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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Lacan, as normas de parentesco e a castração masculina

 

Lacan, kinship norms and masculine castration

 

Lacan, las normas del parentesco y la castración masculina

 

 

Vinícius Moreira Lima*

Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, tentamos apresentar algumas contribuições da psicanálise lacaniana a certos pontos de tensionamento levantados pelas autoras feministas Gayle Rubin e Judith Butler. Partimos da constatação de que ambas autoras abordam a teoria psicanalítica a partir da concepção de parentesco de Lévi-Strauss cuja consequência é, em alguns momentos, reduzir a psicanálise a um instrumento de reiteração das normas sociais que ela tenciona descrever. Diferentemente, buscamos argumentar que, ao abordar o problema do Pai e do falo na psicanálise, a obra de Lacan nos abre a possibilidade de sustentar uma distância crítica em relação a essas normas, particularmente a partir da posição do psicanalista, que recolhe da clínica os fracassos do funcionamento normativo do social. Assim, além dos semblantes de poder e consistência disseminados pelo ideal viril, somos levados a observar que o patriarcado se sustenta por um mito neurótico, ao passo que o falo no real (a despeito das insígnias fálicas que parecem conferir um privilégio simbólico aos seus portadores) constitui uma aflição para o macho, destituindo-o de qualquer segurança na abordagem do sexo. Diante disso, levantamos a hipótese de que as normas sociais buscam encobrir precisamente a castração paterna e a angústia masculina diante do falo, que ficam ocultas sob os semblantes da virilidade.

Palavras-chave: psicanálise, patriarcado, Nome-do-Pai, falo, castração.


ABSTRACT

In this work, we try to present some contributions of Lacanian psychoanalysis to a few points of tension sustained by feminist theorists Gayle Rubin and Judith Butler. We find our point of departure in acknowledging the fact that these authors read Lacan alongside with the theory of kinship by Lévi-Strauss, which implies that psychoanalysis is sometimes reduced to an instrument of reiteration of the social norms it intends to describe. Differently, we try to argue that, in addressing the problem of the Father and of the phallus in psychoanalytic theory, Lacan's work opens up the possibility of sustaining a critical distance in relation to these norms, particularly from the position of the psychoanalyst, who gathers from its clinic the failures of the normative functioning of the social. Thus, beyond the semblances of power and consistency disseminated by the virile ideal, we are drawn to observe that patriarchy only sustains itself with a neurotic myth, meanwhile the phallus in the real (in spite of the phallic markers that seem to confer a symbolic privilege to its bearers) constitutes an affliction to the male, dismissing him from any security in its approach to sex. Hence, we sustain the hypothesis that social norms seek to cover up paternal castration and the masculine anxiety before the phallus, which remain hidden by the semblances of virility.

Keywords: psychoanalysis, patriarchy, Name-of-the-Father, phallus, castration.


RESUMEN

En este trabajo, intentamos presentar algunas contribuciones del psicoanálisis lacaniano a ciertos puntos de tensionamento levantados por las autoras feministas Gayle Rubin y Judith Butler. Partimos de la constatación de que esas dos autoras toman la teoría psicoanalítica a partir de la concepción de parentesco de Lévi-Strauss, algo cuya consecuencia, en algunos momentos, es de reducir el psicoanálisis a un instrumento de reiteración de las normas sociales que ella pretende describir. Diferentemente, buscamos argumentar que, al abordar el problema del Padre y del falo en la teoría psicoanalítica, la obra de Lacan nos abre la posibilidad de sustentar una distancia crítica en relación a esas normas, particularmente a partir de la posición del psicoanalista, que recoge de la clínica los fracasos del funcionamiento normativo del social. Así, más allá de los semblantes de poder y consistencia diseminados por el ideal viril, somos llevados a observar que el patriarcado solo se sustenta por un mito neurótico, mientras que el falo en lo real (no obstante las insignias fálicas que parecen conferir un privilegio simbólico a sus portadores) constituye una aflicción para el macho, destituyéndolo de cualquier seguranza en el abordaje del sexo. Por lo tanto, planteamos la hipótesis de que las normas sociales buscan encubrir precisamente la castración paterna y la angustia masculina ante el falo, que quedan ocultas bajo los semblantes de la virilidad.

Palabras clave: psicoanálisis, patriarcado, Nombre-del-Padre, falo, castración.


 

 

A apropriação lacaniana de Lévi-Strauss está centrada na
proibição do incesto e na regra da exogamia [...]. Para Lacan,
a Lei que proíbe a união incestuosa entre o menino e a mãe
inaugura as estruturas de parentesco.

J. Butler, Problemas de gênero, p. 83-84

Lacan sugere que a psicanálise é o estudo dos vestígios
deixados no psiquismo dos indivíduos como resultado de seu
enquadramento nos sistemas de parentesco.

G. Rubin, "O tráfico de mulheres", p. 39

Gayle Rubin e Judith Butler são duas autoras feministas cujo percurso é atravessado por um frutífero debate com a psicanálise lacaniana, ora se apropriando de suas ferramentas para pensar os problemas de gênero e sexualidade, ora fazendo importantes críticas à maneira pela qual essa teoria se organiza. Partimos da constatação de que, ao tentarem evidenciar como as estruturas masculinistas do poder operam na constituição do sujeito, ambas essas autoras adentram a obra de Lacan fundamentalmente a partir da teoria do parentesco do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o que, em alguns momentos, tem como consequência o gesto de reduzir a psicanálise a um instrumento de reiteração das normas sociais que ela tenciona descrever.

