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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Crítica da razão clínica em Lacan e sua inflexão política

 

Critique of clinical reason in Lacan and its political inflection

 

Crítica de la razón clínica en Lacan y su inflexión política

 

 

Thales Fonseca*

Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio busca, em um movimento retroativo, demonstrar que há no que chamamos de uma crítica da racionalidade clínica, realizada por Jacques Lacan no interior do freudismo, um rudimento de crítica da ideologia em sua raiz cínica. Nesse sentido, Lacan teria de alguma maneira se adiantado à ideia de que a modernidade tardia seria perpassada por uma racionalidade cínica, diagnóstico de época que influenciou fortemente filósofos políticos contemporâneos tais como Zizek e Safatle. Assim, buscamos explicitar tal premissa, destacando ainda outros pontos que levam a clínica psicanalítica a coincidir com a crítica social. À guisa de ilustração realizamos ainda uma brevíssima análise da conjuntura política brasileira atual enquanto expressão máxima da ideologia cínica. Partimos, por fim, da perspectiva de que o método crítico e a possibilidade de expansão para além da clínica stricto sensu seriam características inerentes à práxis psicanalítica desde Freud.

Palavras-chave: crítica da razão clínica, crítica da ideologia, crítica social, psicanálise, política.


ABSTRACT

The present essay seeks, in a retroactive movement, to demonstrate that there is in a critique of clinical rationality, performed by Jacques Lacan within Freudianism, a rudiment of critique of ideology at its cynical foundation. In this sense, Lacan would have advanced the idea that late modernity would be permeated by a cynical rationality, epoch diagnosis that influenced contemporary political philosophers such as Zizek and Safatle. Thus, we seek to explain this relationship, highlighting other points that lead the psychoanalytic clinic to coincide with social criticism. By way of illustration, we also carried out a brief analysis of the current Brazilian political situation as the maximum expression of the cynical ideology. Finally, we start from the perspective that the critical method and the possibility of expansion beyond the clinical stricto sensu would be characteristics inherent in psychoanalytic praxis since Freud.

Keywords: critical of clinical reason, critique of ideology, social criticism, psychoanalysis, policy.


RESUMEN

El presente ensayo busca, en un movimiento retroactivo, demostrar que hay en lo que llamamos una crítica de la racionalidad clínica, realizada por Jacques Lacan en el interior del freudismo, un rudimento de crítica de la ideología en su raíz cínica. En este sentido, Lacan habría predicho la idea de que la modernidad tardía estaría impregnada de una racionalidad cínica, diagnóstico de época que influyó fuertemente en los filósofos políticos contemporáneos como Zizek y Safatle. Por lo tanto, buscamos hacer explícita esta premisa, destacando otros puntos que hacen que la clínica psicoanalítica coincida con la crítica social. Para ilustrar, también realizamos un análisis breve de la situación política brasileña actual como la máxima expresión de la ideología cínica. Finalmente, partimos desde la perspectiva de que el método crítico y la posibilidad de expansión más allá de la clínica stricto sensu serían características inherentes a la praxis psicoanalítica desde Freud.

Palabras clave: crítica de la razón clínica, crítica de la ideología, crítica social, psicoanálisis, política.


 

 

Introdução

O presente ensaio busca demonstrar algo que já se faz presente desde Freud: o fato de as construções metapsicológicas transcenderem seu contexto empírico de origem, ou seja, transcenderem a própria clínica - os ditos textos freudianos antropológicos e o que se convenciona chamar de psicanálise aplicada são exemplos maiores do que estamos dizendo. Assim, é de nossa intenção reafirmar o potencial crítico da psicanálise no que se refere ao campo político.

Para tanto, partimos de uma hipótese central. A de que Jacques Lacan, em sua proposta de retorno a Freud despontada nos anos 1950, teria conseguido a proeza de "matar dois coelhos com uma crítica só": a um só tempo, crítica da razão clínica e crítica da ideologia cínica. Ora, o leitor afeito ao tema muito provavelmente perceberá na alusão à psicanálise e ao cinismo ideológico, uma referência a pelo menos dois importantes trabalhos: Slavoj Zizek (1992) e Vladimir Safatle (2008), ambos de alguma maneira precedidos pelo célebre Crítica da razão cínica (1983/2012), de Peter Sloterdijk.

O leitor tem razão. Desse modo, o que pretendemos neste ensaio é isolar e demonstrar que o cerne das críticas de Zizek (1992) e Safatle (2008) - para além, é claro, da influência de Sloterdijk - já está de alguma maneira presente na crítica da racionalidade clínica vigente no interior da psicanálise empreendida por Jacques Lacan. Isto é, em um movimento retroativo, gostaríamos de explicitar que há na crítica lacaniana à lógica inerente à psicanálise praticada por alguns pós-freudianos um rudimento de crítica da ideologia em sua raiz cínica.

Em outros termos, talvez possamos dizer, de maneira semelhante às afirmações de que Freud teria desvelado a estrutura da linguagem no inconsciente antes mesmo que esta fosse conceitualmente forjada por Ferdinand de Saussure1, que já há em Lacan uma crítica da racionalidade cínica antes mesmo que tal diagnóstico da modernidade fosse feito por Peter Sloterdijk. Haveria, assim, uma crítica a priori em Lacan que só viria ganhar seu sentido pleno no a posteriori do diagnóstico de Sloterdijk.

Assim sendo, uma das bases das análises de Zizek e Safatle seria a percepção arguta do psicanalista francês de que haveria certo cinismo na forma como os pós-freudianos - mais especificamente, a escola norte-americana conhecida como psicologia do ego - vinham se colocando diante da clínica. Não sem motivos, ambos compõem uma parcela importante da filosofia contemporânea, no Brasil e no mundo, a assimilar de maneira significativa a psicanálise de Lacan, não passando ilesa pelo seu pensamento.

 

Primeiro passo para uma crítica psicanalítica da ideologia cínica

Há uma piada comumente contada em círculos de estudantes de psicologia, de que o psicólogo teria interpretado convenientemente o ditado popular de que "se conselho fosse bom, ninguém dava de graça". A lógica da piada está no fato deque o psicólogo, ao invés de fazer a interpretação clichê de que "conselho não serve pra nada", teria visto no ditado uma possibilidade de empreendimento: "porque não cobrar para dar conselhos?".

Ora, uma forma interessante de introduzir o que chamamos de uma crítica psicanalítica do cinismo é partindo de uma terceira interpretação possível, advinda da clínica lacaniana, que inverte o ditado sem perder de vista sua essência, isto é: "conselho, tanto não serve pra nada que vou cobrar para não dar conselho nenhum!". Daí essa postura do analista de, diante de uma demanda do analisante do tipo "o que eu devo fazer?", responder com uma pergunta irritante: "e o que você quer fazer?", uma modalidade possível do célebre "Che vuoi? " de Lacan (1960/1998).

Como se sabe, o psicanalista francês não cessou de atentar para os perigos de se cair na "tentação ardente" de responder às demandas do analisante:

[...] se o amor é dar o que não se tem, é verdade que o sujeito pode esperar que isso lhe seja dado, uma vez que o psicanalista nada mais tem a lhe dar. Mas nem mesmo esse nada ele lhe dá, e é bom que seja assim: e é por isso que se paga a ele por esse nada, e generosamente, de preferência, para deixar bem claro que, de outro modo, isso não valeria grande coisa (Lacan, 1958/1998, p. 624).

