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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Olhar para o mundo das imagens: uma leitura psicanalítica

 

A Gaze into the World of Images: through a psychoanalytic point of view

 

Le Regard du Monde des Images: une lecture psychanalytique

 

 

Clara Maia Nicolato CorrêaI*; Ilka Franco FerrariI, II, III**

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMinas - Brasil
IIEscola Brasileira de Psicanálise - Brasil
IIIAssociação Mundial de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo percorre considerações sobre a realidade da sociedade do espetáculo e os espaços virtuais-sociais que nela favorecem o ilimitado do gozo, tornando absoluto o olhar que, fundamentalmente, é inapreensível. E desenvolve considerações sobre contribuições das plataformas de mídias sociais para a ascendência da imagem, em detrimento da palavra, em movimento que leva os sujeitos ao constante fazer-se ver, por meio de imagens-todas, na busca de tamponar a falta que lhes é constitutiva. E, nesse caminho, tentar dizer o indizível. A psicanálise é o campo teórico/prático que sustenta os argumentos.

Palavras-chave: Psicanálise, Imagem, Objeto olhar, Espetáculo, Redes sociais.


ABSTRACT

This article covers considerations about the reality of the spectacle society and the virtual-social spaces that favor the unlimited of enjoyment, making the gaze absolute which is, fundamentally, inapprehensible. Furthermore, it develops considerations about the contributions of social media platforms to the ascendancy of the image and the detriment of the word, in a movement that leads the subjects to constantly make themselves visible, through images-full, in the search to cover the lack that is constitutive. By that, they try to say the unspeakable. Psychoanalysis is the theoretical / practical field that supports these arguments.

Keywords: Psychoanalysis, Image, Object-gaze, Spectacle, Social midia.


RÉSUMÉ

L'article couvre des considérations sur la réalité de la société du spectacle et les espaces virtuels-sociaux qui favorisent l'illimité de la jouissance, rendant absolut le regard, qui est, fondamentalement, incompréhensible. Il développe des réflexions sur les contributions des plateformes de médias sociaux à l'ascendant de l'image et au détriment de la parole, dans un mouvement qui amène les sujets à se rendre constamment visibles, à travers des images-tout, dans la recherche de combler le manque qui est constitutif. Et, de cette façon, essayez de dire l'indicible. La psychanalyse est le domaine théorique / pratique qui soutient les arguments.

Mots-clés: Psychanalyse, Image, Objet-regarder, Spectacle, Réseaux sociaux.


 

 

Como advertiu Lacan (1953/1998, p. 322), o psicanalista que não consegue "alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" deve renunciar a seus propósitos de ser psicanalista. Tal afirmação leva à constatação de que a subjetividade é mutante segundo a época, em contexto no qual o sujeito, em sua dimensão singular, não se submete totalmente a ela, embora nela inserido, como enfatiza Ons (2016).

A psicanalista Bleichman (2003), estudiosa do tema subjetividade, relembra a seus leitores que este é um conceito sociológico, ligado ao sujeito histórico atravessado pela cultura; porém, a subjetividade não diz respeito a todo o aparelho psíquico, uma vez que ele implica certas regras para além da articulação entre os enunciados sociais e o eu, a exemplo dos aspectos pulsionais e gozosos. Mesmo assim, é importante levar em conta que o sujeito é marcado por representações sociais e políticas de seu tempo, o que pode alterar as formas de manifestar suas questões e, até mesmo, seus sintomas.

Aqui há a preocupação de colocar em cena novos espaços virtuais-sociais, para os quais importa o olhar e ser olhado, a valorização da imagem, tendo em conta a realidade social contemporânea. Nela são encontradas várias considerações psicanalíticas acerca da época do Outro que não existe que, para Miller (1996/2013), é forma de dizer de um Outro não todo, que se pluraliza, passando de um para vários e, sendo assim, não oferecendo a aparência de garantia de um universal. Fala-se, então, de época do declínio do simbólico, época do império (Miller, 2011), para expressar a rede densa e autônoma do poder capitalista, de um regime que não age pelo interdito nem pela repressão, tornando-se sem fronteiras, e com a globalização permitindo novos modos de movimentos organizados em todo o mundo.

Fala-se, consequentemente, dos diferentes batismos que essa atualidade recebe, devido a suas peculiaridades, a exemplo da pós-modernidade, segundo Jean-François Lyotard; hipermodernidade, para Gilles Lipovetsky; alta modernidade, segundo Anthony Giddens; e modernidade líquida é a preferência de Zygmunt Bauman. Em todos os casos parece haver a nota de que neste contexto há espaço para discursos até então fora do estabelecido. E, como lembra Soler (2003-2004), a forma de discurso fora do estabelecido é típica da psicose. Daí, não raro, este mundo é visto como próprio de sujeitos psicóticos com suas dificuldades nos laços sociais, envolvidos em seus gozos autísticos. Mas, como a perversão é muito reconhecida por um "fora da Lei", não raro se escuta dizer que o mundo é perverso, uma vez que nele impera a perversão generalizada, marcada pela sua forma de gozar.

