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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Compulsão à ocupação: uma face mortífera da contemporaneidade

 

Compulsive occupation: a deadly face of contemporaneity

 

Compulsión hacia la ocupación: una faz mortífera de la contemporaneidad

 

 

Camila Peixoto FariasI*; Renata MelloII**

IUniversidade Federal de Pelotas - UFPEL- Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é investigar o circuito compulsivo de ocupação em que muitos sujeitos se encontram aprisionados na contemporaneidade. Partimos do pressuposto de que a aceleração e o excesso de atividades podem adquirir caráter patológico. Quando isso ocorre, essas manifestações nos parecem ligadas às problemáticas do trauma e do narcisismo. Examinamos, inicialmente, a constituição psíquica no âmbito do traumático, destacando as repercussões narcísicas diante da fragilidade dos investimentos objetais. Nesse sentido, articulamos a constituição narcísica de base traumática e o circuito mortífero subjacente à compulsão à ocupação. Em seguida, nos detemos no funcionamento psíquico do sujeito, sob o impacto traumático, alicerçado na clivagem e na busca pela sobrevivência através da ocupação compulsiva. Entendemos que a compulsão à ocupação e o cansaço extremo que ela engendra revelam um modo de sobrevivência psíquica baseado na descarga, na anestesia e no vazio afetivo. Esses casos nos alertam para a importância do olhar e do cuidado de um outro para que o sujeito possa se ocupar de si mesmo, para que possa viver e não apenas ocupar-se compulsivamente.

Palavras-chave: trauma, narcisismo, clivagem, compulsão à ocupação, psicanálise.


ABSTRACT

The purpose of this article is to investigate the compulsive cycle of occupation to which many subjects are imprisoned in contemporaneity. We begin with the assumption that the acceleration and the plethora of activities may acquire a pathological trait. When this happens, we hypothesize that such manifestations are related to the issues of trauma and narcissism. We initially examine the psychic constitution of the subject in the context of trauma, highlighting the narcissistic repercussions before the frailty of the investments in primary objects. In this regard, we link the narcissistic constitution of traumatic basis and the deadly circuit underlying the compulsion towards excessive occupation. Next, we take time to examine the psychic functioning of the subject, under the impact of trauma, based on the cleavage and the search for survival through compulsive occupation. We understand that compulsive occupation and the extreme fatigue generated reveal a way of psychic survival based on discharge, numbness, and emotional emptiness. Such cases alert us to the importance of the attention and care of others so that the subject can be occupied of himself, so that he can live and not just be occupied compulsively.

Keywords: trauma, narcissism, cleavage, compulsive occupation, psychoanalysis.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es investigar el circuito compulsivo de ocupación en el cual muchos sujetos están aprisionados en la contemporaneidad. Partimos del supuesto de que la aceleración y el exceso de actividades pueden adquirir un carácter patológico. Cuando esto sucede las manifestaciones nos parecen conectadas a las problemáticas del trauma y del narcisismo. Examinamos inicialmente la constitución psíquica del sujeto en el ámbito de lo traumático, destacando las repercusiones narcisistas ante la fragilidad de las inversiones en los objetos primarios. En este sentido, articulamos la constitución narcisista de base traumática y el circuito mortífero latente a la compulsión hacia la ocupación. En seguida, nos detenemos en el funcionamiento psíquico del sujeto, bajo el impacto traumático, basado en el clivaje y en la búsqueda por la sobrevivencia a través de la ocupación excesiva. Entendemos que la compulsión hacia la ocupación y el cansancio extremo generado revelan un modo de sobrevivencia psíquica basado en la descarga, en la anestesia y en el vacío afectivo. Estos casos nos alertan para la importancia de la mirada y del cuidado de un otro para que el sujeto pueda ocuparse de sí mismo, para que pueda vivir y no apenas ocuparse compulsivamente.

Palabras clave: trauma, narcisismo, clivaje, compulsión hacia la ocupación, psicoanálisis.


 

 

Cada um se mata o suficiente para continuar vivo.
Pio Vargas (2010)

O que há em mim é sobretudo cansaço -
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço
.
Fernando Pessoa (2018)

Na contemporaneidade, o cotidiano de muitos sujeitos se encontra marcado pela escassez de tempo, ocupação constante, agitação, pressa e dificuldade em se desconectar, seja do mundo virtual, seja das preocupações com o desempenho no âmbito social - ambos intimamente articulados. Estamos, portanto, diante de sujeitos em um regime de vigilância ininterrupta, excitados, hiperativos, expostos a uma avalanche de estímulos, informações e imagens, muitos experimentando de forma quase absoluta a impossibilidade de parar e descansar. Desse modo, em alguns casos, parece haver uma passagem do "poder fazer" para o "dever fazer", nos conduzindo a pensar em uma sobreposição na qual, se o sujeito "pode fazer", ele "deve fazer". Tal sobreposição desvela a faceta tirânica que a lógica performática pode adquirir, o que está intimamente relacionado ao achatamento das possibilidades de pensamento, reflexão e escolha. Embora tal lógica imprima efeitos sobre a vida de todos nós, percebemos que, para alguns sujeitos, ela parece apresentar uma força mortífera - que se deve, como procuraremos mostrar, à especificidade de seu funcionamento psíquico.

Atualmente, dentre as mais frequentes queixas dos sujeitos nos consultórios de psicanálise, estão o cansaço extremo, o excesso de atividades e o vazio afetivo subjacente a um cotidiano compulsivamente mantido cheio, preenchido, acelerado. Esses aspectos nos fazem pensar, muitas vezes, em uma "compulsão à ocupação", nos servindo da expressão de Türcke (2010), e no cansaço extremo produzido por ela. Nos termos do pensador alemão, a compulsão à ocupação pode ser compreendida como uma compulsão à emissão, transformada, assim, em uma forma vital de expressão. Nesse contexto, emitir quer dizer tornar-se percebido: ser; por outro lado, não emitir é equivalente a não ser - não apenas sentir o horror do vazio da ociosidade, mas ser tomado pela sensação de simplesmente não existir. Isso nos remete a formas servis de obtenção de reasseguramento narcísico.

