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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Considerações psicanalíticas sobre o risco na adolescência: relações entre a aposta de pascal e as "figuras diabólicas" na literatura

 

Psychoanalytic considerations about risk in adolescence: relations between pascal's bet and "diabolical figures" in literature

 

L'abord psychanalytique de la crise d'adolescence: apports de la problématique du pari et des figures de la "tentation diabolique"

 

 

Carlos Roberto DrawinI, II*; Jacqueline de Oliveira MoreiraIII**; Andréa Maris Campos GuerraII*** Nádia Laguárdia de LimaII**** Patricia da Silva GomesII*****

IFAJE – Brasil
IIUniversidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão sobre a leitura lacaniana da Aposta de Pascal e sobre a dimensão do desejo, destacando as condutas de risco da adolescência e, especialmente, aquilo que muitas vezes é colocado sob o nome de uma tentação diabólica. Neste percurso buscou-se uma aproximação entre psicanálise e literatura, utilizando-se de textos cujos personagens entregam suas almas em pactos diabólicos, como as obras O diabo Enamorado, de Cazotte (1772), O Fausto, de Goethe (1790-1832), O Mandarim (1880), de Eça de Queiroz, Grande Sertão Veredas (1956), de Guimarães Rosa e Os demônios (1871), de Dostoiévski. Para apontarmos como o desejo pode se articular pela via das tentações inconscientes, aproximamo-nos das lógicas das figuras diabólicas e, por meio das narrativas dos adolescentes, estabelecemos a sua possível relação com o luto impossível, a recorrência do tédio, o preço da riqueza, a afirmação viril e a disposição da revolta.

Palavras-chave: Psicanálise, Adolescência, Literatura, Risco, Pacto Diabólico.


ABSTRACT

This article presents a discussion on the Lacanian reading of Pascal's Bet and on the dimension of desire, highlighting the risk behaviors of adolescence and, especially, what is often placed under the name of a diabolic temptation. In this path, an approximation between psychoanalysis and literature was sought using texts whose characters give their souls in diabolical pacts, such as the works The Devil in Love, by Cazotte (1772), Faust, by Goethe (1790-1832), The Mandarin (1880), by Eça de Queiroz, Grande Sertão Veredas (1956), by Guimarães Rosa and Demons  (1871), by Dostoiesvski. In order to point out how desire can be articulated through unconscious temptations, we approach the logic of diabolic figures, and, through the adolescents' narratives, we establish their possible relationship with impossible mourning, the recurrence of boredom, the price of wealth, the manly statement and the disposition of the revolt.

Keywords: Psychoanalysis, Adolescence, Literature, Risk, Diabolic Pact.


RÉSUMÉ

Cet article présente une réflexion sur la lecture lacanienne du pari de Pascal et sur la dimension du désir, mettant en évidence les comportements à risque de l'adolescence et, surtout, ce qui est souvent nommé comme tentation diabolique ou défini comme tentation diabolique. Dans ce parcours, une approximation entre la psychanalyse et la littérature a été cherchée à l'aide de textes dont les personnages livrent leurs âmes à traversles pactes diaboliques, tels comme les œuvres Le Diable amoureux, de Cazotte (1772),  Faust, de Goethe (1790-1832),  Le Mandarin (1880), de Eça de Queiroz, Grande Sertão Veredas (1956) de Guimaraes Rosa  et  Les Démons (1871), de Dostoiesvski. Afin de montrer comment le désir peut s'articuler à travers les tentations inconscientes, nous abordons la logique des figures diaboliques et, à travers les récits des adolescents, nous établissons leur possible relation avec le deuil impossible, la récurrence de l'ennui, le prix de la richesse, l'affirmation virile et la disposition de la révolte.

Mots-clés: Psychanalyse, Adolescence, Littérature, Risque, Pacte diabolique.


 

 

1 Introdução

Lacan retoma por diferentes vias a experiência do inconsciente freudiano, especialmente após o corte que o estruturalismo e as teorias da linguagem introduziram no pensamento ocidental. Foi nessa direção que ele retomou a leitura da aposta de Pascal, para cernir o que está em jogo nos impasses do desejo. Especificamente na adolescência a passagem para a vida adulta interroga a dimensão desejante e articula-se, muitas vezes, sob o nome de tentação diabólica. Assim, após entendermos a aposta de Pascal e a incidência do risco na adolescência, deter-nos-emos na maneira como o desejo articula-se pela via das tentações inconscientes – aqui figuradas como o diabo, mais detidamente como pacto diabólico –, para, na sequência, com a Literatura, encontrarmos algumas de suas possíveis lógicas.