Nesse sentido, o "que queres?" lacaniano não deixa de ser uma maneira de o analista se afastar definitivamente do lugar de um grande sábio que sabe como bem-viver. Uma forma de afastar-se de vez de uma psicanálise "pedagogizada", da posição do mestre educador frente a um sujeito carente de uma reeducação emocional. Em suma, evitara posição superegoica e ideológica do cínico, que é consciente de suas próprias contradições, mas age como se elas não existissem - o que poderia ser expresso na fórmula "eu sei que sou um ser falante exposto aos mesmos dramas existenciais que meu analisante, mas mesmo assim me porto como se fosse um ideal a ser seguido". Afinal, nos lembra Lacan (1958/1998, p. 596), "[...] o educador não está nem perto de ser educado, se pode julgar com tanta leviandade uma experiência que, no entanto, ele próprio teve de atravessar".

Não sem motivos, o horizonte final de uma análise implica que o analista ocupe o lugar de resto e que o analisante assuma, enfim, a inconsistência do grande Outro: o que Lacan (1964/2008) chamou de travessia da fantasia radical. Assim, o analisante pode até supor um saber no analista, mas este nunca cai na ingenuidade de tentar enunciar a verdade do sujeito, mantendo-se na postura um tanto quanto irritante de não indicar o caminho, evitando dar sentido e sugestionar processo analítico do analisante - lembrando que, para Freud (1924/2011), a psicanálise em si surge com abandono da sugestão via hipnose.

Assim, Lacan parece levar às últimas consequências a ideia de que um sujeito "autoriza-se analista" ao passar, ele próprio, por uma análise. Tentando traduzir o lacanês, diríamos, grosso modo, que isso que Lacan chama de "travessia da fantasia" se refere à percepção, pelo analisante, de que todo o saber suposto ao analista não passa de uma fantasia de que existe um grande Outro absoluto, de uma alteridade que não sofre, que não se contradiz, que não esbarra em nenhum impasse. Fantasia, enfim, de que existe uma alteridade que possa ensinar o analisante a ser alguém que não sofre, que não se contradiz, que não esbarra em nenhum impasse. Obviamente que "atravessar" essa fantasia implica, consequentemente, que a transferência (processo de suposição de um saber ao analista) seja liquidada e que o próprio analista não se torne mais do que "resto", função diametralmente oposta à de um "Outro consistente" a quem nada falta. Em outros termos, implica que o analisante se defronte com esse resto com potencial de causar sofrimento, contradição, impasse, mas, sobretudo: desejo (resto que, antes da "travessia", era velado pela fantasia).

Nossa tese é de que esse seja o ponto-chave do que chamamos de "crítica da racionalidade clínica" realizada por Lacan em seu célebre retorno a Freud. Curiosamente, tal maneira de conceber a clínica psicanalítica é prenhe de inflexões políticas, as quais pretendemos aqui explorar e que se expressam de maneira clara em seu importante escrito "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958/1998). Nesse ensaio, o psicanalista parisiense não poupa críticas a inúmeros pós-freudianos como Anna Freud, Karl Abraham, Michael Balint, Sandor Ferenczi, James Strachey entre outros. Como ele mesmo enuncia, tal método de apresentação é uma forma de mostrar que sua proposta se baseia na crítica à forma como a clínica psicanalítica vinha se estruturando até então: "Não é por nosso prazer que expomos esses desvios, mas, antes, para, com seus escolhos, fazer balizas para nosso caminho" (Lacan, 1958/1998, p. 594).

Todavia, se o empreendimento teórico de Lacan possui a peculiaridade de romper com boa parte do que o freudismo tinha até então produzido em nome de um retorno nada ortodoxo ao fundador da psicanálise, é bastante evidente que o principal alvo de suas críticas foi à escola nova-iorquina conhecida como psicologia do ego2.

Marcada pela ortodoxia formativa e por uma visão ritualizada da técnica, a psicologia do ego teve como seus principais expoentes: Rudolph Loewenstein3, Ernst Kris, Heinz Hartman e Hermann Nunberg. Muito em função da influência cultural de seu contexto de origem, essa escola possui estreita proximidade com certa psicologia que busca integrar o homem à sociedade sem questionar a natureza contraditória da mesma, o que implica um modelo de subjetividade e realidade fortemente individualista ao qual o analisante, por meio de sua análise, deveria se adaptar (Dunker, 2006).

Ora, a breve menção às características principais da escola americana já é o bastante para que se vislumbre o foco das críticas de Lacan. Afinal, um psiquiatra deveras interessado na clínica da psicose e na arte surrealista não poderia se submeter, sem ressalvas, a uma visão clínica que parta de um modelo de realidade pré-determinado. Não é à toa que o sujeito lacaniano se sustente no simbólico (que por si só possui o estatuto de uma "ficção") e seja tributário de um real que não se confunde com a realidade ordinária. Aliás, pode-se dizer que uma das principais contribuições de Lacan - não só à clínica psicanalítica stricto sensu, mas ao pensamento ocidental de uma maneira geral - seja uma doutrina do sujeito que não se resume aos limites imaginários do ego, objeto por excelência dos psicanalistas norte-americanos.

Aqui, é válido realizar um breve desvio de rota, buscando situar o projeto dos "psicólogos do ego". E, quanto a isso, o próprio nome de sua escola já designa um ponto importante de seu projeto: o de fazer da psicanálise uma psicologia geral (Hartmann, 1958/1987). Com clara inspiração no famoso trabalho de Anna Freud sobre O ego e os mecanismos de defesa (1936/2006), principalmente em sua veia pedagógica, os psicanalistas de Nova Iorque, assumindo uma orientação biológica, buscaram extrair da psicanálise uma psicologia do desenvolvimento mental que previa a inter-relação do processo orgânico de maturação com a formação da estrutura psíquica em direção a um maior controle do ego, de modo que tal controle se referisse à própria ideia de aprendizagem como substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade (Hartmann, Kris, & Loewenstein, 1951).

Porém, ainda que reconhecendo certa filiação à interpretação annafreudiana da psicanálise, há uma efetiva novidade no tratamento teórico-clínico dado por esses autores à teoria de Freud, qual seja, uma leitura do ego que busca ultrapassar a ideia de que ele seja refém daquilo que coloca em perigo sua estabilidade e que sublinha, justamente, as funções egoicas que não estariam necessariamente ligadas à noção de conflito e de mecanismos de defesa daí decorrentes. A essa leitura corresponde a ideia de uma "esfera sem conflitos do ego" (conflict free ego sphere). Sobre tal inovação teórica, Hartmann propõe uma bela metáfora através da analogia entre desenvolvimentos psíquico e político-social pacíficos. Assim, a "esfera sem conflitos do ego" seria como um país em tempos de paz, relacionando-se de maneira benfazeja com os países vizinhos, mantendo o desenvolvimento pacífico de sua população, de sua economia, de sua estrutura social, tudo funcionando eficazmente graças a suas leis e autoridades internas (Hartmann, 1958/1987).

Interessante destacar aqui é que, se a própria ideia de uma esfera do ego isenta de conflitos parece um tanto ilusória - tal como a já comentada ideia de alguém que não sofre, que não se contradiz, que não esbarra em nenhum impasse -, a metáfora política dos "tempos de paz" parece tão ilusória quanto, principalmente se nos ativermos ao histórico norte-americano no século XX, contexto no qual a psicologia do ego enfim floresceu. Seria lícito especular que os conflitos do ego são, dessa forma, transpostos para outra cena (quiçá o inconsciente, como já havia percebido Freud), tal como na estratégia norte-americana de travar suas guerras em territórios alheios?

