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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

Leitores advertidos: desconstrução, psicanálise e leituras do retorno a Freud

 

Warned readers: deconstruction, psychoanalysis and readings of the return to Freud

 

Lecteurs avertis: deconstruction, psychanalyse et lectures du retour à Freud

 

 

Ana Carolina do Rosário Correia*; Hélida Vieira da Silva Xavier**; Charles Elias LangI***

IUniversidade Federal de Alagoas - UFAL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar uma discussão acerca das exigências metodológicas necessárias à pesquisa psicanalítica, em especial, quando esta toma textos psicanalíticos como objeto e fonte de pesquisa. Nesse sentido, esboçamos uma proposta de "leitura advertida", ou seja, de leitores que tenham a consciência de que um texto é sempre a escrita de uma determinada leitura - uma leitura-escritura - e que toda leitura possui protocolos, sendo que esses protocolos são muitas vezes automáticos e, por isso, acabam ignorados pelo leitor. Iniciamos este percurso desenvolvendo alguns aspectos epistemológicos para uma leitura desconstrutiva, com base nos textos de Luís Cláudio Figueiredo e Jacques Derrida. Para fins demonstrativos, analisamos a suposição de um sentido de continuidade da psicanálise lacaniana em relação a Freud, como o efeito ou resultado de uma operação de leitura, mais especificamente, de uma leitura sobre o "retorno a Freud". Para contrastar, uma outra leitura desse retorno, proposta pelos autores Alfredo Eidelsztein e Markos Zafiropoulos, destaca que Lacan introduz uma perspectiva epistemológica distinta da posição freudiana. Concluímos que Lacan, enquanto texto (e como qualquer texto), está aberto a inúmeras possibilidades de leitura. Essa outra maneira de ler causa uma ruptura na forma como Lacan é lido classicamente e inaugura uma outra leitura da psicanálise, a partir da herança do discurso freudo-lacaniano e de suas diferenças com esse outro Lacan.

Palavras-chave: Desconstrução, Jacques Lacan, leitura, Psicanálise.


ABSTRACT

The aim of this article is to discuss the methodological requirements for the psychoanalytic research, especially when psychoanalytic texts are taken as objects of research as well as the research source. In this sense, we propose a "warned reading", which involves readers who are aware that a text is always the writing of a certain reading - a reading-writing - and that every reading has its protocols, but these protocols are often automatic and, for this reason, they end up being unbeknown to the reader. We started this journey by developing some epistemological aspects for a deconstructive reading, based on texts by Luís Cláudio Figueiredo and Jacques Derrida. For demonstrative purposes, we analyze the assumption of a sense of continuity of Lacanian psychoanalysis in relation to Freud, as the effect or the result of a reading operation, more specifically, of a reading on the "return to Freud". To put into contrast, another reading of this return, a reading that is proposed by the authors Alfredo Eidelsztein e Markos Zafiropoulos, highlights that Lacan introduces an epistemological perspective that is different from the Freudian stance. We conclude that Lacan, as a text (and like any other text), is open to countless reading possibilities. This other way of reading causes a rupture in the way Lacan is classically read and inaugurates another reading of psychoanalysis, based on the heritage of the Freudo-Lacanian discourse and its differences with this other Lacan.

Keywords: Deconstruction, Jacques Lacan, reading, psychoanalysis.


RÉSUMÉ

Le but de cet article est de présenter une discussion sur les exigences méthodologiques nécessaires à la recherche psychanalytique, surtout lorsque celle-ci prend des textes psychanalytiques comme sujet et source de recherche. Ainsi, nous esquissons une proposition de "lecture avertie", c'est-à-dire, de lecteurs qui aient la conscience qu'un texte est toujours l'écriture d'une lecture déterminée - une lecture-écriture - et que toute lecture possède des protocoles, ces protocoles étant souvent automatiques et par conséquent ignorés par le lecteur. Tout d'abord, nous avons développé quelques aspects épistémologiques pour une lecture déconstructive, sur la base de textes de Luís Cláudio Figueiredo et Jacques Derrida. Pour des fins de démonstration, nous avons analysé la supposition d'un sens de continuité de la psychanalyse lacanienne vis-à-vis de Freud, comme l'effet ou le résultat d'une opération de lecture, plus spécifiquement d'une lecture sur le "retour à Freud". Pour contraster, une autre lecture de ce retour, proposée par Alfredo Eidelsztein et Markos Zafiropoulos, relève que Lacan introduit une perspective épistémologique distincte de la démarche freudienne. Nous concluons que Lacan, en tant que texte (et comme quelconque texte), est ouvert à des innombrables possibilités de lecture. Cette autre façon de lire cause une rupture dans la manière dont Lacan est lu classiquement et inaugure une autre lecture de la psychanalyse, à partir de l'héritage du discours freudo-lacanien et de ses différences avec cet autre Lacan.

Mots-clés: Déconstruction, Jacques Lacan, lecture, psychanalyse.


 

 

Introdução

Uma vez transformada em letra, a história deixa de me pertencer
Haruki Murakami

A pesquisa acadêmica em Psicanálise, cujo resultado pretendido pode ser um artigo, um ensaio, uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado, é pautada por uma metodologia de pesquisa distinta daquela de um tratamento psicanalítico. Em se tratando das pesquisas psicanalíticas, quando tomamos a produção acadêmica como objeto e buscamos averiguar qual foi a metodologia seguida, não é raro concluirmos que uma metodologia de pesquisa psicanalítica poderia ser resumida em dois ou três parágrafos, quando não omitida ou sintetizada em expressões como "pesquisa de cunho psicanalítico", "análise crítica de textos", "pesquisa histórico-conceitual", "pesquisa teórica em psicanálise" e "pesquisa epistemológica", para ficarmos apenas com alguns dos exemplos mais comuns.

A expressão "leitura de textos psicanalíticos" pode ser contada como mais um desses exemplos. Para nós, ela é a expressão exemplar, pois o que a ela se segue, em geral, não é a explicitação do que se compreende por ler um texto. "Ler um texto" parece ser algo evidente, óbvio, pacífico, transparente. Ora, além de buscarmos pelo significado da expressão "pesquisa psicanalítica", o que aqui pretendemos pôr em questão é: o que significa ler um texto?

O ato de ler faz parte de um vasto espectro de processos que vai desde o simples reconhecimento de letras e signos até as diferentes formas de interpretação e tradução, nas quais se inclui a interpretação psicanalítica. Ler um texto não é algo simples e direto.

Neste artigo, apresentamos os resultados de algumas pesquisas e uma discussão acerca de certas exigências metodológicas necessárias à pesquisa psicanalítica, em especial quando esta toma textos psicanalíticos como objeto de pesquisa. Nossa estratégia de trabalho é a leitura próxima, atenta e desconstrutiva proposta por Figueiredo (1999), derivada da modalidade desconstrutiva de Jacques Derrida. Tal modalidade de leitura é pautada pela vigilância dos protocolos de cada leitura, da consideração dos contextos da produção de um texto, das estratégias textuais utilizadas pelo autor e dos pressupostos do leitor na atividade interpretativa. Para fins demonstrativos, tomamos a suposição de um sentido de continuidade da psicanálise lacaniana em relação a Freud, como o efeito ou resultado de uma operação de leitura, de uma determinada leitura sobre o "retorno a Freud". Para contrastar, apresentamos uma outra leitura deste retorno, distinta do freudo-lacanismo, com o auxílio de autores como Eidelsztein (2015) e Zafiropoulos (2018). O intuito deste artigo é esboçar a proposta de "leitores advertidos", ou seja, leitores que tenham a consciência de que um texto é desde sempre uma escrita de uma determinada leitura - uma leitura-escritura - e que toda leitura possui protocolos, sendo que esses protocolos são muitas vezes automáticos e, por isso, acabam ignorados pelo leitor.

