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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2020

 

RESENHA

 

Entre o receio e o desejo de separação: um paradoxo na adolescência

 

 

Fernanda Lima Fonseca*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
Recherches en Psychanalyse et Pscyhopathologie na Université de Paris - França

Endereço para correspondência

 

 

Resenha de: Bernateau, I. (2010). L'adolescent et la séparation. Paris: PUF, 167 p. ISBN: 978-2-13-058102-4

 

A partir da singularidade de seis casos clínicos que se entrelaçam com a teoria psicanalítica Isée Bernateau sustenta, em seu livro, a ideia de um processo de separação na adolescência.

No primeiro capítulo a autora revisita as narrativas míticas sobre o Amor do célebre Banquete de Platão, destacando dentre elas aquela de Aristófanes: a do mito dos andróginos. Mito que nos diria sobre a violência da separação originária, remetendo-nos à cisão simbiótica entre mãe-bebê. Cisão esta necessária uma vez que contém a lei que torna possível o desejo, mas também dolorosa, pois se inscreve como uma amputação de uma unidade da qual se terá eterna nostalgia. O mito tange, assim, à dor imensurável da separação, dor que cria a paixão da separação e, em oposição, o fantasma de reunião, de unificação.

Seguindo nessa reflexão, Bernateau dialoga com alguns teóricos que se propuseram pensar o par mãe-bebê, destacando Margaret Mahler e Peter Blos, a primeira com a contribuição dos conceitos separação-individuação, o segundo com seu enfoque no processo de individuação que ocorreria por meio de etapas na adolescência. Entretanto, a autora pontua as limitações dessas duas teorias no que concerne à ideia de linearidade e de cronologia do processo de separação. Para ela, diferente do que dizem os dois autores, sujeito e objeto, estariam numa lógica dialética de separação e de união desde o nascimento até a morte. Com a ambição de compreender de que modo se constitui essa experiência, no nível intrapsíquico, durante o fenômeno da adolescência, e pretendendo, igualmente, ir além de uma definição estrutural, Isée Bernateau trabalha a metapsicologia a partir de alguns percursos e sobretudo de discursos de sujeitos por ela acompanhados, como veremos brevemente a seguir.

Irène vem em psicoterapia psicanalítica porque ficou "sem voz" durante uma prova oral, o que a assusta e a faz temer não passar no baccalauréat1. Suas primeiras associações referem-se a sua família, sobretudo a seu pai: um "muro de silêncio", uma presença insuportável. A única entre os irmãos a coabitar a casa, ela é testemunha de constantes conflitos conjugais. Em um certo momento, a fala de Irène, que era de início pessoal e personalizada, torna-se uma fala fraternal grupal e indiferenciada. O "eu (je)" é recoberto e ocultado por um "nós", e tudo se passa como se o grupo familiar estivesse em uma urgência e uma excitação em que dizer "eu" se coloca como impossibilidade.

Conforme Bernateau, a fusão do registro narcísico e do registro objetal, na adolescência, é acompanhada de uma confusão entre identidade e identificação, "levando o adolescente aos tempos primitivos de vida, bem além de uma simples regressão visada por Blos" (p. 30; tradução livre). Irène se descreve como sozinha e abandonada diante de uma família excessivamente presente. Já na relação transferencial esse conflito se vê imbricado na demanda de sustentação narcísica e na reivindicação de uma autonomia, na qual ela não pode suportar qualquer dependência em relação ao objeto. Diante dessa confusão, Irène recorre a uma indiferenciação transitória a fim de reestabelecer, dessa forma, um espaço transicional (Winnicott) que permitiria ir além da dualidade.

No segundo capítulo, Bernateau aborda as problemáticas da morte, do luto e do ódio no processo de separação a partir do caso de Octave, um adolescente que frequenta um hospital-dia por estar há dois anos em ausência escolar, encontrando-se em casa, onde interage somente com o seu computador e sua mãe. Octave diz que a morte é a única verdade da vida e que sua única aspiração é aos 18 anos sair de casa e não mais voltar.

Bernateau afirma que a adolescência seria um período em que é necessário fazer o seu luto, o luto dos pais edípicos, ou seja, objetos do passado dos quais é preciso se destacar, processo esse que seria vivenciado como uma verdadeira perda. Segundo Freud, o luto suscita, todavia, um outro paradoxo: o desinvestimento do objeto perdido passa por um superinvestimento do objeto, ou seja, o objeto perdido é, de início, excessivamente presente para o sujeito.

A fim de pensar o luto vivenciado por Octave, Bernateau aborda o conceito de "uso do objeto" de Winnicott, em que a fantasia de uma morte inconsciente possibilita passar da relação de objeto para o uso de objeto. O sujeito precisaria, assim, destruir o objeto a todo o tempo em seu inconsciente. A fantasia de morte, para alguns adolescentes pelos quais a imago materna engendra justamente uma desorganização narcísica, permitiria vislumbrar certo afastamento para com a imago materna. Entretanto, essa fantasia produziria um sentimento de culpa no adolescente, próprio dos enlutados.

