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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

O parceiro-sintoma e a concepção do artista: crônica do nascimento de Frida Kahlo

 

The partner-symptom and the conception of the artist: chronicle of Frida Kahlo's birth

 

Le partenaire-symptome et la conception de l'artiste: chronique de la naissance de Frida Kahlo

 

 

Guilherme Pimentel JordãoI*; Carla D'Alessandro**

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Outro, como representante do gozo feminino, inalcançável e não-todo, exige o recurso ao gozo fálico como modo de se conceber em seu ser, ainda quando se está situado do lado feminino da sexuação. Frida Kahlo, sujeito cuja visada no plano da arte serve como objeto de análise deste artigo, parece demonstrá-lo por meio de suas telas. Sua fórmula consiste, em parte, em tentar atingir, com o apoio do parceiro amoroso, um dizer sobre o seu ser de gozo. No par Diego e Frida, a pintura aparece para dizer basta ao gozo masoquista da privação, devolvendo a artista à perspectiva do amor pelo pai, père-version, que enlaça de modo sintomático, em sua obra, amor, feminilidade e trauma.

Palavras-chave: parceiro-sintoma, feminilidade, père-version, arte, Frida Kahlo.


ABSTRACT

The Other, as representative of feminine jouissance, unattainable and not-whole, demands an appeal to the phallic jouissance as a way to know itself, even when one is placed at the feminine side of sexuation. Frida Kahlo, subject whose view in the field of art is the object of analysis at this article, seems to demonstrate those facts through her pictures. Her formula consists, to a certain extent, in trying to reach with support of the loving partner a speech about her being of jouissance. In Diego and Frida partnership, painting appears to say enough to the masochist privation jouissance, sending the artist back to the perspective of love for father, père-version that enlace in a symptomatic way, in her work, love, femininity and trauma.

Keywords: partner-symptom, femininity, père-version, art, Frida Kahlo.


RÉSUMÉ

L'Autre, en tant que représentant de la jouissance féminine, inaccessible et pas-tout, requiert l'usage de la jouissance phallique comme une manière de se concevoir dans son être, même lorsqu'on est située du côté féminin de la sexuation. Frida Kahlo, sujet dont le but sur le plan d'art fait l'objet de l'analyse de cet article, semble le démontrer à travers ses toiles. Sa formule consiste, en partie, à essayer de réaliser avec le soutien du partenaire aimant un dicton sur son être de jouissance. Dans le couple Diego et Frida, la peinture semble dire basta au plaisir masochiste de la privation, ramenant l'artiste à la perspective de l'amour du père, père-version qui relie symptomatiquement dans son œuvre, l'amour, la féminité et le traumatisme.

Mots-clés: partenaire-symptôme, féminité, père-version, art, Frida Kahlo.


 

 

Introdução

Sabe-se que, para a psicanálise lacaniana, o objeto de arte é considerado propício a elevar o ser de gozo de um sujeito, via sublimação, apontando para a possibilidade de enlaçar esse ser primitivo que foi condicionado pela introdução do significante e as circunstâncias da história de determinado sujeito. Na pintura, por exemplo, o dito, por meio da tela, oculta o dizer que deriva do que no sujeito fez-se furo na interação do simbólico com o real. Se "a imagem do corpo relega o real do corpo" (Wajcman, 1984, p. 125-126, tradução nossa)1, a pintura, por outro lado, torna evidente que "o sujeito não terá relação com o outro, com o corpo do outro, senão pela imagem" (Wajcman, 1984, p. 125, tradução nossa)2. Seguindo de perto o que elabora Wajcman (1984), ainda que se mantenha centrado sobre a perspectiva do fantasma na construção do itinerário do artista em sua obra, a proposta deste trabalho intenta realizar o raciocínio que aquele autor estabelece como próprio da visada lacaniana acerca da arte, que indica que "a obra de arte é uma causa para o sujeito, para o espectador assim como para o próprio artista " (Wajcman, 1984, p. 110, tradução nossa)3.

Expressão afim com o domínio do corpo feminino e sua sexualidade, a construção proposta por Frida, em sua obra de inegável natureza biográfica, ilustra o destino desse modo de expressão sexuada, mais além da visada fálica, ainda que sem dela prescindir. Por meio das balizas oferecidas pela concepção do feminino, a partir da relação com seu parceiro-sintoma, Frida seria capaz de compor um nome que, como um elemento que tinha por horizonte assegurar a sua posição de sujeito diante do Outro, proporcionaria um apaziguamento do gozo associado ao dilaceramento de seu corpo.

Feitas as considerações acima, este artigo aborda a biografia da pintora mexicana Frida Kahlo. Sua origem remete ao diálogo produzido em torno de uma pesquisa de doutorado que, do ponto de vista metodológico, pretende a reunião entre arte e psicanálise por meio da apreciação do legado da artista. Importa ainda dizer que a pesquisa que enseja a produção deste texto, na condição de pesquisa teórica em psicanálise, busca o esclarecimento, a partir da orientação lacaniana, de temas que dizem respeito à constituição do feminino e à implicação, nessa gênese, da presença da arte e do parceiro amoroso.

 

Considerações preliminares: amor e sexualidade feminina

Na teorização lacaniana dos anos 1950, é possível identificar a figura da falta-a-ser, mediante o esvaziamento significante. Sua definição se apresentaria, no interior do seminário As formações do inconsciente (1957-1958/1998, p. 476), pela releitura da lógica edípica como uma dialética que apresentaria ao vivente essa falta-a-ser "cuja dimensão o significante introduz na vida do sujeito". Do lado do sujeito, do lado do corpo libidinal, em sua dimensão de gozo, a entrada em cena do significante implicaria a mortificação. Aproximadamente vinte anos depois, no ensino de Lacan, com a colocação em primeiro plano do parlêtre (falasser), o ser torna a ocupar a cena principal. A partir desse momento passa-se a conceber que, além de determinar um efeito de mortificação, o significante é também produtor de gozo. Diferentemente do Outro simbólico, que, ao emprestar ao sujeito os seus significantes, significa e reconhece a sua existência, o parceiro do parlêtre é um Outro sexuado cujo corpo só se alcança, de modo parcial, pela via do sintoma, ou como recurso privilegiado quando se está do lado feminino, por meio do amor.