Diante disso, buscamos argumentar que, ao abordar o problema do Pai e do falo na teoria psicanalítica, a obra de Lacan nos abre a possibilidade de sustentar uma distância crítica em relação a essas normas, particularmente a partir da posição do psicanalista, que recolhe da clínica os fracassos do funcionamento normativo do social. Assim, explorando alguns dos desdobramentos lacanianos mais tardios, que dão novo alcance àquilo que ele havia formulado no começo de seu ensino, somos levados a observar que o patriarcado se sustenta por um mito neurótico, ao passo que o falo no real (a despeito das insígnias fálicas que parecem conferir um privilégio simbólico aos seus portadores) constitui uma aflição para o macho, destituindo-o de qualquer segurança na abordagem do sexo.

Dessa forma, nosso objetivo aqui é apresentar algumas contribuições teórico-clínicas da psicanálise para pensar os problemas de gênero levando em conta esses dois aspectos quanto ao pai e ao falo que reunimos aqui sob a rubrica da castração masculina. Trata-se, com isso, de não nos deixarmos enganar pelos semblantes de poder e consistência que são disseminados pelo ideal viril, tomando o masculino mais além das ilusões identitárias da virilidade. Essa suposição da consistência fálica dos homens e da ordem simbólica nos parece ser preservada em alguns momentos dos trabalhos de Rubin e Butler, algo que buscaremos evidenciar a partir de uma leitura do ensaio "O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo" (Rubin, 1975/2017) e do livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (Butler, 1990/2015).

 

Problemas de parentesco

Rubin (1975/2017, p. 10), em seu decisivo ensaio de 1975, propõe uma leitura conjunta de Freud e Lévi-Strauss a fim de mostrar, à revelia da intenção desses autores, o modo como seus trabalhos evidenciam os fundamentos da domesticação das mulheres pelos homens. Para a antropóloga, a obra dos dois pensadores contém, implicitamente, os sistemas de relações pelas quais a mulher se torna uma presa para o homem. Tal organização, que comporia os sistemas de parentesco, seria uma forma empírica de observar o "sistema sexo/gênero" em funcionamento, tomado enquanto a rede de arranjos pelos quais a sociedade transformaria a sexualidade biológica - o que quer que seja isso - em produtos da atividade humana que possam satisfazer as "necessidades sexuais" assim transformadas (Rubin, 1975/2017, p. 11).

Dessa forma, trata-se, para Rubin (1975/2017, p. 22), de estudar a opressão sexual a partir de uma teoria do parentesco, atualizando o projeto de Friedrich Engels com o amadurecimento antropológico que ela encontra em Lévi-Strauss. Em sua leitura de As estruturas elementares do parentesco, a antropóloga considera que, ali, Lévi-Strauss formulou "uma teoria implícita da opressão sexual" por situar a essência dos sistemas de parentesco "na troca de mulheres entre os homens". Como consequência, as mulheres ocupariam um lugar de objeto de troca, de um presente precioso entre os homens e seus laços exogâmicos entre os clãs. Assim, a "troca de mulheres" sinalizaria relações de parentesco que especificam "certos direitos dos homens sobre suas parentes mulheres", enquanto as mulheres não possuem os mesmos direitos, nem sobre elas próprias, nem sobre seus parentes homens (Rubin, 1975/2017, p. 29).

Partindo dessa leitura crítica sobre Lévi-Strauss, Rubin (1975/2017, p. 35) também afirma que a antropologia e o parentesco não explicariam os mecanismos de inscrição do sexo e do gênero nas crianças; a psicanálise é que teria essa função, pelo fato de ela ser uma teoria que, sob sua perspectiva, trata da reprodução das relações do parentesco. A autora chega a recortar certos trechos da obra lacaniana a fim de sustentar que, para Lacan, a psicanálise seria o "estudo dos vestígios deixados no psiquismo dos indivíduos como resultado de seu enquadramento nos sistemas de parentesco" (Rubin, 1975/2017, p. 39). Se o parentesco seria a culturalização de uma pretensa natureza sexual, a teoria psicanalítica descreveria, na visão de Rubin, a "transformação da sexualidade biológica dos indivíduos pelo processo de enculturação" (Rubin, 1975/2017, p. 40).

Nessa esteira, procurando inserir a releitura lacaniana do falo simbólico na teoria de Freud sobre a constituição edipiana do sujeito, Rubin (1975/2017) considera que o falo seria um "traço distintivo" que define castrados e não-castrados, a partir de sua presença ou ausência. Segundo a antropóloga, "o falo também comporta um sentido de dominação dos homens sobre as mulheres, e pode-se inferir que a 'inveja do pênis' é um reconhecimento disso" (Rubin, 1975/2017, p. 42-43). Portanto, na leitura de Rubin, o falo não é apenas uma característica que distingue os sexos; mais do que isso, ele seria "a encarnação do status masculino, com o qual os homens consentem" (Rubin, 1975/2017, p. 43), e que inclusive daria "direito a uma mulher" na esteira das trocas de parentesco. Mais ainda, o falo também seria responsável por expressar a "transmissão do domínio masculino" (Rubin, 1975/2017, p. 43).

Butler (1990/2015), por sua vez, sofre importante influência desse ensaio de Rubin, que viria gerar uma inflexão decisiva na discussão sobre o falo contida em Problemas de gênero, conceito que ela lê na esteira das trocas do parentesco, tal como iniciado pela antropóloga. A autora retoma e aprofunda, à sua maneira, essa exegese de Rubin sobre alguns textos da psicanálise (Butler, 1990/2015, p. 130); de certo modo, Butler parte do ponto onde Rubin deixou seu trabalho, incrementando a leitura com algumas contribuições de Foucault e com o debate freudiano sobre luto e melancolia para pensar a constituição do gênero, ponto que demarca a originalidade de seu trabalho em relação à leitura de Rubin.

