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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Uma baliza de método: as relações entre literatura e psicanálise

 

A beacon of method: the relationship between literature and psychoanalysis

 

Un faro de método: la relación entre literatura y psicoanálisis

 

 

Cristina Moreira MarcosI*; Silvane CarozziI**

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre a literatura e a psicanálise frequentemente é entendida dentro de um modelo mecanicista da "aplicação" dos conceitos psicanalíticos à obra literária. Tal prática tem sido objeto de pertinentes críticas, cujo alvo seria revelar o caráter reducionista desse procedimento no que diz respeito à literatura e também à psicanálise. O artigo discute a relação entre a literatura e a psicanálise indicando que a leitura que nos interessa não se alinha à aplicação dos conceitos psicanalíticos à obra literária. Parte-se da ideia de que "a verdade se revela numa estrutura poética" para localizar a relação dialógica entre a literatura e a psicanálise, deslocando a ideia de "aplicação" para a de "implicação" e desta para uma "prática da letra", através da qual seja possível executar sua potência. Encontra-se em Lacan a chave de leitura que orienta a relação da psicanálise com a literatura: "isso não é um madrigal, mas uma baliza de mé todo".

Palavras-chave: Psicanálise, literatura, método, interpretação.


ABSTRACT

The relationship between literature and psychoanalysis is often understood within a mechanistic model of the "application" of psychoanalytic concepts to literary work. This practice has been the object of pertinent criticism, whose aim would be to reveal the reductionist character of this procedure with regard to literature and also to psychoanalysis. The article discusses the relation between literature and psychoanalysis, indicating that the reading that interests us is not aligned in the application of psychoanalytic concepts to the literary work. It starts from the idea that "truth is revealed in a poetic structure" to locate the dialogical relationship between literature and psychoanalysis, shifting the idea of "application" to that of "implication" and from it to a "practice of the letter", where it is possible to execute its power. We find in Lacan the key of reading that guides the relation of psychoanalysis to literature: "this is not a madrigal, but a goal of method".

Keywords: Psychoanalysis, literatura, method, interpretation.


RESUMEN

La relación entre la literatura y el psicoanálisis a menudo se entiende dentro de un modelo mecanicista de la aplicación de los conceptos psicoanalíticos a la obra literaria. Tal práctica ha sido objeto de pertinentes críticas, cuyo objetivo sería revelar el carácter reduccionista de ese procedimiento en lo que se refiere a la literatura y también al psicoanálisis. El artículo discute la relación entre literatura y psicoanálisis indicando que la lectura que nos interesa no se alinea en la aplicación de los conceptos psicoanalíticos a la obra literaria. Se parte de la idea de que "la verdad se revela en una estructura poética" para localizar la relación dialógica entre la literatura y el psicoanálisis, desplazando la idea de "aplicación" a la de "implicación" y de ésta a una "práctica de la letra", donde sea posible ejecutar su potencia. Encontramos en Lacan la clave de lectura que orienta la relación del psicoanálisis con la literatura: "eso no es un madrigal, sino una baliza de método".

Palabras clave: Psicoanálisis, literatura, método, interpretación.


 

 

Introdução

Não raras vezes, a relação entre a literatura e a psicanálise é entendida dentro de um modelo mecanicista da "aplicação" dos conceitos psicanalíticos à obra literária. Tal prática, ou tal leitura, tão propagada no meio psicanalítico quanto nos estudos literários, tem sido objeto de pertinentes críticas, cujo alvo seria revelar o caráter reducionista desse procedimento no que diz respeito à literatura e também à psicanálise. Surge daí a necessidade de uma discussão da relação entre a literatura e a psicanálise indicando que a leitura que nos interessa não se alinha à aplicação dos conceitos psicanalíticos à obra literária, pois entendemos que esse procedimento empobrece os dois campos de saber.

 

Desenvolvimento

Em "Juventude de Gide ou a letra e o desejo" (Lacan, 1958/1998), Lacan afasta a ideia de que o livro de Jean Delay sobre Gide possa ser considerado um exemplo de psicanálise aplicada, já que o próprio autor não reconhece essa possibilidade, visto que a psicanálise, segundo Delay, só se aplicaria no/como tratamento.

A psicanálise sóse aplica, em sentido próprio, como tratamento, e portanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora desse caso, só pode tratar-se de mé todo psicanal ítico, aquele que procede à decifração dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado (Lacan, 1958/1998, p. 758).

Então, fora do tratamento, trata-se de um uso do mé todo psicanalítico de decifração, que pressupõe a supremacia do significante/letra/carta (lettre) em relação ao significado, ou seja, a leitura de um material literário que utiliza de forma adequada o mé todo de investigação psicanalítica. Nesse momento (1958) de seu ensino, Lacan ainda não havia formulado a noção de letra tal qual aparece em seu texto "Lituraterra" (1965/2003): a letra como litoral entre o real e o simbólico.

Sem dúvida, os psicanalistas encontrarão nela [na narrativa de Delay], mais uma vez, a oportunidade de se autorizarem a partir da importância de sua doutrina. Melhor fariam preocupando-se com a constatação de que nenhum livro publicado a título de psicanálise aplicada é prefer ível a esse, pela pureza do método e pelo equilíbrio de seus resultados (Lacan, 1958/1998, p. 759).

