 1999). As representações feitas pela mãe tornam as vivências desagradáveis mais toleráveis para o infante e são precursoras da capacidade interna da criança de elaborar simbolicamente e ser autocontinente da vida mental (Haudenschild, 2015).

Para Mariz e Zornig (2011), essa é uma fase na qual os indícios somáticos imperam com impactos cruciais e a figura materna deve, prioritariamente, permanecer alerta às comunicações da criança e decodificar as suas expressões de bem-estar ou mal-estar corporal. Ainda para tais autoras, " nesse contexto, a relação primária vem marcada pelas expectativas e pelo desejo inconsciente materno repleto de conteúdos psíquicos com os quais a criança é obrigada a se confrontar, implicando uma violência que invade, ao mesmo tempo em que funda o psiquismo. É uma violência estruturante" (Mariz, & Zornig, p. 430).

A violência das interpretações produz imposições à criança, sendo nomeada por Aulagnier (1975/2007, p. 34) como "violência primária". Essa autora concebe que a mãe zela e provê cuidados ao bebê, mas também erotiza o corpo do mesmo, impondo a ele seus próprios conteúdos psíquicos. Dessa maneira, a mãe perpetra uma violência, pois impõe ao filho elementos de seu psiquismo que, apesar de serem absolutamente necessários e estruturantes para o desenvolvimento do sujeito, este ainda não tem condições de com eles lidar.

No texto "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1996), Freud afirma que os cuidados parentais introduzem algo de caráter sexual, inconsciente e enigmático para a criança. Segundo ele, o investimento libidinal materno, por intermédio dos cuidados cotidianos, proporciona uma fonte infindável de excitação sexual para o bebê, impossível de ser simbolizada por ele nessa fase. Assim, constitui um investimento traumático, mas estruturante, pois é somente por meio dele que o corpo da criança é erogeneizado e tem acesso ao prazer por meio da promoção da sexualidade.

O autor ainda afirma que, em sua origem, a manifestação sexual infantil é autoerótica. Nessa fase, a pulsão sexual está ligada a uma zona erógena e encontra satisfação na estimulação do próprio corpo. O bebê encontra-se imerso em pulsões parciais e não possui uma imagem corporal unificada. A união das pulsões e a constituição de um corpo unificado ocorrem somente na etapa seguinte, o "narcisismo primário", no qual, pela primeira vez, o corpo é reconhecido como corpo próprio e a criança apropria-se do mesmo (Freud, 1905/1996).

O desenrolar dessas etapas pressupõe a existência de uma figura maternal, pois, por meio dos cuidados, das nomeações e da presença materna, o infante começará a perceber a existência de seu corpo, a apropriar-se dos seus limites e a reconhecê-lo enquanto corpo próprio. É o olhar da mãe que confere existência ao bebê ao refletir a sua imagem (Winnicott, 1975).

O outro, dessa maneira, possibilita a passagem do corpo biológico ao corpo erótico; a transição de um corpo fragmentado e disperso para um corpo unificado. O corpo psicanalítico é, portanto, construído pela alteridade. É, principalmente, por intermédio das figuras primordiais e de seus investimentos, interdições e castrações constantes que a criança desenvolverá uma representação libidinalmente investida do corpo (Ceccarelli, 2011). O autor ainda concebe que

desde os primeiros contatos e trocas que o bebê estabelece tanto com seu mundo interno quanto com o externo (inicialmente, é claro, o recém-nascido não faz distinção entre mundo interno e externo), o papel do inconsciente dos pais será decisivo no modo como a criança investirá o seu corpo. Os fantasmas do(s)/da(s) protagonista(s) na organização afetiva que acolhe o bebê quanto à função materna e paterna, os investimentos que cada um possui em relação a seu próprio sexo, à masculinidade e à feminilidade, assim como ao sexo anatômico do bebê e ao lugar em que ele - o bebê - ocupa no narcisismo dos pais, constituem a "matéria bruta" que a criança utilizará para modelar sua imagem corporal (Ceccarelli, 2011, p. 22).

Ceccarelli (2011) amplia essa percepção e compreende que o corpo está, do mesmo modo, imerso em um espaço cultural e é narrado e atravessado pela produção imaginária e pela representação coletiva de sua época. A imagem construída do próprio corpo, assim, está atrelada ao olhar, ao inconsciente dos pais e às representações de uma cultura. A anatomia fantasmática e a "cartografia erógena" (Ceccarelli, 1997, p. 24) do sujeito aludem à sua trajetória e carregam marcas da história libidinal, inconsciente e relacional do ser.

Além disso, a dimensão corporal também está fortemente associada, na teoria freudiana, ao desenvolvimento da instância psíquica egoica. No artigo "O ego e o id" (1923/1996), Freud postula um enunciado primordial sobre a influência do corpo na constituição do sujeito. Segundo ele, "o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/1996, p. 39). Nessa afirmativa o autor vincula o corpo à instância egoica, ou seja, ao domínio voltado para a percepção, a consciência e a adaptação à realidade, situado na superfície do aparelho psíquico.

Em 1927, Freud acrescenta uma nota de rodapé ao artigo, afirmando que "o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo" (Freud, 1923/1996, p. 39). O autor compreende, dessa forma, que as experiências corpóreas possibilitam a aparição do ego e sua diferenciação do id, visto que o corpo habita a interface sensações internas e externas.

Em virtude da bipolaridade do tato corporal, sente-se o objeto que toca a pele, ao mesmo tempo que se sente a pele ser tocada. O tato e a pele prepararam, assim, o desdobramento psíquico do eu e a diferenciação entre o que é o sujeito e o que é externo a ele (Fontes, 2006).

Desse modo, o desenvolvimento da instância egoica fundamenta-se nas experiências da pele do sujeito. A articulação entre o corpo e os processos de subjetivação ganha contornos mais nítidos com a teoria de Anzieu (1989) acerca do Eu-pele e de Bick (1968/1991), com o conceito de pele psíquica.

 

A Pele Psíquica e o Eu-pele

Anzieu e Bick construíram teorias aproximadas, embasadas nos princípios psicanalíticos. Segundo Anzieu (1989), o seu conceito de Eu-pele corresponde à noção de "primeira pele" desenvolvida por Bick. Ele declara que, apesar de ter formulado sua teoria depois da autora, só veio a tomar conhecimento da mesma após a publicação do seu artigo, o que prova, para ele, a exatidão dos argumentos teóricos, que foram defendidos pelos dois pesquisadores trabalhando separadamente.

