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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

A interpretação dos sonhos e sua relação com o significante: um achado que implica a dimensão da perda

 

The interpretation of the dreams and its relationship with the signifier: a finding that implies the dimension of the loss

 

La interpretación de los sueños y su relación con el significante: un hallazgo que implica la dimensión de la pérdida

 

 

Simone RavizziniI*; Talita BaldinII, III, IV**

IUnilasalle - Brasil
IIUniversidade Federal Fluminense - UFF - Brasil
IIIUniversidade Salgado de Oliveira - Brasil
IVFaculdade Maria Thereza - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se debruça sobre a seguinte questão: como poderíamos encontrar a palavra exata capaz de delimitar aquilo que as palavras não podem dizer? Com intuito não de dar conta, mas de alimentar reflexões sobre ela, o caminho que encontramos foi o de investigar o trabalho de Lacan e assim nos encontrarmos com Freud, à medida que aponta para um uso ímpar da interpretação, um uso que visa transcender o sentido explícito que nos é oferecido pela fala, ao contrário de compreender o que da linguagem jaz cristalizado. A partir das discussões tecidas ao longo do artigo concluímos que o discurso analítico vem para evidenciar que o sentido é pura aparência, pois ele não faz senão apontar para a direção onde fracassa e é justamente nesse fracasso do significante que o sujeito pode advir. Assim, na linguagem trata-se de um tropeço, de um desfalecimento da palavra, justamente onde Freud vai buscar o inconsciente. Esse achado implica a dimensão da perda estrutural para o sujeito, uma vez que o constitui.

Palavras-chave: Inconsciente, linguagem, falha do significante.


ABSTRACT

This article focuses on the following question: how could we find the exact word capable of delimiting what words can not say? In order not to give an account, but to foster reflections on it, the path we found was to investigate Lacan's work, and thus to meet Freud, as he points to an unequal use of interpretation, a usage that seeks to transcend the explicit sense offered to us by speech, as opposed to understanding what is already crystallized in language. From the discussions throughout the article, we conclude that the analytical discourse comes to show that the sense is pure appearance, since it only points to the direction where it fails, and it is precisely in this failure of the signifier that the subject can come. Thus, language is a stumbling block, a failure of the word, just where Freud goes to seek the unconscious. The finding of this implies the dimension of the structural loss for the subject, because it constitutes it.

Keywords: Unconscious, language, failure of the signifier.


RESUMEN

Este artículo se centra en la siguiente pregunta: ¿cómo podríamos encontrar la palabra exacta capaz de delimitar lo que las palabras no pueden decir? Con el fin de no dar cuenta, pero alimentar reflexiones sobre ella, el camino que encontramos fue el de investigar el trabajo de Lacan, y así encontrarnos con Freud, a medida que apunta hacia un uso impar de la interpretación, un uso que pretende trascender el camino sentido explícito que nos es ofrecido por el habla, al contrario de comprender lo que del lenguaje ya está cristalizado. A partir de las discusiones tejidas a lo largo del artículo, concluimos que el discurso analítico viene para evidenciar que el sentido es pura apariencia, pues él no hace sino apuntar hacia la dirección donde fracasa, y es justamente en el fracaso del significante que el sujeto puede venir. Así, el lenguaje trata de un tropiezo, de un desfallecimiento de la palabra, justamente donde Freud va a buscar el inconsciente. El encuentro de ese hallazgo implica la dimensión de la pérdida estructural para el sujeto, una vez que lo constituye.

Palabras clave: Inconsciente, lenguaje, falla del significante.


 

 

Como poderíamos encontrar a palavra exata capaz de delimitar aquilo que as palavras não podem dizer? É sobre essa pergunta que este artigo visa se debruçar. Para tal, o caminho que encontramos foi o de investigar o limite intrínseco à interpretação visto que, além de encarnar o vazio inapreensível da palavra, seu confronto também acarreta diversas consequências para a clínica analítica. Podemos dizer que esse ponto limite emerge como um divisor de águas, posto que o sentido a ele conferido não é unânime no meio psicanalítico e que a forma tal qual é designado possibilita distinguir a posição de um analista em sua tarefa de interpretar. Isso porque quando tomamos a interpretação como uma via para o esclarecimento das questões inerentes ao ser humano estamos fadados a conceber esse ponto limite como um ponto a ser superado, algo a ser corrigido. Porém, se seu limite é pensado como intransponível a interpretação não pode mais estar atrelada à ideia de clarificação, de irrestrito esclarecimento, mudando completamente seu percurso.

É por percebermos a possibilidade de diversos caminhos referentes à questão da interpretação que escolhemos desenvolver algumas formulações demarcadas no trabalho de Lacan, à medida que elas apontam para um uso ímpar da interpretação: uso que visa transcender o sentido explícito que nos é oferecido pela fala, ao contrário de compreender o que da linguagem jaz cristalizado.

Devemos considerar que a apropriação da linguagem constitui-se singularmente e não de forma unívoca. De modo que, se as palavras possuem diferentes usos, não seria papel da interpretação uniformizá-las por um padrão de compreensão. Nesse sentido, Lacan insiste em dizer que se pretendemos respeitar a descoberta freudiana do inconsciente não é possível concebermos uma interpretação que vise a completude do sentido, pois, tal como nos revela Freud, o inconsciente só se faz ouvir como a parte do discurso imune ao advento da palavra - há algo que escapa a qualquer compreensão e evidencia a inadequação entre o homem e o mundo, entre as palavras e as coisas.

Se o inconsciente apresenta-se dessa forma, então devemos nos perguntar qual seria seu lugar no texto que escrevemos. Para tal, voltamo-nos para a interpretação e para o papel de uma análise, a fim de averiguarmos se Lacan é guiado pela palavra de Freud e qual seria a delimitação de sua proposta para a interpretação, visando demarcar que lugar caberia ao analista e quais as consequências dessa concepção em sua escuta.

 

Dos caminhos da interpretação, conforme Freud

Lacan (1969/1992) declara que a interpretação analítica está na contramão do sentido comum do termo. Ela não seria um esclarecimento, mas apontaria para um enigma que diz respeito à singularidade de cada sujeito, ideia fruto do pensamento proposto por Freud em suas elaborações. Em " A direção do tratamento", Lacan (1958/1988) aponta não ser possível entender o que Freud concebe como interpretação sem nos voltarmos às linhas de " A interpretação dos sonhos" (1900/1976), uma vez que é nesse texto que Freud lança os alicerces do que chama "uma nova ciência", a psicanálise. Para Freud (1932/1976), a doutrina dos sonhos é o que mais diferencia a sua nova ciência, uma possibilidade de se fazer uma nova leitura de conhecimentos que outrora estiveram apenas ligados às crenças populares e ao misticismo.