Discute-se, ademais, que, com o declínio do simbólico, nesta época reina o imaginário. E não sem razão, portanto, o filósofo Debord (1992/2017) se refere à sociedade atual como a sociedade do espetáculo, na qual há o império das imagens e das mídias que alienam e manipulam os indivíduos. Vidas com gozo desregulado e sujeitos condenados a diversos tipos de overdose no campo das pulsões, resultando em um tempo de compulsões, que conta com as redes sociais.

Dispor-se a pensar, considerando o horizonte da época significa, portanto, não dispensa a contribuição das plataformas virtuais e midiáticas para a ascendência da imagem e o declínio da palavra. Logo, coloca-se em cena o que em psicanálise se conhece como objeto olhar e suas manifestações hodiernas. Este texto focalizará neste campo de debate e reflexões, não desconhecendo, como se pode notar, a amplitude da realidade social em que estes fenômenos acontecem.

 

A sociedade do espetáculo, o declínio do íntimo e as imagens transparentes

O livro La Société du Spectacle, escrito por Debord (1992/2017), tem sua atualidade. E, inclusive se lê, no subtítulo da edição de 2017: "50 anos depois, mais atual que nunca". Esse escritor francês foi inspirado por vários filósofos, dentre eles Hegel e Marx, e tem sido considerado um dos principais pensadores situacionistas de sua época. No Prólogo da Sociedade do Espetáculo, da edição de 2017, escrito por Christian Ferrer, Debord é considerado atento ao poder da imagem e ao mundo de vários estímulos visuais sobre os quais os indivíduos devem assimilar inúmeros olhares, como também alguém que não mediu esforços para alertar seus leitores sobre a catástrofe de sentidos que levou os humanos a experienciarem distorções extremas. Isso se deu devido à dominação da tecnologia e da estética, o que resultou na busca do controle dos corpos e das ideias, por meio de ofertas de identidade feitas às massas a partir de modelos culturais.

Debord (1992/2017) já dizia de uma realidade condenada ao mundo da artificialidade e insuficiência, fazendo do espetáculo uma obrigatoriedade para dominar o meio com o visual e o superficial, o que dificulta a diferenciação entre o desejo e a obrigação. Os indivíduos, consequentemente, podem se alienar no império estético das mídias e podem ser conduzidos a buscarem e desejarem o que é postulado, o que está na moda. Atentou-se, então, para o regime da visibilidade que, contraditoriamente, não os deixa ver, pois busca ajustar o modo de ver o mundo a partir das perspectivas dominantes. Ou seja, trata-se de um reino invisível que escapa ao olhar, evidenciando que falta quem realmente possa enxergá-lo. A realidade, com efeito, passou a ser moldada a partir de imagens manipuladoras.

Nessa direção, segundo Birman (1999), a subjetividade passou a ser constituída a partir de um ponto de vista estético, colocando o eu em uma posição privilegiada. O mundo, por conseguinte, passou a dar ênfase às aparências, já que é marcado por sujeitos que tentam se autopromover constantemente, a fim de viabilizar um "show do eu", tal como expressa Sibilia (2016, p. 53). Nesse sentido, ocorre um autocentramento narcísico do sujeito, focado em sua própria imagem, fenômeno que adquire ainda mais vitalidade quando se pensa que a vida, estruturada nas bases do discurso capitalista, objetaliza o sujeito, fazendo de sua imagem uma mercadoria a ser consumida e, portanto, sua divulgação é indispensável.

Nota-se, assim, que o consumo de objetos e de imagens se tornou uma prática de devoção e de envolvimento emocional, conforme Debord (1992/2017) advertiu. A lei do mercado é o universal contemporâneo do qual nada escapa, nas palavras de Laurent (2017), e tudo que é visível foi se transformando em mercadoria. Nessa conjuntura, surgiu uma nova metafísica de consumo de objetos intangíveis, incorpóreos e impalpáveis. Isso se pode articular com as considerações lacanianas acerca do objeto a: aquele que não é da ordem do significante, sendo sem consistência. Ao pensar na ascendência do imaginário, ainda há a possibilidade de articular, com Lacan (1970/2003), a elevação do objeto a ao zênite social, uma vez que os objetos mais-de-gozar passaram a sobrepor os ideais, favorecendo o declínio do simbólico.

Falar em imagem também implica em relembrar as considerações de Lacan (1949/1998), em Estádio do Espelho, a partir de onde a gestalt corporal é antecipada pela imagem do outro, o que traz ao sujeito constante estranhamento do próprio corpo. Ou seja, há algo da imagem que se pode localizar na noção de extimidade – termo formulado por Lacan, no Seminário 10, e trabalhado por Miller, em Extimidad. Trata-se de uma formalização para dizer que o êxtimo é o lugar no qual se crê reconhecer o mais íntimo, o mais próximo, o mais interior e o mais familiar, sem deixar de ser também exterior. Nas palavras de Miller (2010, p. 14) "o termo extimidade se constrói em torno de intimidade, mas não é o seu contrário, porque o êxtimo é precisamente o íntimo".

Ou seja, a partir dessa articulação pode-se dizer que a própria imagem corporal necessita de uma exteriorização para ser apreendida e apropriada pelo sujeito. Quando se pensa no espetáculo, é possível notar, nessa conjuntura, que talvez essa imagem passe a ser cada vez mais extradirigida ao outro em busca de obter uma validação daquilo que se é ou daquilo que se deseja aparentar ser. Pode-se dizer, ainda, que se trata de uma estranha intimidade exposta e midiatizada em uma espécie de palco e holofote virtual.

