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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro july/dic. 2021

 

ARTIGOS

 

O problema da ontologia na psicanálise lacaniana

 

The problem of ontology in Lacanian psychoanalysis

 

El problema de la ontología en el psicoanálisis de orientación lacaniana

 

 

Ruben Artur Lemke*; Tiago RavanelloI**; Márcio Luis CostaII***

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS - Brasil
IIUCDB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A discussão sobre a ontologia está relacionada com a política da psicanálise, pois toda teoria impõe uma forma e carrega consigo efeitos de poder. Por este motivo toda a prática clínica precisa realizar uma crítica das decisões ontológicas subjacentes às construções conceituais. Neste artigo pretendemos indicar que existe uma espécie de recusa aos problemas da ontologia na psicanálise de orientação lacaniana. Os principais modos desta recusa são os argumentos da superação da ontologia pela assunção da psicanálise a um estatuto ético, por uma evolução interna do seu quadro conceitual e pela abolição da discussão sobre o referente para o significante. A seguir, apresentamos o posicionamento de autores críticos que fazem exceção ao discurso da superação, bem como os parâmetros pelos quais estes propõem abordar o tema da ontologia. Por fim, buscamos justificar a importância da discussão ontológica na psicanálise e sugerimos a retomada de um diálogo com Heidegger como estratégia para abordar o tema.

Palavras-chave: Psicanálise lacaniana, ontologia, analítica existenciária.


ABSTRACT

The ontology discussion is related to the politics of psychoanalysis since every theory imposes a form and carries the effects of power. For this reason, all clinical practice needs to realize a critique of the ontological decisions underlying conceptual constructions. In this paper we intend to indicate that there is a kind of refusal to the ontology problems in the Lacanian psychoanalysis. The main modes of this refusal are the overcome of the ontology by the elevation of the psychoanalysis to an ethical statute, by an internal evolution of its conceptual framework and by the abolition of the discussion about the referent for the signifier. Then we present the positioning of critical authors that make exception to the discourse of overcom ing, as well as the parameters by which they propose to approach the theme of the ontology. Finally, we seek to justify the importance of the ontological discussion in psychoanalysis, and we suggest the resumption of a dialogue with Heidegger as a strategy to approach the theme.

Keywords: Lacanian psychoanalisis, Ontology, Existential analytic.


RESUMEN

La discusión sobre la ontología está relacionada con la política del psicoanálisis, pues toda teoría impone una forma y lleva consigo efectos de poder. Por lo tanto, toda la práctica clínica necesita realizar una crítica de las decisiones ontológicas subyacentes a las construcciones conceptuales. En este artículo pretendemos indicar que hay una especie de rechazo a los problemas de la ontología en el psicoanálisis de orientación lacaniana. Los principales modos de este rechazo son los argumentos de la superación de la ontología por la asunción del psicoanálisis a un estatuto ético, por una evolución interna de sus conceptos y por la abolición de la discusión sobre lo referente para el significante. A continuación, presentamos el posicionamiento de autores críticos que hacen excepción al discurso de la superación, así como los parámetros por los cuales éstos proponen abordar el tema de la ontología. Por último, buscamos justificar la importancia de la discusión ontológica en el psicoanálisis y sugerimos la reanudación de un diálogo con Heidegger como estrategia para abordar el tema.

Palabras clave: Psicoanálisis lacaniana, ontología, analítica existencial.


 

 

Os problemas concernentes à ontologia1 na psicanálise não estão de modo algum resolvidos e são problemas que estão diretamente relacionados aos princípios da direção de um tratamento. É uma tarefa intransferível à toda clínica criticar os pressupostos ontológicos subjacentes às construções teóricas que sustentam a prática, pois toda teoria impõe uma forma e carrega consigo efeitos de poder. Levinas (1980) nos alertou que a solidez das formações ontológicas costuma ofuscar o frágil exercício da ética. No que concerne às discussões teóricas na psicanálise, ocorre um movimento contrário: o problema da ontologia parece ficar oculto detrás da importância que a ética, com justa razão, possui na clínica psicanalítica.

Lacan (1959-1960/2008) dedica um seminário ao problema da ética na psicanálise2 e no final deste, propõe sua teoria do desejo, teoria que é formalizada nos dois seminários anteriores, como o horizonte ético da psicanálise. Quatro anos mais tarde, no Seminário XI, Lacan (1964/2008) afirma que o conceito de inconsciente, por implicar uma fragilidade ôntica, demandaria ser admitido a partir de um estatuto ético. Essas afirmações, bem como o tom ambíguo com que o autor tocou no tema da ontologia em diversos momentos de sua obra, são a origem, em nosso entender, de uma espécie de recusa à ontologia, uma espécie de consenso tácito que afirma ser possível prescindir da discussão ontológica. Uma das formas desta recusa é a interpretação, segundo a qual, a afirmação de uma ética, por si só, ultrapassa e neutraliza os problemas ontológicos da psicanálise. É comum encontrar nos seminários, conferências e nas apresentações de trabalho, afirmações sobre o estatuto ético da psicanálise que carregam consigo uma recusa a discutir o problema da ontologia, como se o corolário lógico da afirmação do estatuto ético fosse a afirmação de que a psicanálise não comporta uma ontologia.

A afirmação de um estatuto ético para o inconsciente não resolve os problemas concernentes à ontologia, assim como a ética do desejo não esgota os problemas relativos à ética na psicanálise. A ética do desejo não é uma proposição sem consequência para formulação lacaniana de inconsciente. Ela surge no contexto de um debate implícito com o modelo ontológico aristotélico, de modo que esta proposta ética se vê em condição de lançar novos problemas. Além do mais, ao sustentar nossa ética, que preconcepções ontológicas estaríamos carregando de modo inadvertido? Sem discutir ontologia, como realizar a crítica aos fundamentos que sustentam a ética de nossa práxis? É certo que não podemos sustentar a posição de uma clínica recitando ditos doutrinais. Se a ética da psicanálise é a ética do desejo, ainda existe a tarefa de pensar a relação desta ética com o discurso ético mais amplo. Neste campo Lacan propôs questões desconcertantes, mas que se forem tomadas como posições doutrinais fechadas, perdem todo o potencial crítico.

Como poderíamos realizar uma crítica interna de possíveis compromissos metafísicos da psicanálise sem o apoio da crítica ontológica? Como o uso de afirmações doutrinais poderia precaver a psicanálise de compromissos desta ordem? Acaso a experiência psicanalítica não nos ensinou que, tudo aquilo que expulsamos do campo de nossa experiência, de algum modo, retorna? Se sustentamos que o inconsciente tem um estatuto ético, nem por isso podemos usar este estatuto para negar todas as questões referentes à fragilidade ôntica do inconsciente. Nós, que nos situamos na psicanálise, criticamos com facilidade a estratégia pragmática da psiquiatria contemporânea de suspender discussões sobre natureza e causa dos sintomas, que tem por efeito veicular sub-repticiamente um discurso ontológico de cunho organicista sobre etiologia e natureza dos transtornos mentais e isso na ausência de marcadores biológicos. Mas é necessário perguntar: quando sustentamos que não precisamos discutir nem explicitar os problemas ontológicos da psicanálise porque estaríamos, segundo argumentos correntes, plenamente imersos no plano da ética, ou porque suspendemos a discussão de um referente para o significante, ou ainda porque a evolução do quadro conceitual deixou a ontologia no passado, não estaríamos usando de um subterfúgio análogo? Este artigo, tem por objetivo criticar esta posição, pois é um fato que a ontologia recebe atenção ao longo da obra lacaniana. Para isto, em primeiro lugar, serão apresentados os modos mais comuns de negar o problema da ontologia na psicanálise lacaniana3. Em segundo lugar serão apresentados argumentos acerca da importância das discussões ontológicas bem como a posição de autores que defendem a necessidade deste debate. Por fim, o artigo traz a sugestão de uma retomada de um diálogo com Heidegger como um caminho para uma abordagem ontológica na psicanálise.

 

A recusa dos problemas da ontologia na psicanálise lacaniana

Pretendemos agora argumentar, que na psicanálise de orientação lacaniana, existe uma recusa a discutir os problemas ontológicos. Nossa hipótese é que esta recusa assume como formas principais: o argumento da superação da ontologia pela ética e o argumento da superação da ontologia pela evolução interna do quadro conceitual, a suspensão das discussões acerca do referente para o significante. Vejamos alguns exemplos de passagens que afirmam o estatuto ético.