Türcke (2016) destaca que, na atualidade, vivemos em uma sociedade invadida pelas tecnologias da comunicação e pelas redes sociais e que a relação estabelecida com elas tem nos tornado inquietos e mudos, além de ter íntima relação com a significativa perda de nossa capacidade de atenção. Isso nos conduz à ideia de um excesso de ações e escassez de palavras. Precisa-se: estamos diante de um excesso de ações não ritualizadas, esvaziadas de sentido na maioria das vezes. Segundo Türcke (2016), uma das principais caricaturas do nosso tempo diz respeito às crianças com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Mais frágeis e vulneráveis psiquicamente, elas refletem de forma exuberante as características dos sujeitos contemporâneos, tais como dificuldade de concentração, interrupção frequente na esfera da ação e do pensamento, dessensibilização, fascínio pelo estridente. Diante de uma vida cada vez mais saturada, fragmentada e cronometrada, alguns sujeitos vêm se tornando cada vez mais anestesiados e esgotados.

Byung-Chul Han (2017), em seu livro Sociedade do cansaço, relaciona o cansaço que impera em nossa sociedade à lógica do desempenho, à exigência de performance e aos efeitos narcísicos envolvidos. Para o filósofo sul-coreano, uma das questões fundamentais implicadas no cansaço é a incapacidade dos sujeitos de dizer não. Estamos de acordo com o autor sobre pensar a relação entre o cansaço extremo e o narcisismo, o que também consideramos estar intimamente articulado à incapacidade de estabelecer limites precisos entre o Eu e o outro, entre dentro e fora. Segundo Byung-Chul Han (2017, p. 91), "ali não há qualquer participação da dimensão do outro. [...] O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo". Nessa perspectiva, o sujeito do desempenho estaria em guerra consigo mesmo, pois seria senhor e soberano de si, não estando submetido ao domínio externo. Ele sofreria, então, uma autocoação para maximizar o desempenho, sendo, ao mesmo tempo, prisioneiro e vigia, vítima e agressor.

Estamos afinadas com o modo como o autor apresenta o regime da sociedade do cansaço, entretanto discordamos da exclusão da dimensão alteritária no entendimento de tais questões contemporâneas. Consideramos interessante pensar o paradoxo ligado ao sujeito contemporâneo, mas, em termos do funcionamento psíquico, consideramos que ele é indissociável da relação com o outro interno/externo. Entendemos que não há como excluir a dimensão narcísica na lógica do desempenho, ou ainda, como pressupor uma independência do objeto externo. Na verdade, muito pelo contrário, especialmente nos dias de hoje, posto que os sujeitos estão continuamente construindo e desconstruindo a imagem de si a partir do reflexo de outras pessoas no ciberespaço.

Byung-Chul Han (2017, p. 80) também aponta que a psicanálise não teria nada a fazer diante dessa lógica, na medida em que ela teria sido criada para tratar de sintomas advindos de uma sociedade repressiva, certamente já ultrapassada. Nas palavras do autor: "o inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É um produto da sociedade disciplinar repressiva, da qual nós estamos nos afastando cada vez mais". A nosso ver, trata-se de uma visão bastante reducionista da psicanálise e da proposta freudiana para pensar o funcionamento psíquico. O autor parece desconsiderar proposições freudianas como as de pulsão de morte, compulsão à repetição e trauma, tão importantes para pensarmos o sujeito contemporâneo e suas diversas formas de existir.

Consideramos que a lógica performática atinge os sujeitos de formas diversas. O aspecto que queremos destacar é o quanto essa lógica passa a ter um caráter imperativo, contribuindo para engendrar uma compulsão à ocupação, em outras palavras, contribuindo para que a ocupação adquira um caráter imperativo, patológico. O caráter imperativo da ocupação, o constrangimento interno, semelhante a uma força imperativa que alguns sujeitos relatam impeli-los à busca por ocupação, e o desespero que momentos de tédio e desocupação provocam nos conduzem a pensar no fenômeno da compulsão à repetição. Nesse contexto, a compulsão à ocupação parece uma das formas de a compulsão à repetição se apresentar na contemporaneidade. A compulsão à repetição tem íntima articulação com o traumático, com a força pulsional que não pôde ser dominada, que não ingressou na via representacional.

Quando a força pulsional não ingressa na via representacional, uma das formas encontradas pelo Eu para tentar dominá-la é a descarga via corpo e via ato. O Eu não consegue dominar a força pulsional no interior de seus limites e busca incessantemente por apaziguamento diante da pressão constante que ela impõe ao psiquismo. No plano intrapsíquico, portanto, o Eu encontra-se submetido a uma exigência interna de agir, de caráter imperativo, à qual não pode furtar-se.

Segundo Assoun (1994), a ideia de uma pressão inelutável exercida a partir do mundo interno evidencia a íntima articulação existente entre a compulsão e o próprio conceito de pulsão. O caráter repentino e disruptivo das compulsões indica a singularidade da temporalidade dos processos psíquicos envolvidos. O imediatismo é resultado da precariedade dos mecanismos de elaboração psíquica convocados. A compulsão, assim, coloca em evidência um "demônio" que age no interior do sujeito.

A título de ilustração, cabe acrescentar que o fenômeno Karoshi (Lane, 2017), denominado assim pelos japoneses, vem crescendo assustadoramente: a morte por cansaço, por esgotamento, por excesso de trabalho. Este parece ser o destino radical da compulsão à ocupação, evidenciando seu colorido mortífero, a ação radical da pulsão de morte. Esses aspectos nos conduzem a pensar na íntima articulação entre a compulsão à ocupação e uma constituição narcísica frágil, marcada pelos excessos traumáticos.

