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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Experiências de (des)continuidade e o vir a ser no abrigo: entre encontros e possibilidades

 

Experiences of (dis)continuity and the possibility of come to be in the shelter: between encounters and possibilities

 

Experiencias de (des)continuidad y el venir a ser en el abrigo: entre encuentros y possibilidades

 

 

Poliana Omizzollo*; Milena da Rosa SilvaI**; Lizia Pereira da Rosa TabordaII***

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
IITavistock and Portman NHS Foundation Trust

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta um fragmento de um projeto maior, o qual abordou as possibilidades de vir a ser em uma instituição de acolhimento. Nos propusemos a realizar uma operação de leitura (Jerusalinsky & Berlink,2008) da relação estabelecida entre bebês que se encontram acolhidos em abrigos residenciais e seus respectivos cuidadores. Discutimos as observações realizadas com dois bebês, com 14 e 18 meses de idade, acolhidos em dois distintos abrigos residenciais de Porto Alegre (RS - Brasil). Realizamos quatro visitas a cada casa, nas quais os bebês foram observados em relação com os agentes educadores, utilizando os Indicadores Clínicos de Referência para o Desenvolvimento Infantil (IRDIs). Buscamos ainda, a partir de conceitos fundamentais da teoria de D. Winnicott, apoio para refletir acerca do que se mostrou em evidência na relação entre bebês e cuidadores, de modo que as concepções de ambiente e de (des)continuidade dos cuidados serviram como base nesta leitura, permitindo a emergência de alguns apontamentos: mesmo ressaltando o direito da continuidade dos cuidados que toda criança possui, a separação da mãe/família não necessariamente se faz, por si só, traumática. Compreendemos, portanto, que mesmo sendo portadores de uma marca primeira (privação da família originária), existe possibilidade de o bebê se desenvolver satisfatoriamente no contexto do acolhimento institucional desde que possa estabelecer um encontro com alguém/ambiente disponível para sustentá-lo, para proporcionar uma experiência de continuidade e para impedir que seu sofrimento inicial impossibilite seu vir a ser.

Palavras-chave: Bebê, acolhimento institucional, IRDI, Winnicott, psicanálise.


ABSTRACT

This paper presents a fragment of a larger project, which addressed the possibilities of come to be in a sheltering institution. We proposed to perform a reading operation (Jerusalinsky & Berlink,2008) of the relationship established between infants who are living in residential shelters and their respective caregivers. We discussed the observation of two infants, with 14 and 18 months-old, sheltered in two different residential shelters in Porto Alegre (RS - Brazil). We conducted four visits to each house, in which each infant was observed in relation to their educating agent, using the Clinical Reference Indicators for Child Development (IRDIs). We also seek, from fundamental concepts of D. Winnicott's theory, support to reflect on what has been shown in evidence in the relationship between infants and carers in a way that the conceptions of environment and (dis) continuity of care served as the basis for this reading, allowing the emergence of some notes: even emphasizing the right of continuity of care that every child has, the separation of the mother / family is not necessarily traumatic in itself. We understand, therefore, that even if they have a first mark (deprivation of the original family), there is a possibility that the baby develops satisfactorily in the context of institutional care, as long as he can establish an encounter with someone/environment available to support him, to provide an experience of continuity and to prevent that this initial suffering makes him incapable of come to be.

Keywords: Infant, sheltering institution, IRDI, Winnicott, psychoanalysis.


RESUMEN

Este documento presenta un fragmento de un proyecto más amplio, que abordó las posibilidades de llegar a ser sujeto en una institución de acogida. Se propuso realizar una operación de lectura (Jerusalinsky & Berlink, 2008) de la relación que se establece entre los bebés que se encuentran acogidos en albergues residenciales y sus respectivos cuidadores. Discutimos las observaciones realizadas con dos bebés, de 14 y 18 meses, que están alojados en instituciones de acogida en Porto Alegre (RS - Brasil). Para esto, utilizamos los Indicadores clínicos de referencia para el desarrollo infantil (IRDI). Realizamos cuatro visitas a cada hogar, en las que se observó a los bebés en relación con los agentes educadores, utilizando los Indicadores Clínicos de Referencia para el Desarrollo Infantil (IRDIs). También se buscó, a partir de los conceptos fundamentales de la teoría de D. Winnicott, sustento para reflexionar sobre lo evidenciado en la relación entre bebés y cuidadores, de manera que las concepciones de entorno y (dis) continuidad del cuidado sirvieran de base en esta lectura, permitiendo el surgimiento de algunas notas: incluso enfatizando el derecho a la continuidad del cuidado que tiene todo niño, la separación de la madre / familia no es necesariamente traumática en sí misma. Entendemos, por tanto, que aun siendo portadores de una primera marca (privación de la familia originaria), existe la posibilidad de que el bebé se desarrolle satisfactoriamente en el contexto del cuidado institucional, siempre que pueda establecer un encuentro con alguien / entorno. disponible para apoyarlo, para brindar una experiencia de continuidad y para evitar que tu sufrimiento inicial te haga imposible llegar a ser.

Palabras clave: Bebés, cuidado institucional, Winnicott, IRDI, psicoanálisis.


 

 

Introdução

E ste relato busca resgatar fragmentos de experiências em lares que se apresentam distintos daqueles de uma família. São instituições que acolhem bebês, crianças e adolescentes que por diversos motivos foram separados de suas famílias de origem. Neste processo, onde a (des)continuidade se faz presente, apresentam-se diferentes formas de encontros e descobertas, de modo que fomos incitadas a refletir acerca das possibilidades de vir a ser que se configuram nestes locais.