Bick (1968/1991) formulou a hipótese de que a criança vive, nos estágios primitivos, um estado de não-integração, no qual partes da personalidade são sentidas como não tendo força de ligação e se mantêm unidas passivamente, com a pele funcionando como limite. Nessa fase, a mãe é sentida concretamente pelo bebê como uma pele. Caso a criança consiga introjetar a função continente materna, poderá adquirir a autocontinência, que funcionará como uma pele psíquica e limitará o mundo interno e o externo, propiciando a noção de um interior e a diferenciação entre eu e não-eu (Bick, 1968/1991).

No entanto, quando as trocas identificatórias entre a criança e seu meio não lhe permitem o desenvolvimento de autocontinência, ela não conseguirá acolher as próprias emoções e seu desenvolvimento na diferenciação entre fantasia e realidade, entre si e o outro, poderá ser prejudicado (Haudenschild, 2015). Caso não haja formação de uma pele psíquica, o sujeito poderá viver angústias de "liquefação", "esparramento", "escorrimento", como se estivesse desfazendo-se, sem nada para contê-lo (Bick, 1986).

A fim de se proteger contra tal ansiedade aterrorizante, o indivíduo buscará criar um substituto para a pele continente por meio da formação de uma "segunda pele" (Bick, 1968/1991, p. 195). Sua dependência do outro será substituída pela pseudoindependência e ele desenvolverá um falso continente para si, não entrando em contato com o terror experimentado em sua vida afetiva (Bick, 1968/1991).

Em consonância com a construção teórica de Bick, Anzieu (1989) também tece considerações sobre os primórdios da constituição da vida mental, relacionando-a com as experiências corporais. O autor formula o conceito de Eu-pele e o define como "uma representação de que se serve o Eu da criança durante fases precoces de seu desenvolvimento para se representar a si mesma como Eu que contém os conteúdos psíquicos, a partir da sua experiência da superfície do corpo" (Anzieu, 1989, p. 44).

Anzieu (1989, p. 65) aponta que o Eu-pele é como um pré-Eu, que prepara o caminho para o Eu psíquico: "Este pré-Eu corporal é um precursor do sentimento de identidade pessoal e do senso de realidade que caracterizam o Eu psíquico propriamente dito". Nesse sentido, o Eu-pele é a base de sustentação para a formação do futuro Eu psíquico.

Por considerar que a fundação do psiquismo ocorre por intermédio do corpo, o autor dá grande importância às ações realizadas sobre o corpo do bebê e às consequências das mesmas para o desenvolvimento mental. De acordo com ele, o recém-nascido e a mãe partilham a fantasia de pele comum, que fornece intensa ligação simbiótica e a identificação adesiva, assegurando a ambos comunicação empática recíproca. A mãe funcionará como um "envelope externo" (Anzieu, 1989, p. 69) que circunda o bebê com cuidados, repleto de mensagens direcionadas à superfície corporal e, ao mesmo tempo, flexível o bastante para deixar espaço para o envelope interno. A partir da introjeção das funções desse envoltório, o bebê poderá reconhecer a própria individualidade e construir o Eu-pele (Anzieu, 1989).

Baseado na teoria freudiana (1923/1996) de que o ego deriva, em última instância, das experiências da superfície do corpo, o autor propõe um paralelo sistemático entre as funções egoicas e as da pele, pressupondo algumas finalidades específicas do Eu-pele. A primeira função do Eu-pele consiste em fornecer solidez, unidade e sustentação ao psiquismo, construídas a partir da introjeção do suporte e da estrutura ofertados pela mãe ao bebê. A defasagem dessa construção leva a angústias de sentir-se sem referência e perdido (Anzieu, 1989).

A segunda atribuição equivale a, tal como a pele recobre toda superfície do corpo e contém seus órgãos, ser uma casca continente para as pulsões do interior do sujeito, elaborá-las e discriminá-las, transformando-as. A carência dessa função pode gerar angústia de esvaziamento, incontinência física e a sensação de ter um envelope cheio de buracos psíquicos pelos quais escorrem e se esvaem os pensamentos. A excitação pulsional é sentida como difusa e não localizável. Diante disso, o sujeito pode tentar criar uma casca substituta para restituir a sua continência. Novamente, o autor se aproxima da teoria de Bick, desta vez, do conceito de "segunda pele" (Anzieu, 1989).

A terceira função corresponde ao papel de proteção que a epiderme exerce sobre a derme - a camada mais sensível da pele. O Eu-pele funciona como barreira psíquica, escudo protetor contra o excesso de excitações externas e internas, fazendo-as atuar em medida reduzida no aparelho mental. A ausência dessa função pode ocasionar um "teor paranoico de intrusão psíquica, gerando fantasias de ter uma superfície muito fina e passível de invasão ou a ab-reação de formar uma carapaça rígida e intransponível" (Durski, & Safra, 2016, p. 111).

Outro papel do envoltório mental se fundamenta na capacidade da pele de discriminar os corpos estranhos ao seu corpo e negar-lhes o acesso ao seu interior. Isso permite a diferenciação entre si e o outro e propicia a individuação do sujeito. As dificuldades na formação dessa atividade podem levar o indivíduo ao sentimento de estranheza, ligado à ameaça da individualidade do self e aos abalos nas fronteiras do Eu (Anzieu, 1989).

A quinta função definida por Anzieu (1989) é a de intersetorialidade, na qual ocorre a conexão entre as diversas sensações originadas do tato. Essa ligação evita a angústia de fragmentação, desmantelamento do corpo e a sensação de funcionamento anárquico dos diversos órgãos do sentido.

Como pode ser visto, Anzieu (1989) descreve, em um trabalho minucioso, diversas funções do Eu-pele que, para os fins deste trabalho, não convém esgotar aqui. De maneira geral, ele nomeia de "patologias do envelope" (Anzieu, 1989, p. 69) os fenômenos resultantes das insuficiências ou abalos nessa primitiva organização psíquica. Segundo o autor, após a composição do envelope, o mesmo pode ser rompido ou rasgado por agressões traumáticas. Entretanto, a dor desse rompimento é passível de ser atenuada caso o sujeito encontre alguém que, com suas palavras e cuidado, funcione como um Eu-pele auxiliar.