Exteriorizar-se implica grandes consequências para o sujeito e, por isso, conforme Wajacman (2019) pontuou, há de se pensar no íntimo: o lugar mais subjetivo do sujeito, onde ele pode escapar do olhar do Outro, se separando também do poder-de-olhar para conseguir olhar-se a si mesmo. Na atualidade, o íntimo, no entanto, passou a ser ameaçado em decorrência do declínio do simbólico que torna enfraquecido o que é privado, contribuindo com o apagamento do sujeito. Os sujeitos, por conseguinte, são levados a serem cada vez mais transparentes. A fronteira entre o íntimo e o campo do Outro, com efeito, passa a ser aberta espontaneamente, fazendo com que as pessoas publiquem e exponham a sua intimidade, sem vergonha. É o tempo de desvelamento que chama a psicanálise ao trabalho, já que defender o íntimo é um de seus fundamentos, uma vez que "a possibilidade do íntimo é, finalmente, a própria possibilidade da psicanálise" (WAJACMAN, 2019, p. 45). Questão presente na fala de Miller (2010), quando diz que a psicanálise nos introduz no registro da intimidade, se alimenta da vida íntima, pois não há relação mais intimista do que a que acontece entre analista e analisante.

Bassols (2014) introduz o significante mestre da transparência, para dizer da tentativa do sujeito em se autodesvelar e fazer do Outro transparente. Pode-se pensar, nesse sentido, em uma tentativa de fazer com que ele seja apagado, enfraquecendo a sua autoridade e evidenciando o gozo. O autor explicita, portanto, que os sujeitos gozam de sua própria transparência, sem saber, no entanto, que tem algo ali que esbarra no impossível de se exteriorizar. Logo, para pensar a contemporaneidade é preciso levar em conta a alienação alimentada pela transparência e pela exposição.

Eis que vivemos em um tempo de hiperexposição que marca o "império das imagens", como coloca Tarrab (2018, p. 12). Essas imagens, porém, não condizem com aquelas articuladas à lógica fálica. Na atualidade, elas tentam velar o real e a castração, buscando encobrir a falta do objeto a, na medida em quecapturam o gozo e até o produzem. Mas elas também encobrem o próprio objeto a, funcionando como um véu que, ao mesmo tempo que mostra, esconde. Como a tradição filosófica no entanto ensina, as imagens enganam, uma vez que, ao esconder, elas fazem existir o que não se pode ver. Mas este autor também salienta que, além da função de véu, as imagens demonstram uma atividade inédita que questiona a participação do que é visível. Nesse sentido, o que se diz é de uma independência das imagens, que também olham, ganhando certa consistência da ordem do real, que faz com que o imaginário também ganhe sua transparência.

Pode-se pensar, nesse sentido, que o vazio, deixado pelo enfraquecimento dos ideais, fez das imagens um meio pelo qual os sujeitos tentam construir um lugar sem faltas e, a partir delas, moldar um novo ideal. E a imagem também tornou-se um meio ativo pelo qual o sujeito tenta olhar mais-ainda.

 

A visão imaginária, o olhar inapreensível e o absoluto contemporâneo

Em certo momento de seu ensino, Lacan (1964/2008, p. 78) afirmou que "somos seres olhados no espetáculo do mundo"; logo, há que se pensar sobre o estatuto do olhar na sociedade do espetáculo. Tal afirmação propicia retomar Debord (1992/2017), no momento em que ele assinala a função de olho como um cristal em que raios atravessam formando um inventário visual, fazendo emergir uma aura obscura a partir de uma impenetrável selva de imagens. Ou seja, há algo da imagem que não pode ser olhado, permanecendo enigmático e, por isso, obscuro. A tela (dos gadgets, como pode-se pensar) passa, nessa conjuntura, a absorver o olhar do indivíduo e, consequentemente, o olho passou a desconsiderar e esquecer o que não é de acordo ao que o corpo se adaptou. A partir disso, Debord (1992/2017, p. 26) questiona-se acerca de qual é o sentido de se ter acesso à visão, já que o indivíduo está inserido em um drama visual que é cheio de máscaras. E responde afirmando que, para além da visão, é preciso de educação para que realmente se possa ver, demarcando, portanto, a necessidade de se ir além do que é visível para interpretar o que se vê. Alerta, inclusive, sobre a época atual: "o sintoma de nossa época evidencia-se no fato de que somos observados – e observamos – o tempo todo".

Além de Debord, o filósofo Didi-Huberman (1998) trabalha esta temática. Em seu livro O que vemos, o que nos olha, ele demarca que é aquilo que nos olha que faz valer o que vemos e, sendo assim, o ato de ver é algo que envolve dois e se abre em dois, dado que há algo entre aquilo que vemos e que está diante de nós, havendo sempre uma outra coisa que nos olha. Argumenta que é por meio da linguagem que os nossos olhares têm acesso ao visível, sendo algo paradoxal, uma vez que a linguagem não pode ser vista. Dessa forma, ele considera que há alguma coisa que escapa ao olhar e, portanto, para ver é preciso fechar os olhos. Isso porque há algo da visão que remete a uma experiência tátil, de tocar o obstáculo que está diante de nós, porém esse obstáculo é feito de vazios. Assim ele propõe: "devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui" (p. 31). Introduz, então, a noção de aura como um vazio que é necessário entre o que vemos e o que nos olha, como um não-lugar que vai vincular as esferas envolvidas. E, afinal, já que para ver fechamos os olhos, devemos abrir os olhos para experimentar o que não vemos.