Guimarães (2007) afirma que a ausência de uma reflexão ontológica na obra freudiana exige a construção de uma ética na psicanálise. Que a psicanálise possui um estatuto ético porque o inconsciente freudiano lança um dever ético que surge da exigência em responder ao encontro traumático das pulsões e, por fim, que em psicanálise se trata de um saber-fazer com o sintoma. Já Martínez (2011), afirma que o inconsciente tem um estatuto ético porque, por sua fragilidade ôntica, só pode existir como contingência para aquele que deseje escutá-lo. Lopes (2011) afirma que a realidade descontínua da teoria do sujeito na psicanálise lacaniana demonstra por um lado uma fragilidade ôntica, dado que é um sujeito não subjetivo, inacessível ao eu do conhecimento, por outro, apresenta uma forte determinação ética no modo como cada um pode guardar uma fidelidade ao desejo particular que o anima. Analisando estas afirmações, vê-se que não há nelas argumentos que franqueiem a psicanálise de seus possíveis comprometimentos ontológicos. No último exemplo, já dentro de uma discussão de contornos inegavelmente ontológicos, a fragilidade ôntica é tratada como se fosse o reconhecimento de um ponto de fragilidade na teoria, que deveria ser varrido para baixo do tapete e abrigada sob a segurança do estatuto ético.4

Goldenberg (2017) argumenta que Lacan teve o cuidado de não tomar os conceitos psicanalíticos em um sentido ontológico e procedeu a um trabalho de desontologização da psicanálise ao optar pela transmissão via matema e nós. Lembra que a obra lacaniana comporta a ideia de que "não há outro ser que não o significado produzido pelos significantes, e este ser não tem nenhuma consistência fora do mundo da palavra e da fala. O ser seria imaginário e produzido pelo simbólico" (p. 11, [grifo do autor])5. Sustentar a ética da psicanálise em sua radicalidade seria levar a sério esta afirmação e suspender toda a certeza no ser e esvaziar a consistência dos conteúdos em função dos efeitos produzidos pelo puro jogo significante. Segundo o autor, a essência da clínica é a "operação de esvaziar o ser imaginário e reduzir o discurso à sua materialidade significante" (p. 14).

Goldenberg (2017) afirma ainda que, o mandamento de não se curvar à tirania do sentido é um ponto fundamental da ética lacaniana. Lembra que Lacan chegou a chamar a ontologia de hontologie6, e que o autor afirmou que quando fala de ontologia fala como um "sem vergonha" (p.23). Goldenberg adverte: é realmente uma vergonha o analista encher a análise de sentido e argumenta que na história da filosofia, ontologia e metafísica são quase sinônimos, sendo a proposta da psicanálise justamente a exclusão da metafísica7. Poderíamos argumentar ainda, que a palavra vergonha possui diversas dimensões, além da recusa peremptória. Pode também indicar, em um sentido mais amplo, uma postura de autocrítica.

Outra forma de argumentação para a recusa da discussão ontológica é a superação histórica do problema. Este é o posicionamento de Miller. Este autor divide a obra lacaniana em três períodos, que seriam correlatos ao predomínio de cada um dos três registros teorizados por Lacan para pensar a experiência do ser falante: o Imaginário, o Simbólico e o Real. Assim, de acordo com este autor, no primeiro período haveria uma clínica com o predomínio do registro Imaginário, no qual a centralidade recairia sobre as teorizações do estádio do espelho como momento lógico da constituição do eu. No segundo período, com a adesão às teses estruturalistas da linguística de Saussure via Jakobson e da antropologia de Lévi-Strauss, haveria o predomínio do registro Simbólico, no qual a interpretação do desejo teria um papel central. E por último, com a adesão de Lacan à lógica, à teoria dos nós e à topologia, haveria o predomínio da clínica do Real. Segundo esta forma de classificar os tempos constitutivos de uma obra, cada período se caracterizaria pela superação teórica do anterior, delegando aos períodos precedentes o estatuto de um momento propedêutico, uma espécie de progressiva preparação para o que viria a seguir, que é o período denominado de o "ultíssimo" ensino de Lacan (Leguil, 2013).

Este último período se caracterizaria por uma desontologização da psicanálise, um processo que foi descrito como uma passagem da ontologia para a henologia, ou seja, a passagem de um discurso sobre o ser para um discurso sobre o Uno. Se antes a clínica era dirigida à interpretação do desejo enquanto falta-a-ser, ela se transmutou para uma intervenção sobre a letra e o real (Leguil, 2013). Deste modo, a ontologia estaria superada por uma história interna de evolução teórica e faria parte de um capítulo superado pela psicanálise. Miller (2011) argumenta que Lacan nos concedeu o segredo da ontologia quando afirmou que o ser não passa de um semblante8.

Propondo uma diferença entre "ser" e "existir", Miller (2011) argumenta que Lacan renuncia à ontologia para privilegiar o registro do Real. Assim abandona a ontologia e o ser que não existe propriamente por estar no campo do deslizamento do sentido, em favor de uma ôntica voltada para o gozo, que concerne ao que de fato existe e do qual se pode dizer "Es gibt"9: "há o gozo" (p.65), assim no singular, do mesmo modo em que se diz "há o Um" (p. 64). De acordo com o autor, o que levou Lacan a conceber a diferença entre o ser e o existir foram suas interrogações sobre o significante "Um". Deste modo, Lacan teria inscrito a psicanálise em uma determinada tradição, a doutrina do Um (henologia), que remontaria a Parmênides10, passando por Platão e Plotino que consideravam o Um o elemento primordial, anterior ao ser e para além da essência. Segundo o autor, é sobre a categoria do Um que Lacan centraria, a partir de então, suas interrogações, a partir das matemáticas11.

Contudo, é preciso perguntar: ao questionar o princípio fundamental e primeiro, propondo abordar a teoria a partir de outro princípio fundamental, que não o ser, o autor deixaria de se mover em um solo ontológico? Mesmo que o ser seja substituído pelo Um e assim se proceda à uma desconstrução da ontologia aristotélico-tomista, em que campo se inseriria tal procedimento? Não nos parece que uma progressiva ênfase na henologia articulada a uma certa recusa das discussões ontológicas na psicanálise, possa livrar a psicanálise de possíveis comprometimentos metafísicos. Como a psicanálise nos ensina, aquilo é varrido para baixo do tapete de algum modo retorna, ou seja, segundo uma fórmula clássica, o que é rejeitado no simbólico retorna no Real. Procedendo desta maneira, corre-se o risco de que a metafísica, excluída do campo de problematização, retorne inadvertidamente ao se tomar um registro da experiência do ser falante como uma unidade transcendental. Nos parece que ao elidir a ontologia do campo da problematização, é justamente a metafísica que retorna em uma certa apropriação do conceito de Real. E nesse sentido, o Real se transforma, de acordo com Dunker (2016) em uma ideia fixada no horizonte, que não pode ser conhecida nem criticada, transformando-se em um conceito fechado em si mesmo e imune à experiência. Estando subtraído o conceito do seu contexto histórico de emergência e dos compromissos e inconvenientes que o conceito carrega, o conceito de Real pode se tornar um estilo complicado de metafísica, que é aquele que se desconhece como metafísica.

Outro exemplo, de recusa da discussão ontológica, pode ser encontrado no procedimento estruturalista de suspender a questão do referente. O estruturalismo é uma estratégia metodológica que prioriza as relações em detrimento dos elementos. A estrutura, afirma Greimas (2008, p. 103), é a noção de uma "grandeza cujo estatuto ontológico não tem necessidade de ser interrogado e deve, pelo contrário, ser colocado entre parêntese, a fim de tornar o conceito operatório". O problema da falta de referente, de fato é constitutiva do pensamento lacaniano. Mas salientamos que um problema é diferente de uma suspensão e que o problema de ontologia recebe destaque ao longo da obra de Lacan, o que o diferencia dos estruturalistas de seu tempo.

Dunker (2007) estabelece um panorama de diversos posicionamentos na psicanálise com relação ao problema da ontologia tendo como critério o tipo de relação com a realidade que é estabelecido por cada pensamento. Estes posicionamentos são o narrativismo, o refundacionismo, o criticismo e a ontologia negativa.

No narrativismo, temos um exemplo da estratégia de suspensão do referente. O narrativismo propõe prescindir de qualquer referencialismo e considera esgotada a questão da realidade para a psicanálise. Utilizando uma concepção pragmática da linguagem, afirma o caráter metafórico da teoria e o caráter construtivista da prática na psicanálise. Ao prescindir do referencialismo em prol de uma teoria do sentido, o problema da existência é cercado em uma abordagem lógico-linguística, isto é, o problema da realidade é substituido pelo problema da lógica interna da produção de sentido. Outro posicionamento agrupado por Dunker (2007) é o criticismo que realiza o deslocamento do problema da realidade para o problema das condições de possibilidade de sua representação, efetuando o que o autor denomina de uma epistemologização da realidade.

