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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Raça, gênero e classe social na clínica psicanalítica

 

Race, gender and social class in psychoanalytic clinic

 

Race, genre et classe sociale dans na clinique psychanalytique

 

 

Fernanda Canavêz*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho objetiva situar o debate sobre raça, gênero e classe social na clínica psicanalítica atual, partindo da apresentação do paradigma da interseccionalidade em um diálogo com as Ciências Sociais. Para a consecução da proposta principal, retoma criticamente as raízes modernas da clínica à luz do debate sobre colonialidade para, na sequência, circunscrever a clínica ao debate atual encampado pelos novos movimentos sociais. Por fim, partindo de contribuições de Sándor Ferenczi, aposta-se na clínica como espaço-tempo de desconstrução de desmentidos sociais que reforçam opressões, bem como na potência do caráter paradoxal daquela para a desconstrução de identidades cristalizadas.

Palavras-chave: raça, gênero, classe social, clínica psicanalítica.


ABSTRACT

The work aims to situate the discussion about race, gender and social class in the current psychoanalytic clinic, starting from the presentation of intersecionality's paradigm in a dialogue with Social Sciences. In order to achieve the main objective, it takes up modern roots of the clinic in the light of the debate on coloniality and then circumscribes clinic to the current discussion of new social movements. Finally, starting from the contributions of Sándor Ferenczi, clinic is considered as space-time of deconstruction of social denials that reinforce oppressions, as well as in the power of its paradoxical character for the deconstruction of crystallized identities.

Keywords: race, gender, social class, psychoanalytic clinic.


RÉSUMÉ

Le but de ce travail est de situer la question de la race, du genre et de la classe sociale dans la clinique psychanalytique actuelle. Pour le faire, il présente le paradigme d'intersectionnalité dans un dialogue avec les Sciences Sociales. Pour atteindre ce propos principal, ce travail reprend de façon critique les racines modernes de la clinique à la lumière du débat sur la colonialité afin de la circonscrit au débat des nouveaux mouvements sociaux. À partir des contributions de Sándor Ferenczi, la clinique se présente en tant qu'un espace-temps de déconstruction des dénégations sociales qui renforcent les oppressions, et d'identités cristalisées, dans la mesure où elle est marquée par un carcatère paradoxal.

Mots-clés: race, genre, classe sociale, clinique psychanalytique.


 

 

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte

(Caetano & Gil, 1969)

Raça, gênero e classe podem ser enaltecidos separadamente como categorias que comportam especificidades que devem ser destacadas. A despeito da parca literatura a respeito do(s) tema(s) no campo da psicanálise - e, mais especificamente, naquele da clínica psicanalítica -, as alusões encontradas caminham, em geral, seguindo a referida tônica: raça, gênero e classe social tomados em separado e, por isso, demandando reformulações teórico-clínicas em função de suas particularidades.

A título de exemplificação, é possível mencionar o famoso trabalho da psicanalista Neusa Santos Souza, que veio a público no início dos anos 1980, intitulado Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (1983). O livro foi prefaciado pelo atuante Jurandir Freire Costa, texto que alcançou expressiva circulação desde então. A notícia do suicídio dessa psicanalista, em 2008 - portanto em solo discursivo algo diferente em comparação com a ocasião da publicação de seu livro -, aqueceu o debate sobre o racismo no campo psi. Os predicados de psicanalista e de negra circularam amplamente. Pouco parece se ter falado sobre aquele de mulher, muito menos sobre sua origem popular na Bahia.

Com o episódio, é plausível ilustrar o caráter intrínseco dos termos raça, gênero e classe social e, paradoxalmente, a sedução contida na possibilidade de tomá-los separadamente, estabelecendo uma espécie de escalonamento de acordo com determinado referencial discursivo. É por isso que se aposta, para a discussão doravante proposta, no paradigma da interseccionalidade, atualmente corrente no campo das Ciências Sociais. Isso porque essa perspectiva parece ter muito a contribuir para os temas do racismo, do gênero e da classe social quando aventados na clínica psicanalítica, assunto do qual não se pode furtar em se tratando da psicanálise na contemporaneidade.

Este trabalho parte, desse modo, da aposta na fertilidade das interrogações que formulações de outros campos de saber podem fazer à psicanálise, recusando o risco da circularidade de formulações calcadas apenas no arcabouço teórico produzido no movimento psicanalítico. Busca recusar, ainda, argumentos de autoridade que tendem a recorrer aos cânones da psicanálise para sustentar uma atualidade que seria inquestionável em nossa clínica, como se esta fosse insubmissa à incidência da passagem do tempo e aos recortes históricos em que se situa. Se Freud inaugurou um saber e uma prática marcadamente subversivos na modernidade que lhe serviram de berço, cabe a nós, praticantes da psicanálise, fazer jus à subversão de Freud para colocar também nossos aportes teóricos à prova. Sugere-se que dessa maneira a psicanálise pode continuar se sustentando como discursividade afeita ao múltiplo (Canavêz, 2017) e capaz de extrapolar o que Derrida (1996) indica como resistência da psicanálise à própria psicanálise.