Se há, por um lado, uma influência marcante de Rubin no trabalho de Butler (por exemplo, nas formulações sobre o tabu da homossexualidade anterior ao tabu do incesto e na forma de ler a psicanálise em conjunto com Lévi-Strauss), por outro lado a filósofa já avança em relação à antropóloga ao não pressupor uma utopia libertária em relação à sexualidade, algo que marca presença como um dos pontos fracos de "O tráfico de mulheres", como a própria Rubin reconheceu mais tarde (Rubin, & Butler, 2003, p. 162). Partindo da crítica a qualquer elemento postulado como originário ou anterior à Lei, Butler (1990/2015) produz uma releitura da proposta de Rubin numa perspectiva que mescla o uso de Foucault com sua interpretação sobre Lacan, concentrada no escrito "A significação do falo" e nas autoras de língua inglesa que estudavam a obra lacaniana nessa época, a exemplo de Jacqueline Rose.

Butler (1990/2015) inicia o capítulo em que discute a teoria lacaniana por uma crítica aos pressupostos do estruturalismo de Lévi-Strauss. A filósofa localiza, na proposta do antropólogo, a postulação de uma lógica universal de trocas em que se confere uma identidade aos homens (a partir do símbolo fálico) e sua negação, ausência, falta relacional, às mulheres. Mas, se Lévi-Strauss pressupõe essa troca de mulheres como estando na origem da cultura, a filósofa aponta que sua dupla condição, o tabu do incesto e a instituição da exogamia (que, tal como ela o entende, seriam para o antropólogo uma Lei estrutural, fundadora da cultura), não passaria de um arranjo cultural contingente que pressupõe uma heterossexualidade natural na constituição do sujeito e postula a necessidade da posição de objeto de troca para as mulheres em função da igualmente presumida agência sexual masculina (Butler, 1990/2015, p. 83).

Butler (1990/2015) considera que Lacan constrói sua teoria a partir desses dois elementos que ele encontra em Lévi-Strauss (a proibição do incesto e a regra da exogamia). No entendimento da filósofa sobre a obra lacaniana, a linguagem seria fundada a partir da Lei que proíbe o desejo incestuoso pela mãe. Com isso, o Simbólico instituiria, pela Lei paterna, as duas únicas posições possíveis para o sujeito, ser ou ter o falo (Butler, 1990/2015, p. 83-84), que confirmariam uma economia masculinista de significação responsável pelos circuitos da dominação (Butler, 1990/2015, p. 86). Assim, em sua leitura do esquema lacaniano, o falo viria assegurar o poder dos homens, conferindo-lhes uma aparência de autonomia e auto-referência, enquanto que às mulheres restaria paradoxalmente o lugar de reafirmar essa posição do homem, sua identidade fálica, ao serem o falo para um desejo masculino heterossexualizado (Butler, 1990/2015, p. 85). O "conflito da masculinidade" seria então reduzido a uma "demanda de um reconhecimento pleno" de sua autonomia, que sustentaria a promessa de um retorno aos prazeres anteriores ao recalcamento e à individuação (Butler, 1990/2015, p. 87).

Assim, Butler (1990/2015) parece supor que, na teoria lacaniana, a posição simbólica do homem lhe forneceria alguma espécie de garantia a partir de seu pretenso lugar de "ter" o falo. Essa decisão de leitura aparece de modo exemplar na interpretação de Butler sobre uma passagem de "A significação do falo", na qual Lacan (1958a/1998, p. 701) sustenta que o significante fálico produz a intervenção de um parecer que substitui o ter, para se referir ao estatuto universal da castração, no sentido de que nem os homens nem as mulheres têm efetivamente o falo. Com a consequência de que, do lado dos homens, o semblante fálico viria proteger o desvelamento dessa verdade (de que o pênis é francamente insuficiente) e, do lado das mulheres, mascarar sua ausência, fazendo suplência a isso por meio do jogo fálico com o corpo, a mascarada.

No lugar de extrair consequências do fato de que todo ser falante é castrado, inclusive os homens, a leitura de Butler (1990/2015, p. 83) acaba por supor que essa passagem lacaniana estaria tratando apenas das mulheres, como se se afirmasse ali que elas precisariam esconder sua "falta" e ser protegidas por apresentarem algum tipo de carência. Essa interpretação parece sustentar uma chave de leitura que supõe a consistência fálica dos homens e deixa de lado a divisão do sujeito masculino tal como recolhida pela clínica psicanalítica, a qual nos dá acesso a uma dimensão diferente daquela que é pressuposta em "O tráfico de mulheres" e em Problemas de gênero.

Mas, ao considerarem que a economia fálica do discurso é uma organização que demarca o poder dos homens sobre as mulheres, tanto Butler quanto Rubin parecem estar interessadas menos numa exegese fina e precisa da teoria psicanalítica do que numa crítica feminista sobre as trocas exogâmicas de mulheres nos sistemas de parentesco heterossexual - crítica que, vale dizer, permanece fundamentalmente atual em nossa cultura. O resultado dessa perspectiva, que tem a ver com o objetivo e o recorte das autoras, é que elas acabam por se servir da teoria psicanalítica para construir um cenário teórico em que se narra a dominação dos homens sobre as mulheres a partir de uma economia falocêntrica do discurso.

Ainda que essa concepção certamente reflita de maneira bastante precisa o modo de organização social de nossa cultura, cabe ao psicanalista explicitar de que forma ele recolhe de sua clínica os fracassos do funcionamento normativo do social, apontando para a necessidade de sustentar, a partir de sua posição ética, uma distância crítica em relação à naturalização dessas normas. Inclusive porque, tal como se apresentam na experiência analítica, os conflitos da masculinidade podem nos auxiliar a pensar a articulação existente entre o fracasso do ideal viril e as tentativas de dominação social, que buscam encobrir esse mesmo fracasso a partir dos semblantes de poder e consistência que ocultam a castração masculina.