Boris Cyrulnik (2006) nos traz a ideia do tempo enquanto atravessado por vivências carregadas de sentido e afetividade, por meio das quais registros são produzidos através de imagens e palavras. Nesta conjuntura, o autor nos apresenta a ideia do tempo enquanto sinônimo de diferentes passagens, onde memórias são construídas através de tudo o que é contínuo e também daquilo que por algum motivo possa vir a se interromper, deixando ainda alguma marca. Neste ensejo, trazemos a teoria winnicottiana, a qual apresenta como seu fio condutor a ideia de continuidade do ser (being), onde a constância dos cuidados assegura e proporciona o devir sujeito. Nas palavras do autor, "a base de todas as teorias sobre o desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimento concreto do bebê" (Winnicott, 1968/2006, p. 79). Esta possibilidade de cuidados contínuos propicia ao bebê a confiança necessária para sentir-se real.

Para Figueiredo (2009), sem a oferta e experiência da continuidade não é possível o sentimento de existir. Neste caminho, é preciso que a continuidade seja construída e reconstruída a cada passo, sendo esta incumbência daquele que cuida, "frequentemente são famílias, grupos e instituições os objetos mais aptos a oferecer holding ao longo da vida, principalmente quando o que está em jogo é a continuidade na posição simbólica do sujeito no mundo" (Figueiredo, 2009, p. 125-126).

Partindo da concepção de Figueiredo (2009) quanto à construção e reconstrução da continuidade no decorrer do tempo, bem como das concepções winnicottianas (1950/2005, 1968/2006) a respeito, trazemos à discussão o contexto que por ora nos dedicamos a abordar: crianças que por algum motivo se encontram separadas de sua família de origem, residindo em instituições de acolhimento. Neste sentido, não podemos nos furtar de considerar a possibilidade de que um registro psíquico calcado no "abandono" esteja presente. Isto posto, invadem-nos questões que permeiam o processo da continuidade, neste específico contexto: Esta primeira interrupção pode ser considerada uma violência da descontinuidade? Pode este processo ser construído em um ambiente marcado por constantes inconstâncias? A fim de investigar esse tema, realizamos uma operação de leitura de bebês acolhidos em Abrigos Residencias (AR) distintos e para tanto foram utilizados relatos dos diários de campo de cada observador e o Instrumento IRDI - Indicadores Clínicos de Referência para o Desenvolvimento Infantil (Kupfer et al., 2009).

 

Método

Este estudo objetiva destacar um recorte de um escrito maior (Omizzollo, 2017), o qual aborda as possibilidades de vir a ser, nos sentidos propostos por Winnicott (1960/2007), em uma instituição de acolhimento, considerando as possíveis implicações para a criança que se encontra separada de sua família de origem. Para tal, lançamos mão d os I RDIs - Indicadores Clínicos de Referência para o Desenvolvimento Infantil (Kupfer et al., 2009), uma metodologia de avaliação, prevenção e promoção de saúde mental na primeira infância, que já vem sendo utilizada em outros contextos (Wiles, Omizzollo, Ferrari & Silva, 2017), Para a análise das observações realizadas, utilizamo-nos de c onceitos fundamentais da teoria de D. Winnicott, sobretudo as concepções de ambiente e de (des)continuidade dos cuidados.

Tendo como base a proposição de leitura de bebês de Jerusalinsky e Berlinck (2008), realizamos uma operação de leitura da relação que se estabelece entre os bebês que se encontram acolhidos em abrigos residenciais (ARs) no município de Porto Alegre (Brasil) e seus respectivos cuidadores (agentes educadores - AEs). Esta leitura é possível a partir do momento em que o bebê oferece como "dado a ver" (Jerusalinsky & Berlinck, 2008, p.122), no corpo e no comportamento, aquilo que se manifesta do sujeito. Não se trata, portanto apenas de uma observação, mas de uma leitura clínica, onde o que está dado a ver - e também dado a ouvir, sentir... - assume papel de comunicação do que se passa subjetivamente com os bebês.

A fim de melhor elucidar este método, os autores utilizam como exemplo as iluminuras presentes nos textos medievais, que possuíam como objetivo "capturar o olhar produzindo um silêncio no leitor antes de iniciar a leitura" (Jerusalinsky & Berlinck, 2008, p.128), trazendo algo de fascinante. Neste ensejo, os autores se remetem à leitura daquilo que o bebê manifesta, alertando que, para que tal manifesto possa ser li do clinicamente, deva ser tomado como um enigma, que será então decifrado a partir do entrelaçamento "do dado a ver no corpo e da produção do bebê com a escuta do discurso parental e o modo como esse discurso se coloca em ato nos cuidados do bebê" (Jerusalinsky & Berlinck, 2008, p. 128).

Pode-se aproximar tais ideias com o que propõe Winnicott (1941/2000) quando se vale da observação de uma situação padronizada para mostrar que o que opera na relação entre mãe (cuidador) e bebê, e nos sintomas que o bebê apresenta, se dá em rede, ou seja, tanto pelo lado da mãe quanto pelo lado do bebê. Assim, trata-se de observar o que o bebê apresenta como dado a ver, mas imbricado no contexto que o sustenta e abre (ou não) espaço para seu vir a ser.

A experiência que deu base ao presente estudo transcorreu a partir de visitas a sete abrigos residenciais da cidade de Porto Alegre (RS/Brasil) por três pesquisadores. Em alguns momentos as visitas aconteceram em duplas, em outros por apenas um pesquisador, sempre no mesmo turno. Foram realizadas, em média, quatro visitas a cada casa, onde puderam ser observados dez bebês de até 18 meses, na relação com o adulto (AE) responsável por seus cuidados (Omizzollo, 2017). Nesses encontros, os pesquisadores utilizaram o Instrumento IRDI (Kupfer et al., 2009), que consiste de 31 indicadores, para verificar como estava se dando a constituição subjetiva dos bebês, considerando a relação estabelecida com os agentes educadores. Os indicadores apontam para diferentes situações que eram observadas, na origem do instrumento, na relação do bebê com sua mãe. Já neste caso, os indicadores foram adaptados para contemplar a relação do bebê com o agente educador, que, mesmo não assumindo papel de mãe ou pai, ocupa uma posição elementar na constituição subjetiva do bebê. Cada indicador deve ser avaliado como: Presente, Ausente ou Não Observado. Além do instrumento IRDI, os pesquisadores utilizaram também um diário de campo, de forma a armazenar suas percepções acerca das observações realizadas. Importante ressaltar que este momento não compreendeu um acompanhamento longitudinal, tampouco uma avaliação pontual de um único registro, mas um processo intermediário, com número variado de encontros com cada dupla, capaz de oferecer indícios suficientes para a realização desta leitura.