Ao falar do rigor e da honestidade com a qual Jean Delay observa o princípio de adequação ao modo como um material literário deve ser lido, Lacan conclui que o biógrafo "encontra na ordenação de sua própria narrativa a pr ópria estrutura do sujeito que a psicanálise designa" (Lacan, 1958/1998, p. 758).

Lacan traz como exemplo Proust para mostrar que dificilmente se pode separar a obra da vida do autor. "A obra do próprio Proust não permite contestar que o poeta encontra em sua vida o material de sua mensagem. Mas, justamente, a operação que essa mensagem constitui reduz esses dados de sua vida a seu emprego como material" (Lacan, 1958/1998, p. 752). Trata-se de um material bruto, pois o sentido da obra ou da mensagem pode conter todas as falsificações da experiência, que vez por outra incluem a própria carne do escritor.

Fazendo alusão à autobiografia de Johann Wolfgang Von Goethe1, Lacan grifa as palavras alemãs Dichtung e Wahrheit, dizendo que entre elas há pouca oposição, "em sua nudez, que o próprio fato da operação poética deve deter-nos, antes, neste traço que se esquece em toda verdade: que ela se revela numa estrutura de ficção" (Lacan, 1958/1998, p. 752).

Cabe destacar que a palavra alemãDichtung, em português, pode significar tanto "ficção" como "poesia". Isso pode também nos indicar que "a verdade se revela numa estrutura de poética". Podemos localizar, nesse ponto de "verdade", a relação dialógica entre a literatura e a psicanálise, ou, se quisermos, entre vida e obra. Podemos localizá-lo, assim, fora do modelo mecanicista da "aplicação" e, ainda, fora de uma prática interpretativa e/ou hermenêutica, deslocando a ideia de "aplicação" para a de "implicação" e desta para uma "prática da letra", através da qual seja possível executar sua potência.

Esse deslocamento da ideia de "aplicação" para a "prática da letra" nos faz evocar uma passagem de Lacan em "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein" (Lacan, 1965b/2003, p. 200) que, arrebatado, ele pr óprio chegou a interpelar pessoalmente a escritora, indagando sobre a origem da personagem Lol, que muito o instigara porque expunha, em seu funcionamento, aquilo que havia trabalhado no Seminário, livro 11, a saber, "a esquize do olho e do olhar". Foi precisamente isso que Lacan, muito próximo de Freud, reconheceu em O deslumbramento (Duras, 1986): "Marguerite Duras revela saber sem mim aquilo que ensino" (Lacan, 1965b/2003, p. 200).

Mais adiante, ele acrescenta que a "única vantagem que um psicanalista tem o direito de tirar de sua posição" (Lacan, 1965b/2003, p. 200) é a de se lembrar, com Freud, "que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho" (Lacan, 1965b/2003, p. 200). Essa perspectiva do saber do poeta, que precede o saber do analista, funda uma possibilidade de leitura, qual seja, há um ensino clínico a extrair de todos os trabalhos de todos os artistas, pois "a prática da letra converge com o uso do inconsciente" (Lacan, 1965b/2003, p. 200). Nesse sentido, Lacan nos dá uma chave de leitura que pode nos orientar na relação da psicanálise com a literatura: "isso não é um madrigal, mas uma baliza de mé todo" (Lacan, 1965b/2003, p. 200).

Segundo o Dicionário Houaiss, em sua acepção literária, "madrigal" significa uma composição poética concisa, que exprime um pensamento fino, terno ou galante e que, em geral, se destina a ser musicada (Houaiss, 2001, p. 1808-1809). Por extensão, essa palavra pode ainda significar uma fala marcada pela galanteria afetada, um cumprimento lisonjeiro, um galanteio. Etimologicamente, madrigale é de origem controversa, no entanto teve um sentido de "composição simples e natural", que o ligaria ao latim matricalis, "pertencente à matriz ou mãe, jovem", também ao italiano materiale, na acepção de tosco, simples (do latim materialis, relativo à matéria concreta, em oposição ao espiritual). Embora não se trate de nenhum madrigal nesse momento, esse tipo de composição já marca a direção que há de nos interessar: a do canto, a da matriz - gênese, origem, maternalidade- e a da materialidade. Por ora, o que nos interessa é traçar uma "baliza de método", uma estaca que sinalize uma passagem do caminho a ser percorrido, lembrando que, etimologicamente, método remete a caminho.

Lacan soube ler, no texto literário, o jogo entre linguagem e morte. É o próprio narrador de Le ravissement... que dá a pista: escrever a história de Lol não é erguer montanhas ou edificar obstáculos, acidentes, mas sim "aplanar o terreno, escavá-lo, abrir sepulturas onde Lol se finge de morta" (Duras, 1986, p. 27). Não basta, então, dizer que se trata de um saber inconsciente, visto que aí se acrescenta também um outro saber: um saber escrever. Cabe ao analista extrair desse "saber-escrever" tudo o que sua ciência lhe permite, ou seja, extrair do saber textual aquilo que pode fazer avançar a teoria.