Sendo assim, faz-se premente visibilizar o transbordamento de temas como raça, gênero e classe social na clínica psicanalítica onde quer que esta se dê: dos dispositivos públicos de assistência aos consultórios localizados em bairros abastados dos grandes centros urbanos. Para tal, convém tomar a psicanálise em uma perspectiva situada1, portanto absolutamente ancorada na realidade em que se desenvolve, sempre parcial e crítica. Seguindo as pistas de Ayouch (2019, p. 183), temos que a prática psicanalítica, como qualquer experiência social, "não escapa a essas intersecções de gênero, cultura, raça e classe, embora ela não faça parte de um processo de comunicação e troca habitual". Feitas essas ressalvas, é possível então passar ao debate interseccional para depois situá-lo nas raízes modernas e colonialistas da psicanálise. Por fim, alguns apontamentos do psicanalista Sándor Ferenczi serão revisitados na expectativa de articulação dos temas abordados, recurso utilizado para circunscrevê-los à clínica, uma vez que não faz parte do escopo desta proposta a discussão de casos ou vinhetas clínicas.

O termo interseccionalidade indica a interdependência das relações de poder de raça, gênero e classe social. Foi cunhado pela jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, no final da década de 1980, refletindo a herança da atuação do chamado black feminism na década que a antecedeu, muito embora tenha alçado lugar de relevância apenas a partir da segunda metade dos anos 2000 (Hirata, 2014). Exemplar aqui é a produção da filósofa estadunidense negra Angela Davis, um dos nomes mais evocados no Brasil quando a problemática está em pauta, autora de Mulheres, raça e classe (1981/2016) e demais títulos recém-lançados em português em torno da mesma temática.

Voltando a Crenshaw (2012), o contexto de sua luta auxilia a compreender a potência da proposta da interseccionalidade. Tratou-se de um embate jurídico, nos Estados Unidos, entre mulheres negras e a General Motors. As primeiras acusavam a empresa de não as contratar em função da segregação racial e de gênero. O tribunal dividiu as duas categorias de segregação e chegou à conclusão de que não havia discriminação racial porque homens negros eram contratados pela referida fábrica. Também não havia discriminação de gênero, pois mulheres eram igualmente contratadas. Estas "por acaso" eram brancas (Crenshaw, 2012). O episódio desvela que mulheres negras ficavam à margem do discurso jurídico quando as categorias em questão não eram postas em interação.

Sendo assim, a interseccionalidade pode ser definida como uma teoria transdisciplinar que busca considerar a complexidade das identidades e das desigualdades sociais através de um enfoque integrado. Cumpre esclarecer, como lembra Ina Kerner (2012), que apenas tratar as categorias por suas analogias não resolve a questão - e o exemplo das mulheres negras contra a General Motors mais uma vez permite esclarecer os termos da problemática -, mas também fazer recair o foco nos múltiplos entrelaçamentos e combinações entre as diferentes categorias. Opera-se, assim, um deslizamento das categorias tomadas em si para as relações sociais ou mesmo para os entrelaçamentos entre as ditas categorias. O objetivo em questão é problematizar a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social, quais sejam, as categorias de gênero, classe, raça, etnicidade, orientação sexual, idade (Hirata, 2014). Interseccionalidade remete, assim, a uma proposta de não hierarquização das formas de opressão, dentre as quais raça, gênero e classe social.

O argumento interseccional surge em determinado contexto histórico, conforme supracitado, o que reforça a ideia de que as categorias de raça, gênero e classe são historicamente construídas, e cujas análises devem, portanto, contar com o recurso da historicização2. O percurso histórico fornece inúmeros exemplos que atestam a afirmativa, sobressaindo-se os que reforçam as próprias opressões doravante discutidas. Foi assim que a ideia de raça despontou por volta do século XVI de mãos dadas com o projeto capitalista, como será retomado adiante, tendo atingido seu ápice com o tráfico negreiro, já no século XVII. A diferenciação através de raças, tomadas assim em uma concepção naturalizante, estava a serviço de justificar a exploração dos povos do dito novo mundo, como lembra Mbembe (2018). O golpe de mais envergadura nesse quesito veio no final da Segunda Grande Guerra, quando figurou marcante tentativa de banir o conceito de raça de qualquer perspectiva situada, remetendo-a à natureza como campo pretensamente apartado do social (Aguiar, 2007). Hoje é sabido que não há qualquer justificativa biológica capaz de amparar essa proposição de diferença racial.

Também foi sob essa lógica que mulheres foram relegadas aos recônditos da vida privada, atreladas irremediavelmente ao trabalho doméstico pela prerrogativa da maternidade. O conceito de gênero surge na década de 1980, em uma tomada revisionista do feminismo dos anos 1960, na expectativa de questionar uma identidade preexistente das mulheres. Acompanhando Butler (1990/2003), temos que o gênero é o meio discursivo pelo qual a natureza sexuada é produzida e estabelecida como pré-discursiva. Isso significa que a autora confere tanto ao gênero quanto ao sexo o predicado cultural, constituindo, desse modo, uma crítica ao feminismo que a antecedeu no que esse movimento conferiu de essência ao gênero, ao tomá-lo em decorrência do sexo (naturalizado). Corpo e sexo naturais não são mais do que ficção (Butler, 1987).

Em relação à classe social, a operação de naturalização dos argumentos parece dificultada, em uma primeira visada, uma vez que a expectativa de mobilidade social poderia sanar seus efeitos discriminatórios. De acordo com essa perspectiva, a categoria de classe social não estaria em pé de igualdade com as de gênero e raça. Conforme Kerner (2012, p. 47), quando se trata de atribuições racistas e sexistas, predomina a ideia de que estariam embasadas em pressupostos ditos naturais, de modo que "exigem validade atemporal ou pelo menos por longos períodos de tempo", o que não estaria colocado quando a classe está em pauta.