A leitura destes momentos proporciona ao pesquisador uma compreensão acerca das vias pelas quais está se dando a constituição subjetiva de cada bebê - quando presentes, os IRDIs são indicadores de desenvolvimento, e, quando ausentes, apontam riscos para o desenvolvimento. Assim, o valor do IRDI está em detectar a tempo entraves à constituição subjetiva, e tratá-los a tempo. Segundo Kupfer et. al. (2009), o instrumento possibilita realizar a prevenção e o tratamento "num período em que as áreas mais nobres do aparelho psíquico ainda estão em construção" (p. 61). Os indicadores isoladamente nada dizem. Do contrário, só valem por sua relação com outros representando a articulação entre o desenrolar do tempo cronológico e o estrutural no tempo da infância. Só assim possuem um valor de tendência de indicação do processo de constituição psíquica (Pesaro, 2010). A avaliação com o instrumento IRDI nunca aponta para um diagnóstico, e sim para "a) presença ou ausência de problemas de desenvolvimento propriamente dito para a criança, ou b) presença ou ausência de problemas de desenvolvimento com risco psíquico para a constituição do sujeito" (Kupfer et al., 2009, p. 56).

Dentre os sete abrigos residenciais (ARs) acompanhados, destacaram-se dois ARs que apresentaram maior contraste entre si (ARs Verde e Violeta). No presente trabalho, serão apresentadas as análises relativas a esses dois ARs. Em cada AR foi observado um bebê, cuja leitura - a qual enlaça a avaliação com os IRDIs e as observações registradas nos diários de campo - será apresentada e discutida. Para fins de confidencialidade, todos os nomes de bebês, AEs e ARs foram alterados.

 

Visitando abrigos residenciais: elementos para uma leitura

Durante o processo de visitas a cada uma das casas, houve cenas que se destacaram e nos despertaram a atenção. O AR Verde era uma casa bastante organizada, tanto em seu aspecto físico quanto no que diz respeito às relações estabelecidas (entre os AEs e as crianças como um todo). Havia um clima tranquilo, onde o cuidado com João, bebê de 14 meses que ali habitava, era evidente. Val, a AE que se propunha especialmente aos cuidados do menino, conhecia-o desde a sua chegada à casa. A organização era bastante evidente: o AE Fábio se encarregava principalmente dos adolescentes, enquanto Val podia dedicar-se quase que exclusivamente a João, mostrando-se extremamente carinhosa e afetuosa com ele. Fábio e os outros funcionários também demonstravam muito carinho pelo menino, que parecia muito bem "olhado" ali (como pela cozinheira, bastante carinhosa, e em algumas das visitas havia uma técnica de enfermagem que também demonstrava um cuidado especial).

Os adolescentes, nesta casa, assumiam um papel muito importante. Em geral eram cuidadosos e gostavam de João, principalmente as meninas e um dos meninos, com quem ele mantinha um ótimo vínculo. Esses jovens conseguiam fazer uma função que em outras casas não foi possível observar nem pelos próprios AEs. Eles brincavam, instigavam, faziam com que a presença de João na casa fosse importante. Eles sabiam que logo João iria embora, como muitos outros bebês foram. Mostraram-nos isso através de um mural com fotos de muitas crianças que passaram pela casa. Este mural parecia mostrar um pouco daquela "família", onde havia histórias que não se apagavam quando alguém saía ou quando uma nova criança chegava, de modo que todos faziam parte. João parecia muito bem, era uma criança alegre, ativa, criativa e já falava algumas palavras, aumentando seu vocabulário dia após dia. Movimentava-se com agilidade, correndo pela casa, explorando tudo o que lhe era possível. Questionamo-nos se nos outros turnos haveria este mesmo clima agradável, e, através do que se pode percebe da relação estabelecida entre os adolescentes, é possível inferir o quanto esta fazia função ímpar tanto para João, quanto para eles próprios auxiliando na construção deste ambiente

Já o AR Violeta foi, de longe, a casa onde foram encontradas mais dificuldades, gerando, assim, maior preocupação com as crianças. O ambiente era bastante tumultuado, com pouca organização. A casa era grande (dois pisos) e possuía um pátio amplo nos fundos, onde as crianças permaneciam boa parte do tempo em que estivemos lá. No entanto, tratava-se de um lugar muito perigoso, sendo bastante acidentado, com um piso de concreto muito antigo e esburacado, além de escadas. As crianças tropeçavam, caiam e se levantavam, quase sempre sem amparo de um adulto. À exceção de poucos momentos, esta casa nos transmitia uma sensação de preocupação e mal estar. Era onde vivia Lucas, então com 18 meses.

Os AEs eram muito difere ntes entre si. Apesar de conseguirmos observar poucos momentos de relação com as crianças, Carlos demonstrava-se atencioso e carinhoso para com elas. Conversava com as crianças enquanto as alimentava ou calçava. Nitidamente havia uma preferência por ele em relação, por exemplo, à AE Maria. No entanto, Carlos não parecia muito vinculado às crianças, pois se ocupava essencialmente de outras tarefas; já Maria parecia ainda mais distante das crianças, de modo que a impressão que tivemos foi que estava ali apenas para atender ao cuidado físico das crianças. Da parte dela não foi possível observar nenhuma demonstração de carinho ou afeto. Já a AE Claudia, que esteve presente em apenas uma de nossas visitas, era quem mais acolhia a demanda das crianças, além de ser, explicitamente, a mais solicitada por elas. Ainda assim, evidenciamos que as crianças passavam muito tempo sozinhas, e apresentavam, todas, grande necessidade de chamar a atenção, falando muito alto, gritando e criando conflitos de diversos tipos. Claudia era quem, de alguma forma, parecia tentar acolher aqueles pequenos sujeitos, ao mesmo tempo em que parecia cansada e "estressada" por precisar dar conta de muita coisa sozinha, de modo que praticamente não recebia a ajuda dos outros AEs.