Se Freud ocupou-se em delinear o inquietante (in)familiar do conto de Hoffman, Lacan ocupou-se do funcionamento da carta/lettre no conto "A carta roubada", de Edgar Allan Poe. Cabe destacar que tal conto (extraído do campo do sentido) é lido pelo psicanalista como um conto estrutural, por meio do qual ele põe, precisamente (no lugar do vazio, da Coisa), a carta/letra/lettre. Vol de la lettre é a tradução para o francês do título do conto. De acordo com a nota do editor, Vol de la lettre pode também ser traduzido por "voo da letra". Além disso, a expressão francesa le vol de la boucle, em virtude dos termos vol (voo, roubo) e boucle (cacho, mecha, fechadura, fecho, volta, circuito, fivela, argola), abre-se num leque polissêmico, com o qual Lacan joga ao longo do texto.

Em "O seminário sobre 'A carta roubada'" (1957a/1998), Lacan constrói uma primeira contraposição entre lettre e significante, ao levar em consideração que, no conto, os personagens se veem mobilizados em torno de uma carta/lettre, que se sustenta sem qualquer referência ao seu conteúdo, portanto, ao sentido ou à mensagem. Isso não a impede de produzir efeitos naqueles que, um a um, são depositários dela. Ao discutir a questão do significante, Lacan aponta outra vertente da carta enquanto letra: a sua materialidade.

A letter, a litter, uma carta, uma letra, um lixo. Fizeram-se trocadilhos, no cenáculo de Joyce, com a homofonia dessas duas palavras em inglês. A espécie de dejeto que os policiais manipulam nesse momento tampouco lhes revela sua outra natureza por estar apenas meio rasgada (Lacan, 1957a/1998, p. 28).

Da homofonia das duas palavras em inglês, letter e litter, Lacan, leitor de James Joyce, destaca outra natureza da letra: uma espé cie de dejeto pass ível de ser manuseado, rasgado, dobrado, rasurado. Trata-se de uma dupla dimensão: al ém ou aquém da função de transmitir uma mensagem, a letterporta um destino, que concerne à sua materialidade. A litteré, para Lacan, algo inerente a uma carta (ou a uma letra). Essa concepção residual (de gozo) justifica a evocação inicial da expressão joyciana "a letter, a litter". É preciso perceber, nessa expressão, os contornos da articulação entre um elemento simbólico, a letter, e um elemento residual (o gozo), um lixo, a litter. Vemos, então, surgir aqui a letter, que passa da função mensageira (da ordem da comunicação) para a função de letra, fazendo surgir sua outra natureza - a de objeto.

Concedendo ao "O seminário sobre 'A carta roubada'" o privilégio de abrir a coletânea dos Escritos, "a despeito de sua diacronia" (Lacan, 1998, p. 10), Lacan dá ao leitor a tarefa de devolver a carta/letra em questão, sua destinação. Da c é lebre frase de Buffon "O estilo é o homem", ele propõe aderir a essa fórmula, mas com a condição de estendê-la: "O estilo é o homem" [...]: o homem a quem nos endereçamos?" (Lacan, 1957b/1998, p. 9). Assim ampliado, o adágio satisfaria ao princípio por ele promovido, segundo o qual, na linguagem, nossa mensagem nos vem do Outro. Melhor dizendo, o estilo é o Outro: o Outro a quem eu me endereço como lugar e é também o Outro de que recebo minha própria mensagem de forma invertida. O estilo mostra que este sempre tem um endereçamento, que, todavia, não é um endereçamento ao grande Outro, mas

[...] é o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber (Lacan, 1957a/1998, p. 11).

Lá onde Buffon situa o homem, Lacan situa o objeto a, operando uma virada, do estilo vinculado ao Outro do inconsciente, para o estilo vinculado ao objeto a - o estatuto da letra, aqui, ganha, portanto, outra dimensão. Ou, para dizê-lo em clave lacaniana, ganha outro lugar na "diz-mansão" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 146) (dit-mension), morada do dito. Se é poss ível remeter o estilo ao Outro da linguagem, isso se deve à articulação entre o gozo e o significante. Em O seminário 20, Lacan brinca com a palavra dimensão, pronunciando dit-mension, explorando assim a homofonia com mention (nomear, citar, assinalar) e mansion (do latim: mansio, que significa morada). Portanto, escutamos aí a morada do dito, a morada da palavra.

Lacan aproxima seu estilo de escrever ao de Góngora, situando-se como um autor em relação ao estilo de um outro autor. Trata-se de Don Luis de Góngora y Argote, o Pr íncipe das Trevas do barroco espanhol, o responsável pelo estilo "culto", sinônimo de rebuscamento formal e mau gosto, que, por dois séculos, recebeu o menosprezo dos estudiosos da literatura. Seu estilo foi reabilitado pela poesia moderna como um efeito de deslumbramento, de ofuscação, provocado por uma radiação estética de hiperluminosidade. Os simbolistas franceses o compararam a Mallarmé, contribuindo para o seu renascimento no gosto moderno (Campos, 1995, p. 180). O "estilo é efetivamente tributário das leis do inconsciente" (Lacan, 1996/1998 /1966, p. 469), diz ele, ao aceitar o qualificativo de "Góngora da psicanálise":

não há forma de estilo, por mais elaborado que seja, em que o inconsciente não abunde, sem excetuar as eruditas, as concettistas e as preciosas, que ele [Quintiliano] despreza tão pouco quanto o faz o autor destas linhas, o Góngora da Psicanálise, segundo se diz, para servi-los (Lacan, 1956/1998, p. 469).