Mas, como se sabe, antes deles Freud já havia se atentado a esse tema, fazendo formulações acerca do campo escópico no qual incluiu uma pulsão. Lacan, posteriormente, ainda elaborou outras questões em torno desse campo, retomando inclusive pensamentos filosóficos. No Seminário 11 (1964/2008) ele citou, dentre outros filósofos, Merleau-Ponty, Platão e Sartre. Ele retomou o livro O Visível e o Invisível, de Merleau-Ponty, adentrando a respeito da fenomenologia da percepção, que remetia a uma regulação da forma que inclui, para além do olho do sujeito, todo um campo de intencionalidade que é formado através de uma presença constitutiva. Em Platão ele reconheceu o início do pensamento de que a estética passou a dominar o campo das ideias. Já em Sartre ele retomou seus ensinamentos de que o olhar é algo pelo qual somos surpreendidos, uma vez que ele muda todas as perspectivas. Foi nesse mesmo Seminário que ele, inclusive, formalizou o olhar enquanto objeto a. Nesse caminho aconteceram, portanto, pontuações importantes que cabem retomar, neste momento, ainda que brevemente.

É nos Seminários 10 e 11 que Lacan teoriza sobre o objeto-olhar fazendo, também, um retorno a Freud. Vale lembrar que Freud (1905/1976) teorizou a pulsão escópica em dois tempos, divididos entre o ativo (sujeito) e passivo (objeto): o prazer de olhar e o prazer de exibição. Posteriormente, ele (1915/1976) formulou que, na ideia de pulsão, há a noção de um objeto através do qual ela pode alcançar satisfação. Scheinkman (1995) relembra seus leitores, no livro Da Pulsão Escópica ao Olhar, e os ajuda a compreender que Lacan reformulou a teorização da pulsão escópica, colocando-a enquanto algo que contorna o olhar e constitui um objeto ativo. Nesse sentido, olhar para o outro é anterior a ser olhado pelo outro, o que constituirá a circularidade da pulsão em torno do ver e ser visto. No plano pulsional, trata-se de fazer-se ver e, quando o sujeito se faz ver, ele constitui um lugar para si. Ou seja, quem é olhado se torna sujeito a partir do olhar de quem o olha; portanto, é a partir dessa dialética entre o Outro e o objeto que o sujeito ganha seu lugar e seu estatuto havendo, ao mesmo tempo, a constituição do objeto e o aparecimento do sujeito. O olhar estará, pois, do lado desse novo sujeito que desempenha um papel de objeto, para que possa fazer-se ver. Desse ângulo, torna-se mais fácil entender as considerações lacanianas acerca do olhar enquanto objeto a, operador do nascimento do sujeito. Diante dessa conjuntura, ele ainda assinala, no Seminário 11, que o campo escópico é um entre-dois, pois só é possível olhar de um ponto, mas somos olhados por todas as partes, o que é similar às ideias de Didi-Humberman.

Em meio a essas considerações, Lacan (1964/2008) marca uma diferenciação entre a visão e o olhar. Em referência ao Seminário 11 pode-se dizer, de forma concisa, que é a partir das falhas da visão que o olhar emerge, ou seja, onde não há visão, surge o olhar. Uma das principais diferenças entre visão e olhar pode ser posta, inclusive, da seguinte forma: quem vê é o eu e quem olha é o sujeito do inconsciente.

Sobre a visão, tal como Lacan (1964/2008) assinala, ela se ordena na função das imagens, a partir de um ponto geometral que envolve duas unidades no espaço. O ponto geometral, nessa perspectiva, pode ser pensado como um método que determina a imagem, tendo o papel de trajeto de luz. Há, então, um espaço geometral da visão que inclui partes imaginárias de dentro do espaço virtual do espelho, sendo algo que pode ser imaginável. Ele coloca que, a partir da função da visão, o olhar vai ser esboçado como tal. O domínio geometral é, assim sendo, uma luz que dá um fio que nos conecta a cada ponto do objeto, tendo em vista que a luz se propaga em linha reta. A luz, porém, também refrata e, da mesma forma, o olho é algo que transborda. Mas como apreender, então, algo que nos escapa? Ele se questiona e responde que a visão se situa em um espaço que não é essencialmente visual, pois a aparência do ser não está nessa linha reta, e sim em um ponto luminoso. A relação geometral é, portanto, algo que é ambíguo e não dominado de forma alguma pelo sujeito, apreendendo-o e solicitando-o a cada instante.