 

2 A aposta de Pascal

A aposta de Pascal, precursora da teoria dos jogos, implica em um argumento decisório assentado em uma teoria de probabilidades. Ela assenta-se na renúncia aos prazeres como princípio jansenista da vida cristã na era moderna1. Trata-se de uma lógica probabilística que organiza o campo de escolhas de um sujeito, a partir de uma tomada de decisão em relação aos prazeres mundanos. Na aposta de Pascal, Deus é uma presença central, a partir da qual uma escolha deverá ser feita pelo homem em relação ao modo de vida a se levar. O argumento lógico pode ser assim resumido:

• se você acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho infinito;
• se você acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda finita;
• se você não acredita em Deus e estiver certo, você terá um ganho finito;
• se você não acredita em Deus e estiver errado, você terá uma perda infinita.

Dessa maneira, é sempre melhor seguir os preceitos divinos. Se o seguimos, a perda é finita, sendo o ganho infinito: o paraíso. Do contrário, é a perda que se infinitiza na figura do inferno. O argumento, colocado em uma fórmula lógica, pode ser assim apresentado, conforme a figura 1:

Fig. 1

Na passagem do moderno para o período pós-moderno, a questão não gira mais em torno da existência ou não de Deus, mas sim em torno da escolha racional humana, ainda que ela possa estar assentada na fé. Como lembra Lacan (1968-1969/2008, p. 101), Deus é, e o que resta saber é o que é e se o sujeito existe – já que o eu não corresponde ao sujeito. Não se inquire mais sobre a existência ou não existência de Deus. Para Pascal, em seu pensamento 2332, a miserabilidade é uma espécie de atestado da condição humana face à grandeza de Deus. "Deus existe ou não existe? Para que lado nos inclinaremos? A razão não o pode determinar [...] Em que apostareis?" (Chauí, 1988, p. 95). Mas é preciso apostar, segue Pascal, qual escolhereis então? Para ele, será preciso renunciar à razão para guardar a vida, renunciar aos prazeres terrenos para se ganhar o paraíso eterno.

Ora, por que Lacan retoma Pascal justo quanto à aposta? Pois ele sabe, de um lado, que o significante comporta, assim como o jogo, um certo número de lances dentro de certas regras e, por outro lado, que há uma vida a cujo gozo se renuncia para fazer dela a aposta, para que não seja necessário renunciar à própria vida (1968-1969/2008, p. 115). Trata-se de uma aposta quanto ao valor da vida, quanto ao risco que se toma face ao desejo (de viver). Vejamos, passo a passo, como ele propõe matrizes à adolescência uma feição própria, como veremos logo em seguida3.

A primeira matriz (Lacan, 1968-1969/2008, p. 143) presente na Figura 2 comporta as seguintes possibilidades, dispostas na primeira e na segunda linhas, respectivamente:

Fig. 2

a) Se Deus existir: Lacan toma esse exemplo como caso A, inscrevendo na matriz um 0, e justifica que, para que tal condição se satisfaça, é preciso a observação dos mandamentos divinos e a renúncia ao prazer, em prol de uma "infinidade de vidas prometidas, infinitamente felizes" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 153).

b) Se Deus não existir: Supondo-se que Deus não exista, teríamos o A barrado. Neste caso, o sujeito do jogo é escrito como a, ou seja, como aquele que conhece a felicidade limitada que esta vida lhe oferece em razão da inexistência de Deus. Assim, o sujeito não espera algo de outra vida.

Lacan assinala que esse tipo de inscrição teria um caráter frágil se considerado à luz da teoria dos jogos: uma vez que precisaríamos de dois adversários jogando e o Outro, na figura de Deus, não participa disso... "enigmático, aquele de quem se trata, em suma, de sustentar ou não a aposta. Este deveria encontrar-se no lugar indicado por A e A barrado" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 153).

O autor ressalta o caráter paradoxal da ausência de Deus na aposta, que confunde o valor apostado com a existência do parceiro e, em decorrência disso, há uma escolha que se dá no nível da existência ou não de Deus: "o montante arriscado é idêntico à promessa" (p. 143). Segundo ele, a partir desse prisma, não há por que hesitar. Arriscamos ganhar o infinito ao apostar que Deus existe e isso não se compara ao ganho que obtemos ao apostar no seu contrário, que seria em a. E completa: "Mas essa certeza pode ser facilmente questionada, pois o que se ganhará, exatamente? O a não é definido com precisão" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 154). Nesse nível, não teríamos colocado em jogo a função do Outro e a necessária separação que o sujeito deveria realizar em relação a Ele, perdendo algo, mas não a própria vida, para não permanecer alienado ao suposto desejo do Outro.

Lacan (1968-1969/2008, p. 154), na figura 3, propõe uma segunda matriz para tratar do que ele considera uma insuficiência da primeira, que desconsidera a possibilidade de existir um Eu que aposte contra o que pensa, ou seja, um Eu disjunto da Razão. Nessa configuração, mesmo que Deus exista, o sujeito pode querer apostar contra, escolhendo o a e perdendo o infinito (a, -8) (Lacan, 1968-1969/2008).