Anzieu (1989) afirma que o manejo dos casos em que houve a ruptura ou a insuficiência na formação do Eu-pele requer que o analista desenvolva uma "pele de palavras" (Anzieu, 1989, p. 237) que acalme a dor e permita que o paciente recupere as funções, antes ameaçadas, do envelope psíquico. De acordo com ele, a pele de palavras tem origem no banho simbólico recebido pelo seio materno. A palavra, assim, pode resgatar a cobertura simbólica e reconstituir a continência psíquica do sujeito. O autor constata, ao fim de seu livro, que "a palavra oral e também escrita tem um poder de pele" (Anzieu, 1989, p. 271).

Com a retomada das postulações teóricas de Anzieu acerca do Eu-pele, pode-se perceber que o autor permite traçar um rico caminho teórico e clínico na abordagem de casos cuja estrutura psíquica remonta a um tempo precoce do desenvolvimento, no qual o Eu-pele ainda está em processo de constituição. Fundamentado nas questões teóricas apresentadas, o tópico a seguir aborda o caso clínico e o processo analítico, aprofundando a reflexão sobre aspectos elencados do encontro transferencial.

É importante ressaltar que essa narrativa é realizada por meio de um recorte e trata daquilo que se delineou enquanto um enigma na cena clínica. Além disso, as interpretações realizadas seguem o curso das associações livres tecidas no vínculo entre analista e paciente e se baseiam na leitura dos registros feitos após as sessões.

 

Caso clínico

Primeiros encontros

O tom monocórdio e indiferente delineia o discurso de Lis sobre as vivências de sua trajetória. No primeiro atendimento, narra ininterrupta e desafetadamente sua infância e adolescência, sob o argumento de que eu, analista, devo saber sobre tudo que vivera para ajudá-la. Entretanto, mal fala sobre si nas sessões subsequentes.

Segundo ela, havia sofrido violência física, psicológica e sexual perpetradas pelo pai desde a idade de oito anos e no decorrer de toda a adolescência. As violências somente cessaram quando Lis, aos dezoito anos, formalizou a denúncia contra o pai em uma delegacia, ocasionando a prisão do mesmo. Todavia, a jovem afirma que sua história não lhe causa sofrimento e, assim, cuida das dificuldades dos familiares.

Os primeiros encontros são dedicados aos problemas de parentes, sobre os quais Lis discorre exaustivamente. "Eu só vou ficar bem quando elas ficarem. Quando eu resolver tudo da vida delas, poderei fazer o que eu quiser" (Relato de atendimento), ela diz. Nos atendimentos, a jovem fala exaustivamente sobre as dificuldades da mãe, da tia paterna e da irmã. Dentre as questões apresentadas, pergunta o que deve fazer para que a irmã volte a frequentar a escola, ou como pode intervir para que a tia deseje cuidar do filho que está prestes a nascer. Com a ilusão de que tais questões estão sob seu controle, ela me solicita as respostas às adversidades. Inicialmente, o lugar cobrado de mim é específico: fornecer garantias de que a família pare de sofrer a partir das soluções que deve propor.

Porém escuto a demanda às avessas. Sinto-me impelida a dedicar atenção à implicação subjetiva e aos rastros da singularidade de Lis em meio àquele conglomerado de problemas alheios. No entanto, o excesso de informações parece escamotear qualquer possibilidade de contato com sua vida afetiva, desejos e paixões.

Com o tempo, começo a me perceber exaurida após as sessões e luto para me manter desperta e atenta a Lis. Sinto que o excesso de conteúdos tampona a fluidez de meus pensamentos e a construção de associações. Há um entorpecimento, uma propensão, em nossos encontros, a nada sentir, pensar ou construir. Uma barreira parece se estabelecer entre nós e entre Lis e seus próprios conteúdos psíquicos.

A jovem, por sua vez, mostra-se frustrada por eu não suprir seus pedidos por soluções e prossegue insistindo em obtê-las. Seu discurso não deixa brechas para um processo interpretativo. Sinto-me observadora do cotidiano familiar e, nas primeiras semanas, o elemento que mais captura minha atenção é a postura defensiva da paciente.

Ao perceber que o discurso de Lis escancara a barreira no contato com o outro e consigo mesma, algo movimenta a minha escuta e altera a cena clínica. Ao invés de manter a atenção ávida por sinais afetivos, começo a me permitir viver a dispersão contra a qual eu lutava. Deixo meu pensamento divagar ante o excesso de conteúdos. Com o tempo, restabeleço a fluidez do pensar, recobro a atenção flutuante e, dessa forma, sou surpreendida pelo caso. Meu olhar é capturado pelos gestos, posturas e expressões corporais de Lis. Enlaçada pelo encontro analítico, percebo que a subjetividade e o sofrimento psíquico da paciente se desvelam primordialmente pelo corpo.

 

Sobre a dor de existir

É por meio de uma expressão de dor que minha atenção é despertada no terceiro mês de atendimento. Enquanto ela fala sobre questões da irmã, percebo uma mudança tênue atravessar seu rosto. Ao compartilhar minha percepção, ela diz não ter notado nada, mas logo percebe que sua barriga está doendo. Afirma que não tinha se atentado a isso e que costuma ingerir três pratos por refeição, pois não consegue perceber quando está satisfeita. Fica com dores e vontade de vomitar por se sentir muito "cheia". Todavia, Lis logo muda o assunto e volta a falar sobre a irmã.

Essa cena versa sobre a dificuldade de Lis na apreensão da própria dor e a falta de reconhecimento de seu universo interno. O entorpecimento que circunscreve a percepção de si parece ser rompido somente face à minha intervenção, que ressalta e nomeia a expressão de seu rosto. Mediante isso, ela percebe que está "muito cheia" e com dores na barriga. No entanto, seu breve contato com as próprias sensações é logo substituído pelo retorno ao discurso monótono sobre os problemas alheios.

Ao retomar a fala sobre a irmã, Lis não permite que conversemos sobre sua dor ou sobre o excesso de alimentação. Na verdade, em nossos encontros, não há espaço para que novos assuntos ou o silêncio surjam. Lis preenche todo o tempo da sessão com um excesso de detalhes e de conteúdos.