No entanto, a história não deixa de oferecer seus exemplos também nessa seara, evidenciando mais uma vez a tentativa de expurgar o caráter construído do discurso, apagando os rastros da hierarquização a que se propõe. No Brasil, é possível recorrer ao exemplo da adoção de medidas compensatórias nas políticas educacionais que têm como alvo crianças provenientes de classes ditas populares. A justificativa central é que apresentariam "carências culturais", as pretensas responsáveis pelo fracasso escolar. Ganhou força nas políticas educacionais brasileiras na década de 1970, embora suas origens remontem ao advento da Revolução Industrial (Kramer, 1982). A vertente mais recente da Psicologia da Educação, a chamada Psicologia Escolar Crítica, é repleta de investigações que contradizem a teoria da privação cultural, acompanhando os passos de Maria Helena Souza Patto (1990/2000) em sua exposição do viés construcionista no que chamou de produção do fracasso escolar, este destinado, não parece demasiado lembrar, a determinada classe social.

Temos, então, que as categorias em si não são suficientes para descortinar a opressão a elas associadas. Ao contrário, podem chegar a reproduzir a violência discriminatória das relações sociais que compõem. É, portanto, para fazer frente a esse histórico de discriminação que o paradigma da interseccionalidade se erige. Sua proposta não questiona exatamente as categorias que pretende articular, mas a lógica que as toma de forma estanque e hierarquizada. Essa lógica pode ser associada à discursividade moderna, a qual serviu de estofo aos primórdios da clínica psicanalítica, assunto introduzido na seção subsequente.

 

Movimentos de contestação da modernidade

Raça, gênero e classe social estão associados às dimensões fundamentais na construção de hierarquias sociais e, ao mesmo tempo, aos movimentos sociais que buscam evidenciá-las e lutar contra as exclusões que produzem. Na expectativa de circunscrever essas categorias como questão para a clínica psicanalítica na contemporaneidade, faz-se mister situar os desdobramentos desses movimentos.

Aguiar (2007, p. 85) destaca os movimentos feminista e negro como importantes agentes de contestação dos conceitos desenvolvidos pela tradição ocidental, na medida em que "acabam por questionar as categorias fundamentais da ciência, teorias e metodologias ocidentais". Categorias fundamentais que estiveram presentes desde a fundação da discursividade psicanalítica, na medida em que Freud a aventou como fratura do cientificismo moderno (Birman, 2006).

Amplia-se, dessa maneira, o que está em xeque a partir desses movimentos de contestação. O giro propiciado pelas reivindicações dos movimentos em baila - em que pesem os chamados novos movimentos sociais, sobretudo a partir do movimento feminista na década de 1980 - é o da possibilidade de mudança de perspectiva de um mundo idealizado exclusivamente por homens, sendo capaz de "alterar as categorias fundamentais, a metodologia e o entendimento da ciência e da teoria ocidentais" (Benhabib, & Cornell, 1987, p. 7).

É assim que ganha corpo, por exemplo, a proposição do feminismo como crítica da modernidade, compreendendo a modernidade como um projeto (imperialista) do mundo europeu. Acompanhando Castro (1999), é possível apresentar tal projeto a partir de dois registros fundamentais: o primeiro de caráter introdutório, baseado nos desdobramentos do empreendimento colonial que se convencionou chamar de "grandes navegações", e o segundo centrado no ideal de racionalização da sociedade.

À época das navegações capitaneadas pelos portugueses, espanhóis e italianos, o cenário americano surgiu como continente da "esperança", o chamado novo mundo, lançando importantes bases discursivas para a modernidade. A conquista de territórios outros (passível de ser concebida como um verdadeiro fetiche da conquista) apresentou-se como apêndice do velho mundo, cuja fôrma deveria dar forma a tudo que pudesse ameaçar o projeto europeu de mundo, projeto este que se convencionou denominar modernidade.

Nesse registro cabe incluir a experiência do homem branco europeu que se viu confrontado com uma existência totalmente diversa da sua (o indígena). Sendo assim, tratou-se do momento em que muitas dicotomias foram fomentadas, como aquela colocada entre "selvagem" e "civilizado", "bárbaro" e "civilizado", cujos desdobramentos povoaram as teorias contratualistas tão presentes em nossas formações de inspiração científica, também na seara da psicanálise3. Aqui cabe fazer uma ressalva em relação ao emprego do termo civilização no referido contexto. Trata-se de um entendimento do homem moderno - branco e europeu - a partir de sua visão de mundo. Assim, a própria noção de civilização estaria fortemente impregnada de seu uso no contexto da modernidade, a saber, calcada na expectativa de certo aperfeiçoamento do sujeito, portanto contraponto de uma pretensa selvageria, resto de barbárie (Starobinski, 1999/2002). Esse é o caso, por exemplo, do termo no texto "O mal-estar na civilização" (1974/1930), em que Freud discute o mal-estar na modernidade, na civilização moderna, e não exatamente pinta um retrato absoluto e atemporal de um sujeito pretensamente anistórico.