O amor como estratégia para o laço com o Outro visa ao ser, ultrapassando aquilo que seria da ordem do ter. Essa perspectiva é exatamente aquela que leva ao infinito, posto que o ser resta sempre um pouco mais adiante do que é possível apreender na dimensão significante. Assim sendo, a ele não é facultado o acesso por qualquer que seja a palavra de amor. A dimensão do ser aportada pelo amor está apta a se combinar com a mulher naquilo que ela tem de não-todo, de acordo com a lógica lacaniana.

Há, portanto, do lado feminino, uma dimensão de infinito que torna impossível totalizar, fato que se compreende quando se recorre aos retratos psicológicos que são propostos para as mulheres. Quanto a esses retratos, cabe destacar o que Lacan evocaria como o máximo de virilidade, posto que, no indecidível que às mulheres concerne, dentro de uma lógica em que o Um não faz, como exceção, o seu limite, somente uma mulher poderia crer na existência dessa proeminente qualidade viril. Apesar da aparente contradição desta última afirmação, é da própria língua que se pode justificar sua consideração, por exemplo, no vir que está presente na forma da virgem (e em seu correspondente latino, virgo), conforme assinala Lacan (1971-1972/2012, p. 197): "Se o homem é tudo o que vocês quiserem no gênero virtuose [...], o viril fica do lado da mulher. Ela é a única a acreditar nisso". O traço de exceção com que se caracteriza a mulher vem cumular o ser feminino de uma desmedida que levanta suspeita, ainda quando seja portadora de insígnias fálicas, caso da mulher rica, retrato que a psicologia masculina reverencia por sua marca de excesso, muito distante daquilo que se denomina a justa medida ou a temperança (Miller, 1997-1998/2008).

Tais observações são ratificadas pela fórmula de Lacan, segundo a qual "Tudo pode ser imputado à mulher, já que, na dialética falocêntrica, ela representa o Outro absoluto" (Lacan, 1958/1998, p. 741). Tão Outro ela se mostra, que o será, ainda para si própria e, sem a baliza do órgão fálico para orientar-se, buscará no parceiro o veículo para que se resguarde, por intermédio da mediação fálica, do infinito em que seria capturada na forma de devastação. "O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro para ela mesma, como o é para ele" (Lacan, 1958/1998, p. 741).

Se, conforme observamos, a mulher como tal não se autopredica, torna-se possível, a partir disso, sugerir-lhe diversas significações na ordem do predicado e, consequentemente, afirmá-la simplesmente quanto à existência, ao modo do Um sozinho concebido por Lacan (1971-1972/2012). Seu parceiro, na sua função de conector, deve, de acordo com Miller (1997-1998), servir como bússola que contenha os seus extravios. Isso já podia ser capturado na intuição de Freud quando, em "O eu e o isso" (1923/2006), associa as influências dos caracteres dos amantes sobre a subjetividade de suas mulheres.

A despeito do que se possa denunciar de anacrônico na afirmação freudiana, passadas já muitas décadas desde que se viu, no Ocidente moderno, avançar o movimento de emancipação das mulheres no plano dos direitos civis e dos costumes, não é incomum ver revelados na clínica fenômenos como o que descreveu Freud há quase um século. Tais impressões servem para ensinar quanto da subjetividade feminina - tomada, certamente, ao modo de uma posição subjetiva, e não de uma condição anatômica - é ainda, em seus desenvolvimentos, presa dos destinos do amor que, dirigido ao pai, no Édipo, espera dele obter o dom que a compensaria da falta de substância.

 

Frida: um bonde chamado Diego?

Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderon nasceu em 1907, na Cidade do México, pouco antes da eclosão da Revolução Mexicana (Jamis, 2015). Foi a terceira de quatro filhas de um pai judeu alemão (Guillermo Kahlo) e de uma mãe mexicana (Matilde Calderón). Após seu casamento com Matilde, Guillermo tornou-se fotógrafo oficial do governo e pintor.

Sobre o nome Frida, as biógrafas - Hayden Herrera (2011), Rauda Jamis (2015) - esclarecem, em comum acordo, que evoca a ideia de paz (do alemão Frieden). De acordo com Herrera: "[...] embora em sua certidão de nascimento conste a grafia "Frida", o nome da pintora foi escrito com um e - Frieda -, à moda alemã até o final da década de 1930 [...]" (Herrera, 2011, p. 19), época da ascensão do nazismo, motivo atribuído pela biógrafa para que ela abandonasse a letra e de seu nome. É também, sem dúvida, digno de nota que oficializara pouco tempo antes, em 1929, sua relação amorosa com o pintor e militante comunista Diego Rivera (Jamis, 2015), a qual redundara em consequências sobre a estética de suas obras, bem como sobre sua atividade política. Desse modo, tal como procedera seu pai, anos antes, ao latinizar seu nome de batismo (de Wilhelm para Guillermo), a mudança de nome a que se propôs Frida tornou-a personagem símbolo de uma cultura mexicana que ela quereria representar, fundada em preceitos ideológicos aproximados às concepções políticas do marido que elegera.

O casamento com o famoso muralista torna célebre sua vida afetiva. Frida viveu com Diego, ao longo de 25 anos, uma relação conflituosa, durante a qual o casal experimentou um divórcio e em seguida um novo casamento. Frida resume do seguinte modo o evento Diego: "Sofri dois graves acidentes, na minha vida. Um em que fui abalroada por um bonde; o outro acidente é Diego" (Herrera, 2011, p. 85).