Uma argumentação importante é a de Barbara Cassin (2013)12, que afirma que a psicanálise produz um novo tipo de sofistica em nossa época. O analista como uma espécie de sofista, agiria como se enraizasse sua ação num momento lógico anterior ao da construção da metafísica aristotélica. A autora afirma que no livro Γ da "Metafísica", Aristóteles, lançando mão do princípio da não-contradição, toma como adversários justamente os sofistas que, em seus cálculos, servem-se do equívoco da homonímia como bem lhes convêm. A autora argumenta que o cálculo do sofista não é de uma natureza diferente do que o cálculo do poeta e do psicanalista. Esse modo do poeta, que sabe falar e "fala pelo prazer de falar, poderia curar o filósofo de sua vergontologia [hontologie13]" (Cassin, 2013, p. 22), ou seja, da vergonha da metafísica aristotélica. Pois em relação à ontologia, Cassin (2013, p.33) afirma que "o ser é um efeito de discurso entre outros, 'notadamente', e a ontologia é uma vergonha" (vergontologia).

De acordo com Cassin (2013, p 15), o princípio da não-contradição é, estritamente falando, uma "decisão de sentido" que se funda na univocidade do sentido. O princípio não estabelece como impossível que uma substância tenha dois predicativos contraditórios, mas que é impossível que uma palavra simultaneamente tenha e não tenha o mesmo sentido: "O sentido é a primeira entidade encontrada que não tolera a contradição. O mundo está estruturado como a linguagem, e o ente é feito como um sentido" (Cassin, 2013, p. 15 e 16).

Existem dois modos de lidar com o princípio da não contradição, afirma a autora. O primeiro é o paradoxo, que produz uma espécie de "consistência imantada pela contradição" (Cassin, 2013, p. 26). O segundo é o proceder da psicanálise que consiste em fazer do equívoco a condição do sentido. Isto é, fazer da homonímia das palavras, da anfibologia14 gramatical das frases e do paradoxo lógico - que são as três modalidades do equívoco - a "condição do sentido". Para a filosofia, o sentido de uma palavra expresso em uma definição determina em última instância a essência da coisa e não pode não haver univocidade. Para Lacan, não há sentido que não seja equívoco, o que denomina no texto "O aturdito" de "Ab-senso", que é "uma escapadela para fora da norma aristotélica do sentido" (p.17).

A autora argumenta que em "O Aturdito", Lacan promove uma subversão do princípio aristotélico ao propor no lugar da não-contradição o princípio da não-relação sexual15, que é um dos aforismos lacanianos para designar o impossível do real. O principal adversário de Lacan neste texto é Aristóteles, de modo que Cassin chama este texto de "ab-aristotélico" (p.10). Isto é, um texto que conseguiria se libertar da liturgia de sentido estabelecidos por "Da Interpretação" e pelo livro Γ da "Metafísica". Uma das formas de se entender a inexistência da relação sexual é o corte fundamental que existe entre o significante e o significado, a ausência de um acoplamento entre os dois. Por este motivo, no plano da língua, o equívoco é pleno de poderes. Assim, a autora salienta que o equívoco é justamente a diretriz técnica que tem por objetivo produzir ondas no inconsciente e utilizando justamente as estratégias que as "Refutações Sofisticas" de Aristóteles diagnosticam e proíbem.

Mas Cassin (2013) se diz decepcionada por Lacan fazer um recenseamento aristotélico propondo uma subversão pelo viés do equívoco, por meio de toda estrutura do "Refutações Sofísticas" ao invés de abandonar a seriedade lógica de Aristóteles e propor com serenidade um riso intérprete da ontologia. Bom, aqui talvez possa ser dito que Lacan sabia muito bem que não é possível sair da Grécia sem montar num cavalo grego. Entendemos que no "O aturdito", foi explorado uma vertente na desconstrução da metafísica que consiste em usar equívoco significante para dissolver as cristalizações do princípio da não-contradição. Esta é uma invenção singular da psicanálise, mas que por si só, não significa que dissolveria todo o comprometimento da psicanálise com a tradição da metafísica. Este empreendimento não é tão simples. A prova das dificuldades de fugir da metafísica aristotélica utilizando as línguas europeias, que são as línguas da metafísica, são as dificuldades que se apresentam em um intento como o do "O aturdito" que se tornou um texto de difícil leitura.

A autora também ressalta o uso que Lacan faz do "den" de Demócrito, que é uma palavra que sofreu um corte a partir da palavra grega "meden" que significa nada. Ao cortar o prefixo de negação do "me", o "den" não significa corpo ou coisa, mas significa algo como um pouco menos que nada. Esta palavra só poderia ser pensada como efeito de um procedimento de subtração. Segundo Cassin (2013, p. 51), antes de um processo de assimilação pela física aristotélica, Demócrito qualifica os seus átomos como "den". Isto quer dizer que não são exatamente entes no mundo físico, mas são um pouco menos que nada. Para a autora isto é um vestígio da negação da identidade e do ente: "uma operação irônica sobre o ser, que prolonga a da sofística. [...] Um discurso de outro tipo [...] vinculado a uma crítica violenta dessa ontologia que coagula como metafísica". Neste sentido os átomos seriam "o mais diminuto e inaparente dos corpos". O den descreveria o significante enquanto tal, como algo radicalmente diferente do significado e completamente independente do referente.

Digamos que houve uma decisão lacaniana sobre o sentido, sendo que o equívoco foi estabelecido como condição para o sentido. Mas esta mexida no sentido do sentido seria uma decisão de que ordem? Ao subverter princípios como o da não-contradição, em que campo estaríamos atuando? Criando uma coisa nova e dissolvendo a discussão ontológica? Entendemos que o que nos mostra Cassin (2013) com o exemplo do "O aturdito", é que Lacan não mede esforços para deixar de ser um aristotelizado aristotelizante. Ele se opõe a uma ontologia do sentido como essência que não suporta a contradição, onde essa funciona como reguladora da linguagem. Mas propor a psicanálise como aturdimento não supera o problema da ontologia, apenas demonstra a necessidade de se pensar uma ontologia que suporte o equívoco significante e um modo de existência como o do menos que nada do "den". A afirmação de que é da linguagem que provêm essa loucura de que haja ser, não esgota o problema do ser em sua relação com a linguagem e a simples suspenção da questão do referente é apenas um modo de eliminar um grande problema. A seguir, apresentaremos alguns argumentos contrários a posição de recusa, para, na sequência, apresentar autores que defendem a importância da discussão ontológica.

 

Por que é necessário discutir ontologia?

A tomada de posição de uma recusa nos parece hegemônica no campo da psicanálise lacaniana e pensamos que cumpre a função de elidir os problemas da ontologia. Todavia, como pretendemos indicar, alguns destes argumentos demonstram justamente o contrário do que pretendem. A superação pela ética não resolve por si só os problemas concernentes à ontologia. Entendemos que sem uma discussão da ontologia não é possível sustentar um estatuto ético para a psicanálise. Basta tomar como exemplo o que afirma Safouan (2006), a respeito da proposta mais importante do Seminário VII, de que em psicanálise, seu sujeito, só se pode ser culpado de ter cedido no desejo. O autor argumenta que esta afirmação de Lacan logo virou um imperativo superegóico, uma espécie de décimo primeiro mandamento. Ou seja, uma afirmação que tem a função de inquietar o analista em sua crítica sobre o lugar de sua prática no discurso ético universal, logo tornou-se um imperativo categórico, uma espécie de substância a se realizar, no sentido de uma ideia de bem pré-estabelecida, que cabe ao sujeito realizar. A presença de algo da ordem da substancialização indica algo subjacente contrário à intenção crítica da afirmação do estatuto ético.

Quanto aos argumentos trazidos por Goldenberg (2017), quando afirma que não há ser fora da linguagem ou que em psicanálise se trata de realizar uma exclusão metafísica, pensamos que afirmações como esta, estão relacionadas à uma crítica ontológica. Basta lembrar da afirmação de Heidegger (1946/1991) de que o ser habita a linguagem ou de sua pretensão de uma destruição da metafísica. Do mesmo modo, o argumento da superação histórica é frágil, porque, como salienta Beividas (2000) não se pode julgar a importância de determinado território teórico de uma obra pelo seu lugar na cronologia de um autor. Se assim fosse, a "Interpretação do Sonhos" seria considerado um dos menores textos de Freud. Do mesmo modo, Leguil (2013) afirma que o último ensino de Lacan não invalida o primeiro, porque se a clínica do real, por suas características, acaba se dirigindo aos restos sintomáticos irredutíveis, o ensino clássico conduz ao que uma análise pode produzir de mudanças num sujeito. E este período que o autor chama de ensino clássico, é construído em um diálogo com o vocabulário do ser (Balmès, 2002).