Associado ao furor imperialista por ocasião das chamadas "grandes navegações" é possível ainda destacar o registro da racionalização da sociedade. Tratou-se de uma tendência que, segundo Max Weber (1905/2005), atuaria com mais rigidez nas sociedades ocidentais modernas. Sem adentrar a complexa discussão sobre a racionalização em Weber, convém compreendê-la, para os limites da presente investigação, a partir do uso por parte do sujeito moderno dos meios técnicos da ciência para realizar suas ações, que são, assim, alvo de uma sistemática de métodos. A racionalização no ocidente encontra no capitalismo sua maior expressão.

A sociedade moderna produz um verdadeiro tensionamento no sentido da superação de formas tidas (pelos modernos) como mais rudimentares de produção, marcadamente rurais, para privilegiar o máximo aproveitamento da força de trabalho concorrendo para a capitalização. É a tentativa de passagem de uma sociedade agrária para aquela de organização urbana-industrial. Não por acaso foi no seio da sociedade moderna que desponta a chamada Revolução Industrial, cujo primeiro período, na Inglaterra, teve lugar entre 1760 e 1860.

Assim como o fetiche da conquista deu ensejo à oposição entre "selvagem" e "civilizado", situa-se aqui a dicotomia entre a razão moderna e tudo que não se enquadra nesse discurso, resto de civilização que deve, por isso, ser iluminado - por alusão ao Iluminismo - de acordo com os moldes modernos. A filósofa argentina María Lugones (2014) reforça a proposta de tomar esses dois registros como primeira e segunda modernidade: no primeiro recorte teríamos o momento do fetiche da conquista, ao passo que no segundo estariam concentrados os predicados da modernidade capitalista, tendo a Revolução Industrial por seu esplendor.

Se for necessário estabelecer um recorte historiográfico para a modernidade ancorado na cronologia do tempo, é possível sugerir como seu ápice, acompanhando Foucault (1997), a derrocada da monarquia nos moldes absolutistas e a emergência do Estado-nação. No entanto, é cabível ainda que a modernidade seja compreendida como uma atitude em relação ao próprio tempo, parafraseando o italiano Agamben (2009) em sua indicação a respeito do contemporâneo. A perspectiva da historiografia clássica pode se coadunar com aquela que toma modernidade e contemporaneidade como atitudes, premissa fundamental para atestar a persistência, ainda hoje, da expectativa de modernização das técnicas, do conhecimento, do trabalho, da sexualidade, da política, dos modos de subjetivação.

Feita essa pequena digressão explicativa do significado de modernidade, é possível resgatar a noção do feminismo como crítica de tal projeto de mundo europeu (Benhabib, & Cornell, 1987). A reconstrução teórica presente nas fileiras desse movimento aponta para a importância de um revisionismo marxista, propiciando o deslocamento do paradigma da produção, cenário do qual as mulheres foram banidas em função do lugar privatista ao qual foram relegadas. O que está em pauta nessa primeira crítica é a dicotomia institucional entre público e privado, mais uma divisão marcadamente moderna. Ademais, o segundo interlocutor ao qual o movimento feminista se endereça é o liberalismo, responsável por exaltar a noção de um eu desimpedido que as militantes feministas fazem coincidir com o eu masculino. Ao que se pode acrescentar: eu desimpedido do homem moderno. Sendo assim, o movimento feminista que teve lugar na década de 1980 evidencia severas críticas remetidas à modernidade, solo histórico e discursivo no qual a clínica moderna - e, cabe lembrar, a clínica psicanalítica - floresceu.

Cabe, portanto, fazer ecoar o black feminism e a proposta da interseccionalidade que daí emergiu: é o projeto moderno, em sua pretensão de organizar o mundo de maneira ontológica a partir de categorias homogêneas e inseparáveis, que é colocado na mira. Lugones (2014) esclarece que a reivindicação das mulheres negras do terceiro mundo mostra que a interseção entre raça, classe, sexualidade e gênero vai muito além das categorias (estanques) da modernidade. Em sua análise sobre a retórica (que se pretende anistórica) das categorias, Lugones (2014, p. 936) salienta como espinha dorsal da modernidade a divisão forjada entre humano e não humano. Vale acompanhar a autora na íntegra: "Começando com a colonização das Américas e do Caribe, uma distinção dicotômica, hierárquica entre humano e não humano foi imposta sobre os/as colonizados/as a serviço do homem ocidental".

Em adição, é importante destacar que a prerrogativa da humanidade estaria reservada ao homem moderno, aos seus códigos de conduta, à sua visão de mundo. A desumanização de formas outras de vida que escapam à civilização moderna marcou a ferro e fogo os povos do continente-esperança. Parece marcar, ainda hoje, os sujeitos remetidos às categorias de classe social, gênero e raça, motivo pelo qual a clínica é sempre convidada a revisitar seus postulados teórico-clínicos, em que pese a própria concepção de sujeito da qual lança mão. Dessa maneira, a modernidade vista com tais lentes acaba nos trazendo o imperativo do debate sobre a colonialidade. É sob essa ótica que a clínica na contemporaneidade será tratada

a partir das indagações reunidas no cruzamento das categorias de gênero, raça e classe.

 

Acerca da modernidade e da colonialidade

"A Europa é indefensável" (Césaire, 1955/1978, p. 13; grifos do autor). A afirmativa de Aimé Césaire, em seu famoso Discurso sobre o colonialismo, ilustra de maneira impactante a ideia da crítica da modernidade, do projeto europeu em que consistiu a modernidade. Para o argentino Walter Mignolo, a modernidade é um fenômeno intimamente associado ao colonialismo4 (Machado, 2014). Sua proposta de invenção da América, em oposição à visada (eurocêntrica) de uma descoberta da América, objetiva "interrogar a epistemologia e a política presentes no pensamento ocidental e, no momento seguinte, explorar as inúmeras versões históricas de corpos e de lugares subalternizados pela colonialidade" (Machado, 2014, p. 2).