Lucas nos preocupou de início, estava retraído, desconfiado, não respondia aos nossos investimentos. Contudo, na presença de Claudia demonstrou estar muito melhor: correndo, brincando, sorrindo, buscando pelos AEs e principalmente pelas demais crianças. "Provocava" as AEs quando estas tentavam impor-lhe alguma regra, sorrindo maliciosamente. Respondia com afeto ao investimento do irmão mais velho, de oito anos. A irmã, de cinco anos aparentemente não fazia questão de manter uma relação com ele. Os três foram acolhidos juntos, sendo que Lucas passou seu primeiro ano de vida em uma clínica de reabilitação junto da mãe. No momento em que iniciamos a pesquisa, Lucas e seus irmãos não recebiam visitas da família há quase seis meses. Foi possível perceber uma grande diferença no seu comportamento de acordo com os AEs presentes. No dia em que estava Claudia, Lucas parecia mais solto, brincando com os demais, correndo e sorrindo. Ele buscava por Claudia que respondia afetivamente, segurando-o no colo e soltando, de modo que podia sair para brincar e retornar para onde parecia sentir-se seguro. Nos outros momentos, dificilmente o vimos sorrir, e esteve mais isolado, sem investimento e atenção por parte dos AEs.

Como já aludido anteriormente, a análise realizada neste estudo focalizará estas duas casas, de modo que nos deteremos aos dois bebês nelas acolhidos, às suas avaliações a partir dos IRDIs e das observações registradas nos diários de campo. Buscamos, a partir de conceitos fundamentais da teoria winnicottiana, apoio para refletir acerca do que se mostrou em evidência e nos tomou enquanto enigma, convidando-nos a ler "em lugar de ficar capturados no fascínio e estranhamento que o sintoma como espetáculo dado a ver produz", como bem apontam Jerusalinsky e Berlinck (2008, p. 130).

A partir disso, esta leitura permitiu a emergência da seguinte premissa: mesmo apontando para a necessidade da continuidade dos cuidados que toda criança possui, a separação da mãe/família não necessariamente se faz, por si só, traumática. Está posta a existência de inúmeros fatores que conduzem ao abrigamento, o que invariavelmente acarreta importantes marcas no sujeito (Stahlschmidt, Cintra & Svirski, 2007). No entanto, estas marcas precisam ser lidas no caso a caso, onde, a partir do contexto em que se desenvolvem, pode ser compreendido em que medida podem implicar em problemas no processo de integração. Trazemos tais apontamentos tendo em vista que a retirada da família talvez não implique na quebra de uma continuidade dos cuidados, uma vez que esta continuidade não é garantida simplesmente pelos laços de sangue. Por outro lado, talvez a quebra já tivesse ocorrido antes da vivência do acolhimento institucional. Nesta conjuntura, questionamo-nos sobre a possível experiência de uma violência da descontinuidade, o que nos conduz a refletir acerca de que lugar ocupa o ambiente abrigo para estas crianças.

 

É possível falar em violência da (des)continuidade?

Segundo Val, João foi para esta casa direto do hospital, sendo filho
de uma mãe usuária de drogas. A família foi destituída do poder muito
recentemente, mas nunca tiveram contato
.
(Diário de campo, AR Verde)

...a agente me falou mais das crianças. Lucas ficou com a mãe até
mais ou menos um ano em uma clínica para dependentes químicos; foi para
o abrigo por maus tratos da mãe há mais ou menos seis meses e desde então
a mãe não visitou mais, "caiu nas drogas de novo" disse a agente

(Diário de campo, AR Violeta).

Os breves relatos acima se apresentam sob a forma de convite para iniciar uma reflexão acerca do que pode configurar o ato do acolhimento para estas crianças. Na medida do possível, buscávamos compreender um pouco mais acerca dos motivos que levaram cada bebê ao abrigo. Porém, deparamo-nos com escassas informações, o que nos mobilizou ainda mais ao percebermos que os próprios agentes não eram detentores das mesmas. A partir dos relatos dos AEs das casas observadas, foi possível depreender que a maioria das crianças se encontram em instituições de acolhimento em virtude de serem filhos do crack, expressão bastante utilizada por eles para designar as crianças cujos pais são usuários da substância e em grande parte também moradores de rua.

As instituições de acolhimento se configuram como uma medida de proteção, excepcional e transitória, e se destinam a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou risco. Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069, 1990) esta medida deve ser utilizada apenas como último recurso até o retorno à família de origem ou à inserção em família substituta. De acordo com Jankzura (2008), a partir do momento em que a família ou responsáveis não conseguem zelar pelos direitos da criança ou do adolescente, e que tampouco o Estado está sendo capaz de garantir proteção social da família, o abrigo acaba por se tornar uma necessidade. Ainda para a autora, o abrigo seria um arranjo provisório e excepcional, que tem por objetivo proteger os direitos humanos da criança e do adolescente.

Existem muitos estudos acerca da vivência em abrigos (Lima, 2021; Mulinari, 2021; Omizzollo, 2012; D ell'aglio & Siqueira, 2006; Janczura, 2008), sendo que alguns apontam prejuízos para a criança, e outros, uma possibilidade positiva para o desenvolvimento infantil ao configurar uma nova chance para aqueles cujas famílias não representam um bom ambiente de sustentação. Embora na política que baseia esta prática (Lei 8069, 1990) existam medidas específicas que sustentem a proteção das crianças, visando ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, na sua efetivação há questões importantes que vão de encontro ao Estatuto. De acordo com Stahlschmidt, Cintra & Svirski (2007), esta medida, que deveria ser a última opção, acaba por ser utilizada antes e em detrimento de outras medidas. Dentre os motivos mais frequentes para o acolhimento estão a carência de recursos materiais da família/responsável; o abandono; a violência doméstica; a dependência química; a vivência de rua e a orfandade (Ianelli, Assis & Pinto, 2015).