Para Lacan (1953/1998), esse texto freudiano serve como referência que permite distinguir o lugar que ocupa um analista durante o percurso de uma análise. A seu ver, deve-se reconduzir a psicanálise à fala e à linguagem, sendo a tarefa do psicanalista mostrar que esses conceitos só adquirem sentido quando orientados numa estrutura de linguagem. Mas o que Lacan teria visto nesse texto inaugural que lhe permitiu avançar na delimitação de uma interpretação distinta de um esclarecimento do sentido, a ponto de afirmar que esse direcionamento da interpretação a afasta do princípio proposto por Freud?

Tomemos então a palavra de Freud a fim de esclarecer a proposta lacaniana quanto à interpretação. Freud (1900/1976) vê a interpretação dos sonhos como a via régia para conhecer as leis do inconsciente. O sonho não é equivalente ao inconsciente, contudo sua interpretação possibilita o advir de uma lógica que lhe é própria e que pode ser atribuída a todo falante. Essa lógica não se institui como um avesso da consciência. As leis que a regem possuem um estatuto diferenciado e agregam efeito de sentido, o qual não é apreendido de forma direta. Lacan (1958/1988) pensa esse efeito de sentido principalmente como efeito de metáfora, na medida em que no sonho as coisas não se apresentam diretamente, mas em relação de substituição.

Soler (1988, p. 76) acrescenta que, "como metáfora, o sonho faz surgir um espectro evanescente" de algo que ali se enuncia, porém imediatamente se esvai. O que o sonho produz são "nadas de sentido" (Soler, 1988, p. 77) e essa característica evanescente do sentido do sonho demarca que o que ali se mostra não é com o intuito de firmar um sentido, mas de possibilitar uma construção perante sua metáfora. Assim, a encenação do sonho consiste em uma "porta entreaberta, em uma ruptura do quadro, em uma descontinuidade do tempo e do espaço, se presta a convocar um mais além - ou o lado de cá - da realidade" (Soler, 1988, p. 80).

Freud (1932/1976) admite que os sonhos são uma comunicação feita por meios inadequados, posto que não consistem como um modo de fornecer informação, e portanto não se definem como uma comunicação social. "Na verdade, nem nós compreendemos o que o sonhador nos tenta dizer, como ele próprio igualmente o ignora" (Freud, 1932/1976, p. 19). Por isso, se o sentido de um sonho não nos é oferecido de uma maneira direta, pronta e acabada, resta-nos perguntar como ele se constitui. Essa é uma das perguntas cruciais feitas por Freud em seu texto de 1900.

Para Cosentino (1993), Freud elabora essa pergunta buscando diferenciar sua resposta do que se apresentava para o senso comum. Ele necessita mostrar que mesmo sonhos aparentemente ininteligíveis são atos psíquicos válidos que podem ser utilizados na análise, como qualquer outra comunicação. Sua preocupação em procurar esse embasamento advém de uma tentativa de ter seu trabalho reconhecido pelos meios científicos da época. O autor acrescenta que, como as teorias científicas vigentes não possibilitavam a Freud conceber uma interpretação para os sonhos, essa pergunta quanto à interpretação nem mesmo se formulava. O que Freud faz é "deslizar ao mundo dos profanos, que desde sempre se empenharam em interpretar sonhos" (Cosentino, 1993, p. 54).

Ali Freud encontra dois tipos de interpretação, uma simbólica e outra de decifração. Na interpretação simbólica o texto é pensado como um todo e procura-se substituí-lo por outro conteúdo compreensível e análogo ao original. Esse método tem o inconveniente de buscar esclarecer o sentido enigmático do sonho somente num tempo futuro, não sendo possível aplicar a interpretação simbólica ao se tratar de sonhos que são não apenas ininteligíveis, como também confusos. Portanto, a interpretação simbólica serve a atividades artísticas, mas era inoperante em parâmetros do pensamento científico, pois a ciência de seu tempo pressupunha um método que pudesse ser aplicado a todos. Daí os impasses em configurar seu trabalho como ciência e vice-versa.

Freud (1900/1976) qualifica a segunda forma de interpretação como método de decifração. Nela, o sonho é tratado como uma estrutura cifrada em que cada signo que se apresenta precisa de uma chave fixa para sua tradução. O sonho não é tomado em sua globalidade, mas em partes fragmentadas, criptografadas, perante as quais seus signos devem ser entendidos um a um. Freud chega a elaborar uma crítica a posturas rígidas quanto à transposição dos significados, por isso introduz uma modificação que tende a corrigir esse caráter puramente mecânico do método, passando a considerar não apenas o conteúdo do sonho, mas também o que diz respeito ao sonhador (Freud, 1900/1976). Nesse sentido, Cosentino (1993, p. 55) acrescenta que o fundamental para Freud, no procedimento de decifração, é que com esse método "se introduz uma certa explicação, que vai consistir em pedir associações ao sonhador, a partir de cada um dos elementos do sonho".

Freud verifica esse procedimento através de sua própria clínica. Ele percebe que, ao perguntar a um sujeito quanto a seu sonho como um todo, o que ocorre é uma obturação em sua fala. Todavia, quando se coloca diante do sujeito seu sonho fracionado, isso possibilita uma série de associações (denominadas "pensamentos de fundo") e conclui que

O método de interpretação dos sonhos que pratico já difere em um aspecto importante do popular, histórico e legendário método de interpretação por meio do simbolismo, aproximando-se do segundo método, ou método de "decifração". Como este, ele emprega a interpretação en détail e não en masse; como este, considera os sonhos desde o início, como tendo um caráter múltiplo, como sendo conglomerados de formações psíquicas (Freud, 1900/1976, p. 125).