Porém, ao sustentar que o estatuto ético não supera por si só os problemas ontológicos intrínsecos à teoria, não pretendemos com isto, afirmar que existe uma ontologia da psicanálise, no sentido de que esta propõe uma pergunta sistematizada pelo sentido do ser, ou que compõe um sistema coerente de definição dos entes e da realidade que os compõe. Mas isto não quer dizer que a teoria não toque na veia de problemas ontológicos. Como poderíamos afirmar que a teoria dos três registros, que propõe em seus inúmeros desdobramentos, a situar a experiência do sujeito falante no mundo, não toca em problemas ontológicos? Neste sentido, concordamos com Dunker (2017) quando afirma que não se supera a ontologia por decreto e quando diz que não há nada mais metafísico do que decretar o fim da ontologia. Do mesmo modo Cetran (2006), ao falar das possíveis leituras na psicopatologia, afirma que é tarefa indelével a explicitação da ontologia para que o clínico não opere acriticamente com uma ontologia implícita, que determine o seu modo de pensar e agir sobre a realidade. Um clínico se move em um determinado horizonte de compreensão, que comporta regras que estabelecem a diferença entre "o que é" e o que "não é".

Não há que elidir o fato de que a psicanálise comporta um conjunto de decisões de fundo, que delimitam um dentro e fora de seu campo de ação. Como afirmam Couto e Souza (2013, p. 188 e 189):

A organização de uma ciência, como a psicanálise, não prescinde de um conjunto de hipóteses preliminares que circunscrevam seu campo de ação. Tais hipóteses tanto revelam uma trama conceitual anterior às observações do pesquisador sobre o espaço de sua investigação, quanto calibram as técnicas que estabelecerão a maneira apropriada de intervenção sobre o conjunto dos fenômenos delimitados.

A construção deste conjunto de hipóteses preliminares é presidida por decisões de cunho ontológico. Aquilo que na ciência emerge como teoria ou como compreensão tematizada de um fenômeno, supõe que o clínico esteja se movendo sobre um solo ontológico que reside na linguagem. O analista conta com uma base ontolinguística que lhe oferta meios para diferenciar o existente do não existente nos limites de certo horizonte de explicabilidade. Além do mais, as estratégias de intervenção, de modo crítico ou acrítico bebem de alguma fonte da tradição ocidental. E o pensamento ocidental, nos afirma Stein (1976) não é uma mera abstração, mas um conteúdo que nos determina até os dias de hoje. Lacan (1978)16 afirmou que em todo psicanalisante há um discípulo de Aristóteles e que não se sabe por que os analisantes acreditam no universal, já que é como indivíduo particular que cada um se entrega aos cuidados de um analista. Esta afirmação é de suma importância pois ela demonstra que existe uma relação entre a direção do tratamento e a ontologia. No dispositivo analítico, analista e analisante costumam ser produto de uma mesma cultura, veiculada pela linguagem que é marcada pela verbalidade do ser.

Um autor que nos ajuda a compreender a importância desta questão e que pretendemos trazer para o diálogo é o filósofo Emmanuel Levinas (1980/2015), que afirma que qualquer construção teórica no ocidente está assentada em uma ontologia, que opera em nós a despeito de sabermos disto ou não, pois a cultura no ocidente é metafísica decantada17. Esta metafísica moderna teve sua última grande expressão na obra hegeliana, que com sua proposição de um movimento dialético rumo ao absoluto, forma o que Levinas chama de pensamento da totalidade. Em sua crítica à totalidade, afirma que a ontologia é o típico modo de ser, pensar e agir no ocidente e que funciona como um impeditivo da ética. Em sua perspectiva, Levinas afirma que a ética é primeira em relação à ontologia. Pois o outro é primeiro eticamente acessível, para depois ser ontologicamente capturado. O que ocorre no ocidente é uma inversão: o outro é ontologicamente capturado, a pretexto de ser eticamente acessível.

Quando somos, a título de exemplo, interpelados na rua, quando uma alteridade que nos transcende invade nosso horizonte calmo de existência, em um primeiro momento sentimos o desconforto de uma afetação. Em um segundo momento nos aquietamos, ao resgatarmos todo arcabouço de categorias que colocam aquela alteridade em lugar preciso no mundo de nossa própria fabricação. Utilizamos nossa ontologia para destituir qualquer poder de afetação da alteridade.

Na perspectiva de Levinas (1980/2015) a ética é o potencial da abertura à alteridade. Por este motivo, a ontologia seria um obstáculo à ética como abertura para além do que se coloca como uma imagem de si no outro, pois a ontologia é a via de acesso ao ser que termina invariavelmente reduzindo o Outro18 ao mesmo. Ontologia é o mecanismo tipicamente ocidental através do qual, ao lidarmos com o outro, cada qual assimila na totalidade de seus esquemas, qualquer índice de alteridade ou fratura que remeta a um fora. Através da ontologia qualquer diferença é subsumida pelos esquemas teóricos forjados no ocidente que estão difundidos nas formações culturais. Por isso a ontologia tem o efeito de obstruir a ética. Toda ontologia tem uma relação com o poder, pois possui um efeito performático, de tirar o ente do silêncio, constituir mundos, excluir outros, criar limites entre dentro e fora, por fim, criar totalidades que a tudo subsumem, capturando qualquer índice de diferença. Ontologia é o lugar da força, da moral e da guerra, pois ela tem o poder de impor uma forma.

Para Levinas (1980) a ontologia forma esta face violenta do ser que se manifesta na guerra, e que advém do conceito de totalidade que domina a filosofia no ocidente. Assim, a ontologia é o movimento dialético que o ser realiza sobre si mesmo. O ser forma uma interioridade absorvente com um grande poder de redução, ou seja, uma constante redução da alteridade ao mesmo: "El ser es único, total, interior y sempre el mismo" (Costa, 2009, p. 90). A ontologia formaria uma espécie de exercício domesticador realizado pela substância que tem a função de tamponar todo o intervalo do nada no exercício do ser como totalidade ontológica.

Essas afirmações de Levinas (1980), de que a ontologia é o lugar da guerra e de que o ser possui uma face violenta, se insere no fio histórico que vai desde a sanha dos impérios em civilizar bárbaros com a luz de seus conhecimentos, até as discussões contemporâneas sobre neocolonização epistemológica. Assim, por exemplo, Tobie Nathan (1996) denomina de combate epistemológico, quando por meio de teorias ocidentais, que ele denomina de "pensamento branco", se intervém em pessoas não ocidentais. O autor afirma que "uma psicoterapia é uma verdadeira guerra conceitual: um conflito cuja resolução é a adesão a uma teoria" (p. 27)". Neste sentido, discutir os comprometimentos ontológicos de uma teoria também é refletir sobre a pertinência de usar uma teoria de origem europeia em outros contextos culturais. É sempre necessário problematizar os fundamentos das teorias que orientam mesmo a melhor dentre as boas intenções.

Existe uma relação entre ontologia e a questão do poder. Ao retirar os entes do silêncio do nada, uma teoria produz ontologia. Compreender sempre é mover-se num horizonte de pré-compreensão do ser. No pensamento levinasiano, ao compreender realizamos uma submissão daquilo que se apresenta como estranho aos esquemas de nossos aparelhos de captura. Os seres e os mundos que são singularidades diferentes entre si, ao serem arrastados para um horizonte comum de compreensão, terminam por estabelecer uma comunidade ontológica de significado, que opera como uma comunidade ontológica de destino. E isto se dá mesmo que a unidade de ser que os reúne seja uma unidade analógica (Costa, 2009, p. 90)

Na ótica levinasiana - e isto é de suma importância para a psicanálise - o ser que se apropria do ser desde o ser, reduzindo o Outro ao mesmo, se chama eu (ego). A tradição ocidental está toda assentada em um eu que pode, pensa e sabe,19 e que coloca o eu no papel de fundamento mediador na relação com o Outro. Neste sentido a filosofia ocidental é uma egologia. Contra esta egologia, Levinas propõe o que denomina uma nova economia do ser, uma ética, sendo esta ética essencialmente crítica da liberdade e da autonomia que "cada eu" pode ter diante de uma alteridade.

A tradição metafísica provavelmente irrompe na psicanálise de vários modos, certamente ainda não todos localizados pelo trabalho de crítica20. Mas é importante para a história do movimento psicanalítico a função central que assume a figura teórica do eu no início da démarche lacaniana. É contra a metafísica presente nesta teorização que Lacan (1948/1998) entra na cena psicanalítica propondo o eu como produto de uma alienação primordial no olhar do outro, sede de todas as posteriores alienações e matriz de toda identificação. E é contra esta metafísica, em nosso entender, que Lacan vem a propor a teoria e a ética do desejo como antídoto. Basta ver que em seu texto mais importante sobre técnica, Lacan (1958/1998) justamente aborda a ideia de que o analista não deve se orientar pelo seu ser21.