Nascida logo após a morte do único filho homem de seus pais, Frida encarna, muito cedo, o lugar de sucedânea dessa criança perdida. Foi também marcada pela privação, tornada explicita graças à sequela de uma poliomielite que a deixou, já aos seis anos de idade, com um membro atrofiado. Em função do tratamento para aquela doença, que envolvia exercícios tradicionalmente masculinos para o fortalecimento de sua perna e incomuns para as meninas de então (a exemplo do boxe) (Herrera, 2011), Frida passou a se comportar, por assim dizer, "como um menino", tendo, inclusive, para tanto, o incentivo de seu pai. Esse esforço, no entanto, não obstante possa indicar o gérmen de uma identificação à figura paterna, sem dúvida importante para o destino da pintora, quando esta inaugurar para si uma salvação por meio das tintas e dos retratos, não garantiu, durante a infância, a plena recuperação estética de sua perna, que permanecia muito fina. Remanescentes lesões no mesmo membro valeram-lhe o apelido de "Frida pata de palo " (perna de pau). Talvez como "estratégia de supercompensação", Frida evoluiu, de menina levada e de interesses masculinos, à forma conhecida de sua personagem (Herrera, 2011).

Cerca de dez anos depois, Frida sofreria um terrível acidente que transformaria sua vida. O ônibus em que estava, acompanhada de Alejandro, seu namorado de então, sofreu uma batida com um bonde elétrico e foi dividido ao meio. Tal acidente quase a levou à morte. Como consequência, porém, ela sofreu fraturas na terceira e na quarta vértebras lombares, três fraturas na bacia e onze no pé direito, luxação no cotovelo, além de ter sido atravessada por uma barra de ferro que perfurou seu corpo à altura do quadril e saiu pela vagina, gerando ferimento profundo no abdome e, em decorrência disso, peritonite, cistite, entre outros danos (Jamis, 2015, p. 103-104). O namorado sofreu ferimentos leves. Kahlo, referindo-se à sua sexualidade, após o ocorrido, diz que "perdeu sua virgindade" nesse acidente (Zamora, 1987, p. 24).

Esse acontecimento no ônibus viria reatualizar a marca da privação em seu corpo, que padeceria outros nove meses imobilizado, período em que a pintura fez sua entrada definitiva na vida da artista, então com dezoito anos de idade. É a profusão dos autorretratos, nesse período da produção artística de Frida, que permite consumar a expressão de um parceiro imaginário como constituinte do eu, afetado em sua imagem, sobre a qual a vivência traumática produziria uma espécie de cicatriz subjetiva.

Destarte, os autorretratos do momento posterior ao acidente, ao mesmo tempo que oferecem um modelo do que seria a função da imagem do outro na formação de uma imagem corporal, incluem a dimensão da decisão do sujeito Frida, quando ela decide fazer dessa imagem objeto de arte e mesmo alterar-lhe essencialmente as formas. Essa atitude se assemelha a um esforço, por parte do sujeito, para elaborar um significado de si mesmo, mediante a composição de um personagem. Essa personagem, composta como uma alegoria, acabou por gerar, alguns anos mais tarde, a imagem de mulher em trajes mexicanos nativos, muitas vezes acoplada aos seus autorretratos. Com isso, observa-se, em alguma medida, uma inversão do vetor outro-eu do casal imaginário (aa' - eixo imaginário do Esquema L de Lacan), não obstante seja necessário complexificar essa observação por meio da colocação em causa da influência, já nessa época, de seu amante Diego Rivera. Se, por um lado, a montagem dessa personagem pareceu servir ao sucesso da associação desse par amoroso, por outro, como será melhor precisado adiante, acabaria sendo redesenhado e investido de modo diverso, como um recurso frente à devastação.

Decorreram ainda, para Frida, nos anos que se seguiram ao desastre no ônibus, mais de vinte e cinco cirurgias. Seu saldo, além das lesões ortopédicas, foi o insucesso relativo à maternidade, testemunhado pelos abortos espontâneos que sofreu. Segundo Andrea Kettenmann (2015), em 1930 Frida teve que fazer um aborto por razões médicas. Dois anos depois, quando residia em Detroit (EUA), em 1932, veio novamente a engravidar, perdendo, então, esse outro filho, após três meses e meio de gestação. Ela voltaria a engravidar em 1934, o que novamente culminaria na perda do bebê devido a um alegado infantilismo dos seus ovários.

Sobre seu desejo em relação à maternidade, Frida escreveu para um cirurgião amigo seu, o Doutor Eloesser4, em 1932:

Até agora não sei por que abortei e por que razão o feto não se formou, então quem sabe que diabos está acontecendo dentro de mim, pois é muito estranho, não acha? Eu tinha tanta esperança de ter um pequeno Dieguito, um bebezinho chorão, mas agora que isso não aconteceu, não há nada a fazer senão aguentar [...] (Kahlo, citado por Herrera, 2011, p. 111).

Cinco dias depois de seu segundo aborto, ocorrido naquele ano, Frida começou a desenhar. Ainda estava internada quando passou a solicitar aos médicos livros de medicina com ilustrações sobre abortamento, mas teve seu pedido negado pela equipe responsável por seus cuidados. Foi preciso então que seu marido, Diego, interviesse - "O senhor não está lidando com uma pessoa comum. Frida vai produzir alguma coisa com isso, ela vai criar uma obra de arte" (Rivera, citado por Herrera, 2011, p. 111) - e acabasse, ele mesmo, providenciando esse material. Ela começou, a partir desse momento, uma série de desenhos sobre o aborto, o feto, as entranhas etc. Tem início, então, com o quadro "Hospital Henry Ford", de julho de 1932, em sua pintura, uma série de autorretratos "sangrentos", não obstante deveras expressivos, cuja peculiaridade é o modo como passam a incluir o sofrimento feminino de uma maneira nunca antes pintada. Quanto à importância desses quadros para a sua vida, Frida demonstrou estar consciente, conforme é possível compreender pela leitura do relato que deixou a esse respeito: "A pintura preencheu minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas que poderiam ter preenchido minha horrível vida. Tudo isso foi substituído pela pintura" (Kahlo, citada por Jamis, 2015, p. 258).

Sobre esse relato de Frida, Eli Bartra (2003) questiona se a arte, para ela, não teria funcionado como um substituto para os filhos que não pôde ter e se, de alguma forma, ela se tornou pintora por não ter conseguido ser mãe. Seguindo a opinião de Bartra, é como se, no entendimento de Frida, a maternidade fosse o único e autêntico destino de toda mulher. Assim, todas as mulheres que fossem mães estariam consagradas e teriam que abrir mão do trabalho criativo, de modo que restaria àquelas a quem esse destino se mostrava impossível, ou mesmo às que voluntariamente recusavam a experiência da maternidade, preencher esse vazio com o auxílio das artes.