 

Bases epistemológicas da leitura desconstrutiva

Um dos efeitos imediatos da leitura de Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, de Luís Cláudio Figueiredo, é a formação de uma consciência a respeito do ato de ler, a partir da compreensão de que há modos de ler e interpretar textos - algo que já era conhecido por teólogos, filósofos e juristas. Figueiredo (1999) elenca e caracteriza três modos distintos de ler e interpretar, pela forma singular como abordam o sentido e a alteridade de um texto: a leitura clássica/sistematizante, a leitura hermenêutica, e a leitura próxima, atenta e desconstrutiva. Tais modos de ler e interpretar um texto precisam aqui ser retomados, mas, por ora, nos deteremos nas bases epistemológicas da modalidade menos conhecida, que é a leitura desconstrutiva. Veremos adiante que, mesmo sem sabermos, já estamos familiarizados com a leitura clássica e a leitura hermenêutica.

A palavra "desconstrução" e o neologismo "desconstruir" tornaram-se parte do cotidiano acadêmico, do idioleto e do jargão daqueles que circulam ou circularam nos departamentos e institutos das ciências humanas e ciências sociais das universidades. De uma maneira geral, pode-se afirmar que a desconstrução é uma atitude e, como tal, visa, de um modo mais rigoroso, tanto a decomposição e a dessedimentação de estruturas (filosóficas, históricas, literárias, linguísticas, políticas, socioculturais, etc.) quanto a compreensão da construção de um "conjunto", revelando seus pressupostos, sua sintaxe, sua semântica e pragmática, suas ambiguidades e contradições. Tal atividade permite a reconstrução destas estruturas e a ampliação de seus limiares e de seu alcance (Derrida, 1987/1998).

Na Carta a um amigo japonês, Derrida (1987/1998) pretende auxiliar seu tradutor a encontrar uma palavra em japonês que corresponda àquela que ele encontrou em francês: déconstruction. Para tal, ele tece algumas reflexões sobre o que é a desconstrução, partindo da determinação negativa; ou seja, o que a desconstrução não é. Daí, resulta algo importante para desfazer a confusão generalizada.

A desconstrução não consiste numa destruição (neste sentido, difere da destruktion de Heidegger); não pode ser entendida, num sentido geral, como um conceito, uma análise ou uma crítica; não é um ato ou uma operação aplicável a um objeto, tampouco é uma instrumentalidade metodológica - embora acabe se embaraçando com estas ao tentar produzir um criticismo no trabalho com textos (Derrida, 1967/2013). O conceito de desconstrução em Derrida vai paradoxalmente tomando forma à medida que ele multiplica as dificuldades subjacentes à tarefa de definir uma palavra. A suposta falta de clareza e ausência de univocidade do conceito reside no fato de que

a palavra "desconstrução" como qualquer outra, não extrai seu valor senão de sua inscrição em uma cadeia de substituições possíveis, naquilo que se chama tão tranquilamente, de um "contexto" [...]. Em que ela substitui ou se deixa determinar por tantas outras palavras. (Derrida, 1987/1998, p. 24)

Isto se deve ao fato de que não é possível construir um novo discurso sem recorrer àquilo que nos propomos a destruir ou desconstruir. É preciso buscar na história da metafísica "a herança e os recursos necessários para a desconstrução dessa mesma herança" (Derrida, 1967/2014, p. 412). Ao sublinhar que a desconstrução é uma palavra, e consequentemente é substituível em uma cadeia de substituições, Derrida instaura a indecidibilidade do significado a partir de uma lógica não-identitária. Esta lógica está ancorada no caráter absolutamente heterogêneo da textualidade, que é fundamentalmente "constituída de diferenças e de diferenças de diferenças" (Derrida, 1972/2005, pp. 52-53). O significado emerge dessas diferenças sutis e múltiplas, não sendo possível sintetizar as muitas nuances encontradas na linguagem em um simples e único fundamento lógico que determine a identidade.

Disto resulta o que Figueiredo (1999) assinala como uma premissa fundamental na leitura/interpretação. Esse sistema de traços diferenciais é o que trabalha internamente no texto, criando sentido a partir da intersecção entre a intenção do autor e os seus produtos não-intencionais. Isto implica a não existência de uma identidade anterior ao texto. Dito de outra forma, não há, a priori, um texto homogêneo e completo na mente do autor, que a posteriori apenas será expresso através de um sistema de traços diferenciais (neste caso, a escrita).

Para os leitores guiados por uma atitude desconstrutiva, principia-se uma leitura presumindo que, como leitor, aquilo que se encontra diante dele é um texto, um texto escrito, e cujas unidades de sentido estão implicadas numa rede de traços diferenciais, destituídas de um significado prévio, central e único. O leitor está sozinho diante de um texto, sem a assistência do autor. E mesmo que pudesse dispor dessa assistência, os traços diferenciais do leitor precedem e prevalecem ante a suposição daquilo que o autor "quis dizer". O autor somente existe como ato, como aquele que escreveu. Ao colocar o ponto final, tendo por concluídas as revisões, as reescritas, as adições, as subtrações, os cortes e as edições, o texto deixa de pertencer ao autor, pois o autor tornou-se também um leitor - leitor de seu próprio texto, a despeito de seu voulour-dire.

Ler, compreender, interpretar e traduzir são atos decisivos, que fazem incisões e cortes. Metaforicamente, cada um de nós - cada pesquisador, cada leitor ou escritor - é um texto.

Derrida (1972/2005) vale-se da figura da aranha. Um texto é uma teia e viver pode ser o equivalente a tecer uma vasta teia. Neste sentido, sempre estamos a escrevê-la, ao existirmos. Estamos sempre escrevendo nosso próprio texto, mas nessa tecedura há frequentemente incidentes, acidentes, rupturas, deslocamentos, feridas. No caso da teia, quando esta é partida, a aranha a reconstitui. Essa reconstituição, no entanto, deixa um traço, uma marca, uma cicatriz. E as cicatrizes não desaparecem. O que pode ser apagado é a ruptura, mas ali onde houve a ruptura a reconstituição deixa outro traço. Esse novo traço não tem propriamente um lugar; ele não é uma presença, mas o simulacro de uma presença que se desconjunta, se desloca, se expulsa. Se há um corte no tecido do texto, o seccionamento cria ainda texto. A teia volta a se tecer a partir de suas rupturas, criando uma sobreposição de véus. O tecido pode ser reconstituído sempre. O que rebrota não é o idêntico, mas o traço do apagamento, as marcas ou os traços de todas as leituras.

Nessa metáfora da aranha e de sua teia, rompida e reconstituída, a autoridade semântica precisa e lógica do texto é desmontada: ao invés de o texto ser regido por um significado mestre, o centro se torna flutuante (Derrida, 1967/2014), passível de ser deslocado a cada leitura. O texto é, portanto, passível de adquirir significados e interpretações múltiplas. A perspectiva derridiana concede ao leitor a possibilidade de adicionar sentido e atitude ao texto, pois as palavras dispostas em linhas na escritura são como caixas de ressonância que estão propensas à interpretação do leitor. Um texto é um tecido cuja matéria são significantes e ler significa acrescentar um fio novo ao tecido do texto, uma ação que emerge como efeito das exigências suplementares (Derrida, 1972/2005). Daí toda leitura ser também, simultaneamente, uma escritura - uma leitura-escritura.