É cabível indagar se a suposição de um eurocentrismo exaltado e vitorioso não estaria caducando na atualidade em decorrência do reordenamento geopolítico que remeteria, em um olhar retrospectivo, à Guerra Fria. É sabido que a modernidade estampou a imagem de uma Europa desenvolvida, esta muito distante daquela que povoa hoje os noticiários. No entanto, "A partir do século XX, registra Mignolo, os Estados Unidos também passam a integrar tal imagem, o que lhes dotou força suficiente para reproduzir padrões neoliberais convenientes aos interesses político-econômicos do país e de suas empresas" (Machado, 2014, p. 3).

É justamente para fazer face às ideologias totalitárias cujas raízes remontam à aurora da modernidade - quais sejam, o cristianismo/conservadorismo, o liberalismo, o colonialismo e o marxismo "ortodoxo" - que se estrutura a opção decolonial. É para embaralhar as fronteiras da dicotomia entre razão e desrazão, entre humano e não humano, do que escapa ao estruturalismo. É para evidenciar que se trata de uma divisão moderna entre razão moderna e razões outras, homem moderno e existências outras. Existências de corpos e de lugares subalternizados pela colonialidade. Existências de corpos e de lugares subalternizados - raça, gênero e classe social - pela colonialidade.

Também caminha nessa direção o pensamento do psiquiatra Frantz Fanon, cuja produção parece ser mais conhecida no campo psi em comparação às demais reunidas sob a égide do pensamento pós-colonialista, talvez em função de sua formação e elaboração sobre a chamada psicopatologia da colonização. Para o autor, um discurso hegemônico de forte apelo racista estabeleceu a Europa como epicentro de enunciação (Fanon, 1961/1979), a partir do qual foram esboçados padrões de civilização, de produção de conhecimento e, em última instância, de modos de subjetivação. Fanon (1952/2008) busca empreender o projeto de um sóciodiagnostico a partir de uma interlocução direta com o pai da psicanálise, responsabilizado pelo primeiro por ter dado muita ênfase ao fator individual nos fenômenos clínicos para se contrapor à tendência constitucionalista marcante na Psicologia no final do século XIX.

De acordo com Fanon (1952/2008), o mérito de Freud estaria no empreendimento da substituição da perspectiva filogenética por aquela ontogenética. Essa subversão, no entanto, não seria suficiente para dar conta da alienação do negro, que está longe de ser uma problemática individualizada. Como resposta, o psiquiatra propõe a inclusão da sociogenia, que ganha o contorno do seu método (clínico) sociodiagnóstico. Entendemos que Freud já havia indicado relações mais complexas entre sujeito e cultura, conforme destacado no texto sobre as massas (Freud, 1921/1976). Ainda assim, a crítica de Fanon é operacional por revelar que o sujeito do qual os discursos que fundaram a clínica moderna se ocuparam é marcadamente situado: trata-se daquele encorpado pelo liberalismo, discurso do qual facilmente são elididos os determinantes histórico-políticos.

A historiadora norte-americana Joan Scott (2005) é precisa em seu apontamento sobre o conceito de indivíduo, que ela batiza de indivíduo normativo na coincidência que essa categoria evidencia com aquela do homem branco. Diz ela que "O problema tem sido que o 'indivíduo', apesar de todas as suas possibilidades de inclusão, tem sido concebido em termos singulares e sido representado tipicamente como homem branco" (Scott, 2005, p. 24). Por conseguinte, o indivíduo normativo constitui o modelo a partir do qual tudo que a ele não se assemelha é tratado como diferente. O indivíduo normativo/homem branco é alçado, assim, à ficção de universalidade.

Ora, não teria sido essa ficção universal presente no conceito de indivíduo que criou as bases para a emergência da clínica exatamente na modernidade? Sendo assim, é importante que a clínica psicanalítica na contemporaneidade siga atenta à proximidade histórica que guarda com uma espécie de leito de Procusto subjetivo (Gondar, & Canavêz, 2018): haveria um modelo de indivíduo dado aprioristicamente pelas teorias psis, paradigma ao qual os processos de subjetivação devem se conformar, de modo que o que dele escapa fica relegado à esfera da psicopatologia. Nesse quesito, a concepção psicanalítica de sujeito, tal como cindido e descentrado, parece ter muito a contribuir para o campo psi, no que revela de potência para fraturar os modelos estanques e anistóricos. Compete reiteradamente à clínica, dessa maneira, revisitar seu solo teórico-clínico no imperativo ético de reinvenção de seus postulados à luz das demandas de seu tempo. É nesse sentido que as categorias de raça, gênero e classe social não apenas endereçam questões específicas para a clínica, mas, situadas historicamente, demandam uma revisão atenta e comprometida da clínica moderna.

 

A reinvenção da clínica moderna

A proposta de assumir o imperativo de reinvenção da clínica moderna à luz do cruzamento das categorias de gênero, raça e classe pode se afinar àquela do pensamento pós-colonial. A contenda implica lançar luz sobre os pressupostos modernos que impregnam o campo, no intuito de que seja possível tratar a clínica psicanalítica no contemporâneo como clínica atual. Atual e pós-colonial. Atual e pós-moderna.