É importante enfatizar que, com a virada dos anos 1920, marcada fundamentalmente por "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/2006) e "O ego e o id" (Freud, 1923/2006), começa a ser possível considerar algo fora do registro das representações e do princípio do prazer. O conceito de pulsão passa a ser relativizado para além de uma referência exclusivamente sexual e a autonomia do campo quantitativo da pulsão, indicada por Freud em "Pulsões e suas vicissitudes" (1915/2006), assume aqui a sua radicalidade. É importante frisar que, até então, preponderava a certeza da ligação originária entre a força pulsional e seus representantes, de forma que a pulsão era necessariamente inscrita no registro da representação como pulsão sexual. Com efeito, o primeiro modelo da psicanálise foi constituído centrado nas representações em suas diferentes formas de localização - consciente, pré-consciente e inconsciente - e funcionamento psíquico - sob a égide do princípio do prazer.

Nesse contexto, Freud reconsidera a primazia atribuída à representação, caminhando para a suposição de algo além do princípio do prazer. O divórcio entre a dimensão intensiva da pulsão e seus possíveis representantes logo converge para a temática do excesso e da repetição, exigindo a construção de um novo modelo de aparelho psíquico. Enquanto na tópica do inconsciente nos deparamos com um conjunto de experiências tratadas pela representação, agora estamos diante de fenômenos psíquicos que escapam disso. No limite, a pulsão como força, definida como o limite entre o somático e o psíquico (Freud, 1915/2006), se situa além da possibilidade de representação. Para tanto, o traumático precisou ser redimensionado a fim de comportar não apenas o campo da conflitualidade entre conteúdos contrários, como também a temática do excesso e da compulsão à repetição.

Cabe precisar que se trata da repetição de situações que engendram sofrimento psíquico, acontecimentos que ultrapassam o princípio de funcionamento mental pautado exclusivamente pela busca de prazer e evitação do desprazer. Desse modo, se repetem incansavelmente experiências penosas que não trouxeram satisfação no passado em nenhuma instância, tampouco são geradoras de bem-estar no presente. São, portanto, situações dolorosas que não se curvam ao princípio do prazer, tais como os sonhos traumáticos (Freud, 1920/1996).

É importante salientar que a concepção de trauma aqui implica na irrupção de uma quantidade de excitação incontrolável no psiquismo, de modo que a repetição se move pela pressão do excesso não ligado. Sendo assim, o fator traumático se caracteriza pelas quantidades afluentes de estímulo no aparelho psíquico, sem possibilidade de ligação e/ou descarga. Por essa razão, torna-se imperioso dominar o afluxo e vincular as impressões traumáticas a fim de desvencilhar-se delas. Por essa via de reflexão, anuncia-se que o princípio do prazer não é mais dominante a priori, sendo necessárias condições para a sua vigência, tais como a contenção do volume de excitação no psiquismo. É indispensável, portanto, um trabalho psíquico para efetuar a ligação da força pulsional ao plano representacional.

Levando em consideração essa perspectiva, encontramos em alguns sujeitos na contemporaneidade uma tentativa de defesa diante do pulsional excessivo que nos parece intimamente relacionada à compulsão à ocupação, entendida aqui como uma possibilidade de ação da compulsão à repetição. Estamos, assim, diante de um sistema defensivo radical - comandado pela compulsão à repetição - que se dá através de um contrainvestimento constante em atividades que ocupam o sujeito, atividades que servem como possibilidade de descarga da excitação que não pôde ser processada psiquicamente.

A violência da exigência pulsional e a forma de o Eu responder a tal ataque - através da ocupação compulsiva - indicam a importância de considerarmos uma fragilidade narcísica em jogo. Estamos diante de um eu mal definido em suas fronteiras, tanto externas quanto internas, o que o deixa suscetível à utilização de defesas arcaicas, as quais estariam na base das respostas na esfera do ato, em detrimento da dominância da elaboração psíquica. Parece-nos que a busca compulsiva por uma ocupação pelo preenchimento do cotidiano com algum tipo de atividade pode ser pensada como recurso de contrainvestimento das excitações do mundo interno. Esse aspecto põe em evidência a paradoxal forma de defesa narcísica que a compulsão à ocupação engendra: o cansaço extremo, a saturação das vias sensíveis, o esgotamento da subjetividade que estaria, paradoxalmente, a serviço da manutenção da vida, da proteção do Eu.

Acreditamos que essa forma de defesa tem como um dos seus alicerces um modo de funcionamento psíquico específico - que apresentaremos com mais vagar ao longo do texto - mas também está ancorada nessa lógica social marcada por uma exigência de performance, que valoriza a ação, a ocupação e o desempenho, tomando o cansaço como índice de produtividade.

Tendo em vista o âmbito intrapsíquico, compreendemos a chamada "compulsão à ocupação" a partir da perspectiva dos "sofrimentos narcísico-identitários" (Roussillon, 1999), declarando o nosso entendimento de que o que se encontra em jogo é da ordem da constituição do psiquismo e da separação entre sujeito e objeto. Consideramos que o que está em questão nesses casos é justamente o sentimento de si mesmo que necessita do investimento libidinal do outro (Cunha, & Birman, 2017). É nesse processo, contudo, que parece haver uma falha. É importante precisar que as funções do objeto primário conduzem, fundamentalmente, a pulsionalidade às ligações. Nesse sentido, entendemos que essa falha instaura um estado de agonia e desamparo que pode implicar em uma fragmentação psíquica. Tal fragmentação se constitui como estratégia de sobrevivência diante do excesso traumático que passa a habitar o psiquismo e impõe uma busca de alívio, ainda que temporário, marcada por um regime de compulsão à repetição.

No âmbito dessas considerações, nos questionamos quanto à singularidade da constituição narcísica dos sujeitos aprisionados em um circuito compulsivo de ocupação. Como já indicamos, discutiremos a compulsão à ocupação em articulação com a problemática do trauma. Tendo isso em vista vamos, inicialmente, examinar a constituição psíquica no âmbito do traumático, ressaltando as reverberações narcísicas diante da fragilidade dos investimentos recebidos do objeto. Interessa-nos pensar nas articulações entre uma constituição narcísica de base traumática e o circuito mortífero da compulsão à ocupação. Em seguida, vamos nos deter no funcionamento psíquico do sujeito, sob o impacto traumático, na busca pela sobrevivência, a partir das ações da clivagem. Entendemos que, quando a ocupação ganha um caráter compulsivo e, assim, patológico, se trata de um modo de sobrevivência psíquica alicerçado na descarga, na anestesia e no vazio afetivo.