É possível visualizar um grande problema que se instala uma vez que as crianças são abrigadas como medida transitória e permanecem por um largo período de tempo na instituição em função da demora e dificuldade de se realizar a reinserção na família ou a destituição do pátrio poder da família de origem (Liberati & Cyrino, 1993). De acordo com as autoras, "a cultura de institucionalização integra a história da população infanto-juvenil em situação de pobreza, violência e abandono no Brasil, tendo tido o ideal da proteção como justificativa para o secular confinamento em instituições de abrigo" (Ianelli, Assis & Pinto, 2015, p. 40). O avanço deste tempo infelizmente também atua para que as chances de adoção diminuam, o que pode contribuir para a intensificação das marcas de abandono.

A respeito das crianças observadas, apesar da parca informação, compreendemos que as mesmas são frutos de famílias consideradas impossibilitadas de garantir a continuidade dos cuidados necessários para o desenvolvimento do bebê. O que desperta nossa atenção é o fato de que, muitas vezes, se tratam de pessoas em grande vulnerabilidade, também esquecidas neste continuum de cuidados. Apesar disso, encontramos crianças cujos direitos de alguma forma foram reconhecidos como violados, e, independente do motivo que levou a isto, o que está em cena neste momento é a possibilidade de reparo, ou de reinício de um processo que precisou ser interrompido.

João, Lucas, entre outros, são crianças que precisaram ser "retiradas" do convívio de suas famílias em nome de seu bem estar. Ao nos voltarmos para Lucas, de quem sabemos algo para além do uso de drogas de sua mãe, entendemos que não foi somente a dependência química que os separou: Lucas sofria maus tratos. Não sabemos e é custoso conjecturar como isso se dava e por quê; no entanto, compreendeu-se que o ambiente em que o menino estava inserido não lhe permitiria crescer e desenvolver-se satisfatoriamente. Já no caso de João, encontramos em sua história apenas um motivo, cru: o uso de drogas da mãe. E o restante da família, se havia, foi acionado? Foi um desejo da mãe? Para Nazir (2002), o abandono não necessariamente é sinônimo de rejeição ou de não-desejo, de mo do que sabemos de muitas mães/famílias que, conhecendo sua condição, acabam por abrir mão do convívio com seus filhos em nome da vida da criança.

Nas crianças aludidas, a simples passagem pela instituição já pode configurar uma marca psíquica; no entanto, o que as diferencia talvez advenha de suas primeiras relações, dos primeiros cuidados estabelecidos. João não teve contato com sua mãe, sendo de imediato levado ao abrigo, onde encontrou Val, figura fundamental em seu primeiro ano de vida. Lucas, ao contrário, passou um ano junto de sua mãe biológica; porém a relação que se estabeleceu entre ambos, diferente de possibilitar a continuidade de seu desenvolvimento, culminou com a separação da dupla, sendo a criança acolhida no AR Violeta.

Winnicott (1956/2000) evidencia em sua obra que o bebê tem direito à continuidade dos cuidados, e traz a mãe real como a mais indicada para a realização de operações fundamentais que comporão as formas através das quais se desdobram os processos de maturação do indivíduo. A mãe/ambiente assume, na teoria winnicottiana, posição basilar para com o bebê e seu processo de integração. Para tanto, os cuidados oferecidos por essa mãe/ambiente devem ser suficientemente bons, ou seja, devem acolher e responder às necessidades do bebê, sem excessiva intrusão (Winnicott 1960/2007). Portanto, entendemos que por mais que a privação do vínculo materno/familiar possa emergir enquanto marca, a privação de direitos fundamentais que embaraçam ou até mesmo impedem que os cuidados fundamentais sejam proporcionados ao bebê configura uma marca ainda maior, uma descontinuidade primeira, o que para Winnicott (1960/2007) pode se estabelecer enquanto trauma.

Winnicott também atenta para a influência da separação entre mãe/cuidador e bebê sobre os fenômenos transicionais. Caso a mãe se ausente por muito tempo, a representação interna que o bebê possui dela se esmaece, o que tem como consequência a descatexização do objeto. Como afirma o autor, "é preciso que exista alguém que esse objeto represente ou simbolize (...); objetos e fenômenos transicionais tornam a criança capaz de suportar frustrações e privações" (1950/2005, p. 211-212). Sabemos que o objeto simboliza a criação de um espaço potencial, e, quando isso não é possível, também não há a possibilidade de uma ameaça de separação, permanecendo o indivíduo voltado ao próprio corpo (autoerotismo) ou mesmo para o objeto. Isso se dá na medida em que o ambiente falha, não satisfaz, e assim a criança não consegue aproveitá-lo.

Em vista disso, o autor propõe que o espaço potencial que se cria entre as realidades internas e externas pode possibilitar a elaboração deste estado de desamparo que é invariavelmente experienciado ao longo da vida (1975). Assim, é por meio de sua capacidade criativa que o bebê, frente a uma experiência de privação, pode lidar com a árdua realidade. Tal como propõe Drehmer (2011), "mesmo após um trauma constituído na relação bebê-ambiente, o bebê, que ainda tinha o ego fragilizado, poderá se recuperar dessas falhas ambientais" (p. 459).