Com essa proposição não se afirma, em absoluto, o estabelecimento de um radical corte epistemológico em relação à clínica oriunda na modernidade, mas revisitar seus postulados em busca do que se sustenta ainda hoje. Para exemplificar, convém retomar a visada sobre Freud de que Fanon (2008) parece se fazer partidário: seria o arcabouço conceitual freudiano tão impotente para tratar das questões atuais ou é uma determinada leitura deste, tomada como atemporal e insubordinada às forças de sua época, que merece ser colocada em xeque, dado seu caráter supostamente universal e, desse modo, totalitário?

Freud parece evidenciar, ao mesmo tempo, uma fidedigna filiação à modernidade, muito embora não deixe de se mostrar um crítico desta, o que permite aproximá-lo do modernismo (Canavêz, 2011). Assim, seu pensamento está longe de se pretender absoluto, ânsia que é associada, para acompanhar os pensadores dedicados aos estudos pós-coloniais, à modernidade. Miglievich-Ribeiro (2014) explica que é importante não desprezar a cosmologia moderna e seus valores (igualdade, democracia, direitos humanos), mas contextualizar suas categorias explicativas e normativas até então naturalizadas como absolutas.

Com efeito, o teor "absoluto" de conceitos que circulam pelo campo da clínica faz-se historicamente presente desde suas origens. Talvez essa constatação explique, pelo menos em parte, o fato de o discurso psi ter se colocado tantas vezes como cúmplice da opressão sofrida pelos sujeitos revelados nas categorias de classe, gênero e raça. Não sem motivo, o código de ética do profissional da Psicologia faz alusão, em diferentes dos seus princípios fundamentais (CFP, 2005), à exigência de um trabalho que prime pela igualdade (princípio I); à necessidade de lutar pela eliminação de quaisquer formas de discriminação e opressão (princípio II) e à indicação de uma análise crítica e histórica da realidade na qual a prática se desenvolve (princípio III).

De maneira análoga, o campo psi já esteve na mira - e não deixa de estar - desses movimentos sociais, o que tem resultado em muitas iniciativas, ainda que tardias, que buscam reverter a aliança das práticas psi com o silenciamento das violências que as discriminações aqui tratadas trazem à tona. Para ilustrar é possível citar a recente produção, por parte do Conselho Federal de Psicologia, de referências técnicas para a atuação de profissionais de Psicologia no tocante às relações raciais (CFP, 2017).

Do mesmo modo, pesquisas indicam posições antagônicas no que diz respeito à tomada de posição por parte de psicólogos sobre o transbordamento de questões tidas como sociais na clínica. É o que demonstrou uma investigação com estagiários da clínica-escola da Universidade de São Paulo, que revelou que estes alternavam entre duas posturas diante da situação de desemprego de sujeitos assistidos: ou o quadro era considerado como decorrente das peculiaridades desses sujeitos ou estes eram entendidos como vítimas de um sistema que a própria Psicologia não poderia concorrer para modificar (Schmidt, 2004). Sendo assim, o estudo mostrou que o sujeito ora figura como o único responsável por uma complexa sobredeterminação de forças, indicando uma ênfase na leitura individualizante dos fenômenos clínicos; ora é relegado ao estatuto de refém de um sistema sobre o qual não possui qualquer ingerência, assim como a clínica em uma perspectiva não situada.

Contrariando a perspectiva das narrativas colhidas no quadro da sua pesquisa na USP, Schmidt (2004) lembra da potência da clínica nessa empreitada, cabendo ao terapeuta levar o sujeito a se interrogar sobre si e, ao mesmo tempo, se interrogar sobre sua realidade. É assim que a clínica ganha o colorido de uma prática política, buscando sempre uma mudança, como lembra Gondar (2004, p. 126) por ocasião da clínica psicanalítica: "um modo de ação e relação que pretende transformar a condição dos homens - eis uma definição que serve, ao mesmo tempo, para a clínica e para a política". A mudança que a discussão sobre raça, gênero e classe social traz à baila parece, em especial, aquela de subverter os silêncios produzidos pela opressão. Parece residir aí a potência da clínica e, sincronicamente, o risco de que se torne, ela mesma, uma forma de opressão.

O famoso trabalho da indiana Gayatri Spivak (1985/2010), intitulado Pode o subalterno falar?, toca precisamente nessa questão ao expor que há silêncios intraduzíveis que jamais se tornarão audíveis caso não se deixe de lado a pretensão de ser o porta-voz do outro. À luz dessa indicação, vale revisitar o paradoxo que a clínica encerra: esta pode estar a serviço da acolhida dos silenciados por uma pretensão totalizante - moderna, colonial, discriminatória -, dos subalternizados, no dizer de Spivak; mas também pode reforçar esse silenciamento quando o clínico se assume porta-voz destes. Quando orienta sua escuta por engessamentos dados aprioristicamente, quando quer fazer caber narrativas polifônicas em um modelo a partir do qual aprendeu a escutar, quando não suporta a voz dos silenciados por ter também em si as forças da opressão que silenciam.

Não guardaria então a clínica o risco de se encerrar em uma visada totalitária, que poder ser chamada, a partir de Derrida, de tirania do Um? (Canavêz, 2017). Com efeito, a clínica seria marcada por um movimento pendular que ora se aproxima de uma abertura mais polifônica, ora corre o risco de estar a serviço de reiterar violências. Nos termos doravante propostos, uma clínica que ora se aproxima da modernidade, da colonialidade, ora da crítica desse projeto de mundo eurocêntico que deu ensejo à dominação no sistema mundial capitalista.