Outro motivo que torna imprescindível discutir a ontologia é o problema ontológico presente na linguagem, pois produzimos ontologias ao falar. A consequência do segundo aforismo do poema de Parmênides22, que afirma que ser e pensar são a mesma coisa, é de que tudo aquilo que pode ser pensado e, portanto, dito, tem como condição lógica a anterioridade de sua existência. Por isso a linguagem tem o efeito performático de tirar o ente do silêncio do nada. As línguas derivadas do latim e do grego são regidas pelo verbo ser e são as línguas do pensamento metafísico (Stein, 2011). No português, a palavra "é" está em toda parte e sempre afirma algo do ser. Ao mesmo tempo ativa o sentido absoluto, o fato de existir algo sobre o fundo do nada, e prepara um lugar para o predicado que possa vir a seguir. Assim, por exemplo, quando Lacan (1958/1998, p. 628 e 629) afirma que "o desejo é a metonímia da falta-a-ser", a palavra "é" já determina um discurso ontológico no enunciado. De acordo com Balmès (2002), Lacan sabia que o ser estava presente nas línguas europeias. Esse seria o motivo, segundo o autor, do duplo movimento, de colocar em jogo o ser e procurar desvencilhar as suas formulações do ser. A ontologia está presente no nosso pensar e no nosso falar. Neste sentido, qualquer discurso teórico, construído no seio das línguas ocidentais que são regidas pela verbalidade do ser produzem ontologias, como discursos sobre o que as coisas são ou não são.

 

A posição de autores que evidenciam o problema

Como exemplo de uma autora que reconhece os problemas ontológica da psicanálise, David-Mènard (2001) propõe o estudo das formas de negação como um encaminhamento para esta questão. De certo modo, reconhece que não é possível prescindir da discussão sobre ontologia ao propor, como uma tentativa de saída desta, uma reflexão filosófica sobre a negação. Deste modo, a autora se pergunta se poderia haver um denominador comum entre a abordagem filosófica da questão do ser, a abordagem lógica da questão da existência e a abordagem psicanalítica da questão do real, e sugere articular estas abordagens pelo exame do que seria um julgamento. Deste modo propõe uma aproximação entre o texto sobre "A negativa" de Freud e o uso das grandezas negativas na lógica de Kant23. Mas a autora salienta que para nenhum dos autores a negação desempenha uma função ontológica e que seria justamente pelo estudo do poder da negação que é possível definir uma certa distância da ontologia24.

Segundo David-Ménard (2001) o que caracteriza a abordagem freudiana da negação e sua especulação sobre o julgamento de existência é que Freud jamais relaciona a negação com um não-ser, mas com a diferença entre ser excluído e existir. Já o que caracteriza a abordagem de Kant é que o autor desenvolve a ideia de que toda a metafísica sobre a realidade dos objetos exteriores é uma crença que é apoiada por alguma forma de negação. O que os aproxima é a possibilidade de se pensar o julgamento para além de sua função meramente judicatória. Há qualquer coisa de criação na ordem da negação. Segundo a autora, Freud demonstra o caráter ambíguo, mas criativo da negação ao trazer para a discussão a duas formas de julgamento, o julgamento de atribuição e o julgamento de existência. Também em Kant há uma articulação entre a negação e o julgamento da existência, porém, em ambos os casos, a questão da decisão sobre a existência supõe uma passagem crítica pelo regime alucinatório do pensamento.

David-Mènard (2001) afirma que quando Kant reflete sobre as ilusões ou delírios que habitam o pensamento humano, ao analisar as relações do pensamento com a realidade externa, utiliza o mesmo tipo de distinção que Freud utilizou para caracterizar as várias formas de negação da castração. Em Freud as diversas experiências de negação da castração segundo as estruturas clínicas formam diversos modos de certeza, e portanto, diferentes modos de relação com a realidade.

Deste modo, David-Mènard (2001) propõe analisar as diversas formas de negação da realidade externa, para poder diferenciar os modos de negação que convém dos modos de negação que não convém. Segundo a autora, deveríamos abandonar a ilusão de que atravéz da evidência é possível uma via direta para o estabelecimento do que é a realidade e que devemos realizar uma travessia das tentações produzidas pelas ilusões provenientes das negações mal colocadas. Assim, seria possível encontrar o puro jogo negativo e, a partir disto, localizar as exclusões primordiais. Através destas, é posto para fora do campo da dúvida a existência dos objetos exteriores. O que a autora propõe é um modo de pensar as relações do homem com a realidade como uma relação indireta e baseada na análise lógica das negações. A autora afirma isto baseada na ideia de conflito real em Kant e propõe um discurso que afirma o poder criativo da negação, de modo que a negação age sobre o que existe, determinando sua condição de existente. Ressalta que este pensamento se baseia em uma nova operação algébrica que, através de um conflito de forças, cria uma nova forma de negação que não elimina o ser, mas acaba determinando no real um correlato objetivo.

Nancy e Lacoue-Labarte (1973/1991, p. 137, [Grifo dos autores]) afirmam que o inconsciente freudiano e as teorizações lacanianas sobre a letra no inconsciente guardam uma dignidade ontológica: "Trata-se, por certo de uma ontologia negativa. É um buraco que designa o centro". Este buraco determina um contorno que marca o trajeto de um ontologia no qual o ser falta: "Uma ontologia aberta [...] para uma hiância que oculta seu fundo, mas deixa cercar seu contorno". Os autores lembram que a metafísica sempre quis ter seu próprio conceito numa linguagem que lhe fosse própria: este conceito se estabeleu como sendo o ser. Mas a língua que o suporta é uma língua esburacada que divide a superfície do ser. A língua opera através de uma inarticulação fundamental, que é o regime pelo qual opera esta ontologia da psicanálse que os autores consideram inédita. Ressaltamos que estes autores, no momento em que qualificam a ontologia como negativa, ressaltam outra característica fundamental: o fato de esta ontologia ter seu trajeto marcado pelo contorno dos buracos. Isto é, os buracos convocam uma ontologia que, além de negativa, opera pelas bordas.

Leguil (2013) e Dunker (2019), sustentam que a ontologia com a qual Lacan rompeu explicitamente foi a metafísica aristotélica que orienta o ser a partir do Supremo Bem, uma ontologia que desemboca em uma determinada deontologia ao assinalar no existente um ser a cumprir, uma essência a realizar. Se rompeu explicitamente com esta ontologia, resta delimitar com quais ontologias poderia Lacan dialogar. Um momento interessante em relação ao posicionamento de Lacan, foi quando abordou o assunto no seminário XI, momento em que foi diretamente interrogado sobre sua ontologia.

Nestas passagens o autor deixou algumas pistas sobre possíveis encaminhamentos e podemos afirmar que, este seminário, longe de trazer uma solução sobre o tema, ao contrário, coloca diversas questões. Lacan (1964/2008) afirmou de saída que há uma analogia entre a estrutura de hiância como a característica fundamental do inconsciente freudiano de que tratava na abertura deste seminário e a função da falta nas teorizações anteriores sobre o desejo. Disse que "é mesmo de uma função ontológica que se trata esta hiância" (p.36) do inconsciente. Posteriormente, considerou "a hiância do inconsciente [...] pré-ontológica" (p.37) e afirmou que o inconsciente tem o caráter "de não se prestar à ontologia", pois não é "nem ser nem não-ser, mas é algo de não realizado" (p. 37). A seguir afirma que o "que é ôntico, na função do inconsciente, é a fenda (p. 38)" e que o "estatuto do inconsciente tão frágil no plano ôntico, é ético" (p. 40). No entanto, mais adiante, por fim afirma: "certamente, tenho minha ontologia - por que não? - como todo mundo tem, ingênua ou elaborada" (p.76).

Estas passagens, de modo algum esgotam o problema concedendo um estatuto ético para o inconsciente. Como foi possível observar, Lacan afirma que do ponto de vista pessoal, não é possível operar sem uma ontologia, mesmo que esta seja irrefletida. Agora, as afirmações deste seminário geram questões, pelo modo disperso como são tratadas, pois Lacan afirma na mesma lição que a estrutura de hiância do inconsciente tem uma função ontológica, que é pré-ontológica e que é ôntica. Uma hipótese é que aqui, Lacan busca cercar a questão no âmbito de diferença ontológica em Heidegger. De qualquer modo, como salienta Balmès (2002, p. 11), Lacan, ao longo de sua obra:

No deja de hablar del ser, teje incesantemente sus términos con referencia al ser. Con entusiasmo o reticencia, con neutralidad, fingida o no, con ingenuidad más o menos sincera, rabia, vergüenza y burla, o resignación. Pero sin pausa. Ya sea que hable en contra o a favor, con la apariencia de no rozar siquiera el tema, a pesar de todo, hay en ello para él una necesidad ineludible25.