A maternidade, como é bem sabido, de acordo com a concepção freudiana, constitui-se no destino edípico esperado para as meninas (Freud, 1925/2006). A partir de tal entendimento, interpreta-se que, diante da privação originária do órgão fálico, teria lugar uma relação com a castração que, diferentemente do que seria verificado no modo de vivenciá-la no sexo masculino, encaminhar-se-ia para a espera de um dom vindo do exterior na forma de um filho. Essa distinção é dada de maneira enfática por Freud em 1925, quando, a respeito da constatação, por parte da criança do sexo feminino, da diferença anatômica que a separa do representante do sexo masculino, no qual a menina verifica a presença do pênis, ele descreve: "A menina se comporta diferentemente. Faz seu juízo e toma sua decisão num instante. Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo" (Freud, 1925/2006, p. 281).

Esse ponto, que é desenvolvido tardiamente por Freud, leva-o a produzir uma teoria que propõe uma distinção lógica quanto ao desenvolvimento da sexualidade feminina. Essa opção teórica, que provocaria embaraço nos pós-freudianos, que permaneceram resistentes à proposição do primado do falo, só seria retomada em meados da década de 1950, por Lacan. Por meio do expediente do primado do falo, portanto, a interpretação da falta do pênis como privação - "[...] a mãe da menina, que a enviou ao mundo assim tão insuficientemente aparelhada, é quase sempre considerada responsável por sua falta de pênis" (Freud, 1925/2006, p. 283) - une-se à feminilidade, aproximada muitas vezes por Freud à ideia de passividade, por intermédio da noção de masoquismo (feminino). Sobre a ideia de privação, Laurent (2012) esclarece que ela interessa, a princípio, a Lacan, porque é a partir dela que pôde propor um desvio em relação à noção de frustração, excessivamente considerada nos meios psicanalíticos anglo-saxões e que se ligava diretamente à noção de ter - mais especificamente, ao que do desejo não se conseguia veicular por meio da demanda, fazendo com que a demanda fosse, por sua própria essência, irrealizável. Desse modo, com a ideia de privação avançava-se menos com relação ao ter, e mais com relação ao ser.

Assim, como se viu, no sentido próprio da teorização freudiana do Édipo, a menina desde sempre é uma presa da falta ou do não ter, de maneira que sua relação com a castração se conformaria de outro modo que não aquele da ameaça. E pode-se dizer, com Laurent (2012, p. 81), que "se ela faz seu ser, é se livrando do seu ter". Tal fenômeno é destacado aí pelo autor com o nome de gozo da privação. O gozo da privação, como tal, seria o fundamento lacaniano do masoquismo feminino. Ele permitiria explicar essa parcela de gozo que constitui uma mulher no interior de uma relação em que elegeria como parceiro o ser que viesse a degradá-la, que a fizesse sofrer. Nesse estilo de relação leva-se em conta o percurso da cadeia de reconhecimento, em que se recebe do outro a própria mensagem de maneira invertida. Seria ela mesma que se faria, pelas mãos do outro, maltratar. Desse modo, a atitude do parceiro que a degrada corresponderia à própria assunção desse parceiro na condição de outro para o sujeito, sintetizada na fórmula em que responde: "Tu és minha mulher" (Lacan, 1953/1998).

É certo que o destino da sexualidade feminina se escreve de modo próprio para cada sujeito e, ainda na elaboração empreendida por Freud, existem conclusões diversas para a privação antes aludida, seja na forma da revolta masculina, que foi tratada de Penisneid (inveja do pênis), seja na substituição do desejo de pênis pela expectativa de ser amada. Esses componentes acima considerados não estão, decerto, ausentes da personalidade de Frida Kahlo, e a relação por ela mesma estabelecida entre o desejo insatisfeito de se tornar mãe e a produção de suas telas - em número aproximado de 143, sendo grande parte delas (55) autorretratos -, aliada a outros conteúdos conhecidos da sua biografia, permitem tratá-los como ilustrativos da teoria considerada.

 

Frida, o amor e o "parceiro-trauma"

Ainda resta uma questão sobre a relação entre a pintura e as marcas sobre o corpo na biografia de Frida. Mais além do ponto, já considerado, a respeito da maternidade, há que se considerar o seu exercício, bem conhecido, de ilustrar suas telas com elementos e cenários alusivos à dor e à visão do corpo dilacerado. Pintar o trauma, moldar o sintoma, fazer o gozo condescender ao desejo: a arte de Frida Kahlo se irmanaria, por intermédio de suas virtudes sublimatórias, com a definição lacaniana de amor (Lacan, 1962-1963/2005). O amor, fato da cultura, pode ser revelador de traços singulares dos sujeitos, mesmo do que lhes é mais estranho: o corpo - expressão do furo em torno do qual o novelo da alma tece o seu nó. Eis uma via por meio da qual o amor pode compor um sintoma.

O corpo frágil de Frida bem poderia implicar o afastamento do interesse por parte do Outro sexo em favor da presença de um outro da beneficência. Aparentemente, porém, produziu-se um saber capaz de responder aos apelos do narcisismo do corpo doente, permitindo que um parceiro fosse capturado não pela tirania do dever face ao corpo carente de cuidados, mas pelo valor fálico dele emanado.

Frida, para quem a castração se reatualizou a cada etapa da existência, quando de sua busca pelo amor seria ainda tomada pela contingência do trauma. A isso ela respondeu dando ao parceiro o apoio que, na via da identificação, instituiu a associação dos iguais - mais philia do que amor erótico, característica que é ressaltada nas atitudes em que se revela um afã de igualdade, mediante o jogo recíproco que é próprio do amor. Havia, aparentemente, a necessidade de colocar reiteradamente à distância o feminino mediante um tipo de camaradagem com Diego que passava, vez por outra, pela disputa e pela competição, seja na política, seja no amor das belas mulheres. Le Clézio (2010, p. 152) ilustra essa característica da relação de Frida com Diego do seguinte modo: "[...] Frida tenta sobreviver a esse período, fugir com Anita Brenner, flertar muito com outros homens e mostrar uma experiência lésbica". Ressalta-se, porém, que, na pintura, como destaca Herrera (2011), esse tipo de competição não parece estar colocado.