A estratégia desconstrutiva de leitura de textos é implementada em dois momentos. Conforme ressalta Derrida (1972/2001, p. 48), "desconstruir a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia". O segundo termo é proposto como principal, uma vez que a s relações argumentativas de causa e efeito são invertidas, sendo que a causa passa a ser definida como tal devido ao efeito que ela produz.

Essa inversão não é o único trabalho do desconstrucionista. Em seguida, sucede o segundo momento, no qual Derrida (1967/2014) propõe o jogo. Ele apresenta o conceito de jogo como uma alternativa à tentativa de totalização/finitude de um discurso ou de um campo - isto porque a natureza do campo, ou seja, a linguagem, exclui a totalização. O jogo refere-se ao jogo das substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito. Esse movimento do jogo permitido pela falta, pelo abandono à referência de centro, de sujeito/autor ou de uma origem, de referência privilegiada ou de uma hierarquia absoluta é o movimento da suplementaridade.

Nas palavras de Derrida (1967/2014, pp. 421-422):

Não se pode determinar o centro e esgotar a totalidade porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento. O movimento de significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir a falta do lado do significado.

Fundamentado no jogo proposto por Derrida, o resultado da leitura de um texto é a produção de um novo texto, de outro texto; de uma alteridade, ao invés da repetição da identidade. Esse novo texto não tem como objetivo confirmar ou refutar o texto anterior, afinal, a lógica binária não lhe serve. Não cabe a essa nova escritura "distinguir o remédio do veneno, o bem do mal, o verdadeiro do falso, o dentro do fora" (Derrida, 1972/2005, p. 122). A leitura-escritura não funciona pela lógica do complemento, que apaga diferenças; mas pela "relação entre termos que não só se complementam como, ao invés disso, se opõem e não só se contradizem, como, ao contrário, se suplementam" (Figueiredo, 2012, p. 61).

O suplemento é um excesso, uma adição, mas também é um significante que supre e substitui outros significantes na cadeia de remessas diferenciais (Derrida 1967/2013). Constitui um paradoxo, pois é capaz de "substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso" (Santiago, 1976, p. 88). Esta outra lógica foge dos dualismos; evidencia as diferenças, as embaralha e as sustenta, mesmo que isso leve a ambiguidades (Campos; Coelho Jr., 2010). Essa s ambiguidades e polissemias, longe de serem obstáculos, são admitidas como brechas pelas quais novos sentidos podem ser produzidos. A estratégia de leitura desconstrutiva não pretende destruir o texto, mas a inversão e o deslocamento da ordem de conceitos que sustenta sua estrutura, em busca de novos conceitos, de significados ocultos, subentendidos ou denegados pelo próprio texto (Lang & Barbosa, 2012).

É por essas razões, que no percurso de uma leitura desconstrutiva o leitor atento é aquele que se lança na exploração das tensões do texto, de suas ambiguidades, das suas trilhas perdidas, ainda que contraditórias ou deslegitimadas. O leitor atento empreende uma leitura vigilante com relação às "impurezas", irregularidades, promessas e fraturas das quais todos os textos são feitos, às alteridades do e no texto (Figueiredo, 1999, p. 17), com o intuito de desestabilizar e temporalizar seu sentido canônico apriorístico, injetando vitalidade ao texto em análise. Pois, como ressalta Derrida (1967/2014, p. 410), "a ausência de significação transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação".

 

Métodos de sistematização de leitura da obra de Lacan

As leituras clássicas/sistematizantes são, literalmente, as leituras "de classe", isto é, são os modos de ler que se tornaram automáticos, as interpretações que se tornaram clássicas e que os professores a cada geração transmitem a seus alunos; leituras e interpretações que se estabeleceram e que são ensinadas e transmitidas aos jovens estudantes através dos manuais de uma área do conhecimento. Este tipo de leitura privilegia o sentido em relação à forma do texto. Há uma primazia e uma valência do sentido, o que implica a aspiração a um consenso, um sentido único e universal, subordinado à intenção transcendente do autor e de seus objetos intencionais. O objetivo desta modalidade de leitura é resgatar as teses centrais do texto e organizar a trama textual ao redor de pontos ideais. O sentido pode ser feito e refeito, mas será sempre idêntico a si mesmo (Figueiredo, 1999). Esta modalidade de leitura permite que o texto possa ser resumido, ou seja, que do texto possa ser retirado o acessório, o excesso, o contingente, de tal modo que apenas o necessário - isto é, o sentido essencial - possa ser transmitido sem acidentes. Ironicamente, se Freud precisou de milhares de páginas para dizer algo, um bom leitor clássico poderia dizer, em menos páginas, o que Freud "realmente" queria dizer.

Quando nos dedicamos a ler Lacan, em geral, pode-se lê-lo a partir do conjunto dos seminários transcritos e reescritos, de seus Escritos, de textos publicados e ainda não publicados. Essa leitura do conjunto pressupõe a ideia de Obra, de uma identidade a ser apreendida e elucidada. No ponto mais nevrálgico, inclusive, há a figura do melhor leitor, o ente investido e autorizado como aquele que melhor saberia ler Lacan. Mas o que é a Obra de um autor e como se estabeleceu tal conjunto? No caso de Freud, o que permitiu que se falasse em uma Obra Completa? Qual o gesto que permitiu que fosse estabelecida uma Edição Standard das Obras Completas, ou que fossem excluídos determinados textos, sob o argumento de serem "pré-psicanalíticos"? A "Obra Completa" não abarca também os textos excluídos, apócrifos?

O acercamento desse conjunto - isto é, o acercamento da Obra -, que é o segundo passo da leitura, obedece a diversas formas de aproximação. Como interpelar o texto de Lacan? Ou um texto de Lacan?

Alguns autores como Jacques-Alain Miller (2014) são nodais ao justificarem uma leitura evolutiva ou linear, que diferencia etapas ou fases no ensino de Lacan: o primeiro, o segundo e o "ultimíssimo Lacan" ou o Lacan do Imaginário, do Simbólico e do Real. Para Eidelsztein (2015), a sistematização exemplificada com Miller poderia ser também ilustrada pela metáfora da cebola e de suas camadas: o último ensino, supostamente o mais verdadeiro, estaria no coração do percurso lacaniano, tal como o broto da cebola. Essa modalidade de leitura também pode ter como metáfora uma escada, isto é, a pressuposição de que haveria uma progressão no interior do trabalho lacaniano, culminando nos últimos textos e seminários. Ou, então, a progressão não é necessária e pode-se ainda seguir a metáfora da linha, pontuada pela cronologia dos textos. O próprio Eidelsztein (2015) elege outra figura: a de um diamante facetado. Nessa modalidade de leitura, os textos lacanianos podem ser lidos e relidos a partir de diferentes perspectivas, mas nem por isso alguma destas teria um valor diferente das outras, quer seja de verdade ou de maior exatidão.

Na trilha dos questionamentos acerca do que é ler em psicanálise, Goldenberg (2018) propõe uma desleitura de Lacan. Seu projeto é fundamentado a partir da concepção de que Lacan é, para nós, um ser de escritura e seu ensino é uma questão de leitura. O autor não nos ensina sobre como se deve ler ou não, mas indaga (e nos indaga) a respeito das consequências de como a obra de Lacan chega ao leitor, posto que grande parte de seu ensino se deve à transcrição de uma produção oral. Goldenberg enfatiza que o estabelecimento dos textos já supõe uma leitura e não uma simples transcrição. A própria escolha da pontuação é uma interpretação do transcritor e indica um sentido, da mesma forma que a tarefa de tradução é uma leitura. As decisões que o transcritor toma durante a passagem do texto oral para o texto escrito repercutem no resultado, isto é, no modo como esse texto será lido e interpretado.