O uso extensivo do vocabulário do ser, demostra que os problemas ontológicos são incontornáveis nesta obra. Entretanto, Balmès (2012) coloca a questão: o ser é incontornável apenas para Lacan, ou é também para todo aquele que pretende se sustentar teoricamente no campo da psicanálise? Esta é uma pergunta fundamental. De qualquer modo, o autor ressalta que não há como ler os seminários e escritos sem encontrar um uso multiforme do vocabulário do ser, durante muitos anos e sem o menor sinal de desvalorização. Além do mais, a maioria dos conceitos que um analista lacaniano põe em prática se definiram neste contexto. E o autor afirma ainda que, a ideia de que em psicanálise o ser do sujeito está em jogo desde o começo é uma fórmula que Lacan nunca renunciou em todo o seu ensino. O ser serve de fundo para várias definições construídas em diferentes momentos de sua trajetória, sobre os significantes fundamentais, as apostas e a meta de uma análise26.

De acordo com Balmès (2012), embora em constante diálogo com o discurso do ser, não há uma ontologia de Lacan. Todavia, segundo o autor, as coisas que Lacan disse do ser abrem caminho para fazer uma crítica à ontoteología diferente da desconstrução efetuada por Heidegger e os heideggerianos, pois a psicanálise não pertence à filosofia, mas se apoia nela e às vezes a interpela radicalmente. No Brasil, não obstante a majoritária negação do problema no campo, dois autores críticos se destacam em suas propostas para abordar o problema da ontologia: Dunker (2007, 2017 e 2019) e Safatle (2006 e 2007).

Dunker (2007) ao apresentar o cenário sobre o posicionamento do campo psicanalítico sobre o tema27 tendo como critério a relação de cada posição com a realidade, fala de dois grupos que tocam o problema da ontologia. O primeiro posicionamento, que denomina refundacionismo, considera a psicanálise como a instauração de uma experiência onde o problema da realidade é abordado pelas vias de uma ontologia regional, tendo em vista a regionalidade singular de certos tipos de constituição subjetiva que a prática da psicanálise daria acesso. Aqui se enquadrariam os autores que investigam as experiências primitivas do desenvolvimento do psiquismo. O segundo posicionamento se situa no campo especifecamente lacaniano e é a proposta de Safatle (2006 e 2007) que retoma a expressão de Nancy e Lacoue-Labarte (1973/1991) e propõe uma ontologia negativa a partir de uma releitura crítica da obra hegeliana.

A proposta da ontologia negativa é pensar a ontologia fora da lógica da identidade e da substancialização. Se baseia, de acordo com Dunker (2007, p. 226) no fato de que "os modos de subjetivação da clínica lacaniana são fundamentalmente estruturas de reconhecimento de uma negação ontológica que se manifesta de maneira privilegiada na confrontação entre sujeito e objeto". O autor lembra que a oposição que se costuma estabelecer no campo psicanalítico é contra um "ontologismo positivo, reificador e essencialista" (p. 227). Sugere que a ontologia seja pensada de um modo negativo, apoiado na noção de síntese disjuntiva entre o que seria uma vertente epistêmica e uma vertente ética da psicanálise. Discutir a ontologia, segundo o autor, poderia fornecer uma perspectiva crítica alternativa aos modos consagrados de interpretar Lacan, de que haja um kantismo lacaniano ou uma ontologia da estrutura.

Safatle (2007) argumenta que é preciso discutir a ontologia para que a psicanálise não fique à mercê dos valores adaptativos de cada época e neste ponto o autor é preciso em demonstrar uma relação direta entre a crítica ontológica e a direção do tratamento. Por esse motivo é necessário pensar que ontologia interessaria à psicanálise e poderia servir aos propósitos de uma cura. Ao contrário de Goldenberg (2017), para quem Lacan teve o cuidado de não tomar seus conceitos em um sentido ontológico, o autor afirma que Lacan buscou tratar ontologicamente a metapsicologia freudiana forjando uma articulação complexa entre clínica e ontologia. Safatle considera a metapsicologia como um núcleo invariável de conceitos que orientam a clínica e defende a hipótese de que o projeto lacaniano consistiu em dotar a metapsicologia de um estatuto ontológico que se situa para aquém do estruturalismo.

O encaminhamento deste autor é propor a já citada ontologia negativa. Safatle (2006 e 2007) parte da noção da dialética negativa de Adorno, que consiste em pensar o advento de uma síntese não totalizante e aborda a ontologia na psicanálise por meio do conceito de pulsão28 ao demonstrar que a noção de pulsão de morte aparece na psicanálise como um princípio que não se deixa capturar em um protocolo de ordenação. Desse modo, seria possível propor uma ontologia fundada "na negação como manifestação da essência" (2006, p. 320), ou seja, uma "ontologia não mais como regime de discursividade positiva do ser, regime que ao ser posto, tende a normatizar o campo da práxis ao determinar a priori a configuração de suas possibilidades" (2007, p. 175). O propósito do autor é que a ontologia negativa tornaria possível pensar um regime de existência que suporta o bloqueio do esgotamento do ser em uma determinação positiva.

Dunker (2007) afirma que a ontologia negativa não precisa ser uma abordagem independente das demais, mas teria a função de manter o potencial crítico ao analisar os diferentes modos de estabelecer a relação do sujeito com a realidade. Em outro texto, Dunker (2019) propõe pensar a ontologia não como fundamento dogmático de uma teoria, mas como um trabalho de exercício crítico sobre as soluções metafísicas desta teoria. Afirma, com justa razão, que não há nada mais metafísico do que decretar o fim da ontologia e que em Lacan não há uma ausência de ontologia, mas, e neste ponto está de acordo com Safatle, uma ontologia negativa. Sustenta que é necessário explicitar os compromissos ontológicos da psicanálise pois desdenhar dos problemas de fundamentação apoiado na autoridade dos textos é característica da metafísica mais dura. O autor lembra que o problema das soluções metafísicas consiste em que, ao operar processos de naturalização e essencialização, cedo ou tarde estas soluções cristalizam comprometimentos na forma de efeitos de poder e bloqueio da crítica. Existe uma relação imanente entre ontologia e política, pois existe uma articulação discursiva que envolve as teorizações sobre a natureza das coisas e as teorizações sobre os costumes num mesmo programa político.

Dunker (2019) afirma que os problemas ontológicos são incontornáveis para a ética, para a epistemologia, para a lógica e principalmente para a política e crítica ideológica, pois se infiltram nas mais simples afirmações e nas premissas mais indiscutíveis de qualquer discurso. Argumenta que não se pode eliminar a ontologia por decreto e que esta é uma característica da metafísica mais dura. A questão então é perguntar qual é a ontologia para a psicanálise. Segundo o autor, para abordar o problema da ontologia, é uma pré-condição epistemológica desconstruir o mito de que o que poderia haver de metafísico na psicanálise seria a má importação de conceitos de um campo externo, pois os problemas ontológicos têm como característica serem transversais aos territórios das disciplinas. Por outro lado, não é através da análise dos conceitos em sua pureza que se poderá verificar se estes são ou não metafísicos, mas analisando a articulação entre a formulação dos conceitos e a lógica que os tornou possíveis e necessários.

Dunker (2017, 2019) propõe duas perguntas orientadoras para a abordagem da ontologia na psicanálise: qual a metafísica que a psicanálise precisa criticar em si mesma e que tipo de crítica à metafísica interessa à psicanálise? Do mesmo modo, propõe uma estratégia de abordagem da ontologia, que são as perguntas orientadoras: 1) que tipo de fundamentação é empregado? 2) qual a relação entre ser e linguagem? 3) que tipo de formalização lógica se aplica ao sujeito? 3) que concepção de tempo está implícita na teoria? O plano geral da crítica à metafísica seria retomar o que foi excluído para que as soluções metafísicas se constituíssem como tal.

Moura (2017) abordou o tema da ontologia propondo um diálogo com Heidegger, afirmando que o inconsciente lacaniano não é ético apenas por sua natureza linguística, mas também por sua natureza ontológica. Relembrando que Lacan, ao mesmo tempo afirma que o inconsciente não se presta à ontologia e que foi cercado em uma estrutura de manifestação temporal, a autora pergunta como seria possível falar em tempo sem falar em ontologia? Por fim, propõe a pergunta sobre que tipo de relação o ser-para-a-morte heideggeriano em sua perspectiva temporal e ontológica teria com o estatuto ético do inconsciente.