Sándor Ferenczi(1933/1992), por sua vez, propõe que o trauma não se trata de uma consequência imediata do sofrimento. Esse, por si só, pode resultar em comoção, dor e angústia, porém não necessariamente se torna traumatizante. Na ocorrência de um evento perturbador, a criança tende a buscar um terceiro personagem que possa servir como testemunho da ruptura sofrida, a fim de que possa ajudá-la quanto à elaboração e simbolização de suas experiências, atribuindo um lugar para o acontecimento anterior. Assim, a configuração do traumático só se dá com o fracasso do testemunho, onde "o terceiro personagem, por meio da indiferença ou mesmo da impossibilidade de compreendê-la termina por desmentir seu sofrimento" (Kupermann, 2009, p. 194).

Desta forma, questionamo-nos em que medida o ambiente abrigo, por meio das figuras que o compõe, mas principalmente dos AEs, pode exprimir-se enquanto este terceiro personagem proposto por Ferenczi, de modo a auxiliar o bebê, através do espaço potencial criado entre ambos, a favorecer sua capacidade criativa.

O proferido até então nos remonta às cenas dos ARs Verde e Violeta, onde encontramos, em sua maioria, crianças se desenvolvendo de forma satisfatória: através de nossas observações, bem como do material apreendido a partir dos IRDIs, foi possível perceber que os bebês se encontravam de acordo com o esperado para seu tempo de desenvolvimento. Voltando-nos para as casas visitadas,, encontramos crianças cujas singulares histórias demarcam diferentes sentidos em suas vivências, além de que a busca e o encontro pelo terceiro personagem (testemunho) também se apresenta de modo distinto.

AR Verde - Bebê João

Val conta que cuidou dele (João) desde que
chegou e mais recentemente se tornou volante. Por isso
tem um vínculo muito forte com o menino

(Diário de campo)

Val anunciou que estava na hora do banho
e foi prepará-lo. Acompanhei este momento, em que
ela parecia muito envolvida, conversando e sendo
muito carinhosa com João. Comentou sobre as diversas
opiniões dos técnicos (não deve pegar no colo, não deve
"dar balda", não pode se apegar, etc), mas disse que
não concorda, que criança precisa sim de colo,
atenção, carinho, "ainda mais nas circunstâncias
em que vivem e que já passaram"

(Diário de campo)

A posição ocupada por Val na sua relação com João nos incita a pensar sobre o seu papel em atribuir sentido às vivências anteriores de João (ruptura do laço com mãe/família). Winnicott (1968/2006) adverte que, a uma criança acolhida com base no tato e na ternura, é permitido que experimente uma simplicidade contínua e estável de confiabilidade no ambiente, a partir da adaptação do cuidador às suas necessidades. Existe, portanto, a necessidade de que o cuidador se ajuste à criança, "aproximando-se do seu mundo interno e engajando-se na tarefa de partilhar o seu estado de ser" (Mello, FéresCarneiro & Magalhães, 2015, p. 271). Nesta direção de pensamento, as autoras sugerem que a adaptação do ambiente se desdobra em diferentes formas de cuidar, desde aspectos físicos de segurar o bebê até a atmosfera do ambiente e, principalmente, sob a forma como este é visto.

Percebemos, em nossas visitas, que os cuidados depreendidos por Val proporcionam a João a confiança e a continuidade necessárias para a garantia de seu vir a ser, além de que, ao testemunhar seu sofrimento, figura-se enquanto um terceiro que acolhe e o ampara o bebê. Através da observação dos IRDIs, não foi difícil observar a relação estabelecida entre João e Val, de modo que, com exceção do último indicador, não houve itens ausentes ou não observados. Sintetizam essa relação os seguintes indicadores, todos presentes: 1 (Quando a criança chora ou grita, o cuidador sabe o que ela quer), 2 (O cuidador fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela [manhês]), 3 (A criança reage ao manhês), 7 (A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades), 10 (A criança reage [sorri, vocaliza] quando o cuidador está se dirigindo a ela), 14 (O cuidador percebe que alguns pedidos da criança podem ser uma forma de chamar a sua atenção). A leitura dos IRDIs nos permite depreender que Val, na relação com João, transita entre o lugar de terceiro/testemunho, e a função de ambiente, como aquela que se encarrega de possibilitar o gesto espontâneo do bebê, onde através da continuidade dos cuidados exerce funções do holding, do handling e da apresentação de objeto (Winnicott, (1960/2013), facilitando assim o processo de amadurecimento do indivíduo e impedindo a emergência do que poderia ser traumático.

AR Violeta - Bebê Lucas

O agente Carlos ficou no pátio junto, mas
não brincava nem interferia muito na brincadeira e
as crianças não se interessavam muito em chamá-lo
para brincar ou brincar com ele

(Diário de Campo).

Seria muito necessário que nesta casa
os agentes pudessem despender mais atenção às crianças
- certamente Lucas estaria melhor

(Diário de campo).

A trajetória de Lucas tomou um caminho distinto da de João. A separação de sua mãe não foi o único evento que sublinhou a descontinuidade em seu processo de amadurecimento. Assim, a aposta neste novo ambiente configurou uma tentativa de que também pudesse encontrar alguém que lhe servisse enquanto testemunho das (dolorosas) experiências passadas. No entanto, a partir do que presenciamos enquanto pesquisadores, Lucas certamente encontrava-se em um ambiente onde obstáculos diversos marcavam presença, obstruindo seu desenvolvimento. Estes podem ser traduzidos, como já mencionado anteriormente, pelo angustiante ambiente em que se encontrava, com agentes pouco ou quase nada zelosos por seus cuidados.

Lucas estava muito determinado em ficar ali
com Cláudia, que o segurou no colo por algum tempo
sendo logo solicitada pelas outras crianças, também
pequenas. Ela parecia bastante atenciosa e afetuosa com
todos. Logo em seguida Lucas se soltou junto às outras
crianças, descendo e subindo a escada, chamando a
nossa atenção, como os maiores faziam. Chamava "tia",
queria que o visse pendurado no corrimão, e olhava de
canto de olho quando as agentes diziam para descer e
não ficar ali. Achava muita graça do "não" delas, e em
alguns momentos respondia a eles com um "sim!".
A partir de então passei a ficar mais tranquila.