Ainda que Freud se aproxime mais do método de decifração, ele também descarta a possibilidade de ser um método científico. Isso porque nesse método tudo depende da confiabilidade de um código previamente fixado. E que parâmetros teríamos para avaliar a verdade dessas correlações? Freud parte do princípio de que um mesmo elemento do sonho pode evocar diferentes associações, portanto não apenas o sonho é um conglomerado de formações psíquicas como cada elemento em um sonho possibilita uma multiplicidade de novos sentidos. Ele enfatiza a existência de uma fonte inesgotável de "arbitrariedade e incerteza" no sonho, uma vez que um mesmo signo possibilita inúmeros significados a diferentes pessoas. Com isso Freud percebe não ser possível estabelecer correspondência biunívoca entre a palavra e a coisa. E é esta não correlação que podemos evidenciar em sua interpretação, pois um elemento do sonho não designa a coisa a que se refere.

Para Cosentino (1993), quando Freud estabelece que um signo não equivale a um determinado significado, o que ele promove é a quebra da lei da representação. Embora não conceituado, isso é empregado em sua prática. Possivelmente, se ele assim faz, é por entender que não existiria qualquer possibilidade de se instaurar uma cadeia associativa caso a relação entre palavra e coisa fosse feita uma a uma. Portanto, nenhum elemento do sonho tem o privilégio de possuir uma chave que desvele seu sentido. Ao contrário, o sentido é uma produção que se estabelece num contexto específico.

Quando Freud (1900/1976) confere o advento do sentido ao próprio sonhador, ele desloca o acento dado ao saber de quem interpreta àquele a quem pertence o sonho e, diante disso, propõe a seus pacientes que renunciem a qualquer crítica que possam estabelecer quanto às suas associações. Elas devem ser livres, no sentido de falar tudo o que lhes vierà cabeça, e disso depende o sucesso do tratamento.

Se Freud assim coloca é com o intuito de mostrar que as associações que se constituem não são tão livres como parecem, elas são regidas pelas leis do inconsciente deduzidas a partir do trabalho do sonho, seja por seu conteúdo manifesto, seja por seu conteúdo latente: o primeiro é o texto relatado pelo paciente em sua análise e o segundo é um novo material psíquico, homólogo aos "pensamentos do sonho". Lacan (1957/1998) acrescenta que não é paradoxal o uso desse termo (pensamento) por Freud na medida em que pensamentos são todos "os elementos que estão em jogo no Inconsciente" (Freud, 1900/1976, p. 521).

Para Freud (1900/1976) o trabalho do sonho parte dos pensamentos inconscientes para o conteúdo manifesto. Desse modo, outras exigências se impõem aos analistas, a saber, a de buscar relações entre essas duas diferentes linguagens e por consequência de examinar como uma influencia a produção da outra. A seu ver a chave de um sonho, ou seja, o que é essencial na sua formação, não se apresenta no conteúdo manifesto, já que este é uma fachada que precisa ser decifrada e uma distorção necessária que se promove quando se procura transpor para uma outra linguagem.

O trabalho do sonho transcreve na forma de um enigma uma certa mensagem (Cosentino, 1993), sendo que o sonho põe em jogo uma determinada situação através da "encenação" e pelo uso de imagens. Em troca, por se tratar de uma expressão abstrata, quando é colocada em imagens perde seu poder de relação, ou seja, perde a capacidade de representar conectivos, negação ou formas que indiquem temporalidade, sendo esse o ganho da censura.

Assim, o conteúdo do sonho se aproxima de uma escrita hieroglífica (Lacan, 1957/1998). O hieróglifo define-se como um ideograma que constitui a notação de certas escritas, tal como a egípcia. Nelas se observam três tipos de signos: os signos palavra, que ao serem lidos possuem mais de um significado; os signos fonéticos, que podem ser homófonos, acarretando uma equivocidade; e os determinativos, que são escritos, mas não lidos e servem para determinar o valor dos signos-palavra no contexto.

O valor significante da imagem nada tem a ver com sua significação e parte daí a concepção freudiana de que os signos que se apresentam no texto de um sonho não valem por si mesmos (Lacan, 1957/1998). Freud nos indica que, no sem sentido dessa composição, ao se substituir as imagens por associações de palavras, um novo sentido pode se produzir.

Cosentino (1993) declara que Freud se utiliza dos hieróglifos porque nessa escrita não existem valores fixos para os signos. Essas escritas antigas são escritas não alfabéticas - que não se utilizam da fala, mas do processo de leitura - e, se o relato do sonho nos é apresentado como uma escrita hieroglífica, devemos ter em mente que sua leitura só pode ser efetuada diante da relação que os signos estabelecem entre si. Não se trata do valor que cada signo tenha em particular, mas da relação possível de se colocar ali.

Um bom exemplo dessa constituição do sentido nos é fornecido por Freud (1900/1976) ao relatar um de seus sonhos, no qual "monografia de botânica" aparece de forma destacada. Se Freud estivesse limitado a entender a imagem como se apresenta no sonho "monografia de botânica", reduzir-se-ia à descrição preestabelecida num contexto social. Contudo, a mensagem do sonho é definida pelas inúmeras associações que promove naquele que sonha e, diante da multiplicidade de novas articulações, é tomado por Freud como uma confirmação de que um mesmo elemento pode estar emaranhado de diferentes significados. Freud deriva uma infinidade de novas significações a partir não apenas da forma composta "monografia de botânica", como também de cada um de seus componentes (botânica e monografia) de forma separada (Freud, 1900/1976).

Diante da multiplicidade que caracteriza a formação do sonho, não é possível alcançar a certeza de que o sonho foi completamente interpretado. Conforme Freud (1900/1976, p. 276), "mesmo que a solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta sempre a possibilidade de que o sonho tenha outro sentido".

Essa inexatidão do sentido advém para Freud da sobredeterminação a que estão submetidos os elementos do sonho. Entretanto, Freud (1900/1976) insiste em dizer que as representações mais importantes do sonho não são as que mais se destacam no conteúdo manifesto, mas as que possibilitam irradiar uma diversidade de novas articulações para o sonhador. Esses elementos aparecem de forma bastante frequente e se distinguem pela repetição com que surgem no percurso do sonho, sendo que Freud declara que o material que "a análise traz à luz" (1900/1976, p. 295) permanece relativamente longe do que ele denomina como núcleo do sonho. Ao contrário, são como ajustes artificiais que perseguem algum fim específico, um fim inatingível.

Para Cosentino (1993) as conexões que se produzem e que Freud classifica como artificiais são uma tentativa de abordar algo inabordável. "Poder-se-ia pensar que, com o trabalho teórico posterior que Freud vai realizar, esse poder psíquico (que exterioriza o trabalho do sonho) vai ter alguma relação com o recalque primário" (Cosentino, 1993, p. 78). Ulteriormente Freud caracteriza essa força enigmática como a atração que o recalque primário exerce sobre tudo aquilo que com ele se relaciona.