Nas raras ocasiões em que se aquieta, logo solicita que eu diga algo. Porém, nos momentos em que eu sustento o vazio entre nós, os sentidos da cena emergem:

Ao fim de um assunto, Lis me olha sem falar nada. Permaneço olhando-a em silêncio. Ela sorri, mas logo seu sorriso vira um riso sem som. Há lágrimas caindo pelas suas bochechas e sua expressão passa a ser de choro. Pergunto o que está acontecendo, buscando acolhê-la, e Lis diz não saber. Fico em silêncio, mas sua desorganização parece só aumentar. Decido, assim, começar a falar com ela. Digo que várias coisas desconhecidas pareciam emergir de seu interior, e uma confusão de emoções a tomava quando fazíamos silêncio. Enquanto falo, percebo que minha voz parece acalentá-la, como se a embalasse de volta a um estado calmo e seguro (Relato de atendimento).

O acalanto provocado pela minha intervenção, com a tentativa de nomeação da confusão de emoções que a invadiam, remete-me ao lugar de uma mãe que nina seu bebê. Ela está desamparada psiquicamente ante as moções pulsionais que a inundam, e tenho a sensação de que meu silêncio é vivido como um abandono, causando-lhe ainda mais desorganização. Sensibilizando-me à contratransferência, sinto-me convocada a falar com ela e auxiliá-la a representar as vivências angustiantes. Entretanto, o próprio som de minha voz parece envolvê-la e embalá-la, dando contorno à confusão que a acomete e que ainda não havia obtido continência.

Nesses momentos, o entorpecimento de nossos encontros era extinto, brevemente, pela emergência de afetos indiscriminados, desorganizados e intensos. De uma maneira ou de outra, sinto que caminhávamos pelos excessos, ora pela fala excessiva, que obstruía o contato entre nós, ora pela angústia paralisante, que emergia no silêncio e no vazio.

A partir dessa movimentação, hipotetizo que Lis não desenvolvera a capacidade para discriminar e acolher os próprios afetos, sensações e experiências. Pelo contrário, parecia ter construído, conforme Anzieu (1989) nomeia, uma "carapaça" protetiva no acesso aos próprios conteúdos psíquicos, talvez aterrorizada pela possibilidade de uma excitação não localizável e difusa se instalar. O contato com o silêncio, o vazio e a falta parecia conter o perigo do traumático e da emersão do terror que circunscrevia sua vida afetiva. Assim, os excessos que permeavam suas ações, seja na fala, seja na alimentação, talvez engendrassem a tentativa de tamponamento da falta, possibilitando uma vivência ilusória de completude e "calmaria".

Em pouco tempo, a paciente passa a se queixar de episódios irruptivos, quando diz ficar "nervosa" como nunca ficara antes. Em contraposição a outrora, quando ela relatava estar "tudo bem", conta agora, assustada, que, ao discutir com a família, sente "uma coisa ruim" e, quando percebe, está jogada no chão aos gritos, mordendo os braços e arranhando sua pele ao ponto de "quase arrancar pedaço".

Para fins de contextualização, ressalto que, nessa época, Lis estabelecia uma relação de submissão com a tia paterna, que ditava até os mínimos detalhes de sua vida. A jovem afirmava que a tia sabia o que era melhor para ela e que não ia deixar nenhum mal lhe acontecer. Dessa maneira, Lis trocava a liberdade de escolha pela segurança que sentia nesse vínculo.

A paciente não abria espaço para qualquer intervenção que dissesse respeito à relação com a tia. Nas raras vezes em que perguntava ou fazia pontuações sobre o vínculo com a tia, ela logo mudava de assunto ou desconsiderava o que eu dizia. Desse modo, parecia que nada poderia perturbar a tentativa de restituir um sentimento onipotente de controle sobre os excessos e a vivência de um estado supostamente sem dor ou sofrimento.

Recordo-me, aqui, da concepção freudiana de desamparo fundamental, definida enquanto uma dimensão concreta e insuperável da condição humana, referente à falta de garantias acerca do existir e à ausência de uma proteção infalível face aos perigos e à dor (Pereira, 1999). Ceccarelli (2009) afirma que os laços sociais construídos pelo sujeito podem ser uma tentativa de organização para o enfrentamento do desamparo. Dessa forma, questiono-me se, ante o terror da falta de garantias e da ausência de proteção face aos perigos, Lis construíra um vínculo de submissão na busca por aplacar o confronto com sua dor, insegurança e medo, tendo a ilusão de que, sob a proteção desse laço, nada lhe aconteceria.

Os episódios irruptivos começam a ocorrer justamente quando a relação com a tia sofre abalos devido à oposição desta ao namoro que Lis acabara de iniciar. Embora a paciente relatasse que o namorado era calmo e paciente, a tia começa a dizer que ele fará mal à sobrinha. Logo o restante da família reproduz esse discurso e se volta contra o namoro. Fantasias de perigo tomam o imaginário familiar, que se torna hostil e persecutório em relação ao jovem.

A tia proíbe que Lis continue o namoro, com o argumento de que o jovem era igual ao pai da paciente. A partir desse momento, um novo movimento se engendra. Lis começa a questionar as suas ordens e deixa de se sentir segura e protegida nesse vínculo. Ela afirma que a tia não queria o seu bem como imaginava anteriormente.

A perda da segurança e da confiança instaura um estado de angústia excruciante, pois Lis parece entrar em contato com a insocorribilidade evocada pela condição de desamparo, com os perigos e a dor de existir, elementos dos quais tentara se proteger arduamente. Para Winnicott (1988), quando não há sustentação psíquica para lidar com essa experiência, o sujeito pode viver angústias inimagináveis e, até mesmo, o terror de aniquilamento.

As reações violentas de Lis contra o próprio corpo remetem à ideia de que, ante o contato com o desamparo, agonias primitivas se faziam presentes em seu psiquismo, transpassando a capacidade de elaboração. Um excesso pulsional se instaurava e ameaçava a integração de seu frágil ego. Os ferimentos da pele, assim, poderiam ser uma tentativa desesperada de se reconhecer minimamente preservada em meio ao terror do aniquilamento.

Bick (1968/1991) entende que, em estágios primitivos do desenvolvimento, perante a angústia de não-integração, o sujeito realiza uma busca frenética por algo (seja uma luz, um cheiro, uma voz) que, mesmo momentaneamente, mantenha unidas as partes de sua personalidade. Dessa maneira, os ferimentos da pele se constituiriam como uma tentativa desesperada de restaurar, por meio de pontos sensoriais de dor, a sensação de integração do eu, de manter os limites do corpo e de restabelecer o sentimento de unidade e coesão.