É certo que Rubin e Butler não são entusiastas da ideia de um patriarcado que comandaria a dominação de gênero e sexualidade. Pelo contrário, cada uma pensa alternativas conceituais para esse debate, com o sistema sexo/gênero (Rubin, 1975/2017, p. 11) e a teoria da performatividade (Butler, 1990/2015, p. 77). Na mesma esteira, a psicanálise também não acredita nessa ideia; pelo contrário, ela formaliza os engodos que a estruturam. Definiremos aqui o patriarcado como a lógica da dominação masculina que seria organizada pelo Nome-do-Pai e assegurada pelo falo. Nesse cenário, o pai seria localizado como um espoliador do gozo, que tem livre acesso ao desejo e detém todas as mulheres, enquanto o falo seria o cetro que consolida o poder dos homens sobre as fêmeas da espécie. Ao descrever o funcionamento desse engodo, a psicanálise se situa como dispositivo crítico a essa organização social, permitindo desvelar, a partir da experiência analítica, de que forma as ficções que estruturam o ideal viril são assombradas pela castração masculina, a qual se tenta esconder a todo custo.

 

O patriarcado é um mito do neurótico

Começaremos, portanto, pela discussão de um episódio infantil narrado por Freud (1900/2019) para sustentar a hipótese de que o patriarcado se sustenta, no fundo, por um mito do neurótico para se haver com a insuficiência do pai. É em A interpretação dos sonhos que encontramos um relato de quando o pequeno Sigmund passou a acompanhar o pai, Jacob Freud, em caminhadas nas quais este último partilhava com o filho algumas de suas visões de mundo. Numa dessas caminhadas, o pai narra um antigo acontecimento em que um cristão o aborda na rua, atirando à força o gorro do jovem Jacob na lama e gritando "Judeu, desça da calçada!", ao que ele mansamente obedeceu - para decepção do filho. Afetado por essa lembrança, Freud, o psicanalista, escreve:

Essa postura me pareceu pouco heroica para o homem grande e forte que segurava o garoto pela mão. Então contrapus a essa situação, que não me satisfazia, outra, que correspondia melhor ao meu sentimento, a cena em que Amílcar Barca, o pai de Aníbal, faz seu filho jurar perante o altar de sua casa que se vingará dos romanos. Desde então Aníbal ocupava um lugar em minhas fantasias (Freud, 1900/2019, p. 233-234).

Essa passagem, ao apresentar a descoberta freudiana da castração paterna, nos ensina de forma contundente que o pai que o sujeito encontra na experiência nunca está à altura da função do Nome-do-Pai: trata-se sempre de um pai decaído, jogado, humilhado, impotente. Diante dessa descoberta, Freud (1900/2019) nos conta que ele imediatamente se refugiou em seus devaneios, fantasiando com o general Aníbal - com o qual se identificava em seu ideal guerreiro -, enquanto filho de um Pai grandioso, que responderia bravamente aos ataques do Outro, ao convocar o filho para uma heroica vingança. Ao imaginar a exceção de um Pai que escapa à castração, Freud nos revela a verdade da contradição entre o Pai onipotente fantasiado pelo neurótico (um Pai que goza de todas as mulheres e dá consistência ao conjunto dos homens) e o pai castrado de sua experiência, que escancara a ausência de garantias no campo do Outro para a posição do sujeito (Lacan, 1958-1959/2016).

Assim, o neurótico se defende dessa verdade ao ancorar sua posição de gozo na crença subjetiva de que existe ao menos Um que escapa à castração: um Pai efetivamente gozador que daria consistência ao ideal viril (Lacan, 1972-1973/2008). Diferentemente dessa figura mítica, o pai ao qual o neurótico, como Freud, dedica seu amor é sempre, até certo ponto, "um personagem manco" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 218). Isso a ponto de Lacan afirmar que "é justamente porque Freud amava seu pai que foi preciso que ele tornasse a lhe dar uma estatura, até chegar a lhe dar esse tamanho do gigante da horda primeva" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 361).

Desse modo, esse pai da exceção não passa de uma ficção neurótica; talvez o grande desafio clínico em uma experiência de análise seja o de consentir com a inexistência dessa exceção, o que franqueia contingencialmente uma abertura eventual do sujeito a algo do não-todo, mais além do ideal viril. Operação que implica reconhecer que não existe ao menos um que não esteja submetido à estranheza do seu próprio gozo, algo que permite ao analisante se haver com a inconsistência estrutural que assombra o ser falante, em função da ausência de garantias no campo do Outro para assegurar o sujeito quanto à sua posição como homem ou mulher. Em suma, o pai onipotente e gozador, que daria esteio ao funcionamento do patriarcado, só existe como um mito do neurótico, já que não existe esse homem dominador, espoliador do gozo, com livre acesso ao desejo e ao conjunto de todas as mulheres - ele será sempre assombrado pela sua própria castração, mesmo que dela não queira saber.

Talvez Lacan tenha ficado bastante conhecido pela metáfora paterna, construída em sua forma clássica no Seminário 5, enquanto uma releitura estrutural do Édipo freudiano; Butler mesmo acabou centrando seus debates na questão da Lei paterna tal como elaborada em 1958. A consequência dessa decisão de leitura é que ela supõe na teoria lacaniana uma espécie de consistência conferida ao sujeito masculino que não teria de se haver com o furo, uma vez protegido pela suposta garantia do Pai. No entanto, mesmo nesse momento de seu ensino, Lacan (1957-1958/1999) não parece pensar a função do psicanalista como um defensor da ordem simbólica, a qual efetivamente agencia a dominação social a partir dos sistemas de parentesco heterossexual. Diferentemente, o projeto de Lacan se apresenta como uma "crítica das identificações normativas, precisamente, do homem e da mulher" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 315).