Cosentino (1993, p. 73) ressalta que

Freud vai chamar, posteriormente, a este algo recalcado desde antes, o que atrai. Então, este poder psíquico, que todavia aqui Freud não conhece, vai dar lugar a esta atração, que o recalcado primordial exerce sobre tudo aquilo com o qual se pode pôr em contato.

A ideia de um recalcado primordial insinua-se no trabalho de Freud através do que ele apresenta como "umbigo do sonho" (Freud, 1900/1976, p. 482), porque Freud concebe não ser possível esclarecer todos os pontos de um sonho. Há um momento em que as palavras não seriam suficientes para compor todos os elementos presentes e, mesmo que a interpretação possibilite um sentido coerente, algo ainda poderá escapar.

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente um trecho que tem de ser deixado na obscuridade. É que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento (Freud, 1900/1976, p. 482).

Portanto, é impossível para Freud definir o sentido de um sonho via interpretação. Contudo, essa indefinição não é caracterizada como um limite a ser superado e sim como uma faceta que constitui a linguagem. Segundo Soler (1995), embora a interpretação dos sonhos viabilize a emergência do sentido, este não é seu objetivo final. O que importa numa análise são os efeitos de fala que se produzem para o sujeito a partir dela. Soler (1995, p. 8) ressalta que para Lacan "é necessário decifrar a sequência na qual os signos tomam sentido". Porém não devemos esquecer que há duas dimensões implicadas nesse processo, a dimensão do sentido e a que a ele escapa.

 

A interpretação de Freud a Lacan: o advento do sentido?

Há a dimensão da decifração, que substitui signo a signo e, após esta substituição, se gera o sentido... Deciframos até encontrar o sentido congruente, digamos, se podemos falar em congruência do sentido, e portanto, este sentido dá o limite da operação de decifração (Soler, 1995, p. 8).

Para Soler (1995) a decifração tem como ponto de parada o advento do sentido. Todavia, se chegamos a esse limite, a uma certa congruência que se estabelece, isso não configura completude de sentido porque, se pensarmos num sentido como "completo", deveríamos consequentemente interrogar quanto ao que definiria seu valor. Como seria possível medir um sentido a fim de estabelecermos se ele se constitui por completo? Para Soler (1995) essa é a questão que se coloca diante de Lacan, pois, mesmo que um sentido determine um limite na decifração, "não o impede de fazer furo" (Soler, 1995, p. 8).

Há um aspecto intrigante nessa afirmação, pois nos direciona para um caminho diferente do que estamos acostumados: como poderia um sentido fazer furo, se o concebemos como algo esclarecedor?

É que o efeito do sentido, mesmo quando ele se produz, é incompreensível. Então, quando se diz dar sentido a qualquer coisa, imaginamos sempre que isso quer dizer: torná-la compreensível, é a ideia comum que se dá ao sentido. E a ideia de Lacan é que, quando se dá sentido a qualquer coisa, isso resta incompreensível (Soler, 1995, p. 8).

Ao avaliar os Problemas cruciais da psicanálise, Lacan (1965) caracteriza o que resta incompreensível como "a face de recusa do sentido". É o que ele introduz com a ideia de nonsense, porque, embora um sentido possa se estabelecer, a mensagem decifrada permanece um enigma. E ela se constitui como um enigma porque não há acoplamento de sentido de um signo a outro. Lacan (1964/1988) enfatiza que entre o que se diz e o que é dito há sempre uma hiância. Esta hiância traz como consequência um desvio do sentido, tornando impossível prever que sentido se produzirá para um sujeito. Para Lacan, há uma espécie de "divórcio" entre o que se enuncia e o efeito que se constitui, o qual é sempre uma surpresa.

Desde Freud já havia um interesse em ressaltar tal hiância através dos furos produzidos nos discursos pela via dos esquecimentos e dos lapsos de memória, por exemplo, o que posteriormente Lacan fará ao retomar os furos do corpo como possibilidades de o sujeito encontrar alguma satisfação (Vieira, 1999). A definição de furo trazida por Lacan e evidenciada por Vieira (1999, p. 4) é a de que "o furo é o que está em torno de uma reta infinita", o que quer dizer que só se faz furo de fato porque há uma superfície limitada, mas sem fundo - de fundo infinito - e é precisamente aí que, em se tratando de linguagem, há algo do sentido que não pode ser dito ou que escapa ao ser dito e evidencia algo de um mistério, para além de apenas a satisfação.

Nesse sentido, conforme Soler (1995), o furo se verifica a cada vez que se profere uma interpretação, pois qualquer que seja (uma palavra ou um silêncio), o que se destaca é a imprevisibilidade demarcada por Lacan.

O proferimento da interpretação, eu entendo por isso simplesmente o fato de formular uma interpretação, quer se trate de uma palavra, quer se trate de um ruído, ou que se trate de uma interpretação complexa sob a forma de frase, qualquer que seja o proferimento, o que se constata entre ele e o efeito de sentido é o hiato, a surpresa do efeito (Soler, 1995, p. 9).

Perante essa imprevisibilidade o saber é posto na berlinda por Lacan (1969/1992), pois ele repudia a ideia de que seja possível se constituir uma totalidade fechada no que diz respeito à compreensão. Para Lacan (1972/1985), quando lidamos com a linguagem a cópula não se realiza. Ele esclarece que no falante a relação está fadada ao fracasso na medida em que é somente a partir daí que se pode enunciar o que vem em suplência. Por isso, nada impede a presentificação de novos elementos.

Freud (1912/1976) é pioneiro em destacar essa característica surpreendente do sentido. Ele recomenda a quem exerce a psicanálise o mesmo que propõe a seus pacientes, ou seja, que não direcione seu pensamento para qualquer ponto específico. Sua atenção dever ser "uniformemente suspensa" (Freud, 1912/1976, p. 150) perante tudo o que escuta, pois quando deliberadamente prestamos atenção ao que nos é fornecido começamos a selecionar no material apresentado alguns aspectos enquanto negligenciamos outros. Isso é exatamente o que não deveria ser feito. "Ao efetuar a seleção, segundo suas expectativas, estará arriscando a nunca descobrir nada além do que já sabe" (Freud, 1912/1976, p. 150).