Para além de conter o terror de aniquilamento e restabelecer os limites corporais, seu movimento também parecia delinear a separação entre o eu e o outro, ou seja, entre Lis e o grupo familiar, cuja dinâmica simbiótica esvaecia as diferenças e singularidades de seus membros, tornando-se invasiva para a jovem.

Em uma sessão, testemunho um de seus movimentos irruptivos. Entretanto, diferentemente dos outros episódios, quando o indizível de sua dor se fez presente, Lis não se arranha ou se morde ante a dimensão traumática que se manifesta, mas parece encontrar continência no vínculo.

Nesse dia, a jovem relata que a tia recebera uma correspondência do pai que estava preso. Na carta, ele culpava a filha pelo que acontecia entre eles e dizia que era ela quem o procurava e ele nunca a obrigara a nada. Por fim, escreveu que talvez Lis tivesse feito tudo por medo dele e colocou risadas ao fim da frase.

Lis chora compulsivamente após contar sobre a carta. Ela me encara o tempo todo. Seu choro é mudo, mas denuncia sua desproteção. As lágrimas escorrem copiosamente por seu rosto retorcido. Em meio ao choro, o ar começa a lhe faltar e logo tenho a sensação de que ela está sendo sufocada pelo próprio choro. Sua expressão assemelha-se à de alguém que está se afogando. Angustiada com a cena, digo, com calma, para ela respirar. Não adianta e, a cada segundo, parece que o ar lhe foge mais. Eu peço para que ela faça como eu, e começo a inspirar e expirar bem devagar e forte.

Lis continua se afogando em ondas de sofrimento. Sentindo-me impotente diante de seu sufocamento, começo a sentir a necessidade de me aproximar para ajudá-la a respirar. Pergunto se posso me aproximar. Lis balança a cabeça com um "sim". Sento em frente a ela. Inspiro e expiro, levantando e abaixando as mãos, peço que ela me acompanhe. Ela não consegue. Pergunto se posso segurar suas mãos com as minhas. Balança a cabeça afirmativamente. Seguro-as e peço para que respire comigo. Lis consegue. Conectadas pelas mãos, inspirando e expirando juntas, sinto que partilhamos uma só respiração. Ela me olha o tempo todo e seu choro vai se acalmando. Ficamos ali, sem dizer nada, compartilhando o ar dos pulmões até que ela se acalme e possa respirar sozinha.

Nessa cena, inicialmente minhas palavras não surtem efeito algum. É a partir do momento em que toco suas mãos que uma possibilidade de continência e cuidado se constrói ante o insuportável de ser vivido. Por alguns instantes, nosso movimento me traz à memória a fantasia de "pele comum" (Anzieu, 1989), compartilhada na relação mãe-bebê. Por meio dessa pele, estabelecemos uma comunicação empática, vivemos uma continuidade ilusória de nossos corpos e parecemos ter um só pulmão.

Inserida no campo de afetação, coloco-me como testemunha e mediadora na experiência de horror e dor, instituindo-me enquanto alteridade junto à vivência traumática. Nesse reconhecimento, abre-se a possibilidade de construção de novos sentidos para os conteúdos ainda intocados. Como Mendes e França (2012) afirmam, é por meio do testemunho, da presença sensível e acolhedora do outro, que é possível produzir sentidos, processos de subjetivação e representações da tragédia vivida.

A catástrofe vivenciada por Lis parecia ainda não haver encontrado reconhecimento que possibilitasse a sua simbolização. Suas vivências se transformaram em acontecimentos sem inscrição psíquica. O corpo aparecia como a via imediata para lidar com o que não fora elaborado, o excesso pulsional traumático.

Para além de desvelar o seu sofrimento, eu sentia que suas manifestações corporais também continham uma convocação ao outro. Na cena clínica, sinto-me invocada a aproximar-me e lhe oferecer condições para atravessar a experiência do insuportável. Em seus gritos, choros e rompantes, parecia haver um apelo por reconhecimento, por um olhar que lhe desse existência, revestimento simbólico e continência aos seus terrores.

Suas reações à angústia me levavam a questionar como teria sido o colo que a acolhera em seu desenvolvimento. Por vezes, cogitava que os ferimentos de sua pele poderiam representar o corte simbólico da ruptura com o outro, como se a "pele comum", tão necessária, lhe tivesse sido precocemente arrancada e, agora, restaram-lhe somente os restos de uma "pele" dilacerada, que não conseguira se desenvolver o suficiente para recobri-la ou contê-la. Pensava sobre um "envelope psíquico" (Anzieu, 1989) "rasgado", vazado e incontinente, incapaz de prover amparo e contenção a ela.

 

O desenvolvimento de uma Segunda Pele

Com o tempo, novas queixas corporais começam a surgir. Após algumas semanas, Lis diz que está com sonambulismo e retira as próprias roupas durante o sono. Ela relata que, ao acordar, percebe que está sem roupas e até mesmo sem sutiã. Ao escutá-la, chama-me a atenção o sonambulismo e o fato de dormir de sutiã. Quando pergunto sobre o uso dessa peça durante o sono, ela, com um riso tímido, diz que se sente "segura" usando o sutiã e nunca retira. Questiono como é para ela ficar sem roupas. Lis responde que não suporta ficar despida e só o faz para tomar banho. Mesmo assim, quando termina de se banhar, mal se enxuga e já coloca a roupa com o corpo ainda molhado. Pergunto o que sente nesses momentos, mas ela responde que não sabe.

Acrescenta que também se sente "segura" usando meias. Começou a usá-las incessantemente no fim da infância, mas isso tem lhe causado alguns problemas. Como não se enxuga após o banho e se veste, inclusive com meias, seus pés começaram a "apodrecer", segundo ela. Algumas regiões escureceram e o médico indicou que parasse de usar sapatos fechados e meias por um tempo. Pergunto se conseguiu seguir as indicações médicas e ela responde que sim, mas foi horrível, pois se sentia "desprotegida" o tempo todo.

Atento-me a essa sensação de desproteção constante e à tentativa de remediá-la com o uso de roupas. Após algumas sessões, um novo elemento chama a atenção: sua postura corporal nos momentos em que faço intervenções. Noto que enquanto fala mantém o corpo descontraído e as mãos gesticulam no ar ou seguram a bolsa que sempre fica em seu colo. Entretanto, quando se aquieta e eu começo a falar, encolhe o corpo, passa as mãos sobre os braços e, em alguns momentos, pressiona levemente as unhas sobre a pele. Retraída, parece tentar se proteger de mim atrás da bolsa, como se minhas palavras pudessem, de alguma forma, machucá-la.