Nasio (1995), leitor de Lacan, salienta algumas questões relativas à visão, facilitando sua compreensão. Em seu livro O olhar em Psicanálise, ele faz um apanhado de vários seminários, realizados em Buenos Aires, em torno desse tema. Como esclarece, a visão ordena-se na função das imagens e o que vê as imagens é o eu ideal, que é configurado no imaginário, pois nele o eu é a imagem. O eu, entretanto, não percebe todas as imagens, apenas aquelas em que se reconhece, que refletem o que ele é e que adquirem um certo sentido, conhecidas como imagens pregnantes. Um dos exemplos destas imagens é o outro, o semelhante. Com efeito, o eu alimenta-se da imagem do semelhante, fazendo com que ela o componha, constantemente. Mas, a imagem pregnada está carregada de idealidade, isto é, de como o eu se reconhece e espera ser reconhecido. Com ela, ele ainda se compara, na busca de conseguir prever, de antecipar algo. Por isso, pode-se dizer que no campo da visão não há elemento algum de surpresa. Mas, também vale ressaltar, que a imagem se desenvolve a partir do falo imaginário, implicando o gozo, dado que o falo imaginário ao mesmo tempo que encobre o gozo, lhe dá luz. No mundo imaginário, portanto, há um objeto e um gozo que dá consistência às imagens. Percebe-se, pois, a complexidade envolvida no ato de ver.

Em relação às especificidades do olhar, Lacan (1964/2008) pontua que ele é um dar-a-ver, uma vez que a percepção não está nos sujeitos, mas sobre os objetos. Mesmo assim, os sujeitos se percebem em um mundo que parece depender da percepção, do vejo-me ver-me, que aparenta dizer que as representações lhes pertencem. Sendo assim, há ilusão de ver-se vendo-se e, por isso, há algo que escapa, sendo inapreensível. O olhar, diferentemente da visão, surpreende, desorienta e desmonta. Além disso, há ainda a existência de uma esquize, que é instaurada nesse percurso, mas ela não se dá entre o visível e o invisível, e sim entre o olho e o olhar, dado que se manifesta no nível do campo escópico. O mundo é onivoyeur, por provocar o nosso olhar, mas, quando isso acontece, causa sentimento de estranheza. Lacan constata, assim sendo, que há algo do olhar que não apenas olha, mas que também mostra. Nessa construção, ainda pontua a noção de mancha, posta no campo escópico, que se relaciona à função do olho, sendo algo que sempre escapa à visão. Nesse sentido, nota-se que no próprio olhar há um estranhamento, que pode se relacionar à ideia de êxtimo. E, nos dias atuais, o olhar ainda se volta mais-ainda ao íntimo, cabendo pensar que no próprio ato de olhar e ser olhado se instaura algo da extimidade.

Nesse caminho, Lacan (1964/2008, p. 102) assinala que a função de um quadro tem relação com o olhar, pois é como se o pintor se indagasse: "queres olhar? Pois bem, veja então isso!". E, assim, oferece algo como miragem para o olho. O quadro é apresentado para o sujeito depositar ali o seu olhar, comportando uma ideia de abandono. Semelhante às suas construções acerca do amor, que é fundamentalmente insatisfatório e sempre faltoso, neste momento Lacan afirma: "Jamais me olhas lá de onde te vejo. Inversamente, o que eu olho não é jamais o que quero ver" (p. 104). Logo, para além de uma satisfação, o olhar é uma ação, que agarra o sujeito e ali o prende.

Nesse momento, convém retomar mais uma vez Nasio (1995), visto que ele traz contribuições acerca do olhar. Como comenta, o olhar vai se desenvolver e surgir a partir do contexto da visão, mas o gozo de olhar e o ato de olhar só podem acontecer dentro de condições muito específicas próprias da visão, a fascinação. Ela diz dos momentos de falha da visão que faz tudo desaparecer em favor do falo imaginário tal como ele é (imagem fálica sem coberturas) e, por ser uma imagem transparente à luz, ela também pode ser chamada de gozo. Pode-se dizer, então, que a fascinação é uma experiência que se dá no limite do imaginário, mas onde todo esse mundo imaginário desaparece: o eu não é mais o eu, e sim mais eu do que nunca, por revelar sua essência radical: sua imagem sexual. É nesse momento que somos fascinados e, portanto, é aí que se pode olhar.

Tendo em vista essas elaborações, entende-se que há algo do olhar que não se apreende, uma vez que ele surpreende e surge quando não se pode mais ver. Ele é, além de tudo, um objeto no qual se encontra ali uma pulsão que circula nas posições de olhar e ser olhado, provocando uma satisfação, da ordem do gozo, por se fazer-ver.

No que tange a certas implicações e transformações, na atualidade, Wajacman (2019) compreende que, como o discurso científico busca tudo saber e tudo responder, o Outro passou a desejar tudo-ver, tornando-se invasivo. E, ao se pensar na pluralização desse Outro, pode-se inferir que esses olhares também se pluralizam, tornando-se inúmeros, o que pode ser até representado pelas diversas câmeras de aparelhos que nos captam. Com efeito, o olhar do mestre tornou-se ilimitado e intrusivo, apoiando-se na ciência e na tecnologia. Assim sendo, o mestre hipermoderno virou uma máquina do tudo-ver e, diante disso, o poder se centra no olhar, desencadeando uma hipervigilância. O olhar, então, também é castrado da sua possibilidade de provocar vergonha fazendo, na verdade, com que o gozo se desperte. Por isso, torna-se importante construir um limite, a partir do qual a lei opera protegendo o privado. Mas, como já colocado, os sujeitos estão cada vez mais desvelados, a partir de imagens transparentes que enfraquecem a barreira do privado e expõem sua intimidade. Isso também é impulsionado pelo fantasma da ciência, que busca um sujeito transparente para tudo conhecer, calcular e prever. A ciência e o mestre contemporâneo estão alheios ao fato de que nem tudo pode ser visto, já que há um ponto de real que esbarra no impossível.