Dessa forma, ao descrever o funcionamento das normas sociais, o psicanalista não necessariamente se coloca do lado de sua reiteração; antes, por descrevê-las, ele pode justamente assumir uma distância crítica em relação a elas, a partir daquilo para o qual a ética da psicanálise o convoca (Lacan, 1959-1960/2008, p. 354). A saber, trata-se de acompanhar as soluções de cada sujeito para se desembaraçar, em seu percurso, da incidência indesejada das normas a fim de se posicionar de maneira mais afinada com o seu desejo. Essa ética se assenta sobre a inexistência de um Outro do Outro (Teixeira, 1999, p. 165), que implica que não há uma garantia para o destino que cada um dará às normas do Outro que incidem sobre sua trajetória.

Com o objetivo, então, de fazer avançar o panorama teórico que Rubin e Butler encontram até o momento de 1958 na obra lacaniana, cabe a nós, psicanalistas, contribuir para a discussão aí introduzindo alguns dos passos propostos por Lacan a partir do Seminário 6. Se, no Seminário 5, o psicanalista francês acreditava que o Nome-do-Pai daria uma garantia ao funcionamento da ordem simbólica, constituindo assim um Outro do Outro (Lacan, 1957-1958/1999, p. 474), já no seminário seguinte Lacan (1958-1959/2016, p. 322) retifica sua concepção e afirma que não há esse Outro do Outro, ou seja, não há nada que forneça um fundamento seguro para a autoridade da ordem simbólica, colocando em questão "o patriarcado, a prevalência do pai" (Miller, 2013, par. 6). Podemos considerar, portanto, que a consequência dessa afirmação é que não existe uma garantia para o masculino; isto é, que o próprio regime fálico do Nome-do-Pai é perpetuamente assombrado pelo S(Ⱥ), o significante da falta no Outro, que ainda seria posteriormente retrabalhado (Lacan, 1975-1976/2007, p. 130) como o verdadeiro furo no real.

Como resultado, se, em 1957-1958, o Nome-do-Pai vinha metaforizar o desejo da mãe, lastreando o campo do Outro, em 1958-1959, por sua vez, avançando para além do Édipo, o Outro não mais responde pelo ser do sujeito, não é capaz de fornecer a garantia pedida pelo sujeito para se inserir na ordem simbólica, escancarando seu ponto de furo. A consequência disso é que, para funcionar, o simbólico depende da crença subjetiva da criança, isto é, que ela suponha no Outro uma boa-fé. O sujeito precisa consentir com o Outro, ser um fiador de sua palavra, deixar-se capturar num engodo constitutivo da linguagem para que o significante possa operar (Lacan, 1958-1959/2016, p. 399). Corolário disso é o fato de que, em Lacan, o Pai é sem garantias; sua castração se escancara por ele aparecer na experiência como um pai carente, humilhado, impotente (Lacan, 1960-1961/2010, p. 357; Lacan, 1958-1959/2016, p. 367).

Assim, temos a oportunidade de reler certas passagens de Lacan da década de 1950 à luz de algumas consequências trazidas para sua teoria pela escrita do S(Ⱥ). Em um momento do Seminário 5, Lacan (1957-1958/1999, p. 176) considerava que, no declínio do Édipo, o menino recebia do pai uma espécie de promissória, um "título de posse", de "propriedade", que ele carrega no bolso para posteriormente tomar para si uma mulher, na medida em que ele tem o falo, autorizado por seu pai e a ele identificado (Lacan, 1957-1958/1999, p. 212). Esse trecho parece ecoar de forma decisiva as leituras de Rubin e de Butler sobre Lacan feitas a partir do esquema de trocas em Lévi-Strauss.

No entanto, a partir do matema S(Ⱥ), podemos constatar que a promessa fálica associada com os sistemas de parentesco heterossexual já funciona como um véu para a castração, para o fato de que o pai não é capaz de garantir ao sujeito o acesso a uma mulher. A organização simbólica dos sistemas de parentesco já seria uma forma de defesa contra esse furo, contra a ausência de uma garantia para qualquer norma social que busque determinar as parcerias e o gozo do ser falante. Nesse cenário, as tentativas de orquestrar a dominação dos homens sobre as mulheres ocultam, pelo contrário, a castração masculina, na medida em que, se não há Outro do Outro, o Nome-do-Pai não passa de um semblante, que depende, portanto, de uma crença subjetiva, de um consentimento do sujeito para poder operar, mas sem nenhuma garantia para seu funcionamento.

Dessa maneira, se o Pai todo-poderoso se restringe a um mito do neurótico, que ancora a lógica de sua sexuação, a dominação social só pode "funcionar" (se é que podemos dizer que funciona) se o sujeito estiver comprometido com a crença neurótica nesse regime do todo fálico organizado por uma exceção mítica, que não esgota o gozo do ser falante, assombrado pela dimensão do não-todo. Tais formulações também têm efeitos na posição conferida ao falo dentro da economia sexuada do sujeito, pois, a despeito do privilégio simbólico que as insígnias fálicas parecem conferir aos seus portadores, a experiência analítica nos dá acesso ao fato de que, ao contrário de uma garantia, o falo no real constitui uma aflição para o macho, destituindo-o de qualquer segurança na abordagem do sexo.

 

O falo é uma aflição para o macho

Como vimos nas leituras de Rubin e Butler sobre o falo simbólico, este operador parece ser tomado como um cetro do poder masculino, que coroaria a vistosa posse dos homens enquanto uma garantia identitária de sua dominação sobre as mulheres. No entanto, para além dos privilégios simbólicos dos quais os homens desfrutam em função do ideal viril, a clínica psicanalítica nos indica que, no fundo, a experiência corporal de posse do falo não se restringe a sua dimensão simbólica idealizada. A despeito da aparência de conforto trazida pelos semblantes da virilidade, o falo no real não deixa de ser uma aflição para o macho, testemunhando de sua angústia diante da ausência de controle do sujeito quanto às contingências que governam a ereção e a detumescência do órgão. Parece ser justamente essa dimensão real da angústia que os privilégios simbólicos da dominação masculina tencionam encobrir.