(Relato do diário de campo).

Como vemos no relato acima, a presença de Cláudia apaziguava nossa angústia no momento em que se demonstrava acolhedora e identificada com as crianças, principalmente com Lucas. Em sua avaliação com os IRDIs, Lucas não é uma criança cujos indicadores apontam para entraves no desenvolvimento, tampouco em sua estruturação. No entanto, ao analisarmos o sentido da palavra cuidado atribuído por Winnicott, onde a existência psicossomática está intimamente atrelada à provisão ambiental (Loparic, 2013), interrogantes emergem acerca da qualidade desta relação entre Lucas e um adulto cuidador. Enquanto pesquisadores, deparamo-nos com grande dificuldade quanto à realização de uma leitura desta relação, o que fez com que as avaliações de Lucas demonstrassem um alto índice de indicadores não observados, o que requeria novas visitas e observações em busca desses indicadores. Quando presentes, foram evidenciados em situações pontuais, essencialmente na presença de Cláudia, como os indicadores 1 (Quando a criança chora ou grita, o cuidador sabe o que ela quer), 2 (O cuidador fala com a criança num estilo particularmente dirigido a ela [manhês]), 4 (O cuidador propõe algo à criança e aguarda a sua reação), 5 (Há trocas de olhares entre a criança e o cuidador), 8 (A criança solicita o cuidador e faz um intervalo para aguardar sua resposta), 10 (A criança reage [sorri, vocaliza] quando o cuidador está se dirigindo a ela), 11 (A criança procura ativamente o olhar do cuidador), e 17 (Cuidador e criança compartilham uma linguagem particular). Seria ela, portanto, alguém capaz de acolher e sustentar as demandas de Lucas, proporcionando a estabilidade e confiabilidade necessária para facultar a continuidade em seu processo de amadurecimento? Nesta casa e para Lucas, tanto a figura deste terceiro, testemunho, apresentava-se de forma pouco acessível, quanto - e especialmente - alguém que ocupasse o lugar de ambiente que propiciasse a experiência de continuidade, na medida em que Lucas parecia realizar grande esforço em direção a esta ancoragem, como via de aproveitar os efêmeros momentos em que Cláudia se fazia disponível. Neste sentido, em meio às irregularidades e inconstâncias deste ambiente, Lucas parecia buscar brechas através das quais seu verdadeiro self (1960/2007) poderia se expressar, no anseio por uma nova alternativa para seu vir a ser.

Assim como propõe Winnicott, nas palavras de Klautau (2014), "a dimensão intersubjetiva vai sendo instalada ao mesmo tempo em que os objetos transicionais vão sendo produzidos num espaço potencial de interseção entre a mãe e o bebê que passa a existir a partir de então" (p. 127). O autor aproxima o brincar com o jogo agenciado pela mãe no seu afastamento e retorno, garantindo ao bebê a possibilidade de controlar a realidade externa, o que lhe proporciona desenvolver um estado de confiança (Klautau, 2014): "A confiança na mãe cria um playgroud intermediário, onde a ideia da magia se origina [...] O playground é um espaço potencial entre a mãe e o bebê, ou que une mãe e bebê" (Winnicott, 1975, p. 71). Neste sentido, a busca de Lucas por Cláudia e o que pôde ser lido nesta relação, se depreende principalmente a partir do jogo de alternância entre presença e ausência, apontado pelos indicadores: 4 (O cuidador propõe algo à criança e aguarda a sua reação) e 8 (A criança solicita o cuidador e faz um intervalo para aguardar sua resposta).

Lucas corria para dentro, mexia nas coisas,
sorria, brincava e voltava para Claudia; parecia
tranquilo e seguro para ir e voltar, demonstrando
um brincar espontâneo

(Diário de campo)

Essa confiança propiciada pela mãe/ambiente permite que um espaço potencial passe a existir. Ou seja, não existe de fato uma separação, apenas uma ameaça dela, uma vez que o brincar e a experiência cultural se apropriarão do espaço potencial (Abram, 2000). Somente dessa forma é possível que o bebê transcenda do princípio do prazer para o princípio da realidade, ou, nas palavras de Winnicott (1950/2005), que o bebê possa adentrar em uma terceira zona, da vida criativa e cultural.

Não sabemos se, e em que medida, Claudia poderá servir como ancoragem e ressignificar as marcas que Lucas carrega consigo; no entanto, vislumbramos que aquilo que aflora desde o entre cuidador-bebê, pode significar uma potência para uma vida criativa, que valha à pena ser vivida.

 

Considerações finais

Ao nos lançarmos em uma experiência investigativa, estamos também acumulando vivências que de uma forma ou outra nos afetarão na medida em que através delas se esculpirá um registro. Registro esse que não conclui, nem encerra, mas que se imprime em borda naquilo que veio ao nosso encontro, a surpreender-nos. Assim, ao embarcar na trama que permeia a pesquisa, é preciso permitir-se ocupar este lugar de quem não procura, mas de quem pode vir a ser impactado. Neste sentido, o pesquisador psicanalista assume um lugar de não saber, construindo o percurso por conta dos passos que dá, em um processo que o inclui e não se restringe apenas à pesquisa, de modo que não há, portanto, uma neutralidade pura. Desta forma, como via de acesso àquilo que nos tomou também enquanto objeto neste estudo, traçamos uma analogia justamente entre o papel do pesquisador e a relação que se sucede nos cuidados de um bebê:

"Quando o adulto se ocupa de investigar um choro ou inquietação, por exemplo, funciona como uma espécie de processador de elementos brutos lançados no mundo pelo bebê. A tolerância do adulto é uma pausa na qual ele hesita, se pergunta o que será que o bebê quer, sem pressupor instantaneamente que já o sabe. Nesse momento, está autorizado a não saber e, a partir dessa posição, assumir um papel de pesquisador, inventor. Tal movimento é vital para que se crie um espaço entre o bebê e o cuidador, de forma a se abrir uma brecha na qual o pequeno possa aparecer." (Nogara, 2011, p. 113-4).