Em todo caso, fica evidente por que os psicanalistas norte-americanos partem de uma perspectiva clínica de reeducação emocional com vias a um ideal de maturação psíquica em que a relação entre um ego (isento de divisão subjetiva) e a realidade é eminentemente harmoniosa. É nesse contexto, aliás, que a ideia de "adaptação" torna-se importante à psicanálise dos nova-iorquinos. Nesse caso, a adaptação à realidade e, em especial, a síntese psíquica de uma estrutura psicológica marcada pelo controle egoico apresentam-se como as bases de um conceito evolutivo de saúde (Hartmann, 1939/1969). Mas, por "evolutivo", é importante ressaltar, não devemos entender um mero darwinismo vulgar cego às peculiaridades da espécie humana. Pelo contrário, parece existir aqui a clara percepção do que diferencia a adaptação animal da adaptação humana, que está ligada ao fato de que enquanto uma se dá em referência à natureza, a outra se dá em relação à cultura. Assim:

[...] a adaptação fundamental do homem é a adaptação à estrutura social, e deve colaborar em sua construção. Esta adaptação pode ser vista em vários de seus aspectos e de diversos ângulos; aqui nós estamos centrando no fato de que a estrutura da sociedade, o processo de divisão do trabalho, e o lugar social do indivíduo [...] co-determinam as possibilidades de adaptação e também regulam parcialmente a elaboração dos impulsos instintivos e o desenvolvimento do ego (Hartmann, 1958/1987, p. 51; tradução nossa).

Ao que tudo indica, os psicanalistas adeptos da psicologia do ego tinham bastante clareza de que, em se tratando da realidade humana, equacionar saúde mental com adaptação é indissociável de pregar uma adaptação à sociedade e ao "lugar social" destinado ao sujeito pela divisão social do trabalho, isto é, no interior da própria luta de classes. Ainda que, logo em seguida, o autor assevere que "por adaptação não entendemos somente a submissão passiva às metas da sociedade, mas também a colaboração ativa baseada nelas e o esforço por transformá-las" (Hartmann, 1958/1987, p. 52; tradução nossa), parece ser evidente que, ao escolher o termo "adaptação" para pensar o conceito de saúde, um peso maior é dado à adequação em relação à transformação social propriamente dita. Não sem motivos, tal "adaptação saudável" vai ser também nomeada por Hartmann como "complacência social"4.

Ora, a isso Lacan respondeu com um sonoro: "Não há razão alguma para que nos constituamos como garantia do devaneio burguês" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 355). É nesse sentido, portanto, que boa parte da crítica lacaniana parece se circunscrever na tentativa de transcender a instância ideológica do ego que "[...] não é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens socialmente ideais" (Safatle, 2008, p. 129). Ora, para perceber o caráter ideológico do conceito de ego, basta ler a teoria althusseriana (Althusser, 1970/1996) da interpelação pelos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Processo ideológico que acreditamos ser compreendido metapsicologicamente através de uma articulação que o precedeu em quase cinquenta anos, a saber: a articulação freudiana (Freud, 1921/2011) entre a psicologia das massas e a análise do ego.

Avancemos por partes, começando por Althusser (1970/1996). No que se refere à teoria da ideologia formulada por este, que deixou sua marca na filosofia francesa ao realizar uma leitura estruturalista de Marx, a melhor maneira de introduzi-la é através de seu célebre aforismo de que a ideologia interpela o indivíduo em sujeito - máxima que de uma só vez conjuga três importantes conceitos: ideologia, interpelação e sujeito.

Aqui, a afirmação de Deleuze (1972/2006) de que o sujeito althusseriano é a própria estrutura se faz sentir: afinal, a estrutura em sua raiz material nos Aparelhos Ideológicos de Estado é inclusive designada como Sujeito (com "S" maiúsculo, uma espécie de grande Outro althusseriano). E é esse Sujeito dos AIE que, a partir de uma lógica imaginária importada da teoria lacaniana da formação do ego (Lacan, 1949/1998), interpela os indivíduos em sujeitos, de modo a constituí-los e sobredeterminá-los (Althusser, 1970/1996).

Deve-se atentar para o fato de que Althusser acaba por confundir dois conceitos lacanianos: a instância imaginária do ego (moi) e a noção de sujeito do inconsciente (je) (Eagleton, 1996). Daí o sujeito althusseriano, constituído via interpelação, se reduzir a mero reflexo especular do Sujeito da estrutura ideológica, de modo a podermos enunciar, como já dito em outro lugar (Fonseca, 2018), que a ideologia interpela o indivíduo em ego5.

Ora, não é preciso muito esforço para ver nisso a explicação proposta por Freud (1921/2011) para a formação da massa a partir da identificação com o líder enquanto ideal do ego dos indivíduos, em que agora se destacam os conceitos de: ideal do ego, identificação e ego. Nesse sentido, não espanta que Zizek (1992) articule, sob a rubrica do que ele chama de basteamento ideológico, a teoria althusseriana da interpelação com a teoria psicanalítica da identificação simbólica em que, com o surgimento do ideal do ego, o sujeito se identifica com um traço significante do Outro, alienando-se a um significante que passa a representá-lo frente a outro significante. Afinal, trata-se de processos homólogos lidos, por um lado, à luz de uma teoria da ideologia e, por outro, à luz da metapsicologia. Em outras palavras, onde Althusser falava em ideologia, interpelação e sujeito, Freud se referia a líder, identificação e ego.

Isso porque, em todo caso, vemos o ego sujeitado a uma estrutura que o transcende e determina, seja essa estrutura designada pelos AIE, seja pelo líder. A mesma lógica presente, enfim, na perspectiva clínica da psicologia do ego, em que o sujeito (ego fraco) se submete, primeiramente, ao ego forte do analista e, em última instância, à realidade e suas exigências de adaptação. Uma espécie de fortalecimento do ego do analisante a partir de sua identificação/interpelação com/pelo analista que, segundo Lacan (1958/1998), assemelha-se a um adestramento.

Procedimento um tanto estranho à psicanálise, se levarmos em conta que o próprio Freud (1917/2010) considerava ter infligido uma ferida narcísica no homem ao questionar a soberania do ego e da consciência: o ego não é senhor em sua própria morada. Aliás, a própria gênese do ego, para Freud (1923/2011), é marcada pela submissão a figuras de autoridade (seus "três severos senhores"), de modo que é no mínimo inusitado que a psicanálise o tenha como foco. Daí Lacan reconhecer na ideia de um ego autônomo tão cara aos psicanalistas norte-americanos - cuja expressão por excelência seria a "esfera sem conflitos do ego" enquanto um para além da "guerra em três frentes" travada pelo ego contra o id, o superego e a realidade (Hartmann, 1958/1987) - "[...] uma miragem surrada que a mais acadêmica psicologia da introspecção já havia rejeitado como insustentável" (Lacan, 1958/1998, p. 596).