Goldenberg recupera o conceito de desleitura (misreading), elaborado pelo crítico literário Harold Bloom, a fim de interpelar os escritos de Lacan. Segundo Goldenberg, Bloom lançou uma nova luz sobre os conceitos freudianos das "lembranças encobridoras" e do "romance familiar". Bloom divide os leitores entre duas categorias, os fracos e os fortes. Estes últimos desleem "porque a leitura, no sentido forte do termo, opera como um 'romance familiar' - no sentido de Freud -, ou seja, como a reescrita de um outro texto" (Goldenberg, 2018, pp. 35-36). Os textos não existem per se e o que há é uma relação entre eles, sendo que tais relações já são atos críticos. "A crítica, ou seja, a leitura pode não ser necessariamente uma avaliação, mas é sempre uma decisão [grifo do autor], e o que decide é o significado" (Goldenberg, 2018, p. 36).

É comum que um leitor forte se torne um revisionista. O que está em jogo é um redirecionamento no intuito de revalorizar e reavaliar textos, com um ideal de correção e restauração da verdade textual que antes de sua leitura/escrita fora extraviada. O leitor forte é aquele que ao desler o outro funda sua própria escritura. São essas as chaves conceituais que Goldenberg (2018) utiliza para fundamentar três desleituras: a primeira, na qual Lacan deslê Freud; a segunda, em que Miller deslê Lacan e a terceira, que é a sua própria desleitura de Lacan. Retornaremos a elas mais adiante.

As boas leituras clássicas acabam por se tornar dogmatizantes, já que conseguem expor as teses presentes no texto de forma clara e assim propiciam sua transmissão (Figueiredo, 1999). Mas há, também, um efeito negativo, visto que estas leituras tendem a engessar e reprimir as possibilidades de produção de sentidos novos. Isso leva a uma entronização da interpretação dominante e à compulsão de sua repetição de forma doutrinária. Por esse motivo, parece necessário investigar outras possibilidades de leitura de Lacan e de textos psicanalíticos.

 

Um exemplo: o "retorno a Freud" como efeito de uma leitura freudo-lacaniana

O "retorno a Freud" é uma expressão utilizada entre os psicanalistas para se referir à fase do ensino de Lacan na qual ele se propõe a ler e a revisar conceitos freudianos. O próprio Lacan a usou em 1953, em "Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise" - também conhecido como "Discurso de Roma" -, considerado o marco inicial desse período. Ainda que esse discurso não passasse de um balbucio inicial, para Lacan estava evidente que uma renovação estava sendo anunciada. O retorno a Freud consistia, naquele momento, em "renovar em sua disciplina os fundamentos que ela retira da linguagem", tarefa que passa por "um questionamento dos fundamentos dessa disciplina" (Lacan, 1953/1998b, p. 239).

De acordo com a sistematização da leitura da obra de Lacan, feita no âmbito da psicanálise de orientação lacaniana (ou milleriana, uma vez que é apresentada nos textos de Jacques-Alain Miller), esse retorno corresponde ao início do período de seu segundo ensino, organizado em torno do conceito de Simbólico. Este foi antecedido pelo primeiro, o Lacan do Imaginário, e seguido pelo terceiro ensino: o Lacan do Real, ou ainda, o "último Lacan". Segundo Eidelsztein (2015), o que se apresenta nesta sistematização corresponde a uma oposição entre os ensinos de Lacan, efetivada da seguinte maneira: o "último Lacan" contra o "primeiro e segundo Lacan". Em suma, "Lacan contra Lacan".

Tomaremos aqui alguns textos de Miller como referências de uma leitura clássica do retorno a Freud. O que o pretenso herdeiro intelectual e responsável pela transcrição dos seminários e edição da obra de Lacan escreve a respeito do retorno a Freud?

Para Miller (1989, p. 9), o retorno parte de uma "exigente fidelidade [de Lacan] ao texto de Freud", fidelidade esta que, no entanto, não o impediu de criar suas próprias formulações. O ato de retornar passaria pela substituição de termos freudianos por outros termos definidos por Lacan. Ou seja, por uma mudança de vocabulário e pela reatualização de Freud e suas referências (Miller, 1990; 2008). O argumento de Miller acerca da fidelidade lacaniana aos textos de Freud é compartilhado hoje por uma parcela dos psicanalistas lacanianos igualmente fiéis a Miller e cujos comentários assumem um tom frequentemente inquestionável e acrítico.

Miller (1989) evoca como exemplo desse retorno o termo "sujeito". Não há, segundo Miller, menções ao sujeito em Freud. Já em Lacan, o sujeito é objeto de teorizações diversas (o sujeito barrado, da ciência, do inconsciente, enfim, em questão…). Sob o rótulo do retorno, Lacan teria incluído conceitos que não encontramos em Freud, mas cujo efeito já estaria presente em Freud. O estádio do espelho também é utilizado por Miller (1989) como ilustração da nova gramática psicanalítica de Lacan. Freud teria desdobrado o Eu, que é imaginário, em dois outros termos - o eu ideal e o ideal do eu. Lacan, por sua vez, extraiu a diferença entre os dois termos e chamou o eu ideal, isto é, a imagem que o Eu tem de si, de i; e o ideal do eu, isto é, a posição a partir da qual o Eu se vê, de I.

O trabalho de Lacan durante o retorno seria dispor os conceitos freudianos em uma nova organização. Inclusive, para Miller (1990), Lacan seria a pessoa mais indicada para isso, porque ocupa o lugar do leitor privilegiado de Freud, daquele que o leu com mais cuidado e atenção. Poderíamos dizer que, para Miller, Lacan teria empreendido uma espécie de releitura do texto freudiano, operação que consistiu essencialmente na tradução e fragmentação de conceitos. Seguindo essa lógica, poderíamos encontrar alguns equivalentes nas duas teorias, como visto acima no exemplo do binômio eu ideal/ideal do eu e i/I. A leitura de Miller coloca Freud na posição do minerador que descobre um cristal em estado bruto, mas já reconhecido como valioso, e, Lacan, como aquele que veio logo em seguida para aparar as arestas, lapidar e livrar esse cristal de suas impurezas.

Algumas considerações precisam ser feitas acerca da leitura de Miller sobre o retorno a Freud. A primeira delas é que essa leitura considera o retorno como uma espécie de tradução. E o problema de considerar o retorno a Freud apenas ao nível de uma depuração de termos é que o trabalho de Lacan acaba reduzido a um exercício de substituição de significantes.

Esse problema nos leva a uma segunda consideração: Miller não defende a existência de uma mudança lógica entre Freud e Lacan. Segundo o autor, em alguns momentos tende-se a pensar que Lacan substituiu Freud no sentido de ter construído outra lógica. Miller (2008, pp. 32-33) rechaça essa possibilidade, pois, para ele, "desde então, é possível constatar na psicanálise tal como existe no mundo que as referências a Lacan se multiplicaram, inclusive o que se pode chamar uma escola que se denomina pós-lacaniana". Dito de outra forma, poderíamos pensar então que Freud e Lacan estariam sob a mesma lógica, porque hoje há o reconhecimento da comunidade psicanalítica - ainda que em algum momento passado essa legitimidade tenha sido questionada ou até mesmo rechaçada1. A psicanálise lacaniana em algum momento deixou de gravitar em torno da psicanálise freudiana e foi aceita pelos psicanalistas como uma escola autônoma.