 

Fragilidade dos investimentos e suas reverberações narcísicas

Em 1920, no texto "Além do princípio do prazer", Freud postula uma nova concepção de trauma, concepção que consideramos fundamental para pensarmos a ideia de compulsão à ocupação e sua íntima articulação com fragilidades na constituição narcísica. Freud inicia o texto discorrendo acerca da soberania do princípio de prazer no psiquismo, o que o faz buscar a eliminação da excitação ou sua manutenção no nível mais baixo possível ou constante. Tendo isso em vista, Freud é interpelado pela repetição de experiências manifestamente desagradáveis. O autor passa, então, à descrição de fenômenos que parecem escapar ao reinado do princípio de prazer: o jogo infantil, a repetição no tratamento analítico, certa compulsão de destino e os sonhos de neuroses traumáticas.

Freud (1920/2006) conclui que apenas os sonhos traumáticos escapariam ao reinado do princípio de prazer; o que o conduz a indicar a existência de um funcionamento anterior à vigência do princípio de prazer, denominando-o de compulsão à repetição. Após postular a existência de uma compulsão à repetição, Freud indica a necessidade de esclarecer sua função, em que condições surge e qual sua relação com o princípio de prazer.

Freud encaminha esses aspectos tendo em vista uma nova concepção de trauma, intimamente articulada ao pulsional e profundamente transformada. A partir do modelo da vesícula, ele sustenta que o trauma seria a consequência do excesso de excitação, do rompimento da proteção que defenderia o "órgão anímico" contra as excitações. Naquele momento, ao pensar o traumático, Freud articula dois aspectos fundamentais: o efeito devastador dessa excitação que atinge o escudo protetor e o completo despreparo do Eu (ou do escudo protetor) para receber essa excitação. Desse modo, a responsável pelo fator traumático não seria apenas a quantidade de excitação, mas também a impossibilidade do Eu, naquele momento, de responder ao excesso de excitação. Nesse sentido, o Eu permaneceria passivo diante do pulsional.

Ganha destaque a dimensão de susto [Schreck], dando ênfase ao elemento surpresa, ou seja, à ideia de um perigo que o sujeito não está preparado para enfrentar. Nesses casos, as possibilidades de o Eu defender-se desse afluxo encontram-se muito diminuídas. A indicação da condição de despreparo do escudo protetor como elemento fundamental do traumático possibilitará a Freud mostrar que a situação traumática também diz respeito às excitações advindas do interior. Dessa forma, o que é excessivo para o aparelho psíquico não viria apenas do exterior, mas também de dentro do próprio sujeito, de seu universo pulsional (Freud, 1920/2006).

A articulação entre o trauma e a pulsão reitera a importância do ponto de vista econômico e põe em evidência a força do pulsional. Freud aponta para a presença, no mundo interno, de uma força pulsional excessiva que deverá ser sujeitada através de um trabalho de ligação para que o princípio de prazer possa se exercer. Isso, contudo, não ocorre na situação traumática, pois o psiquismo é invadido por um excesso de excitação que o Eu não consegue dominar, o que impede o reinado do princípio de prazer.

O traumático, a força pulsional excessiva, passa a se articular diretamente à ação da pulsão de morte. O Eu estaria, assim, à mercê de um pulsional mortífero que não se submete a uma ligação efetiva, a um efetivo recalcamento. O pulsional traumático corresponde à irrupção da pulsão de morte no aparelho. Nesse sentido, a dimensão de violência psíquica reaparece na teoria em sua faceta mais radical. No âmbito dessas considerações, interessa-nos pensar a constituição narcísica na contemporaneidade articulada a essa concepção de trauma desenvolvida por Freud em 1920 (2006). É importante precisar que não estamos afirmando que a constituição narcísica seja sempre marcada por uma dimensão traumática na atualidade, mas que as manifestações ligadas a uma busca compulsiva por manter-se ocupado nos parecem apontar nessa direção.

Um dos aspectos fundamentais para a constituição narcísica é poder ter um espaço dentro do universo afetivo dos cuidadores, um espaço em seu mundo psíquico. É muito importante que os cuidadores possam dispor de um quantum de sua libido e dirigi-la para o bebê e para as fantasias ligadas a ele, mas para isso é preciso que essa energia seja retirada de outros investimentos. Isso exige um trabalho psíquico delicado de reorganização da balança de investimentos.

É função do outro primário inicialmente possibilitar que o sujeito viva, se sinta vivo e tenha vontade de viver. Dessa perspectiva, a relação com o mundo se inaugura por meio do cuidado na relação com o objeto, de forma que cabe ao outro, então, o convite à vida e o oferecimento das condições necessárias para continuar vivo. Efetivamente, as funções desempenhadas pelos cuidadores ocupam um lugar de absoluto destaque para o recém-nascido, não obstante também se exprimem nas configurações alteritárias estabelecidas ao longo da vida. Em última análise, acreditamos que a motivação fundamental do espectro de cuidados objetais consiste em facilitar para o sujeito a possibilidade de fazer sentido da sua existência, equivalente a elaborar uma experiência de integração (Figueiredo, 2003).

Tendo isso em vista, surge a questão: como a relação entre o bebê e as figuras de cuidado tem sido construída na contemporaneidade? Indo ao encontro de possíveis respostas para essa questão, consideramos que é preciso analisar com atenção a forma como, predominantemente, se constroem tais relações atualmente.