Esse arranjo, para o sujeito Frida, conforme indicado acima, talvez tivesse finalidade defensiva, pois é certo que, quando se entregava ao amor, do lugar de mulher de Diego era capaz de todo o sacrifício de si própria, dando aquilo que não tinha a um outro que respondia, em geral, de modo ingrato, o que tinha como efeito a devastação e acentuava ainda certo sadismo, admitido por Rivera: "Quando eu amava uma mulher [...], quanto mais eu a amava, mais queria machucá-la. Frida era apenas a vítima mais óbvia desse meu traço de personalidade" (Rivera, citado por Herrera, 2011, p. 139). Rivera respondia, no entanto, talvez não somente a esse traço autorreferido de sadismo mas também ao próprio masoquismo de sua consorte. O masoquismo, cujo segredo é a erotomania (Miller, 1998), é um dos nomes femininos do amor. Tais características encontradas em Diego tendiam a arrastar Frida para o desvario e para o ilimitado. O mesmo risco estaria colocado pela sua paixão diante das agruras experimentadas em seu corpo. Parece ser por intermédio das telas que Frida alcança a sua estabilização.

Quanto à particularidade que interessa ao plano do amor, ressalta-se que, por mais que a parceria entre Frida e Diego se fizesse valendo-se de um suporte identificatório centrado sob a perspectiva imaginária, a artista era frequentemente reenviada a um gozo que a ultrapassava e ao qual parecia fixada. Nesse sentido, o traço de identificação que induzia a certa especularidade entre Frida e seu parceiro amoroso a colocava a serviço dos mesmos ideais que ele. Também esse traço de identificação responderia pela reprodução na personagem de Frida dos aspectos físicos próprios de Diego, inclusive das mesmas preferências eróticas. Esse elemento, ainda que arranjado sob a égide do dualismo sadismo/masoquismo, podia resvalar para um gozo solitário do corpo golpeado, traumatizado.

Esse modo de gozo, associado ao dano corporal, concorre para firmar aquilo que é sugerido por Del Conde como uma "natural predisposição à hipocondria" (Del Conde, citado por Morais, 2015, p. 12), relevante para a criação artística de Kahlo, em particular de seus autorretratos. Por influência dessa relação mantida com o próprio corpo, a artista poderia reivindicar, via pintura, que reouvesse a posse presumida de seus atributos ao modo de uma compensação. Há um outro modo pelo qual Frida estabelece compensações. Esse segundo modo se encadearia com a perspectiva de insuficiência de que estava carregada a saída via parceira amorosa. É, por exemplo, significativo que, de um rompimento com Diego, após o envolvimento deste com a irmã de Frida, a pintora tenha passado a se vestir como homem, abandonando o seu personagem mexicano folclórico, e que tenha experimentado notório incremento da sua atividade artística, que conseguiu então, por certo período, desenvolver e expor de modo independente, como foi o caso do período em que se dispôs a expor seus quadros em Paris, acentuando sua característica fálica. É digno de atenção, como se nota, o fato de que, mediante o corte estabelecido com a ficção do amor, Frida acabasse sendo devolvida ao caráter histérico do seu sintoma. Apesar de insistente, tal sintoma serviu como moderador do gozo masoquista, ao mesmo tempo que foi responsável, em parte, por suportar o seu investimento no caminho que inventou como artista.

Herrera (2011) escreve que não se consegue precisar quando, exatamente, começou o romance de Diego e Cristina, irmã de Frida, mas que, provavelmente, se deu no verão de 1934. O casal - Frida e Diego - havia voltado ao México e ambos enfrentavam problemas de saúde. Diego culpava Frida de haver precipitado essa volta. Frida, então, apesar do seu enorme sofrimento, escreve para o Dr. Eloesser5, afirmando que a culpa da traição de Diego seria realmente sua, uma vez que não havia compreendido as necessidades do marido. Confessa, na mesma carta, haver perdoado sua irmã e que ela, Frida, acreditava dever fazer concessões a Diego quanto às ditas "necessidades do marido", se quisesse vê-lo feliz. É nessa época que cria o quadro "Umas facadinhas de nada" (1935) (Fig. 1), baseado numa notícia de jornal em que um homem bêbado jogou a namorada numa cama estreita e a apunhalou vinte vezes, havendo afirmado depois, quando questionado pela polícia acerca do crime, que tinha desferido contra a mulher morta apenas "umas facadinhas de nada". Apesar da tentativa de deixar Diego após essa infidelidade, Frida retomou seu casamento, mas de modo diferente, segundo salienta Herrera (2011). Ela transforma o ciúme e a traição num novo tipo de abertura, tornando-se, daí em diante, uma mulher sexualmente livre, namoradeira, que, embora insistisse em seu sofrimento, podia se apresentar como despreocupada e irônica.

[Fig. 1: Umas facadinhas de nada, 1935, Óleo sobre metal, 38 x 48,5 cm.
Cidade do México, Museo Dolores Olmedo.]

Alguns anos depois, em 1940, ocorreu o divórcio e Frida reagiu do mesmo modo que em 1934, ao descobrir que Diego estava com Cristina: cortou os cabelos bem curtos. Em seguida, em carta escrita para Nickolas Muray, assim se descreveu: "agora estou parecendo uma bichinha" (Kahlo, citado por Herrera, 2011, p. 210). Ela havia alertado Diego de que cortaria os cabelos que ele adorava, caso ele insistisse em manter o seu romance do momento, fato pintado no quadro "Autorretrato com cabelos cortados" (1940) (Fig. 2). Nesse quadro, ela tira, ainda, suas roupas Tehuanas, de que Diego também gostava, veste um terno masculino, senta-se com as pernas abertas, como um homem, e usa camisa e sapatos masculinos, preservando apenas os brincos como sinal de feminilidade (Herrera, 2011).

