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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.53 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Abrindo o livro do mundo na pandemia da covid-19

 

Opening the world's book in the covid-19 pandemic

 

Abriendo el libro del mundo en la pandemia de la covid-19

 

 

Isabel Fortes*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Resenha do livro: Birman, Joel. O trauma na pandemia do coronavírus: Suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 167 páginas, 2020.

Em setembro de 2020, o livro Trauma na pandemia do coronavírus foi publicado pelo psicanalista Joel Birman, que começou a escrevê-lo em março de 2020, assim que se anunciou que nosso planeta estava tomado por uma pandemia, que ultrapassa em muito a dimensão de uma epidemia.

A leitura pode ser feita de sôfrego, arrebatando o leitor desde a primeira linha, uma vez que não há pessoa no planeta que não esteja assombrada com a temática abordada em suas páginas. Somos convidados pelo autor a refletir sobre aquilo que estamos todos vivendo no momento mesmo da publicação e diante do que estamos todos perplexos e estonteados. Trata-se de um livro escrito no calor do momento da crise sanitária no mundo, e sua feitura revela uma extrema lucidez e capacidade ampla de análise do tema, o que dá ao leitor a sensação de se encontrar diante de um verdadeiro livro do mundo no tempo trágico da pandemia. Este livro é quase uma experiência terapêutica: não doura a pílula sobre o horror que passamos e ainda estamos passando, mas consegue colocar em palavras o irrepresentável, o que já é um alento. O livro aborda a pandemia em sua complexidade, tendo -- como o próprio título anuncia -- várias chaves de leitura: a social, a psicanalítica, a do campo da saúde mental e a política. Como salienta o psicanalista já na apresentação do livro, "a pandemia do coronavírus se mostrou uma catástrofe de enormes proporções humanitárias, sociais, econômicas, ao mesmo tempo que ecológicas e culturais" (p. 13).

No campo do social, a covid-19 é mapeada culturalmente, economicamente e politicamente a partir de duas entradas, que se apresentaram no social frente a frente como excludentes, expressas no livro pela dicotomia entre os imperativos econômico e o da vida, que Birman condensa na expressão "A bolsa ou a vida", inspirada na obra de Shakespeare, O mercador de Veneza. Tal oposição gerou conflitos e confusão mental na população que, em alguns países, não recebeu de seus governantes mensagens claras sobre como reagir ao vírus. No caso do Brasil, a oposição entre a bolsa e a vida desenhou nosso campo social e político, mostrando como o Brasil se tornou de fato um pária, um país de exceção, vivendo a pandemia como uma situação muito mais catastrófica do que outros países devido às ações irresponsáveis de seu próprio governo. Dentre inúmeras questões sociais graves examinadas, o autor nos adverte de que, em paralelo à pandemia do vírus, ocorre um quadro catastrófico colateral, que é a pandemia da fome, detalhando o alarmante mapa da fome no Brasil no ano de 2020 que, sem dúvida, só se agravou em 2021.

No campo da saúde mental e da psicanálise, Birman destaca a noção psicanalítica de trauma, colocando-a no centro das reflexões sobre a pandemia, que pode ser concebida por psicólogos e psicanalistas como uma experiência traumática. Cabe aqui a noção de catástrofe, que remete ao campo do coletivo na sua multidimensionalidade e circunscreve-se, aqui, a noção de trauma, para conceber os atravessamentos vividos no campo do sujeito, da experiência subjetiva.

Neste contexto, alguns quadros clínicos do campo da saúde mental e da psicanálise são no livro apontados como tendo tido forte aumento. São quadros que se acentuaram na atual catástrofe, como a depressão (que recebeu recentemente o estatuto de epidemia), a hipocondria, a síndrome do pânico, a insônia, dentre outros, resultantes, no terreno do sofrimento psíquico, do terror da morte, do sentimento de solidão causado pelo necessário confinamento, e da presença permanente do afeto da angústia relatado pelas pessoas.

Além dos sintomas clínicos retratados na saúde mental, no campo do social o livro examina o incremento da violência na sociedade, como efeito da precarização social que aumentou de maneira evidente ao longo de 2020-2021.