Se o sentido se instaura pelo que o sujeito faz ao dito, não cabe ao analista delimitar com seu saber suas opções, visto que, como ressalta Freud (1912/1976), quando o psicanalista segue suas pressuposições o que ele faz é falsificar o que poderia vir a perceber. "Não se deve esquecer que o que se escuta são coisas cujo significado só é identificado posteriormente" (Freud, 1912/1976, p. 150).

Freud (1912/1976) conclui que também o médico deve abandonar-se à memória inconsciente. Podemos traduzir essa afirmação como uma maneira de Freud acentuar que o trabalho do médico é escutar sem se preocupar com qualquer juízo de valor.

Os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre os enfrenta com liberalidade sem quaisquer pressuposições. A conduta correta para um analista reside em oscilar, em evitar especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em análise, e em submeter o material obtido a um processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída (Freud, 1912/1976, p. 153).

Portanto, cabe ao analista surpreender-se perante o sentido que se instaura para um sujeito. Para Freud (1912/1976) não há sentimento mais perigoso em uma análise do que a ambição terapêutica, visto que ela pressupõe alcançar um efeito convincente sobre outras pessoas. O efeito de sentido não se constitui pela transmissão de saber de um sujeito a outro, é outra coisa, algo inapreensível em termos de saber.

Como então poderíamos falar acerca do sentido se este não se apreende pelo saber? Lacan (1964/1988) acredita só ser possível falar do sentido em sua relação com o significante. Eis o que, a seu ver, é essencial para manter o cerne da experiência analítica. "Ao centro desse esforço que é o meu, orientado para uma práxis, eu introduzi a noção de significante" (Lacan, 1964/1988, p. 15).

 

Os efeitos do significante

A noção de significante é apropriada por Lacan de Ferdinand de Saussure. Em seu Curso de linguística geral (1916/2006), Saussure divide o signo linguístico em duas partes. A primeira ele denomina significante, isto é, a imagem acústica de um conceito: "esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos, tal imagem é sensorial" (Saussure, 1916/2006, p. 80). A outra, chamada significado, é o conceito em si, geralmente mais abstrato. Assim, Saussure nos mostra, por exemplo, que a palavra árvore não remete linguisticamente à árvore real (o referente), mas à ideia de árvore (o significado) e a um som (o significante) que é pronunciado com a ajuda dos fonemas: á.r.v.o.r.e. O signo linguístico, desse modo, une um conceito a uma imagem acústica e não uma coisa a um nome.

Há, nessa formulação de Saussure relativa à articulação entre o signo e o significado, um deslocamento. Se pela semiologia - ciência dos sistemas de signos - conhecemos o significado de algo ao se efetivarem as aproximações entre referente externo e signo, para Saussure (1916/2006) o significado se constitui na própria composição do signo. É o que podemos denominar como a reviravolta por ele promovida no campo linguístico.

Para certas pessoas, a língua, reduzida a seu princípio essencial, é uma nomenclatura, vale dizer, uma lista de termos que correspondem a outras tantas coisas. Tal concepção é criticável em numerosos aspectos. Supõe ideias completamente feitas, preexistentes às palavras... ela não nos diz se a natureza vocal ou psíquica, pois arbor1 pode ser considerada sob um outro aspecto, por fim ela faz supor que o vínculo que une um nome a uma coisa constitui uma operação muito simples, o que está bem longe da verdade. Entretanto, esta visão simplista pode aproximar-nos da verdade, mostrando-nos que a unidade linguística é uma coisa dupla, constituída da união de dois termos (Saussure, 1916/2006, p. 79).

Saussure (1916/2006) utiliza-se de um modelo explicativo que consiste no exemplo de uma folha de papel, unidade formada por duas faces. O signo linguístico é representado graficamente pelo seguinte esquema:

Figura 1

A elipse estabelece o caráter fechado do signo, sua unidade, e as flechas representam a relação que se constitui entre significado e significante. Saussure (1916/2006) propõe que "estes dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro" (Saussure, 1916/2006, p. 80). Todavia, o laço que os une é arbitrário. Tal arbitrariedade é articulada no interior do signo e o referente externo não é considerado no campo do estudo da linguística.

Assim, a ideia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente por outra sequência. Não importa qual; como prova temas as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boef (boi) tem por significante b-o-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (ochs) do outro (Saussure, 1916/2006, p. 82).

Para Saussure (1916/2006), o princípio de arbitrariedade não seria uma inovação sua. Todavia, mesmo que esse princípio fosse reconhecido seria difícil demarcar o lugar que lhe cabia. "O princípio enunciado acima domina toda linguística; suas consequências são inúmeras. É verdade que nem todas aparecem com igual evidência" (Saussure, 1916/2006, p. 82). Desse modo, Saussure entendia ser importante demarcar a função da palavra arbitrário, pois ela não deveria trazer a ideia de significado.

Dosse (1991) acrescenta que a principal contribuição de Saussure não concerne à arbitrariedade do signo, na medida em que todos os linguistas já compartilhavam desse princípio no final do século XIX. A importância de seu trabalho deve ser compreendida na vinculação do signo à teoria do valor.

A teoria do valor é pensada por Saussure (1916/2006) quando ele estabelece a distinção entre linguística sincrônica e diacrônica. "É sincrônico tudo que se relacione com o aspecto estático de nossa ciência; diacrônico tudo que diz respeito às evoluções" (Saussure, 1916/2006, p. 96). Segundo Saussure (1916/2006), a maior parte das ciências de sua época não levava em conta esta dualidade radical, visto que nelas o fator tempo não produzia efeitos particulares. Porém no caso da linguística era necessário demarcar os valores considerados em si e aqueles considerados em função do tempo.

Saussure (1916/2006) pretende demonstrar que, embora haja alterações na língua causadas pelo tempo, os valores linguísticos só podem ser concebidos no estado momentâneo. Do mesmo modo que num jogo de xadrez, exemplo que ele considera mais ilustrativo para as relações sincrônicas e diacrônicas, uma pessoa que dele não participasse só poderia entendê-lo olhando a posição das peças que se apresentassem num determinado momento. As jogadas que ocorreram anteriormente não seriam deduzidas a partir dessa posição que ali se coloca. E, se as peças do jogo permitem essa elaboração, é porque possuem uma relação de oposição que define seu valor em um instante específico da partida.