Para discutir essa dimensão de sofrimento que não se deixa domesticar pelos ideais simbólicos recorreremos aqui ao caso freudiano do pequeno Hans, que nos ensina que o falo não é senão um estorvo corporal, na medida em que ele se apresenta para a criança pelo caráter enigmático das primeiras ereções vividas por ela. Retomando alguns aspectos do caso narrado por Freud, Lacan (1956-1957/1995, p. 231) se detém no momento da infância de Hans em que "o seu próprio pênis começa a tornar-se alguma coisa completamente real. Seu pênis começa a agitar, e a criança começa a se masturbar". Algo que, no entanto, sua mãe não aprova: o pênis de Hans é apreciado como objeto (por exemplo, nos cuidados maternos), mas depreciado como desejo (Lacan, 1960-1961/2010).

Essa angústia diante das primeiras ereções, que contrasta com o paraíso do engodo em que a criança pretensamente vivera até aí com sua mãe, confronta o sujeito com o fato de que o que ele tem para apresentar para o Outro é "algo de miserável" (Lacan, 1956-1957/1995, p. 232). Numa releitura desse Seminário a posteriori, podemos pensar essa dimensão real do pênis como algo que escapa ao sujeito radicalmente, um inassimilável do gozo que resiste à simbolização, que perturba a pretensa harmonia imaginária do seu corpo e desmonta a miragem narcísica que organiza sua posição para o Outro até então, produzindo angústia.

Frente a esse "estremecimento" vivido por Hans, sua mãe não poderia ser mais precisa: "É uma grande porcaria" (Lacan, 1960-1961/2010, p. 272; grifos no original). Trata-se da repugnância do desejo, da porcaria que o falo representa como elemento perturbador do sujeito, algo que introduz para o ser falante o gozo como aquilo que o chateia. Essa irrupção da sexualidade é sempre vivida como traumática; como no caso de Hans, por mais que o sujeito tente dar sentido a algo do gozo que lhe aparece aí, ele jamais experimenta o pênis como ligado a ele naturalmente; parece sempre se tratar de um elemento traumático, exterior ao corpo, como "um cavalo que começa a se levantar e dar coices" (Lacan, 1975/1995, p. 17).

Por outro lado, como encontramos em outro caso freudiano, dessa vez no Homem dos Ratos, ainda que a ereção seja um elemento de alguma forma (mas até certo ponto) integrável ao narcisismo do sujeito, mesmo a exibição fálica encontra seu pano de fundo num certo "receio de desinflar", que marca a experiência do neurótico (Lacan, 1960-1961/2010, p. 319). Diferentemente de assegurar uma garantia para o macho, o falo se apresenta ao sujeito por sua característica de detumescência: quando o órgão dito fálico é convocado a funcionar em sua imponência, ele se revela na maioria das vezes como não sendo mais que um "trapinho" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 288), isto é, um pedaço de carne que, por não oferecer nenhuma segurança quanto à sua virilidade, acaba por angustiar o sujeito pela possibilidade de sua desaparição.

É isso que se passa quando o Homem dos Ratos busca, diante do espelho, observar sua própria posse fálica como se se tratasse de uma eminência viril, mas se vê assombrado pela possibilidade de seu pênis ser "muito pequeno" (Freud, 1909/1996, p. 260). Assim, a despeito da glória da ereção, o sujeito permanece dividido pela precariedade fálica de algo que a todo instante corre o risco de murchar, ou mesmo revelar em sua insuficiência. Desse modo, ao ostentar o falo simbólico como cetro do poder, a dominação social dos homens sobre as mulheres pode operar como forma de desconhecer essa fratura íntima que angustia o sujeito ao recobrir, com os semblantes da virilidade, o falo detumescente enquanto verdadeiro embaraço do macho. É por isso que, no Seminário 22, Lacan (1974-1975) abordará o falo no real como uma "aphlição" (com o "ph" advindo do termo "phallus") para o sujeito, destituído da possibilidade de uma mestria absoluta em relação a seu corpo, que sempre escapa a seu controle.

Nessa medida, tais experiências extraídas da clínica psicanalítica podem contribuir para as leituras de Rubin (1975/2017) e de Butler (1990/2015) aqui discutidas, as quais acabam por deixar em segundo plano, cada uma a seu modo, a estrutura da castração masculina, que fica oculta sob os privilégios simbólicos orquestrados pelos sistemas de parentesco heterossexual estudados por Lévi-Strauss. No caso de Rubin (1975/2017), a autora parece considerar os homens como uma espécie de mestre não-castrado que poderia dominar uma mulher sob a chancela do Pai. Nesse raciocínio, está implicada a crença numa ilusão de consistência que é vendida pelo universo masculino e seus semblantes da virilidade. Assim, a antropóloga deixa de problematizar o engodo inerente à lógica masculina da sexuação, que precisa que o sujeito acredite que o falo assegura a dominação para que ele possa operar como tal.

Diferentemente disso, a castração paterna faz com que não haja nada de garantido para o sujeito no momento do encontro com o sexo, de forma que essa partição entre quem tem e quem não tem o falo acaba por permitir supor que quem se aloja na posição do ter goza de uma garantia que na verdade não existe. Sustentar essa ilusão parece ser a estratégia do patriarcado para operar sua dominação, que, no entanto, não encontra nenhum esteio fora dos seus próprios enunciados de autoridade, na medida em que o pai é castrado e não há Outro do Outro para estabilizar a ordem simbólica. Assim, a inveja do pênis (ou do falo) só pode existir a partir de uma posição que acredita na consistência fálica, que compra a ilusão vendida pelos semblantes viris e que pode, por isso, invejá-los ou reivindicá-los, incorporando o mesmo engodo que procurava denunciar. Raciocínio que nos convida a pensar formas de resistência à dominação que nos conduzam além da lógica fálica.