Convém ressaltar também que, nesse caso, a hostilidade do adolescente em direção a seus pais também é um signo importante do processo de separação. Freud em 1915 (2006) já dizia que a relação com o objeto seria, de início, uma relação de ódio. O sujeito teria repulsa ao objeto que é fonte de desprazer, projetando-o para o mundo exterior e, ao contrário, objetos reconhecidos como fontes de prazer seriam incorporados ao Ego (Ego-prazer). Desse modo, o ódio tem um poder separador, uma vez que afasta o objeto, colocando um fim a um estado fusional em que o sujeito é confundido com o objeto. A hostilidade sentida por Octave é, portanto, confortante, pois o protege de uma ameaça ainda mais inquietante: a fusão com o objeto.

No terceiro capítulo, o caso Sylvie, por sua vez, é "emblemático de uma melancolização da separação como resposta à uma dinâmica adolescente que vem ameaçar bases narcísicas muito frágeis" (p. 71; tradução livre). Sylvie é uma jovem menina silenciosa, às vezes triste e tímida, mas também angelical, doce, quase maliciosa, de um sorriso curioso. A morte de sua avó que data sete anos foi, para ela, um grande marco, fazendo com que relate sua vida em um "antes e depois" desse acontecimento. Cada vez que alguma temática de morte é evocada Sylvie chora desesperadamente e recusa os medicamentos com a justificativa de que eles a fariam esquecer-se de sua avó.

Sylvie frequenta o hospital-dia em tempo completo, onde, dentre outras atividades, escreve contos [ nouvelle] em uma oficina de escrita com Isée Bernateau. Contos esses que falam sobre a morte e parecem metabolizar as suas interrogações sobre os defuntos. Além disso, ela passa longas horas construindo a árvore genealógica de sua família, guarda fotos e objetos de seus ancestrais em um envelope preto e fabrica um caixão de argila para o mesmo fim. Para a autora, essas relíquias que Sylvie porta revelam a busca de uma zona intermediária entre ela e o objeto perdido. As relíquias podem ser tanto uma tentativa de elaboração psíquica do luto de sua avó, quanto um fetiche que significaria a impossibilidade de simbolização da perda, escondendo o furo de uma ausência não representável.

Outrossim, Sylvie parece recusar situações de prazer e de valorização narcísica, sendo marcada por um sentimento de anulação. Ao contrário dos vivos, que poderiam lhe escapar, ela encontrou, por meio do vínculo com os mortos uma maneira de não se separar. No lugar da separação fundamental e intrínseca que constitui o nascimento, ela faz uma clivagem, o que Winnicott chamou de "negação da separação". O sujeito prefere, dessa maneira, cindir-se no lugar de aceitar uma separação que o prive, mesmo que temporariamente, do objeto.

Ainda a partir de outros detalhes sobre o discurso de Sylvie e de sua família, que revelam também uma problemática transgeracional, Isée Bernateau termina por concluir que Sylvie encontra no apego aos mortos e à morte uma forma de viver um sexual incestuoso, melancolizando-o. "Trata-se de incarnar o luto na sua carne, num movimento de estetização do sexual" (p. 96; tradução livre).

No quarto capítulo Bernateau se dedica, a partir do caso de Marc, a pensar a revivência da angústia de separação na adolescência. Marc é levado ao hospital-dia pelo seu pai após ameaçar suicidar-se. Ele não quer mais voltar ao colégio e está muito angustiado. Se fica sozinho, mesmo que por alguns instantes, Marc encontra-se completamente perdido e sente muito medo [il panique]. Ele associa essa angústia ao seu pai alcoólatra que se tornou imprevisível.

A autora revisita alguns teóricos como Bowlby, Spitz, Kohut, Bion, Winnicott, Klein, para pensar a problemática da angústia, sobretudo a angústia de separação. Na concepção freudiana, a angústia de castração ganharia destaque, pois seria a partir do complexo de édipo que "as angústias de separação, transformando-se em angústia de castração, efetuam uma retomada elaborativa que distingue o objeto do desejo do objeto edípico" (p. 103). Entretanto, a autora afirma que a angústia de Marc é um sofrimento mais fundamental. A angústia de castração seria perpassada por uma angústia de separação que prejudicaria a integridade do Ego, enunciando-se assim como angústia de aniquilação. O suicídio estaria aí como uma solução radical de separação, através de uma aniquilação de si mesmo, de maneira a evitar as consequências da separação do objeto. Essa concepção ressalta, assim, uma dimensão do fusional, de um sentimento oceânico, de um objeto demasiadamente presente. Seu desejo de suicídio, dessa forma, reúne para Marc o desejo e o horror de um incesto do qual a morte é ao mesmo tempo o seu cumprimento e a sua punição.