Esse enfoque poderia nos parecer paradoxal, visto que por um lado Saussure (1916/2006) define o signo como uma unidade fechada em si mesmo: "tudo se passa entre a imagem acústica e o conceito, nos domínios da palavra considerada como um domínio fechado existente por si próprio" (Saussure, 1916/2006, p. 133) e esse mesmo signo está relacionado de igual modo a outros signos da língua. A explicação de Saussure para isso reside na concepção da língua como um resultado tão somente da presença simultânea de outros. O valor de um signo é dado, portanto, pela semelhança e dessemelhança entre eles.

Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são (Saussure, 1916/2006, p. 136).

Portanto, podemos dizer que, tal como na " Interpretação dos sonhos" freudiana (1900/1976), para Saussure (1916/2006) a noção de valor emerge como resultado da posição de um signo perante outros signos. Apesar de seu caráter unitário, a significação também depende dessa relação, ou melhor, de seu lugar no sistema linguístico.

Em "A i nstância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", Lacan (1957/1998) retoma a noção de valor demarcada por Saussure (1916/2006). Todavia critica o princípio de arbitrariedade do signo por ele exposto. Do primeiro, Lacan (1957/1998, p. 501) subtrai que "nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a uma outra significação". Deduziu disso que um significante é insuficiente para abranger a totalidade do significado, pois ele se encontra isolado deste como uma letra, como um traço desprovido de significação, embora determinante como função em um discurso.

Para Lacan (1957/1998) estaremos iludidos quanto à natureza da linguagem se não situarmos o significante em sua devida função.

E fracassaremos em sustentar sua questão enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado, ou melhor dizendo: que o significante tem que responder por sua existência a título de uma significação qualquer (Lacan, 1957/1998, p. 501).

O significante não representa o significado, embora surja como seu efeito. Lacan (1957/1998, p. 501) acrescenta que qualquer texto, mesmo "repleto de sentido", decompõe-se através da análise no que ele denomina "bagatelas insignificantes". O que se apreende ao desarticularmos as ligações entre os significantes é um vazio de sentido. "Donde se pode dizer que é na cadeia significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse momento" (Lacan, 1957/1998, p. 506).

Assim, Lacan (1957/1998) relança o esquema gráfico proposto por Saussure (1916/2006) efetuando-lhe algumas modificações. Primeiramente ele faz desaparecer as flechas e a elipse que circunda o signo, indicando o término do paralelismo entre significante e significado bem como o fim da ideia de uma unidade estrutural do signo. Outra distinção consiste na substituição das duas faces do signo por duas etapas do algoritmo o que acarreta maior independência de seus elementos, visto que eles deixam de ser o verso e o anverso de uma mesma superfície. Finalmente, promove a inversão dos termos propostos por Saussure (1916/2006) situando o significante acima do significado, o que prioriza o significante em seu deslocamento sobre a barra.

As modificações propostas por Lacan não são isentas de consequências. Na análise de Nancy e Labarthe (1991), o interesse lacaniano, no que se refere às alterações promovidas, é o de acirrar a destituição da função atribuída ao signo de representar as coisas.

Consiste isto em trabalhar o signo até destruir nele toda função representativa, isto é, a própria relação de significação. Aí está precisamente o papel da função do algoritmo. O algoritmo não é o signo. Ou melhor, o algoritmo é o signo enquanto não significa (sobre o modo da representação do significado pelo significante). Poder-se-ia, talvez, arriscar a escrever: o algoritmo é o signo (cancelado). Signo sob canceladura de preferência a signo destruído. Não funcionando. Nenhum dos conceitos da teoria do signo desaparece: significante, significado, significação ainda estão ali. Seu sistema, no entanto, é subvertido, é pervertido (Nancy, & Labarthe, 1991, p. 47).

Essa perversão do sistema aponta para a necessidade de uma outra explicação para a significação, pois se, com Saussure (1916/2006), a significação se estabelece no interior do próprio signo através de uma relação arbitrária, para Lacan seu paralelismo só nos leva a um grande mistério, posto que a discussão acerca da inserção do significante no significado resta inexplicada. Lacan (1957/1998, p. 500) reforça que "um estudo das ligações próprias do significante e da amplitude da função destas na gênese do significado" vai muito além do debate inerente à arbitrariedade do signo.

Não esqueçamos que, de partida, qualificou-se, erradamente, de arbitrária a relação do significante e do significado. É assim que se exprime, provavelmente contra seu coração, Saussure... Ora, o que se passa por arbitrário é que os efeitos de significado tem o ar de nada terem a ver com o que os causa. Só que, se eles têm o ar de nada terem a ver com o que os causa é porque a gente espera que aquilo que os causa tenha uma certa relação com o real. Falo do sério real...
Isto quer dizer que as referências, as coisas que o significante serve para aproximar, restam justamente aproximativas... O que caracteriza, no nível da distinção significante/significado, a relação do significado ao que lá está como terceiro indispensável, isto é, o referente, é propriamente que o significado rateia (Lacan, 1972/1985, p. 30-31).

O significado "rateia" com relação ao referente, mas dele não pode prescindir, pois se faz necessário passar por ele a fim de que o significado se constitua (Lacan, 1965/1985). Essa acepção já diferencia as posições de Lacan e Saussure. Todavia, é preciso enfatizarmos o que Lacan denomina como "referente", posto que sua definição resta distante da heterogeneidade de um objeto. Para Lacan (1972/1985) só conseguimos lidar com a concepção de referente no que este faz liame entre aqueles que falam: liame como discurso. "O significante como tal não está referido a nada a não ser que se refira a um discurso, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame" (Lacan, 1972/1985, p. 43). Por isso, Lacan (1972/1985) não pressupõe que o significante seja arbitrário em sua relação com o significado, ele prefere defini-lo como contingente, no sentido em que uma articulação pode ou não ser efetivada.

Portanto, dizer que a fumaça é signo do fogo não é suficiente para Lacan. É preciso que o signo se constitua por um ser que fala.

E por que não colocaria eu aquilo que me parece? A fumaça bem pode ser também o signo do fumante. E mesmo ela o é sempre, por essência. Não há fumaça senão como signo do fumante. Todos sabem que, se vocês veem uma fumaça no momento em que abordam uma ilha deserta, vocês dizem logo para si mesmos que há todas as chances que lá haja alguém que saiba fazer fogo. Até nova ordem, será um homem. O signo não é portanto signo de alguma coisa, mas de um efeito que é aquilo que se supõe, enquanto tal, de um funcionamento do significante.
Este efeito é o que Freud nos ensina, e que é o ponto de partida do discurso analítico, isto é, o sujeito (Lacan, 1972/1985, p. 68).