No caso de Butler (1990/2015), por sua vez, ao descrever a comédia dos sexos em Lacan, a filósofa parece mimetizar o esquema das trocas do parentesco heterossexual herdadas de Lévi-Strauss, com a consequência de que as normas do simbólico parecem se tornar um destino incontornável para o sujeito. Esse gesto tem a consequência de supor que o falo é aquilo que funda para o homem a confortável condição de quem o tem enquanto um símbolo consistente da identidade masculina performativamente estabelecida. No entanto, a assimilação da lógica do falo ao cenário normativo do parentesco apresentado pelo antropólogo enrijece o seu modo de funcionamento, transformando-o em uma repetição forçada das identificações seguindo o roteiro das normas sociais. Tal perspectiva deixa de lado o fato - salientado pela própria Butler (1993) em outros momentos de sua obra - de que as identificações excedem esses roteiros normativos, possibilitando que um sujeito se posicione de modos que vão além das determinações da tradição:

homens desejando "ser" o falo para outros homens, mulheres desejando "ter" o falo para outras mulheres, mulheres desejando "ser" o falo para outras mulheres, homens desejando tanto ter quanto ser o falo para outros homens [...], homens desejando "ser" o falo para uma mulher que o "tenha", mulheres desejando "tê-lo" para um homem que o "é" (Butler, 1993, p. 103; tradução nossa).

Assim, se, por um lado, há um Outro que busca determinar a posição do sujeito a partir da incidência simbólica das normas sobre seu corpo, por outro lado não há um Outro desse Outro que possa garantir que sua determinação simbólica seja completa. Pelo contrário, o sujeito é determinado de maneira incompleta, o que lhe franqueia a possibilidade de exceder os arranjos propostos pela ordenação simbólica que ele encontra na cultura. Uma vez que não existe uma garantia para o Outro, o falo, no próprio esquema lacaniano, tampouco pode operar como aquilo que asseguraria ao homem a condição confortável de quem o tem. Enquanto Butler (1990/2015) argumentaria que esse aparente conforto viril não passa de uma identidade tênue, constituída performativamente pela reiteração de suas normas ao longo do tempo, Lacan (1958/1998b, p. 742), por sua vez, sustentaria que o falo, ao contrário de coroar a posse do sujeito, vem antes marcá-la com a castração, pois "não há virilidade que a castração não consagre".

Isso significa que o sujeito, enquanto castrado, estará para sempre apartado de uma relação bem-sucedida com o objeto genital, uma vez exilado do conhecimento que um instinto poderia lhe proporcionar (Lacan, 1960/1998). Como consequência das incidências do significante fálico, ao tentar sustentar o ideal viril, o macho ainda se encontra às voltas com a incapacidade de amar e desejar o mesmo objeto, que sempre acaba por se desdobrar em dois, entre os quais o sujeito se divide. Mas o impasse fundamental da masculinidade talvez seja, no fundo, a impossibilidade de o macho controlar a ereção e a detumescência de seu órgão, o que o deixa impotente frente à estranheza de um gozo impróprio, que constitui sua mais íntima aflição (Lacan, 1962-1963/2005; Lacan, 1974-1975). Como consequência, a seguinte questão se lhe apresenta como um enigma: "Será que ele tem um falo suficientemente grande?" (Lacan, 1958-1959/2016, p. 115). Dito de outro modo: será que seu desejo é garantido por alguma coisa?

Assim, na leitura lacaniana, ninguém efetivamente tem o falo (Lacan, 1958-1959/2016, p. 490); é o neurótico que ficciona que alguém (no fundo, não ele, mas um outro) o teria e, em torno disso, orienta seu mundo, a fim de desconhecer o furo que lhe subjaz. Donde a dialética sutil do ser e do ter que faz uma suplência normativa desse furo para o neurótico: do lado do homem, diz Lacan, ele não é sem tê-lo (isto é, o homem não é o falo e tampouco o tem, mas isso produz um engodo, um equívoco entre o não tê-lo e o não deixar de tê-lo), enquanto, do lado da mulher, ela é sem tê-lo; ela é o falo, faz dele um semblante com seu corpo, mesmo sem ter o pênis (Lacan, 1958-1959/2016, p. 235). Dessa forma, o neurótico "se agarra a essa garantia mítica para poder viver de outra forma que não na vertigem" (Lacan, 1958-1959/2016, p. 491), que seria a entrega do sujeito ao S(Ⱥ).

Diante dessa narrativa lacaniana da comédia dos sexos, Butler (1990/2015) ainda se questiona se Lacan não estaria idealizando religiosamente os fracassos impostos pelo simbólico. Como se, mesmo sabendo que os ideais fálicos são inatingíveis, o psicanalista francês os mantivesse como um imperativo do qual o sujeito não encontra escapatória. Nesse ponto, o importante é observar como a experiência de uma análise permite a cada um se desembaraçar à sua maneira desse terreno das normas. É por isso que o enunciado sobre as identificações fálicas tomadas enquanto fracassos cômicos não implica necessariamente uma reiteração das normas assim descritas. Pelo contrário, é preciso levar em conta a posição de enunciação daquele que as aborda; pois disso depende o destino que será conferido aos imperativos da ordem simbólica. O que está em jogo é localizar se o psicanalista funciona como mera engrenagem a serviço dessa ordenação fálica que ele descreve, ou se, a partir da ética que orienta sua prática, não seria possível pensar de outra maneira a relação da psicanálise com as normas sociais, questão que nos é proposta também pelo próprio Lacan:

Com efeito, a coisa não funcionará se não conseguirmos construir uma concepção coerente de nossa função em relação às normas sociais. Se há uma experiência que deve nos ensinar o quanto essas normas sociais são problemáticas, o quanto devem ser interrogadas, [...] é justamente a do analista (Lacan, 1958-59/2016, p. 516).