Haroldo de Campos propõe chamar Lacan de "afreudisíaco" quando este, "por uma radicalização do discurso analítico", retorna a Freud, ao "elevar até a extrema potência de linguagem aquilo que, em Freud, era, sobretudo, um dispositivo de leitura analítica" (Campos, 1995, p. 182).

Desempenhamos um papel de registro, ao assumir a função, fundamental em toda troca simbólica, de recolher aquilo a que do kamo, o homem em sua autenticidade, evoca a fala que dura. Testemunha que responde pela sinceridade do sujeito, depositário do processo-verbal de seu discurso, referência de sua exatidão, garante de sua integridade, guardião de seu testamento, tabelião de seus codicilos, o analista participa do escriba. Mas continua mestre e senhor da verdade da qual esse discurso é o progresso. É ele, antes de mais nada, que pontua, como dissemos, sua dialética. E nisso, ele é apreendido como juiz do mérito desse discurso (Lacan, 1953/1998, p. 314).

Esse quase escriba, esse stylo, que é também "mestre da verdade" - o analista -, pelo menos a partir de Lacan, reclama ostensivamente um estilo. Um ensino digno de Freud "só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos transmitir àqueles que nos seguem, ela se chama: um estilo" (Lacan, 1957b/1998, p. 460). Transmissão da verdade, que provém do real.

O estilo, definido por Lacan, situa-se, de partida, fora do estatuto literário: formação, revolução da cultura, ou antes, o estilo é o correlato necess ário daquilo que, em Lacan, se chama letra, "formação revolucionária no plano da linguagem, é o que, no pensamento de Lacan, torna possível um ultrapassar da literatura em proveito da literalidade: poder da letra, instância da letra no Inconsciente [...] gênese de uma outra racionalidade" (Campos, 1995, p. 177).

Podemos extrair do texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (1957c/1998) o uso da literalidade como dispositivo de leitura: basta "escutar a poesia [...] para que nela se faça ouvir uma polifonia e para que todo o discurso revele alinhar-se nas diversas pautas de uma partitura [...] cujo concerto rege o gesto eslavo primitivo e a mais refinada poesia chinesa" (Lacan, 1957c/1998, p. 506-507).

Em "Lituraterra", Lacan procura circunscrever um pouco mais o estatuto da letra ao aproximá-la da raiz latina litura, no sentido tanto de rasura quanto de cobertura: "Rasura de traço algum que seja anterior, é isso que o litoral faz terra. Litura pura é o literal. Produzi-la é reproduzir essa metade ímpar com que o sujeito subsiste. Esta é a façanha da caligrafia" (Lacan, 1965a/2003, p. 21).

Imagem oximoresca essa produzida por Lacan, a "rasura de traço algum", na medida em que porta um falso paradoxo - falso porque a lógica da psicanálise lhe permite formular assim. A letra deveria ser pensada no nível da rasura, contudo uma rasura especial, pois "rasura de nenhum traço que seja anterior", dando origem, assim, a uma terra de lituras.

Ao indicar que a letra é rasura de traço algum que a anteceda, Lacan conjuga a tentativa de encontrar a palavra que mais se aproxime daquilo que ele busca - a palavra mais próxima da "coisa". Ou seja, trata-se da ausência de um traço fundador, primeiro, por meio do qual o sujeito sentir-se-ia plenamente identificado ou designado. O exercício de aproximação implicado na rasura leva, inevitavelmente, aos limites da linguagem e - por que não dizer? - ao limite do próprio simbólico (M andil, 2003, p. 50).

Mais uma vez, vemos a psicanálise se encontrar com a literatura no limite, na aporia. Não que a literatura seja um recurso de saber, já que também vive na miséria e, portanto, não pode vir a obturar a hiância. Mas, talvez, ela porte a astúcia de saber fazer com isso, o que nos remete ao encontro de Poros e Pênia a engendrar o amor, tal qual narrado noBanquete de Platão e elaborado por Lacan.

Poros, o autor cuja tradução tenho à minha frente, simplesmente por estar diante do texto, o traduz, não sem pertinência, por Expediente. Se isso significa Recurso, certamente é uma tradução válida. Astúcia também, já que Poros é filho de Metis, que é mais a invenção que a sabedoria. Diante dele, temos a personagem feminina que vai ser a mãe do amor, Pênia, a saber, Pobreza, ou mesmo Miséria. Ela é caracterizada no texto como aporia, a saber, sem recursos. É isso o que ela sabe sobre si mesma: recursos, não os tem. O termo aporia, vocês o reconhecem, aquele que nos serve com referência ao processo filosófico. É um impasse, aquilo frente a que entregamos os pontos, ficamos sem recursos. Eis, portanto, a Aporia fêmea diante do Poros, o Expediente, o que parece bastante esclarecedor (Lacan, 1962-1963/1992, p. 125).

Voltando a "Lituraterra", Lacan se detém sobre a imagem do "litoral", definindo-a como algo distinto da "fronteira": se a fronteira é uma marca simbólica entre dois territórios homogêneos, o litoral é uma marca real (no sentido, por exemplo, de uma escrita das águas na terra) entre dois territórios de natureza heterogênea. Portanto, no litoral, o que está em jogo é o encontro entre dois mundos heterogêneos, constituindo-se em "um campo inteiro que serve de fronteira para o outro, por eles serem estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos" (Lacan, 1965a/2003, p. 18).