 

Por uma retomada do diálogo com Heidegger

Estabelecido por estes autores a importância de se discutir problemas relativos à ontologia na psicanálise, gostaríamos de colocar a seguinte questão: a utilização da palavra negativa posta ao lado de ontologia é uma estratégia pertinente? Ontologia negativa contra uma ideia de ontologia que trabalha com parâmetros positivos de objetivação não inscreve a discussão na segurança metafísica em par do tipo posição e oposição? Este posicionamento não deixa a questão demasiadamente presa à uma linguagem binária? Ao conduzir a questão por este caminho a discussão não desembocaria necessariamente nos impasses relativos à presença ou ausência de um referente positivo para o significante? O positivo e o negativo, o ser e o não-ser, o ente e o nada, a possibilidade de apreensão da essência ou sua impossibilidade? Conceitos como a pulsão, o inconsciente, devem ser abordados pela mesma via negativa do que os aforismos lacanianos referentes à não existência da mulher e da relação sexual? Heidegger (1946/1991) salienta que, como consequência da metafísica, sempre que não conseguimos circunscrever aquilo de que discorremos em termos objetivos, recaímos automaticamente no correlato oposto, no negativo e na negação. Em nosso entender, ao falar em ontologia negativa apenas nomeamos o atributo mais marcante dos fenômenos que se apresentam na clínica psicanalítica, que é o de suas manifestações no modo da negatividade.

Se considerarmos que existem diversos modos de negatividade, correríamos o risco, sob a rubrica do negativo, de colocar no mesmo plano de equivalência a não-existência, a não-totalidade e a ausência de atributos específicos. E ao estabelecer um campo de oposição binária entre o positivo e o negativo, deixaríamos de fora todo um campo de fenômenos que, por serem frágeis em sua consistência não deixariam de se dar no plano do ser, como são os limites, os contornos e as insistências temporais. A negatividade da proposta se dirige à impossibilidade de inscrever a ontologia em protocolos objetivos de ordenação. Inspirada na incompletude da síntese não totalizante o negativo aqui é a negação da totalidade. Mas carrega o perigo de confundir com outras ordens de negação, como a do juízo de existência, pois o termo negativo não diferencia o tipo de negação a que se refere29.

De acordo com Agamben (2006) a crítica da tradição ontológica do ocidente está relacionada à crítica de sua tradição ética. O autor argumenta que o idealismo alemão já preconizava que toda a metafísica um dia cairia nas malhas da ética. E afirmava também que o sentido desta queda é o que há de mais difícil para pensarmos, pois trata-se de uma queda que temos diante dos olhos. Esta queda não significa necessariamente o declínio da metafísica, mas o advento devastador do seu extremo negativo, na forma do niilismo, a partir do qual, de acordo com o autor, o pensamento contemporâneo e sua política não deram um só passo. O que o pensamento contemporâneo tenta pensar como a ausência de fundamento, corre o risco de ser uma mera repetição da ontoteologia30. O autor argumenta que operar sobre a superfície de fundamentos negativos nomeia justamente a experiência do pensamento metafísico. Por isso, é necessário criar estratégias para pensar de modo diverso ao niilismo e sua fundamentação negativa.

A crítica que Rosenzweig31 realiza ao pensamento da totalidade é opor ao pensamento algébrico presente na dialética hegeliana, da operação de síntese entre o positivo de uma tese e o negativo de uma antítese, uma lógica assentada no cálculo correlacional. Se no pensamento hegeliano duas teses opostas produzem a positividade de uma síntese isto significa uma grande máquina de captura. Nunca uma negatividade permaneceria em sua pura diferença enquanto tal. Já com o cálculo correlacional, pode-se explorar múltiplas possibilidades em um diagrama de dispersão, dos diversos graus de correlação que podem manter as variáveis. Esta seria uma estratégia interessante para se explorar toda a rede de tensões criadas entre um polo positivo e um polo negativo, que não são anulados em sua diferença através de uma subsunção, mas que mantém sua existência na tensão da diferença. Deste modo, de acordo com Costa (2009), se pode pensar na correlação entre os polos distintos em uma situação de diversidade, evitando assim a redução dos diversos polos entre si. Essa poderia ser uma estratégia pertinente para pensar a força do paradoxo presente em expressões como falta-a-ser32, ou para pensar o regime de existência do significante que se define como a presença equívoca de uma ausência, ou a presença de uma pura diferença.

Abordar o problema, considerando a "negação como manifestação da essência", como propõe Safatle, (2006, p. 320) não seria incorrer no risco de tratar os problemas ontológicos como um correlato diametralmente (poderíamos dizer algebricamente?) oposto à Οὐσία (substância) aristotélica? Não se deixar capturar em protocolo de ordenação, como propõe este autor, é o que desde a crítica heideggeriana à metafísica, significa ontologia. No âmbito da diferença ontológica proposta por Heidegger, tudo aquilo que puder ser ordenado em protocolos objetivos se refere ao plano do ôntico, não ao plano ontológico do ser. E além do mais Heidegger (1927/2012, p. 783) salienta que a ontologia já fez um abundante uso do não, tratando o não como se fosse uma coisa simples e pudesse ser entendido por si mesmo:

Porque toda a dialética se refugia na negação, sem a fundamentar ela mesma dialeticamente e também sem mesmo poder sequer estabelecê-la como problema? Por acaso já foi posto alguma vez como problema a origem ontológica da negatividade e foram previamente buscadas as condições sobre cujo fundamento se pode propor o problema do não e da sua negatividade e de sua possibilidade? E onde devem ser encontradas senão na elucidação temática do sentido de ser em geral?

Por este motivo gostaríamos de afirmar a importância da retomada de um diálogo com Heidegger, como um caminho para abordar os problemas ontológicos da psicanálise. Em nosso entender, diversos elementos da analítica existenciária podem ajudar nesta discussão. Heidegger (1927/2012), ao analisar as estruturas fundamentais da existência do homem, propõe abordar a pergunta pelo ser através das bordas, por aquelas superfícies do ente que somos cada um de nós, que possuem uma estrutura vinculante e que estão, por assim dizer, na fronteira com a dimensão do ser. A função de borda dos litorais é um tema importante na psicanálise, pois essa nos mostrou a necessidade da abordagem pelas superfícies, pois se pode abordar o buraco por suas bordas. A analítica existenciária presente em "Ser e Tempo", permite abordar o homem por suas estruturas existenciárias, de modo a evitar a doutrina da substância presente nas categorias aristotélicas. Além do mais, podemos encontrar um veio ontológico comum à psicanálise que é a centralidade que assume a discussão das relações do ser com a linguagem. Dentro deste veio transversal, se destacam quatro zonas de avizinhamento entre psicanálise e analítica existenciária, que podem contribuir muito com a discussão ontológica na psicanálise: o modelo crítico da diferença ontológica, a concepção de verdade como desvelamento, a valoração ontológica da linguagem, a concepção não cronológica de tempo.

 

Considerações Finais

Buscamos ao longo do texto trazer argumentos de que a discussão da ontologia é uma tarefa intrasferível para uma prática clínica e que diante da dificuldade desta tarefa não podemos nos refugiar em saídas simples, como a da superação pela ética, da depuração pela evolução do quadro conceitual ou da suspenção do referente. Após apresentar as abordagens de outros autores, sugerimos ao fim do texto, a retomada de um diálogo com Heidegger por dois motivos. Primeiro como um caminho possível para uma abordagem ontológica que fuja de pares metafísicos de oposição e que possa abordar a natureza paradoxal do significante que é a presença de uma ausência. Segundo, para contribuir com a tarefa teórica de esclarecer as ontologias com as quais Lacan dialogou ao longo de suas obras. Nesse sentido Balmès (2002) afirma que houve um debate com Heidegger em momentos cruciais de formalização da obra e tanto os significantes fundamentais como as apostas e a direção do tratamento foram construídas em um tensionamento com o ser. Lacan (1966-67) afirmou que não há outro Dasein, termo fundamental da analítica existenciária, senão no objeto a. Se o uso do vocabulário do ser é um fato, portanto, incontornável, argumenta Balmès (2002), mais prudente seria que os analistas saibam como isto ocorre, e quais são as consequências ontológicas. Não é possível tomar o ser como algo óbvio no interior da teoria. De acordo com Balmès (2002), muitos conceitos centrais e significantes fundamentais foram forjados com o apoio de Heidegger. Mesmo que Lacan tenha se diferenciado publicamente de Heidegger, os termos que havia proposto a partir de seu pensamento, não desapareceram. O autor pegunta: "Siguen llevando estos la marca de su origen?" (p. 20) Ou o processo de depuração do real e seus matemas teria tido pleno sucesso?