[Fig. 2: Autorretrato com cabelo cortado, 1940, Óleo sobre tela, 40 x 27,9 cm.
Nova York (NY), The Museum of Modern Art, Gift of Edgar Kaufmann Jr.]

Na parte superior do quadro, Frida escreve os versos de uma canção: "Olha, se te amei foi pelo teu cabelo; agora que estás careca já não te amo".

Frida faz de sua impotente retaliação uma pesarosa piada: extirpar um sinal de feminilidade torna-se pouco mais do que a ilustração de uma canção popular. Desafiadora, sozinha, cercada por um testemunho de sua vingança, que é tão horripilante quanto as gotas e manchas de sangue de outros quadros, Frida é uma imagem inesquecível de fúria e sexualidade machucada (Herrera, 2011, p. 211).

 

Frida: sintoma e père-version

Da maneira como Frida a concebe, sua produção artística mostra-se intensamente implicada nos detalhes de sua história de vida e, em especial, na história de seus amores. Tal ocorrência se faz perceber quer na apreciação de seus quadros, quer na leitura de seus diários e cartas. Para ela, se há, por um lado, a necessidade de identificar-se com o parceiro homem para recompor a identidade, abalada em virtude do acidente, por meio do narcisismo da imagem corporal, que é a via dos autorretratos, por outro lado, há, no mesmo processo, uma recomposição do sujeito Frida, que, a partir de então, será tornado comunista, folclorista, imagem símbolo de uma causa política, meio de se fazer reconhecer no traço que despontava do Outro Diego - como afirma Le Clézio (2010, p. 18): "a história de Diego e Frida - essa história de amor inseparável da fé na revolução". Para Le Clézio, a revolução de Frida não passa pela grande manifestação, pois consiste em liberar seu corpo do sofrimento, revelar um amor total, sem limite, que a faça viver em paz com o homem escolhido. Essa revolução não é realizável, e a arte acabará sendo a sua verdadeira revolução.

É na exageração do processo do reconhecimento que busca em Diego que Frida incorpora os traços fantasmáticos que a fazem corresponder ao objeto desejado por aquele Outro que idealiza, como parecem mesmo asseverar as relações amorosas fortuitas da artista com líderes políticos e mulheres de grande beleza, circunstâncias que são marca de um interesse que a leva a rivalizar com o amante. Ela parece tão ancorada no marido que sua identidade se apresenta com relação à dele, o que se verifica, inclusive, na forma como se pinta com traços rudes e andróginos, como se fosse simplesmente uma extensão da estrutura de aparência desalinhada de Rivera.

A forte identificação de Frida com Diego assemelha-se, no que se dá a ver por meio dos acontecimentos de sua vida comum, à tentativa de escrita de uma relação, que fracassa quando um elemento concernente ao gozo do parceiro vem se imiscuir, alterando o contrato de bom funcionamento que, no caso de Frida e Diego, exigia certa lealdade, a despeito da liberdade sexual pretendida. Assim, a ficção da relação sexual se desmantelaria, reconduzindo Frida àquilo que poderia ser lido como uma falha presente no seu corpo, instado a assumir na fantasia o esplendor da compleição viril. O apelo ao sintoma funcionaria como anteparo do enlouquecimento, que é apanágio da ilimitada demanda feminina de amor. Esse mais além do que se delimita pela sombra do falo, de sua função, justifica a precaução a ser observada nesse ponto, mesmo quando estruturalmente se aponte para uma histeria.

Seguindo-se de perto a referência acima, pode-se notar que o modo de aparecimento dessa expressão da arte como sintoma em Frida parece vir em apoio à afirmação de Lacan (1972, p. 480), de acordo com a qual, por trás das "ficções da mundanidade", importa resgatar aquilo que, com o auxílio da linguagem, promove "uma fixão " - a um só tempo fixação e semblante - do real. Apela-se, nas circunstâncias do parágrafo anterior, do modo como está colocado, um arranjo que, se é feliz em satisfazer o que, na relação do falasser com seu corpo, implica o sentido, não se faz, mesmo assim, suficiente. É a repetição dessa saída que denuncia a sua insuficiência, como se se tratasse de uma muleta que, ainda que evite a queda, não substitui plenamente um membro ausente. O que se enuncia por meio da ficção, portanto, implica uma solução somente enquanto relega ao olvido o fato do dizer, o que está certamente relacionado à lógica do sintoma como modo de gozar do próprio inconsciente.

Essa explicação vai ao encontro daquela do seminário RSI, do sintoma com valor de gozo, "modo como cada um goza do inconsciente" (Lacan, 1974-1975, lição de 18 de fevereiro de 1975), sintoma que é condicionado por uma letra - idêntica a si mesma. Pode-se, então, entender o destino do sujeito Frida como governado pela contingência dos seus traumas, ao que a linguagem lhe viria fazer, por seus apelos ao sentido, fixão desse real. Essa determinação que sofre por parte do real está patente no tema de suas telas, que representam frequentemente a dor e o corpo destroçado.

É, talvez, essa a via do estabelecimento, pela castração, de uma lei do amor, capaz de impor limites ao gozo masoquista ao mesmo tempo que instaura os mediadores perfeitos em meio a tão díspar casal de amantes - Diego e Frida -, quais sejam: a arte e as tintas que Frida tomou de empréstimo a seu próprio pai.

Por muitos anos meu pai guardou num canto de seu pequeno estúdio fotográfico uma caixa com tintas a óleo e pincéis num velho pote de vidro e uma paleta. Puramente por prazer ele saía pra pintar, no rio em Coyoacán, paisagens e figuras, e às vezes copiava cromos. Desde menina, como diz a expressão popular, eu estava de olho naquela caixa. Não sei explicar o porquê. Depois de tanto tempo acamada, me aproveitei da situação e pedi a caixa ao meu pai. Como um menino cujo brinquedo é tomado e dado a um irmão doente, ele me "emprestou" a caixa. Minha mãe pediu a um carpinteiro que construísse um cavalete, se é que dá pra chamar de cavalete o aparato especial que podia ser acoplado à minha cama, porque o colete de gesso me impedia de me sentar. E foi assim que comecei a pintar (Kahlo, citada por Herrera, 2011, p. 54).