Em acordo com as ideias de Monti (2008), consideramos que nossa forma de investir e educar as crianças vem sofrendo modificações nas últimas décadas, intimamente articuladas às transformações sociais que temos vivido. Dentre elas, destacamos as mudanças em nossa forma de viver e de nos relacionar com o outro. Os pais na atualidade são pressionados desde muito cedo, mesmo antes da concepção, para se prepararem para a chegada do bebê - são cursos, enxovais cada vez mais extensos, inúmeras fotos, vários eventos relacionados à gravidez, etc. Essa preparação não é ruim em si mesma, mas, muitas vezes, ela os lança na ilusão de uma preparação ideal que garantirá o acolhimento e o investimento tão importantes para o novo membro da família. Porém a chegada de um bebê exige um longo tempo de construção das possibilidades de investimento, repleto de momentos mais ou menos difíceis, que causam grande angústia e exigem um cuidadoso trabalho psíquico.

Ao nascer, o bebê é investido de uma série de expectativas, conscientes e inconscientes, depositadas pelos cuidadores. Isso é fundamental para que o bebê possa se vincular às gerações anteriores e possa ter seu lugar construído no grupo familiar. Como já nos apontava Freud (1914/2006), os pais, quando um filho nasce, vivem a reativação de seu próprio narcisismo infantil, o que faz com que invistam, inicialmente, no bebê de forma idealizada: reivindicam para ele todos os privilégios e a ausência de qualquer mal-estar ou renúncia. Durante esse período inicial, Freud aponta que o bebê se torna Sua majestade, o bebê.

Freud (1914/2006) ressalta que essa idealização inicial é fundamental nos primeiros meses de vida, inclusive como recurso psíquico que possibilita o cuidado ininterrupto que um recém-nascido exige. Porém o autor indica claramente que essa forma de investimento deve ir se transformando e, gradativamente, as expectativas dirigidas ao bebê, bem como seu cuidado e sua educação, devem estar voltados para a realidade, pautados pelas renúncias que o convívio social, convívio com o outro, exige.

Atualmente, percebemos que, muitas vezes, o investimento inicial idealizado parece não ser abandonado pelos pais. Estamos vivendo um momento, nos termos de Monti (2008), de monumentalização da infância. Essa expressão, segundo o autor, refere-se à manutenção da idealização inicial dirigida ao bebê ao longo de seu crescimento. Dessa forma, o lugar idealizado que deveria servir de suporte inicial e ser abandonado, gradativamente, torna-se uma prisão para a criança. Como destaca o autor: "Um trono do qual não se pode descer é mais uma armadilha do que um trono" (Monti, 2008, p. 245).

Vemos com frequência os pais às voltas com as exigências de um filho ideal - ideal criado por eles e socialmente difundido. Seguem em uma maratona tentando satisfazer todas as necessidades e desejos que eles supõem serem dos filhos. Como indica Mayer (2001), dedicam-se a dar ao filho aquilo que eles gostariam de ter recebido na sua infância, sem se questionarem o que seu filho gostaria de receber. "Ao impedirem dessa maneira que se registre a mínima falta em seu filho idealizado, bloqueiam a possibilidade de estruturação do desejo infantil, que é o motor do desenvolvimento humano e constitui a primeira raiz do reconhecimento e do amor aos semelhantes" (Mayer, 2001, p. 87).

Nesse contexto, o investimento que os pais dirigem ao filho está a serviço de manter o ideal que eles construíram e não se dirige efetivamente ao filho. Estamos diante de um investimento que parece visar o reasseguramento narcísico dos pais, indicando, assim, pouca abertura afetiva para a singularidade do filho. O investimento dirigido ao bebê parece ser usado como recurso para aplacar a angústia parental diante do filho real (Mayer, 2001). Isso indica a inversão dos apoios, em que a criança passa a ser usada como um apoio pelos pais em vez de ser apoiada por eles. Essa idealização inicial - tão importante nos primeiros tempos de vida -, que não é abandonada, acaba por indicar uma dificuldade de investimento na criança, uma dificuldade de vinculação.

As respostas parentais seriam dirigidas, em última instância, às angústias que a relação com o bebê reativou; não seriam, portanto, respostas efetivamente dirigidas a ele. São pais que buscam constantemente a adequação do bebê a seus ideais, independentemente das reações dele; isso em muito prejudica a constituição de um espaço de trocas genuinamente afetivas (Blondel, 2004). Nesse contexto, sem limites claros e adequados, a criança não encontra um espaço para constituir e expressar sua singularidade, não encontra suporte para desenvolver sua personalidade e sua identidade.

Ao buscar a adequação do bebê aos seus ideais, os cuidadores não reconhecem sua singularidade e sua diferença. Isso aponta para uma vivência marcada pela ausência do reconhecimento da diferença que o outro traz. Estamos, portanto, diante da peculiaridade de uma indiferença experimentada no encontro com o outro. Moraes e Macedo (2011) denominam vivência de indiferença tal fenômeno. As autoras destacam que "entende-se, nessa leitura, por indiferença uma qualidade de violência imposta à criança por parte do adulto em um tempo primordial de estruturação do psíquico" (Moraes, & Macedo, 2011, p. 42). Nesse sentido, a vivência de indiferença pode ser pensada como uma experiência traumática.

O cuidado, no cenário da indiferença, evidencia a impossibilidade de captar os movimentos e as demandas da criança, que são expressões de diferença que, em sua existência, ela dirige aos cuidadores.

Na definição de indiferença, cabe destacar que não se trata do desdém da oferta por parte do adulto ao outro (a criança), mas sim de uma marca de não reconhecimento daquilo que é mais próprio da singularidade desse outro: seu existir. Na indiferença predomina dramaticamente o não reconhecimento da diferença que a existência do outro aporta a esse encontro inicial e que se reproduz na apropriação do sentido de existência da criança (Moraes, & Macedo, 2011, p. 43).

Ao não ser percebida na diferença de sua existência, no que lhe é próprio e mais íntimo, a criança fica prisioneira de um registro mudo, traumático, porém com força de matriz. Em harmonia com as autoras, destacamos que não se trata de pensar em um funcionamento psicótico, mas sim em uma dinâmica de construção narcísica alicerçada na dificuldade de relação com o outro, ou seja, com a sua diferença. Encontramos uma forma singular de constituição narcísica que não implica em uma impossibilidade de diferenciação com o outro, mas sim em uma acentuada dificuldade de lidar com a diferença. "O que se imprime não é a ausência de objeto (psicose), mas sim a alternância, a instabilidade e a fragilidade no sentido da diferença e da implicação do outro com o Eu incipiente" (Moraes, & Macedo, 2011, p. 45).