Em "A Direção do Tratamento e os Princípios de ser Poder", Lacan (1958/1998) propõe a falta-a-ser como a política da psicanálise, que orienta a estratégia da transferência e a tática da interpretação. Esta proposição levanta perguntas a respeito da ontologia, pois ao propor esta expressão composta, a "falta a ser", Lacan deixa explícito a subordinação do tratamento psicanalítico à uma noção construída a partir do vocabulário ontológico. A política da falta a ser é muito citada no campo, mas está longe de ser auto evidente. É uma destas noções que surpreendem quando surge e que, pelo desgaste do uso produz uma certa opacidade com sua concomitante transformação em algo aparentado ao clichê. E não deixa de ser curioso esta noção ser citada sem maiores estranhamentos em um campo onde se tornou comum afirmar que não é preciso discutir ontologia. Resulta que, de tempos em tempos, é necessário abrir estas noções e tentar entender a trama conceitual na qual foram construídas33, para que se possa extrair dela a gravidade das consequências e o peso das decisões tomadas. E em nosso entender, o caminho para abrir esta noção é a retomada do diálogo com Heidegger e as zonas temáticas que indicamos acima, o modelo crítico da diferença ontológica, a concepção de verdade como desvelamento, a valoração ontológica da linguagem e uma concepção não cronológica de tempo são quatro linhas de influência da analítica existenciária na construção da teoria do desejo em Lacan.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 25/02/2020
Aprovado para publicação em: 16/11/2020

Endereço para correspondência
Ruben Artur Lemke
E-mail: lemke.ruben@gmail.com
Tiago Ravanello
E-mail: tiagoravanello@yahoo.com.br
Márcio Luis Costa
E-mail: marcius1962@gmail.com

 

 

*Doutor em Psicologia pela UCDB. Mestre em Psicologia Social pela UFRGS. Residência em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Graduado em Psicologia pela ULBRA. Coordenador do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande / MS.
**Pós-doutor em Psicologia Clínica (USP), mestre e doutor em teoria psicanalítica (UFRJ) tendo parte de seu doutorado na Université de Paris-X (Nanterre) e psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria. Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e do Programa de Pós-graduação em Educação, mestrado e doutorado (UFMS).
***Mestre e Doutor em Filosofía pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico, UNAM, México. Graduação em Filosofia na UCDB. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da UCDB.
1É necessário esclarecer que quando se fala em crítica ontológica, em abordagem de problemas ontológicos, em discussão ontológica ao longo deste texto, o debate se dá em torno de ontologias diversas, não de uma ontologia específica. Pois só é possível falar em ontologia (do ponto de vista lacaniano) levando em conta que ela é não-toda e que existem diversos modelos ontológicos propostos.
2Seminário de número VII: "A ética da psicanálise".
3Cientes das dissonâncias existentes, ao usar a expressão "psicanálise lacaniana", pretendemos abarcar as diversas posições teóricas e clínicas que se autorizam da obra lacaniana.
4Em nosso entender, a fragilidade ôntica se refere à falta-a-ser que é um ponto de estrutura da teoria e ao discutir estas questões, já estamos inegavelmente em uma discussão no âmbito da ontologia.
5Esta afirmação poderia ser ponderada com outros momentos da obra onde o ser parece mais ligado ao registro do real.
6De honte: vergonha
7No entanto, este "quase" comporta um campo de muitas diferenças. Todo o empreendimento de Heidegger busca sustentar a diferença ontológica, isto é, a afirmação de que a metafísica só abordou o ente e que entre o ente e o ser existe uma diferença fundamental (Heidegger, 1927/2012).
8Em nosso entender, as diversas passagens de Lacan sobre a ontologia, tomadas em seu conjunto na dispersão de sua obra, não demonstram nada de definitivo sobre o tema, a não ser a existência de um problema.
9A palavra alemã "Es Gibt" significa "existe", o que está dado na existência.
10É Parmênides quem constrói a via para a metafísica ao ordenar suas interrogações através do ser como princípio primeiro, do qual tudo depende. No entanto, Parmênides considerava o ser Uno, no sentido de ser indivisível.
11É complicado este argumento da passagem linear do Ser ao Um, considerando a proliferação destes termos nos textos lacanianos. Pensamos que esta afirmação decorre do modo do autor pensar a história da obra como uma evolução interna sem as devidas conexões com o contexto de emergência. Além do mais, a obra lacaniana não parece de modo algum um fluxo linear. Ela seria melhor descrita como construída em um movimento espiral, que realiza diferentes voltas em torno de um núcleo de problemas.
12Barbara Cassin se encontrou regularmente com Lacan durante o ano de 1975, com o objetivo de lhe ensinar doxografia (δόξα/γραφία) que é o estudo das ideias de autores da antiguidade por meio dos textos de seus comentadores.
13Honte em francês significa vergonha e hontologie faz homofonia com ontologie.
14O fato de que algumas frases podem ser tomadas em mais de uma estrutura sintática.
15Cassin (2013) afirma que o aforisma "Não há relação sexual" não deve ser abordado por um "vergontólogo" que só iria essencializar a não-relação.
16"Dans tout psychanalysant, il y a un élève d'Aristote" (Lacan, 1978, P. 23).
17Em nosso entender, é este fato que Lacan pretende indicar quando afirma que todos seus pacientes foram alunos de Aristóteles. Segundo Goldenberg (2017), isto refere-se à fé inabalável dos pacientes nas essências. Poderíamos acrescentar que é a crença na plena realização de uma totalidade. Neste sentido, o trabalho clínico na psicanálise consiste em furar, fazer corte nestas certezas.
18Outro em Levinas possui um sentido radicalmente diferente do Outro lacaniano. Refere-se à possibilidade ou impossibilidade de se ter acesso à radicalidade da alteridade que nos transcende. O tema comum dos dois autores é o eu como impeditivo de qualquer experiência de alteridade, como aquela instancia que só dá acesso a um duplo de cada um, via processo de identificação. Levinas chama este processo de ótica e Lacan tematiza através do estádio do espelho. Uma das faces do estatuto ético da psicanálise é o fato de que problema do acesso à realidade do semelhante é um problema primeiro, vindo em segundo lugar o problema do acesso à realidade.
19O encaminhamento que pretendemos dar a seguir é o da importância da experiência da finitude, no poder, no pensar e no saber na constituição de uma abordagem ontológica do homem.
20E certamente a psicanálise lacaniana não está livre desta tarefa.
21Em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (Lacan, 1958/1998).
22Da Natureza. Tradução de Ga briel Trindade Santos (2002).
23Trabalhado em "Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas na filosofia" de 1763 e "Crítica da Razão Pura" de 1781.
24Justamente questionamos a autora neste ponto. As discussões sobre a função do juízo de atribuição e do juízo de existência e o poder de criação de mundo da atividade de negação, em que campo se inseririam senão na ontologia?
25"Não deixa de falar do ser e tece incessantemente seus termos com referência ao ser. Com entusiasmo ou reticências, com neutralidade fingida ou não, com ingenuidade mais ou menos sincera, raiva, vergonha com gracejo, ou resignação. De qualquer modo sem pausa. Que fale contra ou a favor, com aparência de sequer tocar o tema, apesar de tudo, há nisso para ele uma necessidade indelével" (Tradução nossa).
26Afirmação importante de Balmès (2012) é que isto vale também no momento do uso da linguagem muda dos matemas, porque necessariamente essa se duplica na linguagem analítica ou mesmo filosófica.
27O autor apresentou um mapa do campo psicanalítico de modo geral, não apenas no âmbito da psicanálise lacaniana.
28Lacan (1959-1960/2008) considerou a pulsão uma noção ontológica central, um ponto em que a metapsicologia se entrelaça necessariamente com uma ontologia.
29Por último, usar o termo negativo como predicado de uma discussão ontológica não seria um modo de ceder com as palavras? E por outro lado, não nos deixa à mercê de críticas como as de Deleuze e Foucault? Este último, na "Introdução à uma vida não fascista", prefácio ao "Anti-Édipo", aconselha a abandonar todas as categorias negativas. É preciso lembrar que o inconsciente é o campo larvar do não-realizado, nem ser nem não-ser.
30Ontoteologia é o nome dado por Heidegger (1999c) para a metafisica que acaba criando uma unidade entre a lógica, a teologia e a ontologia. A ontoteologia interroga sobre o fundamento do ente, esquecendo a pergunta pelo ser.
31Autor de "Estrela da Redenção", uma influência marcante no pensamento de Levinas (1980) e citado logo no início de "Totalidade e Infinito" como presente no pensamento da obra.
32Assim, em um diagrama de dispersão produzido pelo eixo vertical da falta e pelo eixo vertical do ser, estaria o desejo com uma produção terceira do campo de tensão instaurado pelos dois vértices.
33Como afirmou Lacan (1958/1998), conceitos que não foram suficientemente criticados sucumbem ao uso vulgar da língua.

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