O psicanalista Veras (2018) traz outras importantes considerações acerca do assunto. Ele afirma que, na atualidade, podemos ter o objeto olhar em nosso bolso, uma vez que existe um novo tipo de autorretrato – o selfie – que se torna possível através dos smartphones. O olhar de bolso funciona, muitas vezes, de forma compulsória na busca de refazer sua presença na cena. Logo, os gadgets passaram a dominar o cenário, servindo de uma plataforma que nos conecta ao Outro virtual. Como consequência, a relação entre a tecnologia e o corpo passa a ser sem interseções, sem separações e sem cortes. Ou seja, o mundo virtual permite que encontremos, "no final dos braços", uma possível conexão com o outro, como uma forma de fazer-se ver. Pode-se dizer, ainda, que o selfie surge como uma defesa contra o que há de vago no real desse olhar – o objeto a – , o que evidencia uma conversão do inapreensível do olhar em uma materialização de objeto tecnológico. Articulado à lógica do capital, no ambiente virtual o objeto nunca falta, possibilitando que a pulsão encontre sua satisfação sem obstáculos. Os sujeitos, como consequência, iludem-se na dialética dos objetos virtuais que satisfazem, acreditando que é possível gozar sem frustrações.

Em vista disso, pode-se pensar que, na atualidade, o objeto olhar está mais acessível, tornando-se absoluto, isto é, sem cortes e sem faltas. O olhar absoluto no campo do excesso permite, ainda, um encontro desregulado com o gozo, que busca contornar a falta. Não é só o olhar do Outro, no entanto, que passa a ser mais absoluto, mas também os sujeitos passam a quebrar barreiras através de objetos tecnológicos na busca de obter esse olhar e o gozo que o circunda. Pode-se pensar que, além de um gozo, talvez seja nesses olhares excessivos e em suas hiperexposições que os sujeitos, da atualidade, tentam encontrar uma consistência do seu próprio ser, uma vez que o declínio do simbólico e a queda dos ideais os deixam desamparados na busca de uma resposta para a pergunta fundamental acerca de quem se é. Por conseguinte, os sujeitos tentam encontrar um certo amparo no mundo virtual, que acaba por convocá-los a gozar sem limites.

 

Os novos espaços virtuais-sociais, as imagens-todas e as respostas frente ao desencontro com o Outro

Convém, neste momento, salientar as dinâmicas do mundo virtual e, mais especificamente, das redes sociais, uma vez que a virtualidade faz parte da realidade social e, inclusive, reforça o espetáculo, a hiperexposição e o olhar absoluto. Trata-se, também, de um espaço que dispõe um novo modo de gozo, dado que há um mais-de-mostrar e um mais-de-olhar, que é impulsionado por um mais-de-conectar, possibilitado pelos espaços virtuais-sociais.

Tapias (2016), filósofo, político espanhol e professor universitário, adverte seus leitores acerca da existência de um terceiro ambiente para além da natureza e da cultura, chamado tecnosfera ou infosfera, que se sobrepõem esses outros ambientes, afetando e transformando tudo que neles ocorre. A cultura digital, assim sendo, naturalizou-se no cotidiano e ficou cada vez mais invisível, por ser cada vez menos separada da nossa existência. Ele considera que não há mais uma divisão entre real e virtual, já que a virtualidade faz parte da realidade e, por isso, o que se pode dizer é apenas de uma dicotomia entre virtual e presencial.

Nos ensinamentos de Debord (1992/2017), há o alerta para o fato de que as extensões midiáticas transformaram o corpo para além da carne e do osso. Isso possibilitou uma maior conexão com o espetáculo, fazendo com que as alienações pudessem ser impostas e reconstituídas cotidianamente. Em vista disso, adverte que o espetáculo passa a introjetar "doses calibradas de gozo" (p. 24), que vislumbra um mundo de consumo prometido. Nesse sentido, é possível notar como os espaços midiáticos colocam o espetáculo presente em cena constantemente, tornando o gozo ainda mais acessível a partir de um espaço que contribui com o domínio ideológico e social, possibilitando que suas consequentes postulações sejam frequentemente introjetadas pelo sujeito.

Logo, nota-se como o ambiente virtual enfraquece o desejo dos sujeitos, o que não é ignorado por Veras (2018), que o vê marcado pela demanda. No Seminário 19, Lacan (1972/2012, p.79) caracteriza a demanda como um pedido que depois é recusado. É o momento em que aparece a famosa frase "peço-te que recuses o que te ofereço porque: não é isso". A demanda é, por conseguinte, um processo que retorna a si mesmo, ou seja, quando se oferece algo é na esperança de que seja devolvido. Trata-se, assim, não daquilo que é ofertado, mas da oferta em si. O que a demanda busca alcançar é não poder situar o que vem a ser o objeto de desejo sendo, pois, o estado de alienação do desejo. Ou seja, diante disso pode-se inferir que no mundo virtual os indivíduos se prendem nas demandas e imperativos de gozo, o que enfraquece a singularidade do seu desejo, contribuindo para o apagamento do sujeito.