Compartilho com ela a sensação de que se encolhe quando realizo intervenções. Ela olha para o próprio corpo, sorri e diz que nunca havia notado que fazia isso. Pergunto o que sente quando eu começo a falar, e ela diz não saber. Conforme conversamos, Lis consegue discriminar que teme o que eu possa dizer e receia que eu afirme que está fazendo "tudo errado". Acrescenta que só consegue relaxar quando está sozinha em seu quarto, sem interagir com ninguém. Gosta de chupar o dedo e se morder enquanto assiste desenhos ou faz outras atividades: começa com mordidas nos dedos e, quando percebe, já está mordendo os braços inteiros. Ela conta que se isso lhe faz bem e a acalma mesmo que não esteja nervosa.

A partir do relato de Lis, pode-se perceber que ela mantém constante contato com o corpo, seja pelas mãos que tocam os próprios braços ante a presença dos outros, seja pelas mordidas e pelo chupar o dedo quando está sozinha. Ela afirma que alguns desses hábitos, desenvolvidos ainda na infância, propiciam calma e tranquilidade.

Por meio da estimulação do corpo e do autoerotismo, Lis parece encontrar prazer e consolo. O movimento de chupar o dedo e morder os braços faz lembrar a imagem do bebê que, na ausência do seio materno, fantasia-o e busca, alucinando, a satisfação no próprio corpo. Já sua movimentação nas sessões delineia uma busca por proteção e segurança. Frente ao temor de que minhas palavras invadam e destruam seus arranjos psíquicos, o corpo emerge como anteparo físico contra a possibilidade de intrusão externa.

Seja na procura por refúgio, seja na busca por acalento e prazer, Lis recorre ao corpo. Todavia, ela parece se manter desapercebida de suas manifestações corporais. Quando aponto uma expressão, gesto ou postura, ela reage dizendo que nunca havia percebido que agia daquela forma. Em uma dada sessão, na qual pontuo sua expressão de dor, a paciente diz não ter nem mesmo notado que estava com dores no estômago naquele momento. Desse modo, a jovem apresenta ter um reconhecimento rudimentar do seu corpo.

Como vimos, é a experiência de nomeação e de constantes cuidados físicos que permite ao bebê perceber a existência do próprio corpo e ter o sentimento de que o mesmo lhe pertence (Winnicott, 1975). A estimulação contínua da pele de Lis, ao alisar constantemente os braços nas sessões ou ao se morder nos momentos de solidão, parecia consistir em um investimento na superfície do corpo, talvez na busca por desenvolver o reconhecimento e apropriação deste. Seu movimento, assim, poderia ser uma tentativa de substituição do contato primordial com um objeto externo que cuidasse, contivesse e lhe permitisse descobrir os limites e a existência do seu corpo.

Parecia faltar a ela um envoltório psíquico consistente que lhe possibilitasse viver tanto a experiência de integração e coesão de si quanto a experiência de um corpo unificado e reconhecido como seu. Suas movimentações talvez tentassem suprir as funções do envelope mental falho, seja pelas atividades autoeróticas, que buscavam prover-lhe amparo e contenção, seja pela estimulação da pele, que fortalecia o sentimento de apropriação corporal, ou até mesmo pelo uso do corpo como barreira ante o receio de invasão psíquica.

O exercício dessas funções, características do Eu-pele (Anzieu, 1989), não ocorria em nível simbólico, mas, antes, se desenvolvia somente na concretude de seus atos e do corpo. Com elementos sensoriais e concretos, Lis tentava prover a contenção de seu mundo interno.

Aos poucos, na composição da trama interpretativa, repenso o uso constante de meias e sutiãs. Suponho que o revestimento do corpo com tecidos integrava, do mesmo modo, o esforço por concretizar a autocontinência. A angústia mobilizada ao retirar as meias, acordar sem roupas ou ficar despida em diferentes contextos toma um novo contorno, e o que está em risco é integração de seus conteúdos psíquicos e de seu corpo.

Lis parece alinhavar uma "segunda pele" e se proteger do terror de se desfazer e esvair por "buracos psíquicos" (Bick, 1968/1991). No entanto, a jovem havia construído uma segunda pele rudimentar e rígida, que chegava a sufocar a respiração do corpo e "apodrecer" seus membros.

Percebo um paradoxo, pois, na procura por preservar a vida, a segunda pele gerava a mortificação lenta do corpo. No entrelaçamento entre vida e morte, parecíamos circular no "terreno" que ultrapassa o princípio do prazer e diz respeito ao imbricamento entre as pulsões de vida e de morte.

De acordo com Laplanche e Pontalis (1983, p. 537), " as pulsões de vida tendem, não apenas a conservar as unidades vitais existentes, como a substituir, a partir destas, unidades mais englobantes", e as pulsões de morte "tendem para a destruição das unidades vitais, para a igualização radical das tensões e para o retorno ao estado inorgânico que se supõe ser o estado de repouso absoluto".

Conforme a teoria freudiana (1923/1996), mesmo que a pulsão de vida e a de morte pareçam trabalhar em sentidos contrários, na verdade nunca ou raramente aparecem separadas, ainda que não haja conhecimento de como se unem e se mesclam.

No caso de Lis, a tentativa de contenção, de fazer ligações e sobreviver às angústias encontrava-se atravessada pelas forças desagregadoras da pulsão de morte. Do mesmo modo, a destrutividade do corpo via-se impregnada pelas tentativas de ligação, características da pulsão de vida. A partir desse "jogo" pulsional, ela construía possibilidades de existência pela via da autodestruição e agressão.

A mortificação corporal se ancorava em angústias primordiais e Lis não conseguia encontrar uma instância de amparo e continência. Pelo contrário, ela parecia ter constituído uma identificação com o próprio agressor e as formas de continência desenvolvidas provocavam ferimentos e machucados em seu corpo. Talvez, tal como Ferenczi (1933/2011) concebe, seu frágil ego tenha introjetado o adulto ameaçador, transformando-o em uma realidade intrapsíquica. Assim, enquanto um fragmento egoico de Lis se identificava com ele, tornando-se culpado e artificialmente maduro, o outro fragmento egoico ficara oculto, impedido de se desenvolver psiquicamente.