Não se trata de um Eu desestruturado, mas de um Eu permanentemente ameaçado pela diferença do outro, posto suas frágeis delimitações. Um Eu que precisará constantemente que o outro ateste sua existência, que necessitará de constante reasseguramento narcísico. "Se o que lhe foi ofertado é a indiferença, como será possível amar?", ou ainda, "como poderá fiar-se no outro se não pôde ter um fiador?" (Moraes, & Macedo, 2011, p. 71-72).

Nesse contexto, a relação com o bebê torna-se recurso defensivo, o que evidencia a dificuldade de efetivamente investi-lo e a indiferença que os cuidadores dirigem a ele. Segundo Freud (1927/2006), a mãe - os cuidadores - deveria ser a primeira proteção contra a angústia, deveria servir inicialmente de paraexcitação para o bebê. Nesse caso, parece haver uma inversão: a relação com o bebê passa a ser uma forma de os cuidadores defenderem-se da angústia, e o bebê lhes serve de paraexcitação. Dessa forma, podemos pensar que a constituição do escudo protetor contra estímulos fica prejudicada.

A incapacidade dos cuidadores de cumprir suas funções parece potencializar o aspecto disruptivo e ameaçador da pulsionalidade. Considerando o momento de indiferenciação primária, no qual os objetos são absolutamente imprescindíveis para a constituição subjetiva, fica evidente o efeito traumático das falhas objetais em jogo. Nesse contexto, os cuidadores não desempenham bem sua função primordial, que é sustentar, através do seu investimento, possibilidades de vida para o bebê, deixando-o à mercê da força pulsional e da busca constante pela sobrevivência, pelo reasseguramento de sua existência. Não haveria, assim, um lastro de investimento consistente para servir de alicerce para consolidar a constituição narcísica. Portanto, subjacente à compulsão à ocupação, que pode ser percebida em muitos sujeitos na contemporaneidade, encontramos um processo de constituição narcísica marcado por uma dimensão traumática - que discutimos a partir da ideia de vivência de indiferença.

No contexto contemporâneo, preponderantemente, ter a existência reconhecida está intimamente relacionado à performance - principalmente através das tecnologias da comunicação e das redes sociais -, à ação, ao que o sujeito faz. Estamos diante de uma lógica social que aponta para a ação como forma de existir. Para alguns sujeitos, marcados por uma constituição narcísica frágil, que precisam de reasseguramento narcísico constante, essa lógica parece adquirir um caráter imperativo e contribuir para que respostas patológicas como a compulsão à ocupação sejam construídas.

A seguir, discutiremos a singularidade do funcionamento psíquico quando temos uma constituição narcísica marcada por eventos traumáticos, o que nos ajudará a avançar na compreensão da complexidade do fenômeno da compulsão à ocupação.

 

O sujeito mal acolhido e a busca pela sobrevivência

Em "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (Ferenczi, 1928/1992), a análise da gênese das tendências inconscientes de autodestruição conduz Ferenczi a afirmar a probabilidade de sujeitos acolhidos com rudeza e sem carinho manifestarem pouca resistência à morte. Tal afirmação se baseia no postulado de que a pulsionalidade vital não se ativa com plena carga logo após o nascimento, precisando ser despertada pelo acolhimento físico e psíquico dispensados com tato. Pela via oposta, a perda do gosto pela vida e o deslizamento para o não-ser se justifica em virtude da precocidade de um trauma, ensejando uma experiência que excede as forças de enfrentamento do sujeito. Nesse caso, o sujeito se organizaria sob o impacto da pulsão de morte, manifestando um funcionamento psíquico para além do princípio de prazer. Desse modo, a certeza da ligação originária da pulsionalidade com os objetos começa a ser relativizada em prol de um redimensionamento do traumático com base nos fenômenos psíquicos da compulsão à repetição, a despeito do princípio de prazer, como vimos anteriormente.

Nesse contexto, a noção de clivagem se apresenta como defesa privilegiada diante do excesso pulsional no âmbito da reviravolta conceitual dos anos 1920, marcada, fundamentalmente, por "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/2006) e "O ego e o id" (Freud, 1923/2006), a partir da qual se torna possível considerar algo fora do registro da representação. O não encontro da pulsão com os objetos se torna, portanto, o império de ação das clivagens como defesa paradoxal, resultando na procura por meios de apropriação subjetiva do impacto intensivo. A ligação ganha, assim, relevância a partir da interação com o outro, pois, em última instância, é o objeto que permite, inicialmente, a inscrição da força pulsional. Nesse sentido, a dificuldade encontrada na apropriação subjetiva de determinados acontecimentos psíquicos vai nos remeter diretamente ao potencial traumático dos encontros alteritários.

O conceito de clivagem está intimamente ligado à teoria do trauma na obra de Ferenczi. Trata-se de uma estratégia radical de sobrevivência psíquica quando as defesas se esgotam e a esperança de auxílio se esvai. Dessa forma, o trauma ferencziano traduz a ausência de uma resposta adequada do objeto em uma situação na qual o sujeito sente-se vulnerável, sem apoio, à mercê do excesso. Nessa direção, "trata-se de uma experiência com o objeto em que o aspecto mais importante não é tanto o que aconteceu, mas o que não aconteceu" (Cabré, 2017, p. 29; tradução nossa). Considerando que os objetos cuidadores são o suporte da confiança e das suas relações com o mundo e consigo mesmo (Pinheiro, 1995), o esgotamento dos recursos internos e de ajuda externa leva o bebê a um estado de "comoção psíquica" (Ferenczi, 1933/1992), mergulhando o psiquismo em agonias profundas. A vivência traumática engendra, então, a "suspensão de toda a espécie de atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resistência" (Ferenczi, 1933/1992, p. 113).