A partir da leitura de Miller podemos chegar a alguns pressupostos. O primeiro deles é que, para Miller, Lacan sustentaria teoricamente, em linhas genéricas, o mesmo que Freud. De acordo com o que vimos acima, Miller concorda com uma continuidade lógica entre Freud e Lacan que, para fins de desambiguação, Eidelsztein (2015) propõe que chamemos de Freud-Lacan. Acrescentaremos um adjetivo àqueles que seguem essa linha teórica e doravante os chamaremos de freudo-lacanianos. O segundo de nossos pressupostos é que a leitura de Miller pode ser entendida como linear e evolutiva. Logo, nos parece que as psicanálises freudiana e lacaniana serviriam como degraus na construção do edifício teórico de uma espécie de "psicanálise geral", paradigmática.

 

Desleituras

Da psicanálise, pode-se falar de como é muito fácil constatar que se fala dela desse jeito. Um pouco menos fácil é falar dela se impondo como disciplina oito horas por dia, de não repetir jamais a mesma coisa e de não dizer o que já é corriqueiro [grifo nosso, tradução nossa]. (Lacan, 1967/2005, p. 15)

Resgatamos a passagem acima da conferência Place, origine et fin de mon enseignement ("Lugar, origem e fim de meu ensinamento", tradução nossa), proferida em 1967, no Centre Hospitalier du Vinatier, em Lyon, na qual Lacan expõe seu ensino, seu pensamento, e, em seguida, dialoga com Henri Maldiney. Nessa passagem, Lacan (1967/2005) refere-se ao seu esforço de falar da (e sobre a) psicanálise sem jamais repetir a mesma coisa e não dizer o que já é senso comum. Tomemos este esforço constante como a força motriz do trabalho que Lacan empreende como retorno a Freud - projeto iniciado nos anos 50, que consiste em virar pelo avesso (re-tour) conceitos freudianos.

Para Goldenberg (2018), o retorno a Freud corresponde a uma desleitura dos fundamentos freudianos. Nas palavras de Goldenberg (2018, pp. 38-39):

Não é, de modo algum, uma volta aos fundamentos ou um regresso às origens deturpadas ou esquecidas de um freudismo mais puro. Trata-se do mais profundo questionamento. Lacan relê os conceitos freudianos invertendo-lhes a ordem das razões [grifo do autor].

Essa ruptura do paradigma não impede Lacan de se afirmar freudiano, embora não se declare como seu sucessor, sequer como discípulo (seus mestres foram Clérambault e Kojève), seu freudismo tem por base a crítica incessante aos fundamentos freudianos da psicanálise. Como exemplos de desleitura em Lacan, Goldenberg cita: o conceito de tyche e authomaton como uma desleitura lacaniana da pulsão de morte freudiana e da física de Aristóteles, a fim de fundamentar uma teoria nova do significante; a desleitura do signo de Saussure, priorizando o significante em detrimento do significado; a desleitura da condensação freudiana e do complexo de Édipo, com base na metáfora; a desleitura da pulsão freudiana para embasar o conceito de gozo e retirar a psicanálise do biologismo.

A insistência em jamais se repetir indica a diligência de Lacan em fundamentar seus conceitos, uma vez que estes podem ser - e foram - transformados no decorrer de seus seminários. Ao falar do lugar, origem e fim de seu ensino, Lacan adverte que não pode resumi-lo em linhas gerais de um manual, não pode entregá-lo na forma de um comprimido. Presume que talvez alguém o faça mais tarde, uma vez que já esteja fora de cena, e, admitindo o fracasso na transmissão da psicanálise, seu ensino vivo seja cristalizado pelo discurso universitário, transformado em teses acadêmicas: "como o âmbar que aprisiona a mosca, para nada saber de seu voo" (Lacan, 1969/2003, p. 399).

Essa tarefa coube a Jacques-Alain Miller, que empreendeu o que Goldenberg (2018) também caracteriza o "esforço" de Miller em elucidar Lacan como uma desleitura. Lacan Elucidado (1997) é o título da coletânea das conferências brasileiras ministradas por Miller entre 1981 e 1995, projeto que visa atender à demanda dos brasileiros de esclarecimento de Lacan. O sintagma "Lacan-elucidado" é um projeto de correção do ensino lacaniano com o propósito de apagar a orientação anti-ontológica e anti-biologista que o caracteriza (Goldenberg, 2018).

O projeto de Miller em elucidar Lacan tem como estratégia uma política de reescrita da obra do precursor, apagando de uma só vez o leitor e o autor. Estes são os artifícios para fundar sua escola e uma nova psicanálise, cuja transmissão reconduz Lacan a um paradigma anterior, ao mesmo tempo em que apaga o caminho que trilha para "inovar", mostrando-se como o exegeta mais qualificado. Nas palavras de Goldenberg, Miller ao desler Lacan,

não apenas nega a si mesmo como leitor e a sua obra como autoria, como também possui o poder inédito [...] de reescrever os escritos assinados JL [Jacques Lacan], a partir de seu próprio ato de exegese apagado como tal. Em outras palavras, quem compra a versão Seuil de O Seminário não está lendo JL mas JAM [Jacques-Alain Miller], e não sabe. (Goldenberg, 2018, p. 47)

A desleitura milleriana simplifica, decide o indecidido, suprime as ambiguidades, funda uma ortodoxia lacaniana, uma Lacanian Standard Edition, restabelece nos moldes naturalistas um lacanismo filosoficamente fenomenológico, sintonizado com o senso comum. De um ensino feito de enunciados teóricos correntemente reconsiderados e refeitos a ortodoxia instituiu que a última versão do ensino seria a correta e definitiva, de maneira que as anteriores caducaram. Concordamos com o ponto de vista do autor ao considerar que cada momento do ensino de Lacan conduz ao limite um ponto teórico e a formalização que o apoia. O período seguinte se sustenta neste ponto de limite e de impasse que desloca, subverte ou reconduz o conceito numa nova leitura, que simultaneamente inclui e supera a anterior.

Considerado na comunidade lacaniana internacional como o exegeta maior, JAM é um leitor fortíssimo de Lacan. Como escreve Lacan em 1972, "aquele que me interroga também sabe ler-me" (Lacan, 1993/1974 p. 7). O que Goldenberg enfatiza em seu livro é que Miller também sabe, porém não é - ou não deveria ser considerado - o único. Goldenberg tampouco se furta aos possíveis questionamentos em relação à leitura que empreende dos escritos de Lacan. Reconhece que propõe uma desleitura, mas não afirma, nem pensa que a exegese canônica esteja errada e a dele correta. Conclui que seu trabalho de desleitura se debruça sobre as versões críticas mais confiáveis, não se esquiva das dificuldades nem das contradições que se apresentam ao longo do percurso de leitura, muito menos omite o indecidível. Mantém-se atento à leitura que lhe parece mais lógica no contexto em que esse discurso é produzido e fundamenta cada decisão tomada, apontando que outros modos de decidir podem ser considerados.

 

Dimensões Hermenêuticas e Uma Outra Leitura do "Retorno a Freud"

Até aqui, julgamos ter apresentado de uma forma breve a leitura desconstrutiva e algumas modalidades de leitura clássica. Resta apresentar o que Figueiredo (1999) chama de leitura hermenêutica, uma modalidade de leitura exigida historicamente pelos textos sagrados e posteriormente pelos textos jurídicos e filosóficos. Essa leitura parte do pressuposto de que o texto possui um sentido e que, para restaurá-lo, é necessário a construção de um pano de fundo que permita ao texto se situar em um contexto. Ler, portanto, implica contextualizar, descontextualizar e recontextualizar o texto em seus horizontes externos e internos.