As contribuições de Miller (2015) também apontam para o fato de que o mundo virtual fez do saber, que antes era depositado no Outro, disponível mediante uma máquina automática que atende à demanda. Com isso, o saber não é mais objeto do Outro, estando disponível no "bolso" dos sujeitos, para se disporem quando demandarem. O fruto disso é uma autoerótica do saber, uma vez que ele não passa mais necessariamente pela relação com o Outro. E os discursos da atualidade também fazem existir, por meio dos gadgets, manipulações via transmissões de saber que escapam da voz do Pai. Ou seja, por intermédio dos discursos os sujeitos estão acessando um saber, mesmo que manipulado, por vias que ainda os convidam a um maior autocentramento, resultando em um enfraquecimento dos laços sociais. Diante disso, cabe enfatizar que o mundo virtual reforça a inexistência do Outro, impulsionando uma posição autoerótica dos sujeitos o que, inclusive, os aprisiona em infinitas possibilidades tecnológicas, sem deixar espaço para a falta.

Facilmente podem-se constatar, além disso, novos significantes que foram surgindo com o uso das mídias sociais. Veras (2018) chama atenção, por exemplo, para "deletar", "ficar" e "vácuo". Os sujeitos começaram a usar o termo "deletar" para seus relacionamentos afetivos, a partir dos anos 1990, e "ficar" passou a ser algo que apenas aproxima os corpos, sem se fazer necessário um laço amoroso, ou seja, "ficar" passou a ser mais importante do que perdurar, desvinculado das narrativas amorosas do amor. O "vácuo", por sua vez, mostra o vazio puro e perfeito, não havendo nada por detrás da máscara. Há, no entanto, outro significante crucial: "seguir". Significante que diz da conexão do sujeito, de forma inédita, à vida do outro, vendo ali tudo que ele posta em seu perfil e, às vezes, o acompanhando para além da página virtual. O sujeito inspira-se no que é postado nas redes e imita modos de vida, estilos de roupas e hábitos, fazendo com que as páginas encontradas no ambiente virtual possam funcionar como um espelho identificatório. Esses novos significantes que emergiram no mundo virtual afetam, portanto, o laço social dos sujeitos, suas relações amorosas e os convocam a se alimentarem da imagem do outro, acompanhando suas postagens e os observando.

É possível dizer que um dos espaços nas redes sociais que mais impulsiona a quebra da barreira do íntimo e do privado são os blogs, uma vez que as pessoas passam a faturar com suas influências digitais. A imagem torna-se, nesse caso, explicitamente uma mercadoria, um objeto para ser consumido. É um espaço, portanto, onde as imagens transparentes (sem a barreira do íntimo, como já explicado) são impulsionadas. Convém contextualizar que os blogs tornaram-se uma produção cultural que surgiu com a difusão da internet, transformando os diários íntimos em diários públicos. A princípio, muitos sites divulgavam escritas particulares sobre temas de interesse do blogueiro; porém, essa dinâmica mudou e, na atualidade, há supremacia da imagem sobre a palavra.

Com o surgimento do Orkut e do Facebook, as fotos começaram a entrar mais em cena, como uma forma de narrativa. Foi com o Instagram, entretanto,que elas se tornam central, já que toda postagem as necessita para ser efetuada. Trata-se de uma rede que funciona, pois, como uma plataforma de divulgação de imagens. Logo, as páginas no Instragram, em formato blogs, é algo que se multiplica de forma surpreendente no ciberespaço, mantendo um lugar de destaque na internet e, ainda, um lugar extremamente lucrativo.

Lima (2014) dedica-se, em seu livro A Escrita Virtual na Adolescência, a abordar a função da escrita no blog, para os adolescentes. Mas cabe pontuar que, como a escrita está perdendo lugar para a imagem, nos blogs deve-se levar isso em consideração. Por isso, quando a autora fala da escrita virtual, pensa-se que a imagem virtual está posta de forma análoga. Ela acredita que a produção de escrita é uma modalidade de refazer um laço social no lugar do laço perdido com o Outro da infância: família, escola e amigos. Argumenta, também, que o blog é uma construção simbólica que busca dizer sobre o encontro com o íntimo, com o real e com o estranho. Por tratar-se de algo íntimo e, ao mesmo tempo, estranho, pode-se pensar que ele está inserido em uma lógica da extimidade, já mencionada. O que está em pauta é um desejo de exteriorizar, para o outro, algo de si que, cada vez mais, implica em se mostrar ao invés de dizer. É preciso cuidado, no entanto, pois isto não quer dizer que as pessoas estão falando pouco. Como Wajacman (2019) adverte, elas também estão buscando tudo dizer, só que isso não é possível no campo da linguagem, uma vez que nele há sempre algo indizível. O fato é que, quando não se pode dizer, se mostra.

De acordo com Lima (2014), o blog pode ser também uma resposta do sujeito diante das faltas que permeiam o encontro com o Outro. Trata-se, portanto, da construção de um romance através de uma narrativa em que se busca responder àquilo que vem do campo do Outro, e que é interpretado pelo sujeito. Modo de funcionamento por meio do que Lacan chamou de discurso histérico, "que mostra o sujeito dividido em posição de agente, que, ao interrogar o outro sobre o desejo, escreve um romance e termina por se tornar um personagem do romance que é sua própria vida" (LIMA, 2014, p. 21-22). Nesse sentido, o blog pode ser pensado como um sintoma que faz laço social.