A "segunda pele" criada parecia representar justamente essa clivagem. Por um lado, operava como um agressor interno, provocando a própria mortificação pela violência contra o corpo; por outro, revelava a ausência de recursos de elaboração e continência simbólica, apresentando um desenvolvimento emocional primitivo. Assim, seu corpo parecia testemunhar, novamente, a dimensão traumática e desorganizadora da violência.

Nessa configuração, alguns questionamentos emergem quanto à possibilidade de Lis internalizar novas identificações e poder construir outras "peles" para envolver o seu aparelho psíquico. Seria possível erigir, tal como Anzieu (1989) postula, uma "pele de palavras" que restaurasse a sua continência?

 

O processo analítico

Conforme podemos observar ao longo deste tópico, a leitura sobre a dinâmica psíquica de Lis faz pensar nos primórdios da constituição subjetiva. Tal como um bebê, ela se encontra desamparada e, no início dos nossos encontros, manifesta seus incômodos e sensações de desprazer primordialmente por meio dos gestos, expressões faciais e posturas corporais.

Fernandes (2011) postula que a escuta do corpo do recém-nascido, realizada cotidianamente pela mãe, pode ser tomada como um modelo de escuta do corpo na situação analítica. Dessa forma, à semelhança da alteridade materna, eu tentava apontar os movimentos de Lis, de forma que ela conseguisse, gradualmente, transformar o "corpo de sensações" em um "corpo falado".

Esse movimento analítico aparece nas diversas cenas recortadas no decorrer deste trabalho, por exemplo nos momentos em que são sinalizadas as expressões de dor ou a postura encolhida e defensiva nos atendimentos. Esse investimento parecia possibilitar que a dimensão corporal ganhasse um contorno e Lis começasse a reconhecer a sua existência, apropriando-se de seus limites e sensações.

Da mesma forma, tornou-se fundamental acolher o impacto das forças pulsionais, permitindo o seu escoamento pela via representacional e não mais pelas mordidas e ferimentos em sua pele.

Como Nasio (1997, p. 17) afirma, " atribuir um valor simbólico a uma dor que é em si puro real, emoção brutal, hostil e estranha, é enfim o único gesto terapêutico que a torna suportável. Assim, o psicanalista é um intermediário que acolhe a dor inassimilável do paciente, e a transforma em dor simbolizada".

Muitas vezes, apesar de Lis não conseguir discriminar o desprazer vivido, o corpo exteriorizava o seu sofrimento por meio de suas feições, movimentos e posturas. Percebi que precisava ampliar minha sensibilidade à sua expressividade, na maior parte do tempo sutil, para acolhê-la e compreendê-la. Todavia, isso se constituía um desafio ante o discurso excessivo de Lis. A prioridade dada à sua fala, assim, precisou ser repensada, posta a necessidade de haver uma escuta da sua comunicação pré-verbal e corporal.

Além de observar os movimentos do seu corpo, começo a refletir sobre a minha movimentação na cena analítica. Tendo em vista que, muitas vezes, Lis não sabia identificar ou diferenciar suas experiências emocionais, eu precisava narrar o que caracterizava as diversas emoções, como tristeza, raiva, e era mais expressiva em nossos encontros. Dessa maneira, sinto que ela conseguia se identificar com os afetos expressos e descritos por mim. Haudenschild (1993, p. 116) auxilia a pensar nesse recurso analítico ao constatar que " a expressividade emocional do analista, colocada na fala (por meio da tonalidade da voz) em gestos, movimentos, ou na modulação do olhar, pode favorecer a discriminação de seus próprios sentimentos por essa criança, assim como a noção de sua identidade".

A conexão entre a expressão das emoções e as ideias permitia que Lis compreendesse e acessasse seus afetos com mais facilidade. Essa conexão a auxiliava a nomear suas experiências internas e, certa vez, ela disse: "é como se você desenhasse as coisas na minha frente. Daí fica mais fácil para mim entender as coisas que eu tô passando" (Relato de atendimento).

De maneira geral, minhas intervenções se circunscreviam a enredar simbolizações para as vivências da paciente e dar contornos ao seu corpo. Contratransferencialmente, sentia-me convocada a construir novos caminhos para acolhê-la e ampará-la. Um estado de atenção permanente e cuidadoso se instalava no decorrer do processo analítico.

Por intermédio do trabalho de continência e representação, pudemos tecer uma "pele de palavras" que recobrisse o psiquismo de Lis. Como Anzieu (1989, p. 270) compreende, "a palavra do outro, se oportuna, viva e verdadeira, permite ao destinatário reconstituir seu envelope psíquico continente, e ela o faz na medida em que as palavras ouvidas teçam uma pele simbólica".

No início, sinto que vivíamos a ilusão da "pele comum" (Anzieu, 1989), necessária para o nascimento psíquico do sujeito. Lis ainda não reconhecia diferença ou separação entre nós. Confundia nossos discursos e, muitas vezes, afirmava que eu havia dito conteúdos que, na verdade, ela enunciava ou pensava. Em contrapartida, eu a acompanhava no processo analítico circunscrevendo a distinção entre nós p or meio de sutilezas. Em algumas situações, eu repetia conteúdos de sua fala com nuances e entonações ligeiramente díspares aos dela, podendo, dessa maneira, acompanhá-la, mas demarcar a nossa diferença por meio de contrastes na expressividade subjetiva.

Com o passar do tempo, gradualmente, uma discriminação entre nós se iniciou. Percebo que Lis apreendeu tal separação, sobretudo mediante a frustração vivida no cotidiano dos encontros. Quando eu não respondia às suas demandas por soluções, as descontinuidades e rupturas da relação se evidenciavam. Lis percebeu que não éramos uma só. Contudo, mesmo com as desilusões sofridas, ela se manteve em análise e uma condição mínima para suportar o distanciamento e a diferença do outro pareceu se estabelecer.