De acordo com essa proposição, cai por terra o projeto de estabelecer uma clínica que seria safe5, absolutamente apartada daquela em que o silenciamento que faz par com a violência seria permanentemente convocado. O fato de buscar a defesa de uma clínica que não reproduza quaisquer formas de opressão não nos livra, em absoluto, do risco de reproduzi-las. O fato de uma mulher partir em busca de uma psicoterapeuta também mulher não garantirá, pelo menos não em decorrência de uma identificação mais imediata, que os fantasmas associados ao sexismo estarão afastados. O mesmo se aplica ao debate sobre racismo e demais formas de discriminação. O que está em pauta é o tensionamento que a clínica evidencia, transmutando-se em um campo de forças conflitantes que estão presentes na cultura em geral. Como clínicos, devemos estar atentos e fortes àquelas que se erigem para silenciar os modos de subjetivação que, em função da lógica colonial, foram subalternizados. Dessa maneira, raça, gênero e classe social endereçam inúmeras questões para o nosso divino, maravilhoso clínico, algumas das quais serão abordadas a seguir.

 

Algumas questões para a clínica na contemporaneidade

Pelo menos duas questões urgem para uma clínica que se proponha atenta e forte às categorias de classe social, gênero e raça. São elas: a problemática do silenciamento que a clínica pode reforçar, na contramão de sua proposta como prática política; e a exigência de não cristalizar subjetividades produzidas por esse desmentido social, as identidades subalternizadas. Para tratar dessas questões serão abordados os temas do desmentido social, acompanhando os termos de Jô Gondar (2018), e da clínica como marcadamente paradoxal, recaindo esse paradoxo nos múltiplos modos de subjetivação que nela devem comparecer, a despeito da tentativa de engessamento de certas identidades (normativas); em outros termos: nas múltiplas versões de si que um sujeito pode enunciar.

Para tratar do primeiro assunto, a saber, o desmentido social, cabe retomar o psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, que se dedicou a uma produção sobre o trauma na clínica. Para falar sobre a traumatogênese, ele parte de uma experiência traumática que se dá a partir de três figuras (um adulto abusador, uma criança abusada e um adulto para quem a criança conta o ocorrido) e em três tempos. Antes de passar a esses tempos é importante esclarecer que Ferenczi (1932/2003) fala de uma confusão de línguas entre a criança e o adulto como se fossem dois universos providos de linguagens próprias. Constituem então os três tempos do trauma: a criança "seduz" o adulto abusador (mas essa "sedução" se dá nos termos da linguagem da ternura); o adulto abusa da criança, respondendo à "sedução" nos parâmetros da linguagem da paixão; a criança busca uma resposta para o que houve na figura de um terceiro adulto, o qual deve desacreditar a verdade que é trazida pela criança para que o trauma efetivamente aconteça. Aqui tem lugar o desmentido.

O que confere o aspecto traumático à experiência não é exclusivamente sua intensidade ou a predisposição da criança, mas a acolhida que é promovida pelo ambiente que a cerca. Quando o desmentido se impõe, um dos desdobramentos possíveis é o que Ferenczi chama de clivagem do eu. O eu se divide de modo a preservar uma parte do psiquismo que sofreu com o trauma, enquanto outra parte busca continuar vivendo - sobrevivendo - na tentativa de ignorar o que se passou.

A teoria ferencziana ajuda a pensar sobre a clínica nos termos aqui propostos por fornecer um importante arcabouço conceitual para colocar em pauta desmentidos sociais e os desdobramentos da desautorização de uma situação de discriminação. No Brasil, o mito da democracia racial, amplamente difundido a partir da década de 1930 com Gilberto Freyre (1933/2006), fornece um bom exemplo nesse sentido: como imposição política, o mito concorreu - e concorre - para a proibição social de se falar sobre o racismo (Hasenbalg, 1996). De acordo com esse cínico discurso, seríamos uma nação miscigenada, bem distante do apartheid africano e norte-americano, perspectiva que desautoriza a verdade da violência segregacionista que marca a experiência de negras e negros6.

Ferenczi fala que a clínica pode continuar a desautorizar a verdade trazida pelo sujeito, o que a revestiria do colorido de uma progressão traumática. Mais do que a expectativa de assegurar um terreno safe e desprovido de mal-entendidos, parece que a clínica deve funcionar como espaço/tempo de escansão dos desmentidos sociais, em que o sujeito possa sobre eles falar, tendo suas verdades enfim autorizadas. Para fazê-lo, é preciso não perder de vista que os desmentidos sociais perpassam nossos cotidianos, de forma que não raras vezes somos surpreendidos em suas reproduções. Não é a prerrogativa de uma clínica apartada dessa realidade que a imunizará de tamanha violência. Ao contrário, é a circulação das diferentes versões da verdade, é a polifonia que a tentativa de silenciamento dos tidos como subalternizados busca rechaçar, fio condutor que leva ao segundo tema.