Ao longo de sua obra, Winnicott privilegia a concepção de espontaneidade, no sentido de indicar uma direção natural, onde as tendências para o desenvolvimento só podem se concretizar na medida em que o ambiente se torna favorável para isso. Assim, um ambiente suficientemente bom torna possível atualizar estas tendências, caso possibilite, inicialmente, a ilusão necessária de onipotência do bebê, favorecendo uma emergência espontânea construída na concreta relação do sujeito com a cultura (Plastino, 2009). Neste sentido, as questões que inicialmente reverberam neste estudo inclinaram-se para a possibilidade (ou não) do ambiente abrigo atuar de modo suficiente na constituição de um self integrado dos bebês. Com vistas à experiência descrita, encorajamo-nos, através de nossa leitura, a sair de uma lógica que destaca o impossível e, assim, resgatar o que há de possível na dinâmica do abrigamento. É incontestável - principalmente tendo em vista o que preconiza o ECA quanto a abrigar como última alternativa - que, ao idealizar o vir a ser sujeito de qualquer bebê, não o fazemos na ausência de sua família, separação que por si só pode produzir efeitos notáveis. No entanto, e não se trata de fechar os olhos para o "terrível" e "mortífero", o acolhimento institucional pode significar uma potência (de vida) caso ocorra um encontro permeado pelo acolhimento e pelo cuidado.

Nas casas visitadas defrontamo-nos com distintas formas de encontro, e, ao analisarmos o caso a caso, deparamo-nos com a inexistência de um modo comum quanto a operar de modo suficiente. Assim, tal como apontado pela premissa que inaugura nossos achados, a leitura de cada bebê na sua relação com o ambiente revelou possibilidades de um trajeto na direção da integração, o que nos leva a conjecturar que, mesmo que em alguns locais de forma menos satisfatória que em outros, este ambiente pode ser propulsor de um vir a ser. Portanto, não se trata de considerar a separação do bebê de sua família de origem como traumática, haja vista que a interrupção na continuidade dos cuidados já ocorrera previamente; mas, atentar para a qualidade do encontro com um cuidador, aquele que poderá sustentar a dor das experiências iniciais proporcionando um contínuo reinventar de cada história de vida. Trata-se, acima de tudo, de uma aposta de que este novo encontro permeie a ancoragem e a sustentação necessárias para a emergência de uma capacidade criativa.

Relembrar, portanto, os contrastes entre as cenas que compunham a história de João e de Lucas, nos impulsiona a refletir ainda mais sobre quão decisivo se faz o ambiente quando se tratam de seres ainda muito dependentes, porém ativos em seu amadurecer. Ambos, em sua medida, encontraram figuras essenciais que ofereceram um cuidado suficientemente bom. Apesar de muitas vezes esta função se apresentar de forma inconstante, irregular e muitas vezes confusa, as crianças pareciam aproveitar o pouco tempo de investimento, transformando cada fragmento de relação em algo constitutivo. Assim, a presença dos diferentes cuidados providos pelos AEs, os demais profissionais e principalmente a relação entre os pares, entre aqueles que compactuam com um registro tão singular, é determinante ao compor formas distintas de ancoragem, tornando o ambiente, também, suficientemente bom.

Neste percurso, os IRDIs nortearam nosso olhar no decorrer da leitura realizada daquilo que os bebês nos apresentavam como dado a ver. No entanto, é importante ressaltar que as peculiaridades que envolvem o acolhimento institucional se distanciam sobremaneira do contexto a partir do qual o instrumento foi inicialmente construído. Como já referido anteriormente, mesmo que haja aproximações acerca dos papéis desempenhados em uma família e em um abrigo, são ambientes essencialmente distintos. Portanto, ao realizar uma adaptação dos indicadores, desde a relação do bebê com sua mãe até o que se percebe na relação com um agente educador, deparamo-nos com desafios que vão para além do que concerne à linguagem. A dificuldade que encontramos para observar a relação entre as duplas (AE e bebê) pode também dizer da necessária contextualização a ser feita, e mesmo de uma limitação de tal instrumento para esse contexto. Em nossas observações, para além de uma transposição, buscamos olhar para os bebês tendo em vista as contingências que os permeiam, de modo a ressignificar os conceitos, convertendo-os em algo que seja coerente com os elementos que compõem o contexto abordado. Neste sentido, trazemos um convite para pensar os IRDIs não apenas como um instrumento, mas sobretudo como um dispositivo que auxiliou a aguçar nosso olhar, como uma ferramenta clínica.

Finalizando, nosso encontro com o que emerge de um ambiente abrigo nos auxiliou a esculpir uma forma para aquilo que agora se depreende enquanto registro. Este registro, por sua vez, também implica em um modo de narrar, testemunhar, dar voz e vez para aquilo que se passa no entre (as duplas bebê-AE, os semelhantes, conhecidos e desconhecidos) de abrigos residenciais. Trata-se de um processo, onde os modos de ser, sentir, agir, mas principalmente de ser acolhido, podem produzir sentidos para a construção de uma história.

 

 

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Artigo recebido em: 23/11/2019
Aprovado para publicação em: 17/03/2020

Endereço para correspondência
Poliana Omizzollo
E-mail: poli.ana@hotmail.com
Milena da Rosa Silva
E-mail: milenarsilva@hotmail.com
Lizia Pereira da Rosa Taborda
E-mail: liziaa@hotmail.com

 

 

*Psicóloga formada pela PUCRS, Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS), Especialista em Clínica Psicanalítica pela UFRGS.
**Psicóloga formada pela UFRGS, Mestre e Doutora em Psicologia (UFRGS), Docente da Graduação em Psicologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS).
***Psicóloga formada pela UFRGS, Mestre e Doutoranda em Psicoterapia Psicanalítica da Infância e Adolescência pela Tavistock and Portman NHS Foundation Trust.

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