Caberia então, nesse ponto, interrogar acerca de uma versão do pai (père-version, como escreve Lacan em 1974-1975) que ronda a biografia de Frida. Seu segredo estaria associado à perda, para o seu pai, do filho homem, que teria condicionado, em certa medida, as escolhas da formação dela, o que, por sua vez, a teria feito uma menina de modos excessivamente masculinos para o meio em que vivia. Tratar-se-ia, é possível dizer, de um menino com um quê a menos, menos que seria expresso tanto por meio do defeito físico da infância quanto por meio daqueles que foram consequência do acidente aos 18 anos. Esses fatos teriam sido responsáveis por gerar uma personalidade que ora se poderia caracterizar como rebelde, reivindicativa, ora como masoquista.

O pai a que o sujeito se referiria por meio de sua père-version é decorrência de sua crença na nomeação, pela qual vê chancelada a escolha do seu desejo na esteira do que é o mandato paterno. Seria em consequência dessa associação que poder-se-ia se referir ao pai como uma versão para cada sujeito. É o dito mandato paterno que decide, na história de Frida, que ela será uma mulher emancipada. Não obstante, a eficácia desse mandato não se fez sem que, para isso, Frida tivesse que recorrer à autoridade de um grande homem, a quem pudesse venerar e por quem pudesse se fazer reconhecer.

O Nome-do-Pai, na teoria lacaniana, resolve o enigma do desejo da mãe ao endereçá-lo ao falo, o que conjuga a lei da proibição do incesto e a lei do desejo. Isso faz da lei do pai a lei do amor, incluído o fato de que o pai só é, como tal, capaz de fundá-la ao preço de sua própria castração, que se apresenta uma vez que esse pai investiu um outro como objeto de seu desejo, o que, segundo Lacan, o torna, somente sob essa condição, digno do amor e do respeito: "O amor [...] se endereça ao pai, em nome disso, de ele ser o portador da castração" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 146-147). Trata-se, portanto, para os neuróticos em geral, de sustentar o pai em sua posição. É assim que Frida suporta o seu pai decadente, tomando para si o trabalho com as tintas e os retratos - e que esses sejam os seus próprios, isso não poderia afigurar-se para ela mais satisfatório.

Lacan apresenta a ideia de père-version, a ser traduzida como versão em direção ao pai, de um modo particularmente chamativo no interior do seminário 23. A existência de uma tal noção suporia uma novidade na elaboração teórica de Lacan quanto ao que denomina relação sexual. Se é certo que, desde a época do seminário 16, Lacan advogava pela não existência da relação-sexual - como está escrito na lição de 12 de março de 1969 (Lacan, 1968-1969/2008, p. 220) -, por ocasião do seminário 23 ele afirmaria a possibilidade de sua existência. A suposição dessa outra face da tese lacaniana acerca da relação sexual - sua existência - suportaria, em associação com o conceito de père-version, a ideia de que seria na conjunção entre o pai e o filho que ela passaria a se estabelecer. O que se transmite do pai para filho é idealmente da ordem de uma falta. Pode-se, desse modo, intuir que a interação entre filho e pai é feita por meio da castração, legado maior que, de um a outro, se transmite. Visto que aqui já não se trata de ratificar a crença no ativo e no passivo, a relação não se efetua. O delírio joyceano do redentor, conforme assinala Schejtman (2013), é o fenômeno que permite ensejar, no texto do seminário de Lacan, essa novidade da père-version, que auxilia na interpretação dos fenômenos que concernem ao parceiro-sintoma e gravitam ao redor dessa solução, que se fixa no mais íntimo do sujeito, determinando suas escolhas na vida, incluídas as que respondem por seus vínculos eróticos. A passagem aludida, citada por Schejtman (2013), está contida na lição de 10 de fevereiro de 1976, da maneira que se segue:

A imaginação de ser o redentor, pelo menos na nossa tradição, é o protótipo da pai-versão. Na medida em que há relação de filho com pai, surge essa ideia tresloucada do redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o pai, o masoquismo é para o filho. Freud, de todo modo, tentou se desprender desse sadomasoquismo. Esse é o único ponto onde há uma relação suposta entre o sadismo e o masoquismo (Lacan, 1975-1976/2007, p. 82).

O relevo que aqui é dado por Lacan a essa relação fá-la transbordar, evidentemente, do delírio de Joyce para a relação dos seres falantes de modo geral, vindo então a concordar com a afirmação que faria, na lição seguinte, de que há relação sexual: "Na medida em que há sinthoma, não há equivalência sexual, isto é, há relação" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 98). A relação sexual, acima descrita, só se efetuará, portanto, se é suposta nesse parceiro a presença do objeto do desejo - o pequeno a -, aquilo que é próprio a ser buscado no sexo que é, para cada um, Outro, o seu sinthoma, ou seja, o sexo ao qual não se pertence (Lacan, 1975-1976/2006). Como observa Miller (2010): "Se há relação sexual, [...] só pode ser em relação a uma alteridade interna à estrutura do falasser. É a isso que devemos a famosa oposição encontrada em O sinthoma, entre o sinthoma e a devastação" (Lacan, 1975-1976/2006, p.116-117). Em Frida, é desse modo que se afigurará a ideia da relação que construiu com Diego ao redor da questão da arte. Trata-se da organização de um tipo de sinthoma, uma relação sexual que se faz com essa figura do Ideal que encontra em Diego e na qual ressoa aquilo a que nos referimos como sua versão do pai. Se Frida foi capaz de estabelecer essa relação, foi provavelmente por ter conseguido distingui-la dessa outra associação, com S(), que a arrastaria, repetidas vezes, para a devastação.