Assim, considerando que o significante deriva apenas da instância simbólica, a letra vincula Real, Simb ólico e Imaginário, cuja heterogeneidade situa-se no pé: no p é da letra. Separando - mas ao mesmo tempo conjugando - mar e terra, a imagem do litoral fornece a figuração necessária para uma articulação entre elementos heterogêneos, "permitindo ao mesmo tempo tornar presente a ausência de uma medida comum entre, por exemplo, o terreno do sólido e a fluidez do líquido" (Mandil, 2003, p. 48).

A borda do furo no saber, não é isso que ela desenha? E como é que a psicanálise, se justamente o que a letra diz por sua boca "ao pé da letra" não lhe conveio desconhecer, como poderia a psicanálise negar que ele existe, se esse furo, posto que, para preenchê-lo, ela recorre ao invocar nele o gozo? (Lacan, 1965/2003, p. 18)

O texto de Lacan faz referência a um furo, figura que indica a impossibilidade de passar de um campo a outro sem descontinuidade. Já não se está mais noâmbito de uma literatura que se expressa e produz significados, ainda na lógica do significante, mas sim de uma lituraterra no domínio da letra, da literalidade, em que a palavra se torna coisa e barra a interpretação pela via do sentido. "Não se pergunta mais "o quê?" e, sim, "como?". Certamente, isso só se encontra em um texto cujo funcionamento dá a ver a erosão do significado. O que se pode adiantar é que a erosão coincide com o fato de que "quem fala", em tais textos, ocupa o lugar do objeto" (Trocoli, & Aires, 2012, p. 12).

Assim, encontramos, em Lacan, outro modo de relacionar literatura e psicanálise. Leitor de Mallarmé, James Joyce e Marguerite Duras, Lacan forjou um estilo, no qual literatura e psicanálise estão em relação de heterogeneidade e de disjunção (Trocoli, &, 2012, p. 11). A filosofia da composição de Poe, que precede Mallarm é, vai ainda mais longe: compõe para revelar o vazio das palavras e da linguagem.

Para Mallarm é, as palavras de um poema não desempenham o mesmo papel e não mantêm as mesmas relações com a realidade, como usualmente se observa na experiência corriqueira da linguagem. "Ao sondar o verso, o poeta entra nesse tempo de desamparo que é a ausência dos deuses. [...] Quem sonda o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses ausentes, vive na intimidade dessa ausência, torna-se responsável dela" (Blanchot, 1987, p. 31). Para ele, toda experiência linguageira dispõe de dois vetores constitutivos que orientam a linguagem segundo direções muito distintas: a linguagem bruta e a essencial.

Na linguagem bruta, a palavra comum é a moeda de troca: comunica, representa, conta, faz referência. Segundo Blanchot (1987, p. 32), "narrar, ensinar, até descrever dá-nos as coisas na própria presença delas, representa-as" e, para isso, ritmo e sonoridade ficam esquecidos. "A linguagem comum chama o gato de gato como se o gato vivo e o seu nome fossem idênticos, como se o fato de nomear não consistisse em reter dele somente a ausência, o que ela não é" (Blanchot, 1997, p. 313). A linguagem comum certamente tem razão, é o preço que pagamos pela paz.

Nesse sentido, a linguagem bruta "tem nela o momento que a dissimula; ela tem em si mesma, por esse poder de dissimulação, a potência pela qual a mediação [...] parece ter a espontaneidade, o frescor, a inocência da origem" (Blanchot, 1987, p. 34). Através do poder de dissimulação que a caracteriza, o embrutecimento da linguagem transforma o estrangeiro em familiar, o insólito em habitual, de modo que nos aparece, não mais como terrível, mas como felicidade tranquilizadora das harmonias naturais ou familiaridade do lugar natal.

Na linguagem essencial, a função expressiva se apaga e o que se dá a ver e escutar é a materialidade da palavra. Depois de lamentar que as palavras "não sejam 'materialmente a verdade', que jour (dia), por seu timbre, seja sombrio, e nuit (noite) brilhante, Mallarmé encontra nesse defeito das línguas o que justifica a poesia" (Blanchot, 1987, p. 33). No verso "as palavras voltam a ser 'elementos', e a palavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a noite".

Para Blanchot, assim como para Mallarmé, a palavra só tem sentido se nos livra do objeto que nomeia: "ela deve nos poupar de sua presença" (Blanchot, 1997, p. 313). De modo que a experiência essencial tem por função nos libertar daquilo que "é". E o que "é" é tudo, mas é, primeiro, a presença das coisas "sólidas e preponderantes", ou seja, uma realidade perfeitamente determinada e objetiva.

Essa libertação se realiza graças à possibilidade que o essencial tem de criar um vácuo ao nosso redor: de introduzir uma distância entre n ós e as coisas. A criação desse vazio corresponde exatamente à experiência essencial da escrita, cujo papel é substituir a coisa por sua ausência, o objeto por seu desaparecimento.