Desse modo, a criança "entrega a sua alma", como escreve Ferenczi (1932/1990, p. 73), ausentando-se de si própria e do mundo a sua volta. O sujeito, então, para se proteger, sai de si mesmo, toma distância de si e do entorno, como se observasse tudo o que acontece de muito longe (Gondar, 2017). Assim, passa a aceitar de maneira fácil e sem resistência a forma que lhe dão, "à maneira de um saco de farinha" (Ferenczi, 1933/1992, p. 109), perdendo sua forma própria. Tamanha adaptação comporta "uma dimensão de morte parcial, de perda e renúncia de uma parcela de individualidade" (Pinheiro, & Viana, 2018, p. 56).

Tamanha desconexão psíquica se realiza a partir de uma "autoclivagem narcísica" (Ferenczi, 1933/1992), isto é, uma fragmentação psíquica por meio da qual se elimina a unificação insuportável do sofrimento, dispersando os efeitos traumáticos. Nas palavras de Ferenczi (1932/1990, p. 240): "o ser que fica só deve ajudar-se a si mesmo e, para esse efeito, clivar-se naquele que ajuda e naquele que é ajudado". Fragmentar-se implica um processo de autodestruição em prol da sobrevivência psíquica. Por esse viés, Roussillon (1999, p. 20; tradução nossa) afirma que a clivagem opera por corte ou retirada da subjetividade. Nas suas palavras: "o sujeito se retira da experiência traumática primária, ele se retira e se corta da sua subjetividade. Ele assegura, este é o paradoxo, sua ‘sobrevivência’ psíquica se cortando de sua vida psíquica subjetiva". Para Knobloch (2016), tornar-se múltiplo se apresenta como uma saída para neutralizar o estado agonizante do traumático, na medida em que se amplia, pela fragmentação, a superfície de suporte do insuportável.

A imagem da clivagem ferencziana se mostra mais clara através do conceito de autotomia, tomado de empréstimo da Biologia (Ferenczi, 1926/2011). Trata-se de um conceito desenvolvido a partir de um modo de reação observado em alguns seres vivos elementares, como a lagartixa, por exemplo. Tal modo consiste em se desprender de pedaços do corpo, sede de uma excitação dolorosa e fonte de um sofrimento extremo, para permitir a salvaguarda do restante. De forma análoga, então, o indivíduo também abandona ou destrói partes de si, ao clivar-se, buscando, assim, apartar a dor da vivência traumática e seguir adiante. Ocorre, portanto, uma espécie de sacrifício de um pedaço de si em prol da sobrevivência do conjunto. Trata-se, assim, de uma modalidade extrema de cisão "que deixa uma parte morrer ou quase isso, para que outra, mutilada sobreviva" (Coelho Junior, 2018, p. 132). O efeito do traumatismo implica, então, em um fenômeno da morte, isto é, uma morte antecipada ou uma morte em estado de suspensão.

Nessas condições, o sujeito se divide "numa parte sensível, brutalmente destruída, e numa outra que, de certo modo, sabe tudo, mas nada sente (Ferenczi, 1933/1992, p. 77). A parte que tudo sabe observa a destruição de fora, à distância, como quem assiste a um filme. Cabe sublinhar que há pouca relação entre as partes clivadas, sendo que o afeto fica restrito a determinado elemento, não se transferindo aos demais (Dal Molin, 2016). As zonas clivadas coexistem no psiquismo, sem, contudo, estabelecer contato ou associação entre si, tampouco entram em conflito. De fato, "a cessão da inter-relação dos fragmentos de dor permite a cada um dos fragmentos uma adaptabilidade maior" (Ferenczi, 1933/1992, p. 248).

Assim, o sujeito não sente mais o estado traumático, posto à margem, mas também não sente mais nada, anestesiando-se. Com relação à vida afetiva, segundo Ferenczi (1933/1992), ocorre um refúgio na regressão, de modo tal que o indivíduo não sente nenhuma emoção até o fim; no fundo, nunca é a ele que as coisas acontecem. A parte que estabelece relações com o mundo torna-se, portanto, anestesiada. Cabe precisar que não se trata aqui de uma insensibilidade, mas de uma desconexão afetiva oriunda da descontinuidade radical produzida pela ação da clivagem (Verztman, 2002), de tal modo que a aparente dessensibilização revela, no fundo, uma hipersensibilização.

Rompem-se, assim, as pontes possíveis entre a subjetividade e a objetividade do mundo. Tal ausência de nexos e coesão no psiquismo se traduz, muitas vezes, por uma dificuldade em se sentir vivo, presente e real, além de trazer sensações de estranheza, desalento e vazio. É importante precisar que a ação da clivagem afeta diretamente as fronteiras psíquicas entre a interioridade e a exterioridade, os limites entre as instâncias psíquicas e a interseção psique-soma. Nesse sentido, no lugar de uma construção de sólidos organizadores tópicos, dinâmicos e econômicos do funcionamento mental, conta-se com a fabricação de barreiras protetoras, simultaneamente rígidas e frágeis. Em virtude de fronteiras mal-ajambradas, com níveis mais ou menos vulneráveis quanto às possibilidades de expansão e retraimento, sobrevém um estado subjetivo de instabilidade.

Desse modo, instauram-se modalidades de relações com o mundo marcadas por contradição e incoerência, tributárias da desconexão entre dentro-fora, psique-soma. Por essa linha de pensamento, entendemos que o sujeito se move, ora para dentro, ora para fora, recaindo em modos de existir que englobam da introspecção às atuações ou da observação à impulsividade (Figueiredo, 2003). Nessas condições, o mal-estar subjetivo se enuncia, sobretudo, no registro do corpo e da ação, desafiando o potencial simbólico (Birman, 2006).

Na linha dessas ideias, acreditamos que a compulsão à ocupação aponta para um modo de funcionamento psíquico ancorado na clivagem e descortina um modo de sobrevivência psíquica alicerçado na descarga, na anestesia e no vazio afetivo. Portanto, a busca compulsiva por manter-se ocupado pode ser pensada como uma forma de o sujeito se defender do pulsional excessivo - marca do trauma vivido no início da vida -, como uma forma de se manter vivo, apesar de o Eu ser constantemente ameaçado de fragmentação, ameaçado de morte. Essa construção defensiva aponta para a ação de uma lógica mortífera.