Diante de tudo isso, ficam mais do que evidentes os motivos de ele ser tão crítico a essa escola. Afinal, nos diz o psicanalista parisiense, "como é que o Eu de que eles pretendem se valer aqui não sucumbiria, de fato, à alienação forçada a que eles induzem o sujeito?" (Lacan, 1958/1998, p. 646). Disso decorre nossa afirmação de que o ego, ao desconhecer a sua própria alienação, é uma instância ideológica por excelência. E de onde decorre que Lacan, ao criticar a racionalidade clínica cujo foco era justamente o ego, acabe por produzir uma espécie de crítica da ideologia. Foi o que Althusser (1964-1965/1980) parece ter percebido ao fazer a defesa do Freud lido por Lacan, direcionada aos membros do Partido Comunista Francês. Para o marxista, o revisionismo reacionário da escola americana teria servido à exploração ideológica de que a psicanálise foi vítima.

Seguindo talvez essa mesma pista, Zizek (1992) viria propor anos mais tarde uma espécie de teoria lacaniana da ideologia, conjugando o conceito marxista com o de fantasia. E qual seria, a partir de tal articulação, seu modelo de crítica da ideologia? Justamente o que Lacan (1964/2008) propõe como contraponto à identificação com o analista prevista pelos norte-americanos: a travessia da fantasia, momento que exige do analista "tombar" do lugar de ideal do ego (que lhe é suposto) para ser suporte do objeto causa do desejo.

 

A anatomia cínica do superego

"O que quero é o bem dos outros, contanto que permaneça à imagem do meu" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 224). Ninguém duvida que essa crítica irônica de Lacan, feita em uma das preleções de seu seminário sobre a ética da psicanálise, se dirija a certa postura cínica. A constatação de que esse sujeito é cínico - esse que quer o bem dos outros desde que esses outros se enquadrem em seu modelo de bem - é quase intuitiva.

Trata-se de um dentre os muitos comentários feitos por Lacan (1958/1998; 1959-1960/2008) sobre os perigos de se querer o bem do analisante - "princípio maligno" que, para ele, designa o nascimento do poder6 que o analista pode exercer sobre o sujeito. E nesse âmbito Lacan é preciso: o processo analítico supostamente direcionado para o bem do sujeito

[...] engendra uma prática onde se imprime o que alhures chamei de figura obscena e feroz do Supereu, onde não há outra saída para a neurose de transferência senão fazer o doente sentar para lhe mostrar pela janela os aspectos risonhos da natureza dizendo-lhe: "Vá em frente. Agora você é um menino comportado" (Lacan, 1958/1998, p. 625-626).

Prática cínica, asseveramos, de interpelação de egos fortes bem comportados e adaptados ao que seus severos senhores lhe exigem. A instância interpeladora, Lacan nos indica no excerto acima: o superego. Disso decorre o esforço que empreenderemos, neste tópico, para esclarecer sua anatomia cínica. Afinal, se dizemos que a crítica da razão clínica realizada por Lacan se configura como uma crítica do cinismo, é porque tal crítica direciona-se justamente a certa (im)postura superegoica assumida pelo analista diante do analisante.

Para tanto, partamos da origem de tal conceito. Freud (1914/2010; 1923/2011) postula o conceito de superego na passagem da primeira para a segunda tópica. Como se sabe, há na elaboração freudiana o uso de três termos distintos para caracterizar essa instância psíquica, quais sejam: ego ideal, ideal do ego e superego. Contudo, as implicações teóricas de tal distinção lexical em Freud nem sempre são evidentes, de modo que por vezes tais conceitos se confundem. É com Lacan que a fronteira entre tais noções ganha contornos mais visíveis. Assim, pode-se dizer que:

[...] eu ideal designa a autoimagem idealizada do sujeito (a maneira como eu gostaria de ser, a maneira como eu gostaria que os outros me vissem); ideal do eu é a agência cujo olhar eu tento impressionar com minha imagem do eu, o grande Outro que me vigia e me impele a dar o melhor de mim, o ideal que tento seguir e realizar; e supereu é essa mesma agência em seu aspecto vingativo, sádico, punitivo. O princípio estruturante subjacente a esses três termos é claramente a tríade de Lacan imaginário-simbólico-real: o eu ideal é imaginário, o que Lacan chama de o "pequeno outro", a imagem especular idealizada de meu eu; o ideal do eu é simbólico, o ponto de minha identificação simbólica, o ponto no grande Outro a partir do qual eu observo (e julgo) a mim mesmo; o supereu é real, a agência cruel e insaciável que me bombardeia com exigências impossíveis e depois zomba de minhas tentativas canhestras de satisfazê-las (Zizek, 2010, p. 99-100).

Se nossa pretensão é demonstrar a estrutura cínica do superego, faz-se necessário testar tal hipótese a partir dos três termos conceituais definidos acima. O interessante é que, no que se refere aos dois primeiros, o que vemos é basicamente o que trabalhamos até aqui: o ego ideal não é nada menos do que o ego interpelado, ego identificado com o analista, em suma, a própria idealização do fim de análise para os norte-americanos. Ora, o ideal do ego, por sua vez, é o agente interpelador, isto é, o analista, uma espécie sujeito suposto ego forte.

Aqui vemos de maneira bastante clara o lugar de passividade que é imposto ao analisante que, ao tentar se encaixar no enquadre imaginário do ego ideal, é completamente determinado pelos ditames do ideal do ego (analista). Basicamente a situação ilustrada na frase irônica de Lacan com que começamos este tópico, pois, ao fim da análise, o analisante só estará "bem" se estiver à imagem e semelhança do que é estar bem para o analista - assim como só será considerado saudável se estiver bem adaptado ao lugar social que lhe é imposto. É como no paradoxo da "liberdade da escolha forçada" em que o analisante-interpelado pode escolher livremente o inevitável: "Nisso reside o ato ideológico de reconhecimento, no qual me reconheço como o "sempre-já em que sou interpelado como tal: ao reconhecer-me como "x", assumo/escolho livremente o fato de que sempre-já fui "x"" (Zizek, 2016, p. 39). Daí que a própria subjetivação egoica seja inerentemente ideológica, processo em que o analisante acaba por recair no já comentado engodo de, ao fortalecer seu ego, considerar-se autônomo.

Resta, portanto, falar do terceiro termo, o superego cruel e insensato. E, com ele, a anatomia cínica desse conceito se completa. Afinal, se o cinismo já é em si perceptível na ideia de o analista-interpelador se portando como uma espécie de Outro consistente e absoluto - haja vista o caráter fantasmático de tal postura em se tratando de sujeitos fal(t)antes -, quando se desvela a estrutura dual do superego, seu caráter cínico se expressa de maneira ainda mais evidente.

Do que se trata quando falamos de tal estrutura dual? Basicamente do que nos diz Lacan (1963/1998), ao afirmar que a verdade de Kant está em Sade e vice-versa. A filosofia moral categórica presente em Crítica da razão prática (1788/2016) é complementada pela literatura "perversa" de A filosofia na alcova (1795/2008), de modo que, apesar de aparentemente contrárias, ambas possuem uma mesma lógica imperativa. Daí a dualidade do superego, pois marcada por uma moralidade restrita (ideal do ego, instância simbólica) dotada e sustentada, porém, por um suplemento obsceno (superego, instância real). Por isso mesmo, uma estrutura cínica. Como nos diz Lacan em seu primeiro seminário público:

O supereu é um imperativo. Como indicam o bom senso e o uso que se faz dele, é coerente com o registro e com a noção da lei [...] Por outro lado, é preciso acentuar também, e ao contrário, o seu caráter insensato, cego, de puro imperativo, de simples tirania. Em que direção podemos nós fazer a síntese dessas noções? O supereu tem uma relação com a lei, e ao mesmo tempo, é uma lei insensata, que chega até a ser o desconhecimento da lei. [...] O supereu é, a um só tempo, a lei e a sua destruição. Nisso, ele é a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não resta mais do que a raiz (Lacan, 1953-1954/2009, p. 140).