Ao afirmar o caráter problemático das normas sociais, a postura de Lacan, ao contrário de respeitar a norma religiosamente, é de fazer dela uma zombaria, um objeto de depreciação; o que implica sustentar que a norma não é uma eminência, de modo que ela não é digna de nossa completa obediência. Diferentemente, o que está em questão para o psicanalista é o fato de que "mesmo entre as pessoas mais normais e no interior da aplicação plena e inteira, e de boa vontade, das normas, bem! Isso não funciona" (Lacan, 1961-1962/2003, p. 194). Assim, ao buscarem impor saídas universais a partir do ideal viril e do ideal feminino para homens e mulheres respectivamente, as normas parecem operar no sentido de engolir a estranheza do gozo que assombra cada um.

Diante desse fracasso, Lacan (1961-1962/2003, p. 195) afirma que o lugar do analista não é o de pregar uma nova erótica, oferecendo respostas prêt-à-porter; trata-se, antes, de acompanhar as invenções de cada analisante para se haver com a estranheza do seu gozo, tendo em vista suas "soluções artesanais". Talvez seja essa uma das contribuições centrais a serem extraídas da psicanálise para sua interface com os debates de gênero e sexualidade, na medida em que a direção ética que se deduz da clínica não deixa de ser também uma política, que sustenta a importância de preservar algo da singularidade que não se acomoda nas imposições coletivas do social. Dessa maneira, se levarmos a sério o fracasso estrutural que assombra os semblantes da virilidade (que buscam universalizar as soluções impostas pelos ideais fálicos), abre-se a possibilidade de constatarmos que as tentativas de dominação dos homens sobre as mulheres, no fundo, serão sempre falhas, ou sempre sintomáticas de seu próprio fracasso, na medida em que só podem ser vividas sobre um fundo de impotência dos homens, estratégia que deflagra sua incapacidade de se haver com sua própria castração.

 

Considerações finais

Como saldo da discussão, acreditamos ter sido possível elencar algumas contribuições teórico-clínicas da psicanálise que nos sirvam para enriquecer o debate com autoras como Rubin e Butler. O ponto principal é que, ao nos debruçarmos sobre os mecanismos da dominação social, não podemos nos deixar enganar pela aparente consistência que nos é vendida pelos semblantes da virilidade, de modo que precisamos nos arriscar a tomar os impasses masculinos para além dos ideais que encobrem seu próprio sofrimento. Dessa forma, nossa proposta é que, ao adentrarmos os debates de gênero e sexualidade, não nos detenhamos na imposição normativa operada pelos sistemas de parentesco heterossexual. Afinal, esses ideais simbólicos não encontram no Outro nenhuma garantia de seu sucesso, com a consequência de que um estudo dos privilégios simbólicos dos homens em nossa cultura - ou mesmo sua desconstrução - não esgota o que está em jogo nesse assunto.

Para além dos ideais, encontramos precisamente a castração masculina, que aqui apresentamos sob dois aspectos: primeiro, a partir da insuficiência do pai, que não oferece ao sujeito nenhuma garantia quanto ao desejo (o que se articula à inexistência de um Outro do Outro em Lacan); e, segundo, a partir da aflição que o falo encarna no real, pelo fato de ele não se prestar a nenhuma mestria por parte do sujeito, com um funcionamento que se alterna entre ereção e detumescência à revelia das tentativas conscientes de controle por parte de seu portador. Assim, as normas do parentesco discutidas por Rubin e Butler talvez tentem escamotear justamente essa dimensão do real que excede os ideais simbólicos. Nesse sentido, sustentamos a hipótese de que as normas sociais buscam encobrir a castração paterna e a aflição masculina diante do falo, que ficam ocultas sob os semblantes da virilidade.

Tendo isso em mente, não podemos operar em nossas leituras como se o Pai e o falo fundassem uma garantia para o sujeito, como se esses operadores fornecessem um S(A), uma dominação completa, sem nenhum resto de sua operação. Afinal, a crença na fantasia de um homem íntegro e consistente é vendida pela própria ordenação fálica como tentativa de velar sua castração. Contrariamente a isso, o que nos cabe é explorar as consequências da castração masculina para pensarmos as normas de gênero e sexualidade, bem como sustentar aquilo que a clínica psicanalítica encontra diante desses impasses como horizonte em sua prática.

Isso é, num percurso de análise, ao deixar cair os ideais que o orientaram até então, o sujeito se depara com um efeito de fratura em relação às suas identificações fálicas. Numa experiência analítica, os semblantes da virilidade são denunciados como um engodo que vela precisamente o furo [S(Ⱥ)] que subjaz à ordenação normativa do simbólico. Dessa forma, uma parte decisiva de um processo de análise pode mesmo ser pensada como o desafio de fraturar o gênero, lido enquanto inscrição fálica do sujeito no discurso. Se os ideais do gênero operam a partir da crença nos semblantes ofertados pelo Outro, uma psicanálise se torna, de certa forma, uma das operações que permitem desfazer o gênero enquanto ideal regulatório ao fraturar a crença no falo como elemento que garantiria uma consistência para o ser falante, abrindo para a dimensão real do furo [S(Ⱥ)] que reside para além de todo gênero.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 03/05/2018
Aprovado para publicação em: 13/09/2020

Endereço para correspondência
Vinícius Moreira Lima
E-mail: vmlima6@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Mestrando em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. Bolsista de mestrado do CNPq. Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ex-bolsista de iniciação científica pelo PIBIC/CNPq.

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