Dessa maneira, o essencial na linguagem tem uma função que poderíamos chamar, à primeira vista, de destrutiva, pois faz desaparecer, torna o objeto ausente, anula-o. Blanchot nos dá o seguinte exemplo, no qual vislumbramos o afastamento da palavra e do objeto: eu digo "uma flor!" e não tenho diante dos olhos uma flor, nem uma imagem de flor, nem uma recordação de flor. Tenho, sim, a ausência da flor. Quando digo "uma flor", sua ausência real é anunciada e já está presente naquilo que digo. Ao dizê-la, o trabalho de erosão empreendido pelo essencial na linguagem implica que essa flor pode ser separada dela mesma, de sua existência e sua presença atual e, subitamente, mergulhada em um espaço vazio. Contudo, a realidade das palavras é minha única chance. "O nome deixa de ser a passagem efêmera da não-existência para se tornar um bolo concreto, um maciço da existência" (Blanchot, 1997, p. 315).

Assim, o essencial não identifica o objeto ao seu nome. Nesse caso, a experiência linguageira inverte aquilo que nomeia para transformá-lo em outra coisa, não dizendo o que não é, mas falando precisamente no lugar do desaparecimento que dissolve tudo.

Eu me nomeio, é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio (Blanchot, 1997, p. 312).

Então, essa ausência, esse vazio é o objeto e a própria criação da experiência essencial. Dessa forma, o essencial orienta a experiência linguageira no sentido de fazer desaparecer, com o poder que lhe é próprio, a realidade embrutecida das coisas, para, em seguida, destruir, com sua capacidade de evocação sens ível, o valor abstrato que poderíamos atribuir à ausência que aíé criada.

Para Blanchot, foi Mallarmé e aqueles a quem chamamos de poetas que se interessaram pela materialidade da linguagem - "tudo que é físico tem o primeiro papel: o ritmo, o peso, a massa, a figura, e depois o papel sobre o qual escrevemos, o traço de tinta, o livro. [...] A linguagem é a coisa escrita, um pedaço de casca, uma lasca de rocha, um fragmento de argila em que subsiste a realidade da terra" (Blanchot, 1997, p. 315)

Augusto de Campos situa Mallarm é, com o poema Um lance de dados, como o inventor de um processo de composição poética que exige uma tipografia funcional, que, por sua vez, espelhe com real eficácia as metamorfoses, os fluxos e refluxos do pensamento. Mallarm é insiste na letra como elemento básico do livro que deve encontrar mobilidade e expansão, chegando mesmo a utilizar a metáfora da composição musical como uma inspiração para experimentos em tipografia e layout.

Em Mallarmé, a utilização de tipos distintos de diferentes dimensões relaciona-se com a importância da emissão oral; a posição das linhas tipográficas indica que sobe ou desce a entonação; a configuração do espaço gráfico da página, assim como as relações entre as páginas, assume importância (Campos, 1975).

Mallarm é deixa claro para Degas que: "Não é com idéias que se faz poesia, é com palavras". Trata-se de sua resposta a comentário do pintor Edgar Degas que havia lhe dito que ele possuía boas ideias, mas que as mesmas acabavam por não resultar em poemas. Quando Mallarm é lhe diz que a poesia não se faz com ideias, mas com palavras, ele está dizendo que a poesia, não menos que a pintura, é arte, não filosofia. Degas não dizia ter idéias para quadros: ele simplesmente os fazia. Em seu prefácio para Um lance de dados, Mallarmé refere-se às palavras como imagens e requer a intervenção do leitor, no tempo e modo de leitura, a fim de "decifrar" seu poema. O desmantelamento das convenções de leitura fez parte das investigações para seu livro, cujas anotações apontam para a abolição do autor. Ele aniquila a narração e expande o sentido de leitura.

Na busca por uma definição do estatuto da letra no campo da linguagem, Lacan encontra em Joyce um interlocutor privilegiado. Em primeiro lugar, Joyce abandona o significante para ir ao encontro da letra. "A letra, radicalmente, é efeito de discurso" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 50).

Se há alguma coisa que possa nos introduzir à dimensão da escrita como tal, é nos a percebermos de que o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito do significante. Distingue-se aí algo que não passa de efeito do discurso, do discurso enquanto tal, quer dizer, de algo que já funciona como liame (Lacan, 1972-1973/1985, p. 47).

Mais adiante, Lacan prossegue marcando "como a linguagem se aperfeiçoa quando se trata de jogar com a escrita" (Mallarmé, citado por Campos, 1975, p. 17). Nesse jogo, Joyce é uma joia do ilegível, do intraduzível, no qual "O significante vem rechear o significado" (Lacan, 1972-1983/ 1985, p. 50).

É pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem - leiam Finnegans Wake - que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas que é mesmo o que há de mais próximo daquilo que nós analistas, graças ao discurso analítico, temos de ler - o lapso. É a título de lapso que aquilo significa alguma coisa, quer dizer, que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes. Mas é precisamente por isso que aquilo se lê mal, ou que se lê de través, ou que não se lê. Mas esta dimensão do ler-se, não é ela suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? O de que se trata no discurso analítico é sempre isto - ao que se enuncia de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa (Lacan, 1972-1973/1985, p. 51-52).