A dificuldade de se desconectar do mundo virtual, a hiperatividade, a angústia produzida pelo tédio e a impossibilidade de descansar nos parecem não indicar - ao contrário do que poderíamos pensar - um investimento maciço em atividades, mas, ao contrário, a dificuldade - em maior ou menor grau - de investir em algo, a dificuldade de construir vínculos. Retomando a ideia de Türcke (2010), segundo a qual a compulsão à ocupação pode ser compreendida como uma forma vital de expressão, o que o sujeito expressa através da ocupação compulsiva parece ser a ameaça de morte a que o Eu se encontra permanentemente submetido, ameaça de ser invadido pelo pulsional excessivo, pelo retorno do clivado, o que implica em uma luta desesperada pela sobrevivência. Cabe precisar que a clivagem não elimina o vivido, de tal forma que "o pavor foi a força que dissociou os sentimentos do pensamento; mas esse mesmo pavor está sempre operando, é ele que mantém separados os conteúdos psíquicos assim dissociados" (Ferenczi, 1932/1990, p. 251). Assim, a busca por manter-se ocupado não parece indicar o investimento constante em algo, mas justamente a impossibilidade de efetivo investimento.

O sujeito se vê submetido à necessidade de se ocupar como recurso de sobrevivência e forma de lidar com sua fragilidade e falta de coesão. Portanto, a compulsão à ocupação pode ser pensada como um desdobramento da fragmentação subjetiva e da anestesia interna. Inversamente do que poderíamos pensar, não é a compulsão à ocupação que produz o anestesiamento do sujeito. É a anestesia subjetiva - indissociável de um narcisismo frágil - que estaria na base da busca frenética por ocupar-se. Isso tem íntima articulação com a impossibilidade de dizer não e de estabelecer limites claros, uma vez que a questão que está posta é de vida ou morte. Nesse contexto, não estar ocupado representa o aumento da ameaça de aniquilamento, produzindo uma sensação de não existência.

Nesses casos, cabe acrescentar que a autoconservação narcísica pode se desarticular da autoconservação do corpo, o que representa um grande risco. A luta por sobrevivência psíquica travada com o pulsional excessivo, mortífero, pode levar o sujeito à morte, como ocorre nos casos de Karoshi. Esse fenômeno nos indica o paradoxo dessa luta desesperada pela sobrevivência psíquica que pode acabar por matar o corpo.

Desse modo, podemos compreender melhor por que a ocupação adquire, em muitos casos, conotação imperativa e patológica: porque se trata de uma questão de sobrevivência psíquica. Ou seja, refere-se a um imperativo interno que exige do sujeito manter-se ocupado como forma de descarga do pulsional excessivo, tentativa de evitar a desestruturação do eu, garantindo alguma sensação de existência, mesmo que isso possa custar a própria vida. Contudo, não podemos deixar de considerar a influência da lógica performática que caracteriza nossa sociedade. Ela pode ser pensada como fator facilitador para construção dessa resposta através de um circuito compulsivo de ocupação.

 

Considerações finais

Na contemporaneidade, o cotidiano de grande parte dos sujeitos é marcado por pressa, escassez de tempo, ocupação constante e cansaço. Tendo isso em vista, procuramos mostrar que tal lógica pode adquirir um caráter patológico - a compulsão à ocupação - e, em casos mais graves, inclusive, levar o sujeito à morte. A partir disso, investigamos o modo de funcionamento psíquico subjacente à compulsão à ocupação. Nossa investigação evidenciou a base traumática de tal forma de compulsão e a lógica fragmentária do funcionamento psíquico voltada para a busca pela sobrevivência.

Como vimos, tal lógica de funcionamento psíquico não pode ser pensada desarticulada da presença de um narcisismo frágil. O que estaria em jogo, fundamentalmente, seria uma falha dos investimentos objetais no início da vida, tornando precária a dimensão da relação com o outro. Desse modo, consideramos que esse Eu frágil, ameaçado, acuado, que faz da hiperatividade seu recurso de sobrevivência psíquica, precisa, em primeiro lugar, de alguém capaz de oferecer cuidado, tempo e espaço, investindo nele tal como deveria ter ocorrido nos estágios iniciais. Isso indica a importância de escutarmos o sofrimento quase inaudível para além do cansaço que esses sujeitos relatam em nossos consultórios, pois, na maioria das vezes, eles próprios não conseguem ouvir.

Nesse sentido, entendemos que a saída para o excesso de ocupação, aceleração e pressa é a possibilidade de ligação da pulsionalidade com os objetos, ou ainda, do desenvolvimento de uma sintonia afetiva (Stern, 1992) com o mundo. Desse modo, consideramos que tais casos de compulsão à ocupação nos parecem indicar a urgência de cuidarmos dos encontros em nossa sociedade, especialmente dos encontros com o outro no início da vida - encontros estes que serão alicerce para a constituição psíquica. Esses casos nos alertam para a importância fundamental do tempo dedicado ao encontro/cuidado do outro, nos mostram a importância do olhar e do cuidado de um outro para que o sujeito possa se ocupar de si mesmo, para que possa viver e não apenas lutar pela sobrevivência, não apenas ocupar-se compulsivamente.

 

 

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Artigo recebido em: 10/03/2019
Aprovado para publicação em: 11/06/2020

Endereço para correspondência
Camila Peixoto Farias
E-mail: pfcamila@hotmail.com
Renata Mello
E-mail: renatamello@gmail.com

 

 

*Psicanalista; Professora Adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL); Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Coordenadora do Pulsional - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise; Membro do Grupo de Trabalho: Psicanálise, subjetivação e cultura contemporânea - da Associação Nacional de Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP).
**Psicóloga clínica e psicanalista; Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP/UFRJ), com período sanduíche na Université Paris Diderot; Pós-doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); pesquisadora do Laboratório de Estudos em Família e Casal (LEFaC/PUC-Rio); membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).

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