As fronteiras psíquicas de Lis se fortaleceram e as diferenças entre ela e o outro se delinearam de forma mais clara. Essas e outras construções começaram a ser possíveis no percurso analítico. A pele psíquica, aos poucos, era tecida e permitia que Lis avançasse em sua constituição subjetiva. Há uma cena paradigmática desse movimento:

Lis chega à sala afobada. Diz que estava passeando com o namorado e quase se atrasou para a sessão. Percebo que ela está arrumada. Ela diz que está usando um sapato novo, mas ele estava machucando seus pés. Pergunta se pode retirá-lo, respondo que sim. Passa, então, toda a sessão balançando os pés descalços. Ao vê-los "dançando" pelo ar, recordo-me das meias que eram incessantemente usadas no passado e do sufocamento da pele que seu uso provocava (Relato de atendimento).

Na cena, seus pés puderam ficar livres e a ausência de meias não a aterrorizava mais. A contenção psíquica e corporal já não precisava ocorrer pela via concreta, posta a conquista da experiência de integração de si e da capacidade simbólica de continência. O medo de se despir também se esvaecia. Como ela relataria em atendimento posterior, o desespero para se vestir após o banho cessara. Agora ela se enxugava com calma e, muitas vezes, arrumava o quarto ou lavava roupas ainda envolta somente com a toalha.

Novas possibilidades também se revelavam na forma de lidar com a angústia. No início do segundo ano, ocorre uma mudança ao abordar o sofrimento:

Lis conta sobre uma discussão que teve com o namorado. Após a briga, se trancou no quarto. No entanto, logo em seguida saiu e decidiu falar tudo o que estava sentindo para ele. Ao terminar de falar, diz que se sentiu calma. Ela ainda acrescenta que não está mais se mordendo ou se machucando quando fica nervosa. Agora ela "dispara" a falar e, dessa forma, consegue se acalmar (Relato de atendimento).

As agonias primitivas ante a separação do outro não emergiram nessa cena e contatar a falta parecia ter se tornado suportável. Além disso, a contenção e discriminação dos próprios sentimentos permitiam que Lis iniciasse a nomeação e elaboração de tais conteúdos, possibilitando o escoamento pulsional pela via representacional e não mais pela autoagressão física.

Como Bick (1986, p. 10) afirma, no " processo de continência lento e firme, com um trabalho prolongado", Lis caminhava "passo a passo" em direção a uma nova condição subjetiva. Ao invés de garantias ilusórias, Lis podia se tornar autocontinente e reinventar sentidos inéditos para o seu sofrimento.

 

Considerações finais

Investigou-se, nesta pesquisa, o corpo enquanto lócus de expressão do sofrimento psíquico do sujeito após a vivência de uma experiência traumática como a violência sexual incestuosa na infância.

No caso clínico abordado, a dimensão corporal se destacou por dois eixos específicos: por um lado, o corpo era testemunha do tempo primitivo do psiquismo e suporte de experiências primárias do sujeito, como a integração corporal, a busca de prazer autoerótico e as defesas contra agonias primitivas. Por outro lado, o corpo sustentava marcas da violência desorganizadora e expressava o excesso pulsional que transpassava a capacidade de simbolização.

Nesse sentido, o trabalho analítico se compôs por duas intervenções principais. Ora se fez fundamental apontar os movimentos do corpo de Lis e auxiliá-la a interpretá-los e representá-los - o que possibilitou a sua abertura ao mundo simbolicamente organizado; ora era essencial acolher e auxiliar na retranscrição psíquica da violência mortífera e do terror que se fazia inenarrável.

A experiência contratransferencial apontou o caminho das intervenções e interpretações. Enquanto analista, transitava entre a função continente materna e o campo que permitia interpelar o sujeito a contatar a falta e os limites. Eis que a condição mínima para suportar o distanciamento e a diferença do outro começou a se instituir para Lis, assim como a tolerância ao vínculo não absoluto. Nesse percurso de investimentos libidinais, interdições e castrações sucessivas, Lis acessou a condição interna continente e tangenciou a falta e o desamparo, sem sucumbir.

Do mesmo modo, a busca pela elaboração simbólica do traumático circunscreveu-se na clínica, na qual o indizível do sujeito e a experiência inenarrável muitas vezes fizeram-me acompanhar a passagem pelo horror. Isso permitiu a possibilidade de criação e reinvenção de novos sentidos para conteúdos intocados.

Sem a ingenuidade da inferência generalizadora, o caso Lis convocou à reflexão de aspectos significativos no que tange ao cuidado do sujeito. Ao versar sobre a pele de palavras edificada no campo transferencial, o trabalho permitiu pensar acerca de intervenções possíveis junto a pacientes que, ao sofrerem abalos na formação da pele psíquica, demandam contorno, bordas e limites flexíveis na relação eu-outro, dentro-fora.

Este trabalho também lançou luz à imprescindibilidade da dimensão corporal no cenário clínico. No caso analisado, o corpo era a principal via de relação e comunicação entre analista e analisanda. Pela sensibilidade perceptiva às gestualidades e movimentos expressivos corporais de Lis, foi possível acessar as suas construções subjetivas e os abalos em sua formação psíquica. A representação das manifestações do corpo e o acolhimento do impacto das forças pulsionais permitiram a reconstrução de uma cadeia associativa que fora interrompida pela clivagem traumática.

O campo analítico mostrou-se indissociável da problemática do corpo, testemunha dos não ditos e do que escapa ao discurso simbólico do sujeito. Assim, observa-se a inequívoca demanda para construção de estudos que permitam engendrar novas possibilidades interpretativas sobre as diversas formas de manifestação do corpo no contexto terapêutico, ultrapassando a leitura sobre o corpo psicossomático.

Ademais, este estudo também apontou para a gravidade dos possíveis desdobramentos da violência sexual incestuosa na infância. Tal cenário desvela a premência de avançar na construção de pesquisas que abordem intervenções clínicas e colaborem para o tratamento desses sujeitos. Além disso, a consistência teórica e prática da psicanálise no desenvolvimento da temática do traumático e da violência sexual convoca à reflexão sobre o compromisso/reponsabilidade social dos profissionais de partilhar seus saberes e trabalhar junto às instituições da rede de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil, ampliando as suas possibilidades de intervenção e atuando na prevenção, na proteção e no cuidado.

 

 

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Artigo recebido em: 20/07/2018
Aprovado para publicação em: 09/03/2020

Endereço para correspondência
Katherine Pohl
E-mail: kathe.pohl@gmail.com
Anamaria Silva Neves
E-mail: anamaria.neves@ufu.br

 

 

*Mestre em Psicanálise e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Psicóloga clínica.
**Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na London Metropolitan University, em Londres (2009-2010). Professora Associada 4 no curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.

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