No desdobramento da ideia de que um signo é efeito do funcionamento significante e visando mostrar de que modo esse significante entra no significado, Lacan (1957/1998) oferece-nos um exemplo que se inicia pelo uso da imagem de duas portas idênticas que simbolizam a entrada de um banheiro. As palavras "homens" e "mulheres" estão sobre as portas e instauram entre si uma relação diferencial. É na medida em que "homens" pode ser tomado por sua relação a "mulheres" (ou vice-versa) que iremos distinguir qual o melhor lugar para satisfazer nossas necessidades. Contudo, não é só por uma relação dialética que se estabelece o sentido. Para Lacan (1965), se assim fosse, nesse exemplo só teríamos acesso à oposição entre os sexos e não à distinção entre banheiro masculino e banheiro feminino. Então, o que mais estaria em jogo no olhar de Lacan sobre a determinação do sentido?

A atribuição de um novo sentido para homens e mulheres materializa a dissensão entre significante e significado. Essa dissensão fica ainda mais evidenciada quando Lacan (1957/1998) incrementa o poder das imagens com o relato da história de duas crianças em um trem. Nessa história, o trem chega à estação. Instaladas em uma de suas cabines, essas duas crianças, irmão e irmã, avistam as construções da plataforma na qual o trem se situa. "'- Olha!', diz o irmão, 'chegamos a Mulheres!'; '- Imbecil!', responde a irmã, 'não está vendo que nós estamos em Homens?'" (Lacan, 1957/1998, p. 503).

Para Lacan (1957/1998), a partir dessas observações homens e mulheres serão lembrados como duas pátrias distintas "para as quais cada criança puxará sua brasa divergente" (Lacan, 1957/1998, p. 503). A seu ver, o caráter inédito concedido a esses significantes só vem apontar que um signo, da forma que seja composto, mantém em si a própria visão. Disso se conclui que o significante é definido primeiro como aquilo que tem efeito de significado, não podendo suprimir que há algo barrado a atravessar. Nessa tentativa de ultrapassamento um novo sentido pode se constituir.

Mas em que consiste essa barra, resistente à significação, interposta a significante e significado? Segundo Lacan (1972/1985), a barra se "reserva" a significar a negação. Todavia, a negação não é fácil de ser explicada, porque existe "uma grande variedade de negações" (Lacan, 1972/1985, p. 48) que são impossíveis de serem agregadas por um só conceito. De qualquer forma, a barra não é mesmo para ser entendida. Ela aparece como algo da escrita e que deve ser lido, pois se a barra não existisse nada poderia ser explicado. Não teríamos como pressupor a injeção significante no significado.

A barra não é como se diz a simples existência do obstáculo entificado, ela é desde o início, ponto de interrogação sobre o circuito de retorno. Mas ela não é somente isso, ela é o outro efeito do significante, em que o significante não faz senão que representar o sujeito. E o sujeito, desde sempre, eu o encarnei naquilo que chamei o sentido onde ele se esvai. Como sujeito, no nível da barra, produz-se o efeito de sentido (Lacan, 1965, p. 17).

Desse modo, a barra deve ser concebida como o que aponta para a incompletude. Ayres (2005) destaca o valor de resistência da barra a significações dadas e estabelecidas, por isso no algoritmo de Lacan significante e significado estão impossibilitados de permitir qualquer suposição de relação e, consequentemente, determinação de um sentido. O papel da barra, entretanto, não é intransponível, podendo-se fazer um point de capiton, ou seja, uma organização em cadeia que circunscreve a significação pela via da articulação dos significantes, muito mais que pela relação do significante com o significado.

Assim, a barra é o indício de que alguma coisa não se fecha. No exemplo recontado por Lacan (1957/1998), podemos dizer que, embora as duas crianças concordem em definir "homens" e "mulheres" como pátrias, o sentido que isso reserva para cada uma delas não é o mesmo, o que viabiliza uma distinta posição de uma e outra no âmago de sua discussão. Segue-se que o efeito de sentido não é, para Lacan (1965), a possibilidade de um significante dar conta de toda diversidade ou da infinitude de significações, mas do que se passa onde ele nos revela a barreira de nonsense. Lacan (1965) enfatiza que essa barreira não é sem significação. Contudo, mesmo que ela signifique, mesmo que esteja inserida numa cadeia significante, devemos nos perguntar que sentido ela possibilita.

Essa pergunta é correlata a outro efeito do significante, distinto do significado, para o qual nos alerta Lacan (1965), pois se, para determinarmos um significado, precisamos de um referente (não esquecendo que o referente é articulação de linguagem), o mesmo não acontece com o sentido. O sentido emerge quando estabelecido por um sujeito como a face que não cola ao significado.

Dizer isso poderia nos parecer paradoxal, posto que Lacan (1965) define o sujeito como o que desaparece no sentido, mas se ele assim faz é por pensar que é pelo não sentido que o sentido se instaura. Essa conclusão é fruto da relação do sujeito com o significante, pois o significante é definido como o que representa o sujeito para um outro significante, sendo em sua queda ou no que não se apreende por sua materialidade que podemos supor um lugar para o sujeito. Ele está sempre em um lugar indeterminado, porque a característica do sujeito é estar sob o significante que desenvolve sua história e assim lhe possibilita ocupar diferentes lugares de acordo com o significante ao qual se aliena. A esse sujeito, não assimilável a um eu, Lacan chama sujeito do inconsciente.

Podemos trazer como exemplos dessa face que não se elabora dois sonhos bastante conhecidos, interpretados por Freud e revisitados por Lacan. Eles nos permitem vislumbrar a presença desse ponto opaco que requer uma leitura para além do eu. Lacan (1954-1955/1985) adverte que não se trata de realizar uma nova interpretação da interpretação freudiana, mas de estar atento ao relato do sonho em sua integralidade, ou seja, é imprescindível que tomemos o texto de um sonho como um escrito sagrado, respeitando aquilo que nos é dirigido por aquele a quem escutamos. Essa sempre foi a postura e o conselho de Freud.