Coisa que já se entrevê em Freud (1930/2011) quando ele afirma que, paradoxalmente, quanto maior for a submissão às exigências do superego, maior é o sentimento de culpa daí decorrente- o que não deixa de ser a manifestação de um superego ambíguo que ao mesmo tempo exige e goza das tentativas do sujeito de acatar suas exigências. Assim, podemos dizer que aqui se confirma o que falamos no início deste ensaio, que o cerne das análises sobre o cinismo de Safatle (2008) e Zizek (1992) está, de alguma maneira, presente em Jacques Lacan. Pois vemos, como abordagem comum a ambos os filósofos no que se refere ao cinismo, a percepção da estrutura dual de nosso sistema de controle e reprodução social, composto por um sistema de normas explícito (a lei) sustentado por um sistema de normas tácito (sua transgressão imanente) - como se houvesse uma inadequação sempre-já existente, constitutiva por assim dizer, entre o enunciado ideológico e a situação de enunciação que estrutura as relações de poder. Ora, não se trata justamente disso no que tange à teoria freudolacaniana do superego?

Nesse ponto se evidencia uma diferença crucial entre os filósofos. De um lado vemos Safatle (2008; 2018) afirmar que a internalização da estratégia da crítica pela ideologia dominante produziu uma atitude de autoironização que teria levado a crítica à falência, visto que a mera explicitação dos antagonismos mascarados pela postura cínica não levaria necessariamente à transformação, mas a um modo bastante peculiar de estabilidade em meio à anomia. A explicitação da contradição, nesse caso, não faria mais do que a própria estrutura cínica de nossa sociedade já o faz: "[...] o poder não teme a crítica que desvela o mecanismo ideológico [...] porque aprendeu a rir de si mesmo" (Safatle, 2008, p. 69). Diante disso, a própria possibilidade de uma crítica dependeria de um recurso a mais, ligado ao que o filósofo chama de destituição dos afetos que fundam os vínculos sociais.

Zizek (1992; 2010; 2017), por outro lado, percebe que as relações de poder se edificam na coexistência da lei e sua destruição que, nesse caso, mais a sustenta do que a transgride de fato. Porém ele acredita que uma forma de crítica de tal estrutura social e política ainda passa pela explicitação da contradição entre essas duas dimensões do poder, no acolhimento do antagonismo, de modo a desmascarar a inconsistência do grande Outro7 com vistas à transformação social. Nesse sentido, apesar de o poder se sustentar em sua própria contradição imanente, essa mesma contradição ainda se apresenta como possibilidade de crítica: "O objetivo da "crítica da ideologia", da análise de um edifício ideológico, é extrair esse núcleo sintomático que o texto ideológico, público e oficial renega, mas do qual também precisa para que funcione sem perturbações" (Zizek, 2017, p. 284)8.

Aqui, reencontramos a nossa afirmação inicial de que Lacan teria produzido uma crítica da ideologia cínica, ainda que sem saber. E para entender isso vale lembrar - como, aliás, já demonstraram Zizek (1992) e Safatle (2008) - que a transição da ideologia clássica de outrora para a ideologia cínica dos nossos tempos pós-modernos se ilustra na passagem da fórmula de Marx (1867/2019), eles não sabem o que fazem, mas o fazem, enquanto expressão do desconhecimento ingênuo da própria alienação; para a fórmula de Sloterdijk (1983/2012), eles sabem muito bem o que fazem, mas mesmo assim o fazem, enquanto manifestação de uma espécie de falsa consciência esclarecida.

O que devemos deter disso é que, com tal transformação, já não basta para a crítica realizar isso que Zizek (1992) chamou de leitura sintomal da ideologia, em que o crítico esclarecido demonstra a série de fatores que sobredeterminam o fenômeno ideológico em questão, possibilitando ao sujeito se desalienar através de um confronto com as lacunas que o impedem de ter uma percepção do todo que sobredetermina sua posição ideológica. Afinal, não se trata mais de uma simples alienação ingênua solucionável através de um processo de conscientização. Para uma crítica desse tipo, bastaria a teoria althusseriana da ideologia que desvela justamente os mecanismos estruturais envolvidos na sobredeterminação de um sujeito por um Aparelho Ideológico de Estado.

Mas é justamente nesse ponto que Zizek avançou em relação a Althusser. E para isso ele recorreu a Lacan, que astutamente já havia revelado que para além do desconhecimento mais superficial do sujeito sobre os mecanismos inconscientes que sobredeterminam seu sintoma - situação já abarcada pela falsa consciência esclarecida -, há o desconhecimento muito mais radical da fantasia que estabelece as coordenadas do Outro enquanto representante da lei (ideal do ego) e do gozo obsceno que a sustenta (superego).

Assim, se no tópico anterior mostramos que a crítica lacaniana à psicologia do ego se configurou como uma crítica da interpelação ideológica engendrada pela terapêutica americana - isto é, como um primeiro passo da crítica da ideologia -, a travessia da fantasia, por sua vez, apresenta-se como segundo passo necessário, como um para além da leitura sintomal: horizonte final tanto da psicanálise, quanto da análise da ideologia.

 

Sujeito, desejo e ética: a clínica psicanalítica como crítica social

O sujeito enfim em questão. Tal assertiva é mais do que simplesmente um título de seção dos Escritos de Jacques Lacan, mas como que um saldo decorrente de sua própria intervenção na psicanálise. Isso porque, se Lacan até o momento de sua morte se dizia freudiano, é evidente que seu retorno a Freud não se reduz a mera exegese fiel da obra do fundador da psicanálise. Sem o psicanalista parisiense, dificilmente leríamos no célebre axioma freudiano, Wo Es war, soll Ich werden, a evidência de um sujeito advindo do inconsciente. Foi preciso ler Freud de um modo peculiar para não recair nos limites fenomenológicos de um sujeito psicológico tal qual o ego (moi), cuja meta seria vencer a batalha contra o id - como se deduz, inclusive, da tradução brasileira: "Onde era Id, há de ser Eu" (Freud, 1933/2010, p. 223). Foi preciso ler Freud de um modo peculiar para pôr o sujeito do inconsciente [je ] em questão.

Todavia, como já demonstrado em outro lugar (Fonseca, 2018), pôr o sujeito em questão implica outras duas categorias conceituais que a ele se associam, a saber: o desejo e a ética. Afinal, a expressão genuína do sujeito exige que ele assuma e sustente seu desejo, o que para Lacan (1959-1960/2008) se configurava como um verdadeiro imperativo ético: "Não cedas em seu desejo"! Nossa tese é a de que essas três categorias indissociáveis, que a princípio estariam ligadas ao campo clínico, possuem um notável alcance político e potencial crítico. Em síntese, acreditamos que elas decorrem em três tarefas fundamentais que compõem uma espécie de protocolo básico que faz da clínica psicanalítica uma forma de crítica social.