Já no quinto caso, é Gisèle que convida o leitor a pensar a separação na adolescência. Uma relação de amizade dual dá o nome ao capítulo: as inseparáveis. Elas se conhecem desde que nasceram e sempre estiveram juntas, para Gisèle elas são, ainda mais que irmãs, são "uma só pessoa". A noção de duplo se mostra aqui necessária. Seguindo Freud na obra "O estranho", Bernateau afirma que o duplo seria uma identificação tal que levaria o sujeito a uma despersonalização. Seria uma entidade complexa que mistura telepatia, confusão entre o sujeito e o objeto, identificação e transposição de um Ego estranho no lugar do seu. No tocante a separação, essa "interface si mesmo e o outro, torna possível uma relação ao objeto aparentemente não ameaçada por sua perda" (p. 123; tradução livre). Amar sua amiga como semelhante, assim, faz com que Gisèle se situe em um espaço entre narcisismo e relação objetal, garantindo o fusional imaginário de uma simbiose primitiva.

Por fim, é Perle que interroga a autora e o leitor. A jovem diz sofrer de dificuldade de concentração. Ela tem rêveries, ou seja imaginações, "viagens" de pensamento, que a fazem não escutar o que está a sua volta, mesmo quando rodeada de muitas pessoas. Além disso, Perle sente-se vulnerável. Ela associa essa vulnerabilidade a um sentimento de humilhação vivenciado em sua infância: crianças a mordiam e a empurravam, professores a deixavam com medo. Ainda hoje, Perle sente-se vulnerável frente a certos professores, recentemente o grito de um professor com ela a fez chorar. A jovem procurou Bernateau pois queria "sair de sua bolha".

A angústia de Perle é dupla: angústia de domínio e de desaparecimento do objeto. Ela afirma que sua mãe não a deixa tranquila, invadindo seu quarto o tempo todo. Contudo ela diz não aguentar ficar sozinha, nem sem barulho, e recorre, por exemplo, a seu ipod em alto volume para evitar o silêncio.

Depois de conhecer melhor o discurso sobre essas "viagens" de Perle, Bernateau formula a hipótese de que a díade mãe-criança dos primeiros tempos de vida teria uma mãe ameaçadora, que seria ou excessivamente próxima, na figura de uma mãe devoradora, ou excessivamente distante, o que desequilibraria as regiões mais arcaicas de seu narcisismo. O vínculo originário seria de uma insuficiência tal que tornaria a separação impossível.

Por fim a autora reflete sobre o espaço analítico. Perle, por meio de faltas e atrasos nas sessões, usa o espaço analítico para oscilar entre presença e ausência. A presença do analista possibilitaria uma continuidade narcísica, assim como no célebre jogo do carretel, do "fort-da", o qual, segundo Joel Birman (2014), é o "paradigma da experiência psicanalítica". Seria, para Bernateau, a alternância entre presença e ausência o vetor para a constituição do psiquismo humano, bem como para a "capacidade de estar só em presença do outro" abordada por Winnicott. Não existindo ausência sem presença, essa alternância torna suportável para o sujeito tanto a separação quanto a presença do outro.

Indiferenciação, fetiche, luto, melancolia, suicídio, relação de duplo, dificuldade de concentração, analista presente-ausente. O processo de separação na adolescência porta muitos questionamentos teórico-clínicos no que diz respeito às formas de subjetivação de sujeitos adolescentes. A separação, seria, portanto, um paradoxo entre o medo de ser separado e o medo de não ser separado, já que esse receio seria, também, um desejo de separação. Nesse livro, foi possível a Isée Bernateau, trabalhar a metapsicologia psicanalítica por meio da singularidade de sujeitos que vivenciam esse paradoxo na carne, no corpo pulsional e que defrontam-se com isso como podem, com seus impasses e sintomas. Conclui-se, assim, nas palavras da autora que: "em um sujeito que só pode pretender a unidade e que é separado da parte mais viva de seu psiquismo, o processo de separação tem como questão criar o espaço e o tempo de um nascimento de si mesmo" (p. 160; tradução livre).

 

 

Referências

Birman, J. (2014). Arquivo e memória da experiência psicanalítica: Ferenczi antes de Freud, depois de Lacan. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Os instintos e suas vicissitudes. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1915)        [ Links ]

Platão (2000/2003). O banquete. Minas Gerais: Virtual Books online M&M editores Ltda. Recuperado em 30 jun. 2018 de <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/O_banquete.pdf>         [ Links ].

Winnicott, W. D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1971).         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 23/10/2018
Aprovado para publicação em: 12/03/2020

Endereço para correspondência
Fernanda Lima Fonseca
E-mail: fernandahlima@gmail.com

 

 

*Psicóloga (UFSC). Mestre em Psychanalyse et Recherches Interdisciplinaires (Paris Diderot). Doutoranda sob o regime cotutela em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Recherches en Psychanalyse et Pscyhopathologie na Université de Paris.
1Prova que permite o ingresso no ensino superior francês. Comparável ao ENEM brasileiro.

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