O modo como Joyce mobiliza a escrita, a maneira como "a letra prepondera sobre o sentido das palavras, tornando possíveis jogos entre sons e sentidos, permite a Lacan levantar questões a respeito tanto de sua materialidade quanto de sua relação com o significante, e chegar ao questionamento entre o escrito e a leitura" (Mandil, 2003, p. 21). Com a escrita de Joyce, pode-se estabelecer uma conexão entre letra e voz, o que permite pensar a voz para além dos cânones da oralidade.

Joyce subverte a literatura na estrutura mesma da linguagem e chega ao osso da palavra: "ele brinca (e se diverte) com a estrutura d'alíngua. Na progressão de seu trabalho já não conta histórias. O que conta é o que ele faz com alíngua. Isso conta, faz lituraterra" (Maia, 2000, p. 96).

Portanto, lituraterra é a expressão inventada por Lacan para a cunhagem no real do impossível de se escrever, operada pela letra. O sujeito desse texto não é mais representado por um significante para outro significante, mas se trata, agora, de um sujeito da pura diferença - resposta do real. Tal escrita constitui um suporte que vai além da fala, sem sair dos efeitos da linguagem.

Se me fosse permitido ilustrá-la com uma imagem, a tomaria facilmente do que na natureza mais parece aproximar-se a essa redução à s dimensões da superfície que exijam o escrito, e que já maravilhava Spinoza: este trabalho de texto que sai do ventre da aranha, a sua teia (Lacan, 1972-1973/1985, p. 125-126).

A escrita exige a redução à s dimensões da superfície, trabalho de texto, de teia, "que sai do ventre da aranha". Na superfície (da) escrita, há que se atentar a uma certa materialidade textual, que é corpo sutil, mas é corpo.

Função verdadeiramente milagrosa, ao se ver, da superfície mesma surgindo de um ponto opaco desse ser estranho, desenhar-se o traço desses escritos, onde perceber os limites, os pontos de impasse, os becos sem-saída, que mostram o real acedendo ao simbólico (Lacan, 1972-1973/1985, p. 126).

Lacan dizia que, ao fim de uma análise, o analisando faz um trânsito semelhante à passagem do romance ao conto. Lacan teria dito que todos nós acabamos tornando-nos um personagem do romance que é nossa vida e que, para isso, não seria necessário fazer uma análise. A operação da análise seria comparável à relação entre o conto e o romance. Para Laurent (1998), enquanto o inconsciente freudiano caminharia próximo à forma narrativa do romance goethiano - o que implica uma forma de relato específica, com definição clara dos personagens e separação entre a conversa pública e o monólogo interior -, o inconsciente em Lacan seria contemporâneo de uma estrutura narrativa distinta, subvertida pelas contrações do tempo, do dentro e fora, dos personagens. Assim, como a contração do tempo possibilitada pelo conto produz efeitos de estilo, a análise também possibilita ao sujeito perceber efeitos de estilo que podem ser úteis.

Considerando que Lacan costumava discutir com François Cheng sobre a função do vazio no poema chinês, "digamos com ele que, se o analista é poeta, o sujeito pode se tornar esse personagem essencial que é o vazio que circula o poema" (Laurent, 1998, p. 37). Laurent considera que est á aí uma indicação preciosa de Lacan: algo de essencial da psicanálise ligava-se à contração do tempo. A análise "contra ída" tem no horizonte "fazer do sujeito o vazio do haikai de sua enunciação" (Laurent, 1988, p. 37-38).

Em 1977, Lacan terminou por especificar que os recursos do psicanalista não são referidos ao escritor em geral, mas ao poeta.

François Cheng nos relata que, ao receber o exemplar de Écriture póétique chinoise [Escrita poética chinesa], Lacan lhe enviou o seguinte recado: "Declaro: de agora em diante, toda linguagem analítica deve ser poética". Isso não significa que o analista se iguale em talento ao poeta, o que raramente ocorre, mas indica que ambos utilizam as mesmas fontes (Laurent, 1998, p. 37).

Podemos apreender essa indicação em "Rumo a um significante novo", no qual ele destaca que a interpretação - ou seja, o que deve fazer o analista - deve ser poética. "É à medida que uma interpretação justa desmancha um sintoma que a verdade se especifica em ser poética" (Lacan, 1977/1998, p. 11). Lacan aproveita "esse troço" cogitado por François Cheng em seu livro Escrita poética chinesa para demonstrar por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que não o sentido. "Certamente, a escrita não é por onde a poesia, a ressonância do corpo, se exprime. Mas é impressionante que os poetas chineses se exprimam pela escrita. É necessário que tomemos da escrita chinesa a noção do que é a poesia". A poesia chinesa opera com a articulação e desarticulação entre o som e o sentido produzindo o esvaziamento do sentido, tendo como fundamento o equívoco, ele circunscreve o intraduzível na fala.

A poesia que Lacan sugere, quando fala da interpretação, é a poesia dos Tang, aquela feita a partir do século VIII, "uma poesia que é um canto escrito e uma escrita cantada, ou seja, algo que não se deixa marcar pelo litoral, que não se apoia numa completa independência da escrita com a fala, tal como fazem os nós borromeanos" (Andrade, 2016, p. 185). O poeta chinês contorce, amarra e desamarra articulações da matéria dos caracteres, ele manipula os caracteres a o modo com que Lacan fazia com os nós. Da mesma forma, "a escrita poética chinesa e a escrita de Joyce forçam a língua, enlaçam e desenlaçam numa combinatória que não mantém o leitor atento para que ali haja algo a ser lido. Conseguem fazer nós com a materialidade da escrita, sem transformá-los em nós" (Andrade, 2016, p. 186).