Entende-se por horizontes externos aqueles que inscrevem o texto num cenário no qual ele faça sentido. São definidos de acordo com um recorte, que pode ser o do gênero literário, da área de conhecimento, do tema ou do conjunto da obra de um autor. Já os horizontes internos são as referências anteriores que se encontram entrelaçadas ao texto e os elementos que atribuem a cada premissa do texto "um lugar, uma função e um sentido" (Figueiredo, 1999, p. 11). Uma dialética se sustenta entre os contextos internos e externos. A variedade de horizontes internos auxilia a formação de outros tantos horizontes externos e vice-versa. Uma das formas de fazer isso é considerar "outros textos contemporâneos ou pertencentes a um 'mesmo' passado" (Figueiredo, 1999, p. 11).

Se começamos uma leitura situando o contexto epistemológico para revelar o pano de fundo, o tecido sobre o qual se inscreve e se escreve o "retorno a Freud" efetivado por Jacques Lacan, esse "situar" não é simples e ingênuo, e o contexto histórico e epistemológico da produção de um texto ou de um movimento não é saturável. O contexto não está a priori, de antemão, lá, dentro ou ao redor do texto. É preciso construir um contexto. "Situar" um contexto é produzir um corte e um recorte. É uma operação de leitura e um trabalho realizado pelo leitor.

Em 1953, no prelúdio do "retorno", Lacan questionava a relação da comunidade psicanalítica com a ciência, apontando problemas na formalização dos fundamentos psicanalíticos. Apesar do papel na direção da subjetividade moderna, Lacan (1953/1998b, p. 285) indica que a psicanálise se ordenou e se sustentou "com um atraso de meio século em relação ao movimento das ciências".

Eidelsztein (2015) aponta que tal atraso foi reproduzido no movimento psicanalítico e que, ainda em 1950, a ideia comum de ciência seguia de acordo com as concepções de Freud, isto é, estagnada antes de 1900. Durante décadas, os círculos psicanalíticos reproduziram uma espécie de resistência à ciência ao multiplicar ilogismos e obscurantismos, por terem a convicção de que o saber surge da experiência. O efeito disso na comunidade psicanalítica é a hipervalorização do acúmulo de experiência, quer seja na prática clínica ou na análise pessoal, em que a psicanálise é concebida como uma experiência transmitida de um praticante a outro através de vivências individuais e inefáveis. Para Eidelsztein (2015), Freud está mais próximo a um modelo de ciência derivado de Aristóteles e de Newton, enquanto Lacan buscava aproximar a Psicanálise de um modelo mais próximo a Platão e a Einstein.

Assim, diante de um quadro de atraso epistêmico, Lacan iniciou o projeto de "retorno a Freud". Tal projeto procurou ligar a psicanálise às ciências formais articulando-a ao "giro linguístico" de Saussure, Jakobson e Benveniste, com o estruturalismo de Lévi-Strauss, o pragmatismo de Austin, a epistemologia de Koyré, etc. E tudo numa estreita relação com as concepções das ciências modernas: a matemática de Cantor, Frege e Dedekind (topologia, números reais, teoria dos conjuntos, cálculo infinitesimal, etc.) e as físicas (relativista, quântica, de cordas, de supercordas, etc.) (Eidelsztein, 2014, 2015). Assim, Lacan ligou a psicanálise à lógica simbólica moderna, à lógica matemática (Eidelsztein, 2015). A psicanálise doravante deveria consistir em um modelo teórico "que em seu funcionamento cria uma prática e os objetos sobre os quais o faz segundo uma posição que funda quem o busca e o pratica" (Eidelsztein, 2014, p. 3, tradução nossa).

Freud concebeu e inseriu o saber e a prática da psicanálise numa lógica que Eidelsztein (2014) nomeia de "giro biologicista e naturalista". Este giro foi sustentado por grande parte dos pensadores contemporâneos a Freud e caracterizados como "filósofos-médicos". A crítica de Lacan, por sua vez, incide sobre o fato de a psicanálise ter permanecido ligada à concepção científica instituída por seu fundador, a de um empirismo lógico. Nessa ótica, não há uma continuidade de Freud em Lacan, mas uma ruptura, um corte, uma mudança de galáxia epistemológica. Há Freud, para quem o que vem primeiro é a substância viva (o corpo biológico), suas energias (pulsões e libido) e as vivências, frutos do encontro com a realidade. E há Lacan. E há ainda um "Outro Lacan", distinto do Lacan dos freudo-lacanianos, um Lacan com outros pressupostos e fundamentos, estranhos para os freudianos e para os lacanianos.

 

Lacan e a desconstrução da psicanálise freudiana

Constituição subjetiva: o eu e o outro

A leitura-escritura de Eidelsztein (2016) aborda alguns textos nos quais Lacan comentou o conceito freudiano de Trieb. O autor propõe que Lacan subverteu Trieb através de uma "desconstrução da pulsão" cujos objetivos foram: 1) refletir e problematizar o conceito tal como havia sido postulado por Freud e 2) conservar o termo original, mas substituir a base argumentativa e epistemológica.

Lacan desembaraçou Trieb das concepções vitalistas próprias da psicanálise freudiana, nas quais as pulsões eram frequentemente ilustradas como energias ou forças. Doravante inserido no "giro linguístico" lacaniano, Trieb pode ser entendido como uma espécie de autômato ou simulacro do organismo. Lacan (1960/1998d, p. 831) situa a pulsão como um "tesouro dos significantes" e a descola da função orgânica com a qual estava relacionada em Freud. Essa seria uma possível justificativa lacaniana para a concepção errônea desse caráter biológico, uma vez que "as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer" (Lacan, 1975, p. 6, tradução nossa). Haveria uma confusão entre a cadeia significante e os artifícios gramaticais que são rastros dela; o discurso, que é o verdadeiro fenômeno, acaba confundido com o corpo físico, como se fosse este que, na verdade, falasse.

A metapsicologia freudiana propõe, em contraposição a uma observação do material bruto, uma lógica imaterial e espacial - ou seja, de abstrações - para dar ordem, tornar inteligíveis as formações do inconsciente e a própria psicanálise (Triska & D'Agord, 2013). Em alguns textos de Freud, tais como O eu e o isso, já se mostra evidente a necessidade da utilização/construção de modelos que lhe fossem resolutos para o desenvolvimento das teorias metapsicológicas. Observa-se no "modelo do ovo" ou "modelo do saco" uma representação do aparato psíquico como uma figura bilátera, com um lado interior e outro exterior. O Eu freudiano está situado no interior desta superfície esférica, separado do mundo externo. O Inconsciente é constituído por certos conteúdos que são capturados pela oralidade, através de uma zona permeável, por onde significantes poderiam penetrar.

Levando-se em conta que o primeiro investimento libidinal seria no próprio corpo (Freud, 1914/1974b), esta fase narcísica acaba por abrir a possibilidade de investimento em um não-Eu. Entretanto, fatalmente define tudo o que é prazer como relacionado ao Eu e tudo o que é desprazer como não-Eu, externo (Freud, 1930 [1929]/1974c). Partindo deste raciocínio era previsível que o mal-estar na cultura fosse postulado (Eidelsztein, 2015).

Lacan irá empregar uma inversão da lógica freudiana: o Eu deixa o interior do aparato psíquico e, como representado teoricamente no estádio do espelho, constitui-se na relação com o Outro, sem o qual não existiria (Eidelsztein, 2015). Ao modelo freudiano do ovo, polarizado, Lacan vai dar lugar a figuras topológicas. Pensar o retorno a Freud implica considerar a implementação lacaniana da topologia na psicanálise. A empreitada de Lacan tem início com os esquemas (R, Z, L e I), os modelos (como o óptico, já presente no Seminário 1, de 1953-1954), o grafo do desejo, a topologia de superfícies (Seminário 9, 1961-1962) e o matema dos quatro discursos (no Seminário 17, de 1960-1970). Posteriormente, em 1972, Lacan cunha o termo topologia estrutural, no qual as superfícies topológicas são consideradas estruturas de caráter abstrato e imaterial, em concordância com a teoria estruturalista (Triska & D'Agord, 2013).