Para explicar o sentimento de desproteção e solidão, o autor traz à baila a categoria freudiana de desamparo, a fim de demonstrar a fragilidade humana diante da alteridade, e propõe que, neste quadro de catástrofe e de situações de precarização total, estamos mais, no nível do psiquismo, diante da experiência de desalento, categoria psíquica que expressa o sofrimento do sujeito, que se vê muitas vezes sem recurso algum, à beira de um colapso psíquico.

Nessa linha de raciocínio, Birman descreve uma terceira categoria psíquica que se sobressaiu frente à covid-19: o desafio, abrangendo as pessoas que quiseram desafiar onipotentemente o vírus ao negar seu poder mortífero. Interessante notar que o autor oferece para essa figura do desafio uma interpretação psicanalítica, analisando como ela resulta também de uma consequência do terror da morte que vige naqueles que negam e recusam as regras sanitárias de isolamento e proteção estabelecidas pela comunidade científica.

A ecologia é outro terreno importante abordado, sendo examinada como um aspecto fundamental do mundo hoje, encontrando-se à frente da cena nas reflexões sobre as ações do homem de nossos dias. O cenário da pandemia pôs as urgências ecológicas ainda mais em destaque, na medida em que não resta mais nenhuma dúvida de que as catástrofes ecológicas explicam o aumento das pandemias no século XXI, havendo uma correlação direta entre as devastações ambientais e as crises sanitárias. Os impactos globais das catástrofes ecológicas preocupam sobremaneira os cientistas, que já põem na pauta do dia a previsão da possível ocorrência de novas pandemias. A comunidade científica em todo o mundo adverte que, caso essas devastações não tenham um término, isso pode conduzir à multiplicação de novas pandemias no futuro, pois não temos como separar mais o problema sanitário do problema ecológico.

Além da análise aguda que o livro faz da catástrofe e suas consequências, é fundamental ressaltar que ele, além disso, algumas saídas para antevermos o mundo no tempo pós-pandemia.

Como saídas para o futuro pós-pandemia, Birman identifica como a catástrofe acelerou o processo de enfraquecimento da globalização, processo que se encontrava em marcha desde antes. Ele adverte que o enorme risco frente à desglobalização é o incremento dos governos nacionalistas e populistas autoritários de extrema direita, quadro que já está em curso.

Por outro lado, para além desse risco, Birman aposta na possibilidade de que a pandemia tenha como desdobramentos algumas saídas positivas, como o cosmopolitismo e a solidariedade.

Alguns indicadores são fornecidos. A pandemia causou uma espécie de ferida narcísica nas promessas do neoliberalismo, ao aumentar o quadro de desigualdades sociais causado por essa modalidade de organização econômica e social. Com efeito, o vírus deixou ainda mais evidente como o neoliberalismo produz enormes desigualdades sociais e um contexto de extrema violência social. Diante de tal quadro, o autor deseja crer que há uma abertura possível e que a pandemia poderá ser uma oportunidade de transformar a crise catastrófica em condição de uma mudança positiva do espaço social. Ele afirma que o cosmopolitismo pode ser um substituto do internacionalismo que marca a conjunção neoliberal, vindo aquele fazer frente à tentativa de aumento de poder do estado-nação, que tem sido a proposta de alguns governos diante do enfraquecimento do neoliberalismo.

O cidadão cosmopolita ocupa o mundo de um modo que confronta o nacionalismo e é capaz de estabelecer vínculos de solidariedade que não incluem a globalização. A construção de um mundo cosmopolita para além de uma simples ordem internacional traria a possibilidade de posturas solidárias e de parcerias multilaterais entre as nações. O desarranjo do capitalismo neoliberal pode ser oportunidade para rearticulação de novos laços, agregando diferentes raças e povos, contemplando um mundo que já mostra ter forte rejeição à globalização, mas que, nem por isso, precisa de se aferrar aos nacionalismos e populismos.

Dessa maneira, a junção entre trauma e solidariedade é uma análise fecunda para pensarmos o tempo pós-pandêmico. Que a pandemia possa nos trazer isso é a grande aposta para o futuro que este extraordinário livro oferece. Que a psicanálise possa acompanhar este futuro que se anuncia é também uma promessa que essa leitura nos leva a desejar.

 

Artigo recebido em: 09/10/2021
Aprovado para publicação em: 09/10/2021

Endereço para correspondência
Isabel Fortes
E-mail: mariaisabelfortes@gmail.com

 

 

*Psicanalista, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.

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