A escrita de um romance pode ser, porém, também uma escrita de gozo, o que sinaliza, segundo Lima (2014), a existência de três tipos de blog: um que está inserido na dimensão do romance na busca de estabelecer um sentido possível para a falta de sentido, havendo uma função significante e uma mensagem que se configura na forma de discurso histérico; outro que está na dimensão do apagamento do sujeito, se revelando através de imagens obscenas e agressivas, que se configuram no sem sentido e que se prendem no gozo; e aquele em que há uma dimensão narcísica, que não faz laço social, sendo uma escrita que chega a ter um endereçamento, mas acaba por fechar-se em si mesma.

Nessa conjuntura, pode-se pensar que o mundo virtual e a rede social estimulam e impulsionam o mais-ainda, na busca de um lugar sem faltas e furos, tentando bancar o impossível do encontro com o Outro. Eis um empenho para o "tudo" (sem faltas): tudo-dizer, tudo-mostrar e tudo-ver, que desencadeiam, portanto, na hiperexposição e na hipervigilância. Rompe-se, dessa forma, a fronteira do íntimo e estimula-se o desvelamento da imagem, tornando-a transparente. Trata-se, possivelmente, de uma tentativa de o sujeito fazer-se ver e, talvez, encontrar aí uma unidade para além do espelho. E, nesse espaço, os blogs ainda são disseminados na tentativa de construção de um lugar e de um saber, que tenta colocar o Outro em cena, porém sem êxito. Isso ainda contribui com o impulsionamento do gozo que ganha novos espaços para ser disseminado.

 

Considerações Finais

Após o que se escreveu até aqui, não há como ignorar que olhar para o mundo das imagens é ver que, com a ascendência do imaginário, elas têm tido valor de mercadoria tentando dizer o indizível. E o sujeito é, então, imerso em alienações, na busca de fazer-ver, ser olhado, para existir. Como consequência, ocorre seu autocentramento em uma dimensão hipernarcísica e solitária, o enfraquecendo dos laços sociais e do desejo, que termina por afogá-lo em imperativo de demandas e gozo ilimitado. O sujeito é impulsionado a se objetificar, a tornar-se gadget que se prolifera nos espaços virtuais-sociais, a partir de onde encontram um lugar ilusório de imagens-todas, tamponadoras da falta, tentando fazer possível o impossível.

A época de desvelamento também revela que a transparência se torna um meio pelo qual o sujeito tenta encarnar o Outro, ao se mostrar para si próprio e, desde ali, olhar-se. O sujeito tenta, assim, ser mais-ainda, além de si. O mais-de-gozar ganha, com isso, um mais-de-lugar que, no virtual, impulsiona a transcendência de certas barreiras, não só do mundo físico, mas também do íntimo. E, ao se pensar sobre os ensinamentos psicanalíticos acerca da imagem, a sua transparência revela sua essência fálica, quando exposta, sem coberturas, puro gozo. Nesse sentido, trata-se de um mundo fascinado pelo imaginário, mas é no fascínio que o seu limite se dissolve, fazendo com que o gozo retorne no real.

Mas, tal como Miller (2013, p.13) salienta, acontecimentos como estes não querem dizer que o registro simbólico, ordenador da realidade, não exista atualmente. É possível afirmar que ele é dominado pelo imaginário, sem conseguir atravessá-lo dialeticamente, tal como foi proposto no esquema "L", de Lacan. É preciso, portanto, apostar no real que, por não ter estrutura ficcional, protege os sujeitos dos semblantes e das alucinações. Nesse sentido, "a inexistência do Outro não é contrária ao real, e sim correlativa a ele". Nesse caso, não se trata do real do discurso da ciência, nem dos semblantes deixados por ele, mas do real que o inconsciente testemunha. E esse real é justamente da ordem do indizível, o que pode ajudar os sujeitos a sustentarem os limites e os furos da linguagem e do saber, apreendendo que não há como tudo-dizer, tudo-mostrar e tudo-ver.

Por falar-se do contemporâneo na noção de mundo, vale a pena aqui relembrar Hanna Arendt, em pontos que Figueiredo (2004, p.133) escolheu tão bem. Ela pensava o mundo como "algo comum a muitos", algo que está entre muitos, separando-os e unindo-os. Em sua objetividade, ele só nasce e se torna compreensível pela liberdade de uns com os outros falarem sobre ele. Na atualidade deste mundo que habitamos, os sujeitos estão por aí, como se nota, tentando fazer com que a imagem valha mais que mil palavras.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/08/2020
Aprovado para publicação em: 15/10/2020

Endereço para correspondência
Clara Maia Nicolato Corrêa
E-mail: claramnicolato@gmail.com
Ilka Franco Ferrari
E-mail: francoferrari@terra.com.br

 

 

*Mestra em Psicologia pelo programa de pós-graduação da PUC Minas e pós-graduada no curso de psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
**Doutorado e Pós-Doutorado pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professora no Curso de Graduação e de Pós-Graduação em Psicologia, na PUC Minas. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, membro da Câmara de Ciências Humanas, Sociais e Educação, da Fapemig, pesquisadora PQ2, do CNPq.

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