Sob essa perspectiva, Lacan (1954-1955/1985) retoma o segundo sonho de Dora. Nesse caso, o elemento obscuro e enigmático escapa a Freud quando ele deixa esvair-se a pergunta central de sua paciente sobre o que quer uma mulher. Tal ponto fica soterrado sob a sustentação de Freud de sua posição de intérprete do pai em contraposição à tentativa de elaboração da questão inerente à filha. O próprio Freud ( 1905[1901]/1976, p. 116), em uma nota de rodapé, alerta quanto ao seu mal posicionamento e como ele o impede de ouvir a questão suscitada por Dora para além de qualquer compreensão do eu do sonhador e aponta que "aquilo que no sujeito é do sujeito e não é do sujeito, isso é o inconsciente" (Lacan, (1954-1955/1985, p. 203).

No sonho, Dora encontra uma carta da mãe que lhe comunica a respeito da morte do pai com as seguintes palavras: "Agora ele está morto e, se você quiser, pode voltar". Ela está perdida, caminha a esmo por uma cidade estranha e não encontra a estação. Embora tenha perguntado por ela diversas vezes, é tomada por uma angústia de imobilidade. Chega ao apartamento e todos já estavam no cemitério. Em seguida, sobe ao quarto e vai ler um livro. Dora não segue em direção ao pai. Detém-se diante de um escrito e, em suas associações, descreve através de suas lembranças como permanecera absorta diante da imagem da Madona Sistina. Ao ser indagada por Freud ( 1905[1901]/1976) sobre o que a fascinara tanto no quadro, as palavras lhe escapam. Um vazio lhe vem à memória. Enfim, lhe responde: "a Madona!" (Freud, 1901-1905/1976). Perante tal fascinação, o que Dora de fato quer?

Do sonho, Lacan (1954-1955/1985) nos instiga a lê-lo a partir de seus furos e ressalta o quanto Dora está capturada pelo mistério da feminilidade. Ali o feminino se entreabre para um ponto de não reconhecimento, de suspensão radical do sentido, e aponta para a questão do elemento não interpretável que assim se apresenta: um nó no dizível, o umbigo que nenhum significante é capaz de esclarecer e o que faz faltarem as palavras.

Como um segundo exemplo, lançamos mão de outro sonho que também concerne à questão da busca da significação enquanto tal e de seu ponto de limite. Ele se corporifica através do sonho paradigmático apresentado por Freud (1900/1976) na "Interpretação dos sonhos". O sonho é de um pai que vela seu filho morto e que ouve perguntar: "Pai, não vês que estou queimando?". O sonho, estruturado pelo desejo, faz inflamar o encontro com o real inassimilável: o filho está morto!

De tal forma na elaboração do sonho o inconsciente persiste interpretando, ressoando de palavra em palavra perante uma cadeia de associações e aponta para a produção de sentido em jogo no funcionamento psíquico do sonhar e do despertar.

Todavia, o aspecto traumático do sonho expõe a função de descontinuidade. Tal descontinuidade cinge o outro lado da interpretação dos sonhos, o do vetor que vai contra o sentido. Não é à toa que a interpretação em uma análise visa produzir um corte na rede de significantes que nos determina e introduz um ponto de ruptura no devaneio da vida cotidiana.

A angústia do despertar interrompe o sonho para que continuemos a dormir na vida desperta, depois de um breve encontro com o real, ao qual nenhum significante é capaz de se sobrepor. E assim prosseguimos passo a passo, de palavra em palavra. É aí que se elabora, através de um desfiladeiro de significantes, mas não sem perder a respiração entre cada advento semântico. Conforme Lacan, (1964/1988, p. 57) "a realidade está lá, em souffrance, lá esperando".

Quanto ao sonho da criança queimando, se para Freud esse pai deseja prolongar a vida de seu filho, para Lacan o pai é despertado pelo fogo incandescente que ofusca a impossibilidade de ver a morte. Nesse percurso, o sonho se produz diante do encontro com o real, deste que sempre nos escapa. O inconsciente como interpretação, cifrando e decifrando, envelopa um furo cingindo-o para o sonhador. No sonho da criança queimando, o torpor do simbólico é despertado pelo brilhar do incêndio suscitado no confronto com o impossível.

De acordo com Lacan (1954-1955/1985), o sonho assume a qualidade de um acontecimento através de um encontro no qual o ser falante acumula sentido. Dessa forma, interpretar um sonho pode apenas resvalar na visada do deciframento, estimulando a produção de sentido ao redor dessa erupção enigmática, ou, por outro viés, a interpretação de um analista pode direcionar o sonho de volta à sua função delimitadora do furo que nos é inerente.

 

Considerações finais

Com Freud, Lacan e outros psicanalistas de nosso tempo podemos apreender que o discurso analítico vem para evidenciar que o sentido é pura aparência, pois não faz senão apontar para a direção onde fracassa. É justamente nesse fracasso do significante que o sujeito pode advir. Lacan considera que é essa a grande inovação freudiana, dizer que há um saber que não se sabe e que dele só temos a certeza perante o que falha, pois nessa falha algo de não-realizado acontece.

Trata-se de um tropeço, de um desfalecimento da palavra. É ali, segundo Lacan (1964/1988), que Freud vai buscar o inconsciente, o grande achado da teoria psicanalítica freudiana. Esse achado implica a dimensão da perda, estrutural para o sujeito, pois uma perda que o constitui.

Desse modo, o sujeito se situa sempre na descontinuidade, seja no sonho ou num ato falho, e "é aí que Saussure espera por Freud", como nos diria Lacan (1972/1985, p. 129). Enquanto Saussure busca entender a intenção dos versos de uma poesia, Freud já a evidenciou no nonsense dos sonhos.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 06/06/2019
Aprovado para publicação em: 16/09/2020

Endereço para correspondência
Simone Ravizzini
E-mail: simoneravizzini@gmail.com
Talita Baldin
E-mail: talitah_0507@yahoo.com.br

 

 

*Psicanalista. Mestre e doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora e professora do curso de Pós-graduação em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade do Unilasalle, em Niterói-RJ. Membro do coletivo Entrelinhas da Psicanálise.
**Atriz e psicanalista. Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Docente de graduação e pós-graduação na Universidade Salgado de Oliveira e Faculdade Maria Thereza, em Niterói - RJ, e membro do coletivo Entrelinhas da Psicanálise. É bolsista CAPES de doutorado.
1Arbor é a forma em latim da palavra árvore.

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