(1) A clínica como uma forma de laço social que leva em conta a subjetividade: e que, nesse sentido, implica que o analista aceite encarnar o lugar de dejeto, de um des-ser necessário à expressão do sujeito enquanto um para-além da estrutura imaginária, ideológica e identitária do ego, tão dependente de uma alteridade consistente. (2) A clínica como travessia da fantasia individual e social: que se apresenta como uma operação necessária à emancipação subjetiva (Lacan) e política (Zizek), pois implica no acolhimento do antagonismo, isto é, na assunção de que o Outro é inconsistente pois desejante (e não uma instância absoluta capaz de atender todas as suas demandas), o que possibilita ao sujeito defrontar-se com o seu próprio desejo. (3) A clínica como compromisso ético-político com a emancipação: que, pautada em uma ética do real, preza pela autonomia do sujeito, permitindo-lhe desejar a despeito dos imperativos superegoicos advindos do Outro enquanto campo moral e normativo (Fonseca, 2018).

O interessante é que tais tarefas político-clínicas vão respectivamente de encontro a três pontos fundamentais nos quais a crítica da razão clínica realizada por Lacan (1958/1998; 1959-1960/2008) incide: (1) a busca irrestrita de fortalecimento do ego, (2) a fantasia de que o analista tem o poder de atender a demanda de felicidade do analisante e (3) o processo analítico reduzido a uma tapeação moralizante. Desse modo, é como se as referidas categorias conceituais que dão sustentação à clínica lacaniana se apresentassem como forte contraponto a outros três constructos que, por outro lado, devem ser ultrapassados no processo analítico: sujeito versus ego, desejo versus demanda e ética versus moral.

Três embates que talvez possam ser sintetizados em um: transferência versus sugestão. Afinal, este é, talvez, um dos mais importantes diagnósticos de Lacan (1958/1998) no que se refere à psicologia do ego: sua terapêutica recai, inevitavelmente, na sugestão (que denota justamente os princípios do poder no tratamento, em que há a identificação do analista com o lugar de saber que lhe é suposto).

Não espanta, já que as três imposturas combatidas levam à sugestão. Seja porque o fortalecimento do ego é tributário, como demonstramos, de um processo homólogo ao que ocorre na relação entre o líder e a massa porque, como há muito demonstrou Freud (1921/2011), remete à relação do hipnotizador com o hipnotizado. Seja porque, como atenta Lacan (1958/1998), ignorar o desejo e se ater à demanda leva à situação paradoxal de, por fim, as demandas do próprio analista dirigirem não só o tratamento, como o paciente (lembremos do "modelo de bem" imposto ao analisante). Ou, finalmente, porque uma análise levada a cabo por um analista-superego - que, como já mostrava Freud (1914/2010; 1923/2011; 1930/2011; 1933/2010), designa a própria origem da consciência moral - não poderia acarretar outra coisa que a submissão do sujeito aos seus imperativos.

É aqui que o bom manejo transferencial - em consonância com uma ética do desejo e, por isso mesmo, capaz de levar a transferência a sua liquidação e à destituição subjetiva daí decorrente - demonstra seu potencial político ao se apresentar, muito peculiarmente, como possibilidade de criação de relações de poder sem dominação (Safatle, 2017), isto é, como possibilidade de expressão de uma forma negativa de poder (Dunker, 2011).

Ora, nesse ponto um paradoxo fundamental da análise se faz visível: o que chamamos de um bom manejo da transferência, longe de estar ligado ao seu fortalecimento, é correlato de sua própria liquidação. Eis o que Lacan (1964/2008) chamou de engano do sujeito suposto saber, processo no qual o saber antes suposto ao analista - muito contrariamente ao que vislumbramos em psicanalistas norte-americanos, nos quais o analista como que transfere um saber ao analisante através do já comentado processo de reeducação emocional - é deposto no processo analítico.

A partir disso, o objeto causa do desejo, ainda latente no início da análise, vem a tornar-se patente através de sua disjunção do ideal do ego. Em outras palavras, o analista deixa de ocupar o lugar de um ideal para ocupar o lugar de um dejeto, de um verdadeiro des-ser. Porém, para que o analista aceite esse lugar de resto, é necessário que ele próprio tenha passado por uma análise e pelo que caracteriza seu término, a saber: sua própria destituição subjetiva, correlata do desvanecimento do Outro previsto na travessia da fantasia. Em suma, momento em que o sujeito abdica dos significantes advindos do grande Outro - significantes que o representavam frente a outros significantes - ao perceber que esse Outro, mostrando-se inconsistente, já não mais detém o poder de determinação de sua identidade (Quinet, 2009).

A destituição subjetiva, nesse sentido, não atenta contra a soberania do sujeito, mas, pelo contrário, desvela sua alienação ao simbólico e os efeitos imaginários daí decorrentes. Ela torna explícito o fato de o sujeito remeter, justamente, à falha real da subjetivação: "[...] o sujeito não subsiste "além" de sua representação impossível, mas é como que o efeito dessa própria impossibilidade, constitui-se pelo fracasso de sua representação significante" (Zizek, 1992, p. 77). Ao se destituir dos processos de identificação simbólica e imaginária que caracterizavam sua subjetivação, o sujeito pode apresentar-se, junto ao real do seu desejo, como um elemento irredutível de subversão. Safatle descreve isso de maneira precisa:

Há de aproximar o real do sujeito e é isso que ocorre no final de uma transferência. Quando tal segurança produzida pelo fantasma vacila, o desejo se revela como não sendo outra coisa que um des-ser. Sendo o desejo o ser do sujeito, esse ser revela aqui um des-ser. [...] O desejo pode então se mostrar como a deriva de uma desapropriação. Essa viragem do ser ao des-ser é própria da dessuposição do saber do analista. Ou seja, na análise, o analista passa por um des-ser, o que pressupõe uma angústia e dejeção, e o analisando passa por uma destituição subjetiva, o que pressupõe certo desamparo (Safatle, 2017, p. 215; grifos do autor).

É esse cenário de liquidação da transferência que dá ensejo para o que Lacan chamou de ato analítico, uma operação puramente negativa de "instauração destituinte" que modifica a própria estrutura de saber e poder que, como vimos, caracteriza a transferência. Afinal, a própria inscrição do sujeito no real, através dos processos de destituição subjetiva e de travessia da fantasia, implica na possibilidade de produção de um ato que leva ao colapso da ordem simbólica, afinal trata-se justamente da matriz de subjetivação cujas coordenadas se encontram na fantasia. É nessa dimensão que o ato analítico nos leva a pensar a própria noção política de revolução no que ela pode ter de mais profícuo: como um ato capaz de ir além de sua submissão a uma dinâmica de restauração, visto que ele se localiza na própria liquidação da estrutura de alienação anterior (Safatle, 2017).

 

A ideologia cínica in terra brasilis: uma brevíssima ilustração

Assistimos hoje ao crescimento vertiginoso do conservadorismo no Brasil, cujo resultado preliminar é a ascensão de um governo de extrema-direita ao poder. Ora, diante do exposto até aqui, talvez nos seja possível afirmar que um ambiente conservador apresenta-se como solo fértil ao florescimento do cinismo. Ou, inversamente, que um ambiente cínico configura-se como solo fértil ao florescimento do conservadorismo. Tanto faz.

O que importa é que a versão brasileira do conservadorismo cínico parece, parafraseando Safatle (2012) às avessas, não temer dizer seu nome9. Desse modo, acreditamos que não gera espanto afirmar que o chamado "bolsonarismo" seria a expressão fundamental do paradoxo brasileiro do "liberal na economia e conservador nos costumes". Afinal, os "bolsonaristas" - pelo menos os mais convictos - assumem isso de bom grado.