Do pai morto à falta no Outro

Segundo Freud (1913 [1913-1912]/1974a), a origem das sociedades, antigas e modernas, remete ao fenômeno do totemismo, cuja organização social era bastante peculiar. Na época totêmica, havia uma série de regras para aqueles que compartilhavam do mesmo totem, isto é, de um mesmo animal ou planta que atuava como símbolo sagrado. O grupo de pessoas que pertenciam a um mesmo clã chamavam a si mesmos pelo nome do totem; acreditavam que realmente descendiam do animal representado por esse totem; eram considerados irmãos e irmãs e por isso não poderiam casar ou ter relações sexuais entre si. Além disso, o animal totêmico não poderia ser caçado nem morto, e sua carne não poderia ser comida, exceto em cerimônias muito específicas. Para a psicanálise freudiana, o animal totêmico nada mais é do que um suplente do pai, o que é corroborado pela interdição do assassinato e do consumo da carne do animal.

Para a construção desse mito, Freud (1913 [1913-1912]/1974a) descreve uma cena primitiva. Haveria um pai primevo de quem todos os outros machos descenderam. Violento e autoritário, expulsa os filhos quando estes crescem e chegam à maturidade sexual, pois todas as fêmeas do bando são restritas a esse pai. Até que um dia esse grupo de filhos, até então vivendo em exílio, retorna para matar e devorar o pai, encerrando o seu reinado. Uma vez que o pai está morto, os filhos passam a sentir culpa e remorso por seu ato parricida, já que, apesar de o odiarem, também o amavam e o admiravam. "O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo", descreve Freud (1913 [1913-1912]/1974a, p. 170). Os tabus que foram impostos pelo pai em vida agora são proibidos pelos próprios filhos: não matarás o totem (isto é, o pai) e renunciarás à satisfação sexual com as mulheres do totem. Estes dois tabus correspondem aos dois desejos que são reprimidos no complexo de Édipo (Freud, 1913 [1913-1912]/1974a). A culpa filial, oriunda da morte do pai, é a origem da religião totêmica. Da mesma forma, as religiões, a moral e a sociedade convergem todas para o complexo de Édipo.

Esse caráter universal dado ao Édipo foi posteriormente questionado por diversos pesquisadores, sobretudo no campo da antropologia e da sociologia. Malinowski é um dos antropólogos que argumentam contra a universalidade do Édipo, já que este depende de certos contextos sociais presentes nas sociedades 1) patriarcais e 2) ocidentais. Como podemos resgatar no comentário de Lacan (1938/2008a) sobre Malinowski, há diferenças no papel do pai nas sociedades matriarcais em relação às sociedades patriarcais: as tarefas que o pai desempenha possuem caráter mais familiar e o tio materno é quem introduz a criança nos ritos e tabus.

Em 1938, no texto Os complexos familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de uma função em psicologia, Lacan revisou o complexo de Édipo, considerando as estruturas mentais, bem como os fatos sociais, que permitam situar a família paternalista na história para, em seguida, esclarecer a neurose contemporânea. Na reelaboração lacaniana de 1938 acerca do papel do complexo de Édipo no psiquismo humano é possível destacar mais uma contraposição teórica em relação a Freud. Se para Freud o Édipo cumpre uma função na gênese das neuroses conforme as dificuldades que houvesse transposto em seu percurso e resolução, para Lacan (1938/2008a, 1946/1998a) a experiência edípica surge como um fato positivo da vida subjetiva, inclusive denota seu aspecto sadio, como uma forma de esquivar-se da asfixia característica da estrutura narcísica (o estádio do espelho). Nas palavras de Lacan (1946/1998a, p. 184), "uma certa 'dose de Édipo'" será necessária na constituição do mundo da realidade, na organização das categorias temporal e espacial. Por possibilitar a sublimação da realidade, no complexo de Édipo jaz a base para o progresso das culturas e desenvolvimento das produções simbólicas das sociedades.

No plano da dinâmica edípica lacaniana, tanto a imago materna como a paterna2 mobilizam da mesma maneira o processo de repressão (constituição do supereu) e o de construção identitária (que erige o ideal do eu). Todavia, Lacan assinala que na doutrina freudiana a atividade de repressão parte unicamente do lado paterno, para ambos os sexos. Essa visão freudiana está subordinada à concepção universalista de um Édipo submetido a um imaginário a-histórico da ordem familiar (Zafiropoulos, 2002). É neste aspecto que Lacan relembra a relevância da participação materna na origem da atividade de repressão sexual e da ordem familiar, em contraposição à valorização que Freud concede à dominação do varão, o único a quem adjudica a instituição da lei para o sujeito do Édipo e do social. No que concerne à repressão sexual, Lacan (1938/2008a, p. 51. grifo nosso) destaca que "para definir no plano psicológico essa gênese da repressão, devemos reconhecer na fantasia de castração o jogo imaginário que a condiciona, na mãe o objeto que a determina". Portanto, o princípio da repressão e, consequentemente, a formação do supereu não depende, ao ver de Lacan, de uma dominação masculina, manifesta no temor ao pai vigente na referência do fantasma de castração. A repressão advém também do protótipo materno incitado pelo desejo genital do Édipo, que relança o fantasma do corpo fragmentado. 

Não obstante, Lacan (1938/2008a, 1946/1998a) toca em outro ponto importante de sua leitura sobre o complexo de Édipo, no qual o triunfo da imago paterna sobre a materna, no tocante à formação das identificações, está sujeito à relatividade sociológica. Em suma, do ponto de vista lacaniano, a imago paterna só concentra a função de repressão e a de idealização do Édipo à custa da determinação sociocultural da família paternalista. A perspectiva lacaniana de relativismo sociológico do Édipo se opõe à defendida por Freud, que sublinhava uma concepção universalista do complexo de Édipo. Portanto, o ponto de remate da constituição psíquica do sujeito (a saída pelo Édipo) não é inerente à forma deste complexo, isto porque o complexo de Édipo não é universal e supõe que suas modalidades se modificam de acordo com as condições de funcionamento das famílias, estabelecidas, por sua vez, pela evolução sócio-histórica das sociedades. Vale evocar que Lacan define o complexo como a unidade funcional do psiquismo condicionada por fatores culturais, posto que não corresponde a funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções.

Mais adiante, em 1953, encontramos um Lacan profundamente imerso na antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Na lógica proposta pelo antropólogo, as neuroses devem ser interpretadas como formações míticas (Zafiropoulos, 2018), tese endossada por Lacan que, naquele mesmo ano, empreende uma leitura do caso do Homem dos Ratos na qual descreve a neurose obsessiva como um mito individual do neurótico. O texto O mito individual do neurótico (Lacan, 1952/2008b) é a primeira publicação de Lacan em que aparece a noção de Nome-do-pai. Nele surgem as referências à tríade real, simbólico e imaginário, a função e a estrutura.

O deslocamento que se produz em 1953, em termos conceituais, concerne à passagem do valor social do pai de 1938 ao valor estrutural e propriamente simbólico de seu nome. Em resumo, o que se opera é a mudança de ênfase no papel das circunstâncias familiares ou das condições sociais do edipismo em benefício do poder do Nome-do-pai como símbolo ou, mais precisamente, da função simbólica que norteia o destino do homem. A lógica desta função se pauta nas regras propostas pelos especialistas das ciências sociais, etnólogos e linguistas, que sucederam Durkheim nos embasamentos antropológicos de Lacan (Zafiropoulos, 2002).