Foi indicado o risco da incidência do indivíduo normativo (Scott, 2005) na clínica, tal como na emergência na modernidade. Também por isso é importante que a clínica não esteja a serviço de cristalizar subjetividades, quaisquer que sejam estas. Essa indicação ganha ainda mais relevância caso se discuta o movimento da militância e o reforço identitário que este pode acabar promovendo. Joan Scott (2005) atenta para essa questão, asseverando que as

Reivindicações de igualdade envolvem a aceitação e a rejeição da identidade de grupo atribuída pela discriminação. Ou, em outras palavras: os termos de exclusão sobre os quais essa discriminação está amparada são ao mesmo tempo negados e reproduzidos nas demandas pela inclusão (Joan Scott, p. 15; grifo da autora).

A questão controversa seria, então, reificar a identidade de grupo que se constitui, de maneira paradoxal, como o principal alvo dos movimentos reivindicatórios.

Sobre esse aspecto, Gondar (2018) destaca a importância da afirmação identitária em se tratando do movimento negro no Brasil. De acordo com a psicanalista, ao contrário dos Estados Unidos, em que a segregação racial está dada de maneira explícita e historicamente institucionalizada, a nossa versão da luta contra o racismo deve contar ainda com essa espécie de etapa preliminar, destacando as especificidades do corpo negro que são, ainda que de maneira escamoteada, mira de discursos e práticas absolutamente racistas (Gondar, 2018). A afirmação identitária estaria, desse modo, a serviço da problematização do desmentido social.

Entretanto, se a militância deve contar com essa tática, não cabe à clínica reforçá-la em toda e qualquer situação. Isso porque a experiência clínica não está a serviço da cristalização de subjetividades, em uma reedição - nos moldes da progressão traumática - do indivíduo normativo (moderno). A identidade não passa de um enquadre estanque e fugaz em um complexo jogo de forças que compõem os processos de subjetivação. Sujeito descentrado da ficção do eu, cindido, como mostra a clínica psicanalítica. É com os paradoxos inerentes a esse campo que praticantes da psicanálise e os sujeitos dos quais se ocupam devem lidar, sem a pretensão de uma clínica safe, cujos termos estariam dados de saída.

O poeta mineiro Ricardo Aleixo (2017) possui um belíssimo poema que toca nessa questão: "Sou o seu negro. Nunca serei apenas o seu negro. Sou o meu negro antes de ser seu. Seu negro. Um negro é sempre o negro de alguém. Ou não é um negro, e sim um homem. Apenas um homem. Quando se diz que um homem é um negro o que se quer dizer é que ele é mais negro do que propriamente homem". À clínica não deve caber a tarefa de dizer os predicados de alguém. Compete ao sujeito, em seus múltiplos paradoxos, a aventura de fazê-lo. De maneira fugaz e, como tal, sempre inconclusa, em certa medida também como este texto, cujos temas continuarão a ser investigados.

Buscou-se afirmar a permanente exigência de (re)invenção da clínica psicanalítica a partir da atitude contemporânea que ela deve implicar. Os debates sobre raça, gênero e classe são especialmente oportunos não apenas em função das reformulações técnicas que podem preconizar, mas porque não nos deixam esquecer que nossa escuta e teorização são sempre situadas, motivo pelo qual devemos estar atentos e fortes aos riscos da expectativa de universalização de um determinado modelo de subjetivação, a expensas do divino, maravilhoso dos múltiplos modos de subjetivação.

 

 

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Artigo recebido em: 14/03/2019
Aprovado para publicação em: 10/05/2020

Endereço para correspondência
Fernanda Feminino Canavêz
E-mail: fernandacanavez@gmail.com

 

 

*Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Coordenadora do Marginália - Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo.
1Por alusão à proposta dos saberes localizados de Donna Haraway (1995), na qual se problematiza a pretensão de um conhecimento neutro e desembaraçado das marcações sociais de quem o constrói.
2 Embora não seja o tema da presente investigação, vale indicar as críticas que se colocam à referida vocação por parte do argumento interseccional. É o que se pode depreender das considerações de Danièle Kergoat sobre a consubstancialidade das relações sociais, outra chave de leitura para a discussão aqui proposta. Segundo Kergoat (2010), a noção de interseccionalidade teria se tornado uma espécie de "receita" (p. 97) que acabaria recaindo no risco da naturalização das categorias analíticas, já que as colocaria em posições fixas a expensas de sua determinação histórica.
3As aludidas dicotomias povoaram o imaginário dos contratualistas que buscavam compreender como se estrutura a ordem social para além do direito natural e, em último caso, como se deu a criação do estado moderno. Suas teorias parecem ter povoado as elaborações em psicanálise desde Freud, conforme desenvolvido anteriormente (Canavêz, 2014).
4Aníbal Quijano (1991) estabelece uma distinção entre colonialismo e colonialidade. O primeiro estaria circunscrito à tomada territorial propriamente dita, ao passo que a colonialidade refere-se a uma forma específica de poder, associada à exploração/dominação no sistema mundial capitalista.
5Vem ganhando força, nos últimos anos, o pedido por uma clínica que seja segura (psy safe), como se um psicanalista, por exemplo, pudesse garantir um espaço seguro em que formas de opressão não seriam reproduzidas. Na França, é possível procurar um psicanalista que seria safe em uma base de dados (Pour vous aider à trouver un.e practicien.ne de santé psy* accueillant toutes les différences). Para mais detalhes sobre o imbróglio consultar Santos e Polverel (2016).
6Para uma discussão mais recente sobre o tema no Brasil sugere-se o recém-lançado livro de Jôse Sales (2019), fruto de sua tese defendida no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, e ainda as entrevistas feitas por Grada Kilomba (2019).

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