Tendo isso em conta, não parece exagero afirmar que tal bolsonarismo parece ser a realização máxima da ideologia cínica no Brasil, cuja estrutura superegoica dual é bastante transparente. Um discurso com a capacidade de aliar, por exemplo: o ultranacionalismo com uma política externa colonialesca; a alegada filiação aos aparelhos militares do Estado enquanto representantes da ordem legal com a simpatia diante de organizações paramilitares ilegais tais como as milícias; o cristianismo moralizante dos neopentecostais com a apologia à tortura digna dos porões da ditadura militar.

Interessante, ainda, é o que se apresenta como uma das reações típicas do referido bolsonarismo à crítica que busca revelar o caráter contraditório de sua posição ideológica, qual seja: responder com um esclarecido distanciamento cínico de tal posição, em que o sujeito como que afirma ter bastante clareza da contradição imanente ao seu enunciado ideológico, mas mesmo assim... Isso quando a resposta não é um riso irônico, em que ao mesmo tempo em que se zomba do crítico alegando que ele está fazendo uma interpretação ao pé-da-letra (o chamado "mi-mi-mi"), o sujeito demonstra não levar a sério o seu próprio posicionamento ideológico com um efetivo rir de si mesmo.

Contudo, questão que corrobora o nosso diagnóstico de que se trata de uma ideologia cínica, é bastante evidente que o bolsonarismo, apesar de se sustentar nessa postura de uma falsa consciência esclarecida, ignora o pano de fundo fantasmático que estrutura sua própria posição no interior do edifício simbólico, de modo que, se não fosse pela impossibilidade cronológica (que tampouco é uma impossibilidade lógica), seríamos tentados a crer que Zizek estaria fazendo uma leitura de nosso atual contexto político no seguinte comentário:

[...] o distanciamento cínico e a plena confiança na fantasia são estritamente codependentes: hoje, o sujeito típico é aquele que, enquanto demonstra uma desconfiança cínica de qualquer ideologia pública, envolve-se sem nenhum limite em fantasias paranoicas sobre conspirações, ameaças e formas excessivas do gozo do Outro (Zizek, 2017, p. 295).

Afinal, não se trata justamente de uma fantasia paranoica quando assistimos a uma situação em que toda e qualquer figura de oposição recebe rapidamente a terrível alcunha de "comunista" (insígnia fundamental do grande Outro ameaçador no campo político)? Ao que tudo indica, o "espectro do comunismo", a que ironicamente faziam referência Marx e Engels (1848/2011)10 ainda no século XIX, não morreu com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Como um verdadeiro fantasma.

Para completar nossa brevíssima ilustração, é interessante perceber que o conservadorismo cínico da contemporaneidade brasileira reúne, ainda, as três imposturas tematizadas no tópico anterior: (1) a busca irrestrita de fortalecimento do ego: fruto de uma política econômica cujo neoliberalismo ostensivo não se sustentaria sem um apelo ao individualismo, acompanhado da queda de qualquer perspectiva de solidariedade social; (2) a fantasia de um grande Outro capaz de atender qualquer demanda de felicidade: fascínio ideológico tão peculiar às figuras populistas; e (3) um largo processo de tapeação moralizante característico das políticas atravessadas pelo serviço dos bens11: que vai desde a centralidade dos bens de consumo como ideal de gozo até a perigosa ilusão de existência de um Bem supremo ao qual os chamados "cidadãos de bem" devem se submeter.

 

À guisa de conclusão

O movimento que buscamos captar neste ensaio, o de uma crítica da racionalidade clínica que acaba por coincidir com uma crítica da ideologia - movimento de uma crítica que se expande para além de seu território de origem - retoma um procedimento crítico muito mais fundamental, qual seja: a própria crítica como método característico da psicanálise, visto que ela se configura como uma práxis dialética que não se resume à complementaridade simples entre a teoria e a prática, pois designa uma relação peculiar entre elas, relação atravessada justamente pela crítica e pelo trabalho com a contradição (Dunker, 2017).

A crítica em psicanálise, portanto, é baliza das elaborações futuras (Lacan, 1958/1998), como já mostramos. Nesse sentido, ela se configura como um operador fundamental da teorização lacaniana, tão bem expresso na noção canguilheniana de trabalho sobre um conceito12, que pode ser lido como uma estratégia metodológica de problematização de um conceito na busca por novas implicações teóricas que em psicanálise chamamos de "subversão" e que em epistemologia histórica é denominada de "qualificação desqualificante" (Calazans, & Neves, 2010).

Em última instância, o movimento conceitual que procuramos demonstrar neste ensaio remonta e remete à própria configuração da psicanálise como crítica da metafísica - metafísica que artificialmente sutura os "buracos" imanentes à própria política. Em outras palavras, remete e remonta à psicanálise como crítica da miragem e uma unidade consistente ou de uma harmonia universal (Dunker, 2017). Aqui, é importante perceber que a metafísica vem designar, em termos filosóficos, um processo de velamento das (ou de resposta às) contradições semelhante ao que se encontra na noção política de ideologia (o que talvez explique a velha crítica ao caráter supostamente idealista do conceito marxista) que, em todo caso, é correlato ao mecanismo psicológico da fantasia. Não é sem motivos, portanto, que a premissa fundamental deste ensaio seja a de que a crítica lacaniana da razão clínica possua uma inflexão político-filosófica. Nesse caso, o sujeito do inconsciente aparece como via privilegiada, seja enquanto sujeito irredutível à unidade imaginária e ilusória do ego, seja enquanto sujeito que antagoniza a suposta harmonia da estrutura simbólica. Daí concordarmos com Dunker de que a crítica da metafísica em Lacan tem como efeito e ponto de chegada uma ontologia interior à psicanálise13:

Há, portanto, uma ontologia política em Psicanálise que envolve, por exemplo, que a forma como acolhemos e tratamos, diagnosticamos, formalizamos ou descrevemos o sofrimento psíquico, tanto como discurso quanto como clínica, possui implicações políticas. Frequentemente a metafísica nada mais é do que política disfarçada de outra coisa: teologia, ciência, moral, linguística, e assim por diante. Por que a Psicanálise estaria isenta dessa contingência? [...] Dito isso, deveríamos perguntar como a Psicanálise pode participar do debate público, expandindo o universo da falta e não se deixando permanecer "tapada" na metafísica privada, própria dos condomínios de psicanalistas. Retomando a Freud: o antifilósofo não é aquele que com seu roupão rasgado vai dormir na cama quente, mas aquele que tenta deixar aberto, e por vezes iluminar, os buracos do mundo (Dunker, 2017, p. 12).