Ambos fazem nós com as palavras sem que elas deixem de ser minimamente palavras, muitas vezes sem sentido, mas reconhecíveis. Desarticulam o som e o sentido, a escrita poética chinesa mais o apelo ao som que lhe é imputado ou mantido mesmo que por um fio permite que seja atribuído a ele alguma coisa da ordem significante. "Um significante novo", evocamos aqui a noção abordada por Lacan no Seminário 24 (Lacan, 1977/1998). Um significante sem sentido desfeito pela manipulação do poeta, um significante que funciona como letra. Joyce nos exige um som extraído de uma palavra de cem letras, é isso que nos faz acreditar que ali há um significante apesar de ser sem sentido. O poeta chinês não tem um alfabeto à sua disposição - terá que sustentar o som que caiba em uma sílaba, à maneira de Joyce -, para o poeta chinês, a palavra de cem letras terá que ressoar num intervalo de uma sílaba. Quando Lacan diz que a interpretação opera com uma lógica ele se refere não à lógica formal, mas àquilo que a escrita poética chinesa sugere, que essa lógica seja poética.

 

Considerações finais

É nessa perspectiva que Lacan nos convida a encontrar na escrita poética chinesa a semente da interpretação.

Não há nada mais difícil do que apreender esse traço do um-equívoco, que eu traduzo Unbewusst, que quer dizer, em alemão, inconsciente. Mas traduzido por um - equívoco, quer dizer totalmente outra coisa - um obstáculo, um tropeço, um deslizamento de palavra por palavra. É exatamente disso que se trata (Lacan, 1977/1998, p. 12).

A orientação de Lacan é que a escrita de Joyce pode dar-nos a ideia de um tratamento possível da linguagem. Joyce, que tenta eliminar qualquer dimensão de alusão, todo envio a outro sentido, toda a dimensão do deciframento e da interpretação, porque ele já inclui, nele mesmo, todos os deciframentos possíveis, todas as alusões poss íveis, tão cheios de sentido que não temos mais nenhuma questão para colocar, nada mais para decifrar. São atividades que não se situam no plano da interpretação, mas sobretudo no plano da construção (Zenoni, 2000). Isso permite destacar outra linha na direção da cura: o tratamento pelo sintoma que não é feito por alguma coisa que se desfaz, mas por alguma coisa que se constrói, uma clínica do sintoma como solução. Não somente de um sintoma que deve ser decifrado, mas do sintoma como efeito de criação.

Ao modo de Joyce, Lacan se entrega à polifonia do significante, deixando-se levar pelas propriedades fonêmicas do significante e, com isso, "inaugura" uma clínica que já não se detém em escutar, através do significante, aquilo que foi o recalcado, mas busca marcar o vazio do inconsciente, restando para o analista operar, ora com o deslizamento dos significantes, ora com os restos vocálicos, com a letra que denota (a)gramaticalidade do inconsciente. Dessa forma, a clínica que vai se desenhando direciona para o real do sem sentido, para uma escuta da fonação, do som e não do sentido. "O real tem uma a-versão cabal ao sentido". É ab-sens, jogo de palavras em que se nega o sens, "sentido", mediante sua homofonia com absence, "ausência" (Harari, 2002, p. 89). As experiências epifânicas joycianas, próximas do místico, vazias de todo o sentido, indicam o contato com a Coisa, de acordo com o Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Essa coisa, posteriormente, dará lugar no nó ao registro do Real. O significante tão priorizado por Lacan nos anos 1950 a partir de 1970 toma um outro estatuto: o de fonema. Ele aparece desprovido de significação, algo mais próximo do som e menos do significante: um significante novo.

As epifanias joycianas nos remetem à produção de uma linguagem primordial, radicalmente Outra, na formulação de algo indiz ível, e Joyce o faz apelando para palavras ininteligíveis de cem letras que, sem escansões, não é possível entender. O quase impronunciável invade tanto o número de letras quanto o número de forma de traços. A escrita poética chinesa desde a origem se recusa a ser um simples suporte da língua falada e não tem à disposição um alfabeto. Seu desenvolvimento, como diz Cheng, foi uma longa luta para assegurar uma autonomia e uma liberdade de combinação (Cheng, 2016). Para o poeta chinês a palavra de cem letras terá que ressoar com a de Joyce, só que num intervalo de uma sílaba. O que a escrita poética chinesa faz com a materialidade dos caracteres é desarticular o som e o sentido, produzindo algo sem sentido, um significante que funciona como letra, contudo, mesmo que por um fio, trata-se de algo da ordem do significante. Um significante quase impronunciável, quase... pois se assim não fosse não seria poesia.

 

 

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Artigo recebido em: 24/02/2019
Aprovado para publicação em: 29/12/2020

Endereço para correspondência
Cristina Moreira Marcos
E-mail: cristinammarcos@gmail.com
Silvane Carozzi
E-mail: scarozzi@gmail.com

 

 

*Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Université Paris Diderot/Paris 7. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora da PUC Minas. Pesquisadora Mineira FAPEMIG.
**Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

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