A hipótese de Lévi-Strauss (1949/1982) quanto à noção de parentesco permitiu a Lacan aprofundar as questões acerca das fundações do universalismo edipiano proposto por Freud - questionamento já presente em 1938 -, alicerçado não mais no sentimento de um temor natural do incesto, mas na existência de uma função simbólica assimilada como lei da organização inconsciente das sociedades humanas. Logo, com a entrada em cena da antropologia de Lévi-Strauss, o complexo de Édipo passou a figurar no quadro de um universal simbólico e deixou de ser pensado como um universal natural.

O mito neurótico, assim como o orenda, o wakan, o mana e o hau, faz parte de uma lista de elementos que Lévi-Strauss (1950/2018) chama de formas institucionais de tipo zero ou significantes de exceção, aquilo que permite o exercício do pensamento simbólico. Esses significantes de exceção não teriam, para Lacan, valor simbólico zero. O que estaria de fato em questão não é nem o mana, nem o pai morto, mas a falta produzida por eles; falta esta que, segundo Zafiropoulos (2018), estaria encoberta pelo ideal do eu. Para Lacan, esses significantes têm valor imaginário i = √-1. No léxico dessa função simbólica, a expressão lacaniana é a falta no Outro, S(Ⱥ).

Em termos históricos, Zafiropoulos (2002; 2018) comenta que, ao mesmo tempo em que Lacan avança na elaboração da teoria do Nome-do-pai, ele retifica sua posição subjetiva com respeito ao Nome-do-pai da psicanálise. Procede assim, um ato inaugural que funda um novo campo analítico, adequado ao que nesse período é posto em manifesto na clínica analítica lacaniana: a fecundidade do pai morto, de seu nome e de sua palavra.

O que interessa a Lacan durante o retorno a Freud é a integração simbólica do sujeito (Zafiropoulos, 2018). Neste sentido, o Édipo freudiano representa uma situação simbólica possível em um mar de outras possibilidades de "modalidades mitológicas e rituais, histórica e geograficamente diferenciadas, a exemplo de Lévi-Strauss" (Zafiropoulos, 2018, p. 327); é um particular pensado como universal ou, em outras palavras, uma das chaves desta integração. Acreditamos que Lacan não estava tão interessado no mito do pai morto da horda primitiva, ou seja, em um elemento particular posto por Freud no centro da estrutura e sustentado como universal; mas naquilo que lhe é suplementar, isto é, o jogo do qual esse elemento faz parte e que de fato é, para Lacan, universal: o próprio "molho de chaves" da função simbólica.

 

Considerações finais

Tomemos o termo utilizado por Lacan: retourner. O verbo francês retourner pode ser traduzido como "retornar, voltar a um lugar em que já se esteve", mas inclusive entendido como "pôr alguma coisa ao avesso"; "virar-lhe de modo a colocar o 'acima' embaixo, a 'frente' atrás"; "inverter o senso"; "fazer mudar de opinião"; "orientar algo ou alguém para uma posição inversa, sobre alguém ou algo" (Retourner, 2020). Lacan leu o discurso da metapsicologia freudiana e se valeu dele para desmontá-lo, torcê-lo e reposicioná-lo. Nesse sentido, o Seminário 17, intitulado no Brasil como O avesso da psicanálise, também poderia ser traduzido como A psicanálise ao avesso (Eidelsztein, 2015).

Nas leituras clássicas, no entanto, é difundida a ideia de que Lacan empreende um retorno à obra de Freud. Em verdade, o que nos permitiu falar em uma desconstrução da psicanálise freudiana é sua fidelidade, não à letra de Freud, mas aos princípios norteadores e efeitos do texto de Freud (Eidelsztein, 2015). Em suas palavras:

a palavra de ordem com que nos armamos, do retorno a Freud, nada tem a ver com o retorno às fontes, que, aqui como alhures, poderia significar apenas uma regressão [...]. Nosso retorno a Freud tem um sentido completamente diferente por dizer respeito à topologia do sujeito, a qual só se elucida numa segunda volta sobre si mesma. [...] Essa dupla volta da qual fornecemos a teoria presta-se, com efeito, a uma outra costura, ao lhe oferecer uma nova borda: aquela de onde ressalta uma estrutura muito mais apropriada do que a antiga esfera para responder pelo que se propõe ao sujeito como dentro e fora. (Lacan, 1966/1998e, pp. 368-369)

Em A coisa freudiana, afirma: "O sentido de um retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud" (Lacan, 1955/1998c, p. 406). Ele o faz, não sem sublinhar que esse retorno significa uma reviravolta. Ademais, ao retornar ao sentido freudiano, Lacan promove uma inversão: ele parte e elabora outras ideias, orientado no inconsciente freudiano, mas ao avesso (Eidelsztein, 2015). Essa virada ao avesso é a própria razão de ser da desconstrução, isto é, a intenção de mudar a direção hierarquicamente imposta entre termos, para que seja estabelecida uma indecisão produtora de sentidos, ou seja, para que o jogo aconteça.

Se um discurso é um "sistema no qual o significado central, originário ou transcendental nunca estará absolutamente presente fora de um sistema de diferenças" (Derrida, 1967/2014, pp. 409-410), compreendemos que o discurso freudo-lacaniano está também submetido às diferenças e aos acontecimentos. O retourner, ou seja, essa torção promovida por Lacan pode ser lida como um acontecimento resultado de uma ruptura e de um redobramento, isto é, da passagem de um campo para outro campo. Se aqui fizemos um exercício de rompimento de Freud-Lacan, isso foi para pôr em evidência que diferenças e sentidos novos podem emergir dessa desambiguação. Pelo mesmo motivo, a desambiguação Lacan-Miller também nos parece necessária.

Nosso princípio é: não só isto, mas também aquilo. A nossa leitura, essa outra leitura, é paradoxal, pois é suplemento. É uma leitura sobre o retorno a Freud, que não só contradiz a leitura de Miller, como, ao contrário, suplementa o que Miller escreve. Se Miller preconiza, em seu texto, que há uma mudança de vocabulário entre Lacan e Freud, podemos dizer que há de fato uma mudança de vocabulário, mas há mais que isso. Lacan, enquanto texto, está aberto a inúmeras possibilidades de leitura. Essa outra maneira de ler, esse "ler de uma certa maneira" (Derrida, 1967/2014, p. 420), causa uma ruptura na forma como Lacan é lido classicamente e inaugura uma outra leitura da psicanálise, a partir da herança do discurso freudo-lacaniano e de suas diferenças com esse outro Lacan.

 

 

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Artigo recebido em: 10/11/2019
Aprovado para publicação em: 04/08/2020

Endereço para correspondência
Ana Carolina do Rosário Correia
E-mail: ana.correia@ip.ufal.br
Hélida Vieira da Silva Xavier
E-mail: helida.x@gmail.com
Charles Elias Lang
E-mail: charles.lang@ip.ufal.br

 

 

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
**Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
***Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
1Achamos pertinente recordar que, em 1953, Lacan foi deposto do cargo de presidente da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), em meio a discussões que questionavam a efetividade das técnicas adotadas por ele, sobretudo o uso de sessões curtas. Naquele mesmo ano, Lacan se demitiu dessa instituição com outros psicanalistas e juntos fundaram a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP).
2O vocábulo imago utilizado por Lacan (1938/2002) inscreve no inconsciente os dois núcleos da representação do modelo familiar: matriarcado e patriarcado. Segundo o Roudinesco & Plon (1998), imago deriva da psicologia junguiana e refere-se a um protótipo inconsciente de personagens, designando a maneira como o sujeito apreende o outro, sendo elaborado a partir das primeiras relações intersubjetivas reais e fantasmáticas com os componentes do círculo familiar.

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