Ora, que a psicanálise possua uma ontologia e que esta seja política é coisa que tanto Zizek (2016) quanto Safatle (2006) se dedicaram a demonstrar; e que nós tentamos asseverar. O corolário fundamental disso é o de que a atitude clínica de ousar operar com a negatividade dialética de um real que faz furo - o que, aliás, se configura como a própria definição lacaniana para a práxis da psicanálise como "[...] uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico" (Lacan, 1964/2008, p. 14) - nos empurra para além das paredes da clínica convencional. Não se trata de fazer apologia a uma psicanálise não-clínica, mas de afirmar que desde a descoberta freudiana do mal-estar na civilização que "iluminar os buracos do mundo" apresenta-se ao psicanalista como uma espécie de compromisso ético-político. Nesse sentido, a aposta fundamental deste ensaio é a de que a psicanálise pode ir muito além do narcisismo das pequenas diferenças tão presente em nossos condomínios psicanalíticos, onde assistimos a uma versão da psicanálise enredada em um "abraço narcísico e metafísico com ela mesma" (Dunker, 2017, p. 4), como um cão que corre atrás da própria cauda.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 23/05/2019
Aprovado para publicação em: 30/05/2020

Endereço para correspondência
Thales Fonseca
E-mail: thales_vicente1@hotmail.com

 

 

*Doutorando, Mestre e Psicólogo pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
1Esse raciocínio é bastante desenvolvido por Lacan em pelo menos dois escritos clássicos - "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" (1953/1998) e "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (1957/1998) - que dão inteligibilidade a sua tese de que o inconsciente freudiano é estruturado como uma linguagem. Para uma leitura linguística da modalidade de linguagem que está em jogo na psicanálise e na teorização de Freud, principalmente no que distingue o "simbolismo do inconsciente" e o "simbolismo da linguagem", a "lógica onírica" e a "lógica de uma língua real", remetemos o leitor a Émile Benveniste (1956/2005).
2É importante ressaltar que sempre que utilizarmos de maneira genérica a expressão "psicanalistas norte-americanos" estamos nos referindo à psicologia do ego. Consideramos importante ressaltar, pois, como demonstra Dunker (2006) de maneira detalhada, há no ambiente estadunidense um leque de tendências que perpassam a psicanálise como: os culturalistas (Karen Horney, Margaret Mead, Abram Kardiner), os psicanalistas da Costa Leste (Otto Fenichel, Erik Erikson, René Spitz), de Chicago (Bruno Bettelheim, Franz Alexander), além da chamada psicologia do self (Heinz Kohut, Otto Kernberg, Margaret Mahler).
3Que, a título de curiosidade, foi analista de Lacan e um dos responsáveis pela implantação do freudismo na França.
4Atualmente assistimos à generalização de uma situação semelhante à encontrada por Lacan no interior da psicanálise, em que há uma profusão de "práticas clínicas" marcadas seja pelo ímpeto de normalização via intervenção química, tal como ocorre com uma psiquiatria contemporânea de viés farmacológico, seja por intervenções psicoterápicas voltadas para uma espécie de reestruturação subjetiva na busca de um estado psicológico mais adaptativo, como é o caso das diversas terapias de base cognitivo-comportamental; ou mesmo, no pior dos casos, por práticas dispersas cuja base teórico-epistemológica é visivelmente frágil, voltadas quase que exclusivamente para o enquadramento do sujeito em ideais sociais frequentemente mobilizados de acordo com os ditames do capital, no caso dos chamados coachings (que, convenhamos, não merece status de clínica, ainda que se infiltre como uma prática desse tipo). Diante de tal cenário, não seria exagero dizer que, no que se refere à clínica de um modo mais amplo, vivemos um momento carente de uma crítica da racionalidade clínica tal como a realizada por Lacan no interior da psicanálise. Um exemplo disso pode ser encontrado em Fonseca (2018), em que esse modelo de crítica - que, como dissemos, é prenhe de implicações clínicas e políticas - é aplicado a uma realidade institucional específica, a dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
5É interessante perceber que a categoria de "indivíduo" para Althusser possui o caráter de um vazio pressuposto que é preenchido justamente no processo de interpelação. Nesse sentido, a própria subjetivação e constituição de uma identidade seria, para o filósofo, fundamentalmente ideológica. Em termos lacanianos, podemos pensar na categoria de indivíduo através do conceito de significante que, ao se enlaçar a um significado, passa a representar o sujeito frente a outro significante. Como veremos, é justamente a homologia entre esses dois processos que será explorada por Zizek (1992).
6Aqui falamos em "poder" na acepção dada por Lacan (1958/1998) ao trabalhar os princípios do poder engendrados em um processo transferencial que, se mal manejado, pode ter efeitos nocivos ao sujeito. Como demonstra Dunker em sua arqueologia e genealogia da psicanálise, a prática psicanalítica inspira uma recusa ao exercício de poder pelo analista ou, em outros termos, inspira "[...] uma forma negativa de poder; um poder nem prescritivo nem restritivo, mas apenas referido à retirada daquilo que obstrui a soberania do sujeito" (Dunker, 2011, p. 68). Tal forma negativa de poder está intimamente ligada à recusa, pelo analista, do saber a ele suposto na transferência, recusa que se expressa no que anteriormente trabalhamos em termos de "cobrar para não dar conselhos". Como tentaremos demonstrar, a estrutura desse poder negativo tem o potencial de produzir uma efetiva crítica social.
7O que não deixa de ser a posição de Lacan, que desvela o cinismo do analista ao se colocar na posição idealizada de um "Outro cujos conselhos devem ser seguidos", mostrando o quanto tal postura cínica se sustenta numa fantasia do analisante que, como tal, deve ser atravessada no processo analítico.
8A concepção paradoxal de uma ideologia que se sustenta na própria possibilidade de sua subversão está ligada à já comentada leitura dialética feita por Zizek desse conceito a partir do lacaniano de fantasia que, na mesma medida em que é suporte de nossa realidade simbólica, é ponto de escape desta. A crítica decorre, nesse sentido, da típica estratégia hegeliana de aposta na contradição.
9Sobre o cenário atual no qual, na contramão do apelo de Safatle (2012), a esquerda teme dizer seu nome enquanto a direita vem ocupando justamente a função de não temer, tomamos a liberdade de remeter a Fonseca (2019; 2020).
10"Qual partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou contra os elementos mais avançados da oposição e contra os seus adversários reacionários a pecha infamante de comunismo?" (Marx, & Engels, 1848/2011, p. 38).
11Termo usado por Lacan (1959-1960/2008, p. 368) para designar uma ética tradicional fundada "[...] inteiramente numa ordem certamente arrumada, ideal", isto é, uma "[...] moral do mestre, feita para as virtudes do mestre, e vinculada a uma ordem dos poderes". E ainda uma "[...] posição de conforto individual vinculada a essa função, certamente fundada e legítima, que podemos chamar de serviço dos bens [...] bens privados, bens da família, bens da casa, outros bens que igualmente nos solicitam, bens do ofício, da profissão, da Cidade" (Lacan, 1959-1960/2008,p. 355).
12Como explica Georges Canguilhem (1963, citado por Miller, 1968/1996, p. 10): "[...] trabalhar um conceito é fazer variar sua extensão e sua compreensão, é generalizá-lo pela incorporação de traços de exceção, exportá-lo para fora de sua região de origem, tomá-lo como um modelo ou, inversamente, buscar-lhe um modelo; em suma, conferir-lhe progressivamente, por meio de transformações regulares, a função de uma forma".
13Lembrando que em Lacan o ser é ser do sujeito, "[...] esse indeterminado de puro ser que não tem qualquer acesso à determinação, essa posição primária do inconsciente que se articula como constituído pela indeterminação do sujeito" (Lacan, 1964/2008, p. 128). Como bem observa Zizek (2016), o sujeito lacaniano é ontologizado, uma espécie de negatividade primordial que constitui a própria ordem do ser. Por isso Safatle (2006) afirma que Lacan funda uma ontologia da primeira pessoa através de uma improvável articulação filosófica entre o Dasein heideggeriano e o sujeito hegeliano.

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