É por ser estabelecida, mediante uma proporção, uma complementariedade que a relação sexual, como é o caso daquela que se afigura entre Nora e Joyce, objeto da observação de Lacan (1975-1976/2007), pode ser entendida por meio da metáfora da luva esquerda que, posta do avesso, veste a mão direita. Imagine-se que possa, da mesma forma, como sugere ali Lacan, fazer o masoquista servir como complemento ao sádico, assim como o passivo, ao ativo. Aí se tem algo da relação que se haveria estabelecido entre Frida e Diego, na sequência daquela que fora, para Frida, a relação entre ela e seu pai. A atitude de Frida diante de seu parceiro-sintoma apontaria para esse recurso e, de forma bem-sucedida, justificar-se-ia a partir da sugestão de Lacan por uma aproximação com a imagem da estranha relação consumada entre Nora e Joyce (Lacan, 1975-1976/2007). Seu ponto de encontro estaria naquilo que, no contexto da histeria, Lacan designou como a colocação de uma armadura, a qual definiria o sinthoma: "A histérica é sustentada [...] por uma armadura. [...] Esta armadura é seu amor por seu pai" (Lacan, 1976-1977, lição de 14 de dezembro de 1976, tradução nossa 6). Eis que a não equivalência pode supor a abertura para uma dada espécie de proporção que consolida a vigência de uma polaridade, conforme ainda faz observar Lacan (1975-1976/2007, p. 82): "[...] É preciso verdadeiramente crer no ativo e no passivo para imaginar que o sadomasoquismo possa ser explicado por uma polaridade".

A relação pai-filho, que é o protótipo da père-version, surge, desse modo, como solução para a impossibilidade de alcançar o Outro em seu gozo, de modo que se cria, por meio daquela versão do pai, no lugar desse Outro, um parceiro talhado sob medida para responder ao fantasma, conforme a ideia que se distingue no texto de 1960, em que Lacan enuncia:

De fato, a imagem do Pai ideal é uma fantasia de neuróticos. Para além da Mãe, Outro real da demanda de quem se quereria que ela acalmasse o desejo (isto é, o desejo dele), perfila-se a imagem de um pai que fecharia os olhos aos desejos. Mediante o que fica ainda mais acentuada do que revelada a verdadeira função do Pai, que é, essencialmente, unir (e não opor) um desejo à Lei (Lacan, 1960/1998, p. 839).

Tais observações levam a compreender do que se trata na afirmação de Lacan, por ocasião de seu seminário 25: "Não há relação sexual, salvo para as gerações vizinhas, a saber os pais de um lado, os filhos de outro. É o que evita... falo da relação sexual... é o que evita o interdito do incesto" (Lacan, 1977-1978, lição de 11-04-1978, tradução nossa)7. Portanto, a lei edípica, que viria se instituir na continuidade do interdito da castração, não serviria simplesmente para orientar os jovens falasseres em direção à identificação com o ideal de seu sexo a fim de que realizassem a dita relação com o Outro sexo. Pelo contrário, essa lei, ao interditar a relação sexual incestuosa, teria antes por função o papel de erigir, por meio do enlace com o parceiro sexuado, o mal-entendido que só lhe franqueia esse encontro pela via do sintoma.

 

Conclusão

Frida, como obra que emerge da tela para dar corpo a um ser despedaçado, é exemplo de uma inversão que faz a representação artística ganhar precedência sobre o modelo. Como se pode verificar, tal representação emerge com a potência descrita por estar fixada no Ideal que se importa de um Outro, cuja existência permite reconhecer, nos amores de Frida, uma ilustração bem-acabada do que se denomina parceiro-sintoma.

Considerando como modelo o artifício de Joyce, é possível afirmar que Frida se engaja na invenção de um nome próprio de modo que possa manter a inscrição desse lugar que, na vizinhança do pai, pôde articular a despeito de suas limitações físicas, ou com o apoio delas. O enlace amoroso com Rivera parece importante para que Frida se mantenha fiel à relação que travara com a sua versão do pai. A construção dessa pai-versão parece ter sido o que sustentou o seu ser de artista, assim como revelou ser aquilo que sobressaía do seu encontro amoroso com Diego. De outro modo, considerado nos termos das ditas "necessidades" de Diego, esse encontro pareceria só ter como resultado mais e mais devastação.

Frida é obrigada inventar para si um nome e, por meio do mesmo expediente, um corpo, para, por meio dele, reparar a desarticulação entre o seu fantasma e a matéria frágil sobre a qual se erguia, vítima das contingências que a marcaram duramente quando da reedição do dano físico. É com isso que ela produz arte e, por meio da arte, a narrativa necessária para dar dignidade às suas cicatrizes, tornando-as admiráveis. Em seu caso, a arte e o amor permitem tecer o sintoma Frida, invenção poética sobre um corpo traumatizado de mulher.

 

 

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Artigo recebido em: 09/06/2018
Aprovado para publicação em: 03/06/2020

Endereço para correspondência
Guilherme Pimentel Jordão
E-mail: gpjordao@yahoo.com.br
Carla D'Alessandro
E-mail: carladaless@gmail.com

 

 

*Médico psiquiatra, possui mestrado em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018). Atualmente é doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e trabalha como psiquiatra na Prefeitura Municipal de Campinas - SP.
**Psicóloga e psicanalista graduada pela PUC Minas (1994). Especialização em psicologia hospitalar pela Universidade FUMEC (1998). Mestrado e doutorado em psicologia pela PUC Minas (2020).
1[...] L'image du corps relègue le réel du corps.
2[...] Le sujet n'aura de rapport à l'autre, au corps de l'autre que par l'image...
3[...] en quoi l'œuvre d'art est une "cause" pour le sujet, pour le spectateur aussi bien que pour l'artiste lui-même.
4Leo Eloesser era um famoso cirurgião torácico especializado em cirurgias ósseas, chefe do serviço do Hospital de São Francisco e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford. Frida fez amizade com ele em São Francisco (1930) e, a partir daí, pelo resto da vida confiaria mais em suas opiniões do que nas de qualquer outro especialista. (Herrera, 2011, p. 95)
5Conforme carta de 26 de novembro de 1934, citada por Herrera, 2011, p. 140.
6L'hystérique est soutenue, dans sa forme de trique, est soutenue par une armature. Cette armature est en somme distincte de son conscient. Cette armature, c'est son amour pour son père.
7Il n'y a pas de rapport sexuel, sauf pour les générations voisines, à savoir les parents d'une part, les enfants de l'autre. C'est à quoi pare... je parle au rapport sexuel... c'est à quoi pare l'interdit de l'inceste.

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