Fig. 3

Nesta matriz, a diagonal da esquerda superior para a direita inferior reproduz a anterior. Há, para Lacan, entretanto, outra variação para a aposta: o a pode ser abandonado mesmo que se suponha que Deus não exista. O a, nesse caso, aparece como negativo e aliado a um zero (Lacan, 1968-1969/2008). Assim também podemos ler a diagonal que vai do quadrante esquerdo inferior em direção ao quadrante superior direito, a partir de um Eu que aposta contra o que pensa. Nesse caso, se consideramos que Deus não existe, mas que o gozo se impõe em sua cadeia crescente e calculável na forma de a, definindo o circuito de repetição, a infinitude de vidas felizes, mesmo que desejada, permanece como perda; é, ela própria, abandonada. Essa infinitude de vidas felizes se perde e o sujeito atualiza o mal-estar pela via da repetição pulsional. A dimensão inconsciente do gozo não entrava na conta pascaliana.

A terceira matriz proposta é fruto da extração dos termos acrescentados na segunda: a, -8, -a, 0. Como veremos, ela implica em uma terceira possibilidade de leitura da aposta de Pascal que não se realiza a partir da existência ou não do parceiro divino ou, em termos psicanalíticos, da garantia do Outro. Assim, temos a figura 4 (Lacan, 1968-1969/2008, p. 155):

Fig. 4

Nessa matriz, o zero é acompanhado por um ponto de interrogação e assume o valor de uma pergunta. Segundo Lacan, só importam para o jogador, que é o único sujeito que existe na aposta, o infinito e a finitude do a (Gomes, 2018). Podemos dizer que, nessa matriz, Lacan retira a função da existência do parceiro como garantidor, deslocando a escolha do nível da existência ou não de Deus, para a assunção pelo sujeito da responsabilidade sobre seu próprio desejo. Trata-se de o sujeito lançar sua aposta – não sem o Outro –, mas a partir de sua própria condição desejante, extraída da função da perda condensada logicamente no objeto a. Se nosso desejo é sempre desejo do Outro, lançar a aposta nessa matriz implica em assumir sua responsabilidade, às expensas de qualquer garantia. Ele retoma a regra da partição: "nada de exato pode ser enunciado sobre um jogo que tenha um começo e um fim fixados em sua regra, a não ser a partir de que aquilo que é posto na mesa, a chamada aposta, está originariamente perdido. O jogo só existe a partir disso que está na mesa" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 155).

Ora, estaria aí, nesses pressupostos pascalianos, justamente, o equívoco fundamental da alienação do desejo, quando o sujeito crê na consistência do Outro. Vejamos como Lacan aborda o impasse do desejo nessa perspectiva. De saída, na primeira matriz, o gozo não é identificável à regra do prazer, haja vista o masoquismo e a pulsão de morte presentes como um mais além do princípio do prazer (Lacan, 1968-1969/2008). Além disso, há sempre uma perda (estrutural) na satisfação, que Lacan diferencia do gozo, denominando-a de mais-gozo ao equivalê-la à mais-valia. (1968-1969/2008). Há, pois, nos prazeres divinos uma complexidade não considerada por Pascal.

Em segundo lugar, "ao se apostar na incerteza fundamental, ou seja, existe ou não um parceiro, há uma probabilidade em duas, isto é, deus existe ou não existe" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 116). De saída, portanto, do lado do sujeito, Lacan fala-nos de uma indiferença presente no lance, na aposta, já que as linhas do apostador não se entrecruzam com nenhuma linha de possibilidade pertencente ao Outro, já que "do Outro nem sequer podemos garantir a existência" (1968-1969/2008, pp. 166-67). Aqui a teoria do parceiro inconsciente evidencia que o Outro é uma configuração simbólica construída a partir do ponto vazio de toda existência humana. Ele não existe em si mesmo, mas antes é uma resposta construída, inventada.

Sob a terceira matriz, Lacan lembra-nos que o Eu não corresponde ao sujeito, assim como o Outro não corresponde ao Um, enquanto sua alteridade, como o que o faria Universal. Do lado do sujeito, é preciso, pois, remetermo-nos à função do objeto causa de desejo, já que é ele que dá vida a um corpo. O Eu seria 1 a mais, em relação à falta originária do sujeito, representada (porque impossível de ser nomeada) pelo objeto a.

Para Lacan, há o Universo, Um, a cuja falta corresponde uma formulação lógica: o objeto a como causa. E o que lhe vem em socorro não é mais o Deus pré-moderno, mas o 1, um acréscimo, uma construção como saber (1 + a), face ao excedente que se perde a cada tentativa de produção de sentido (Lacan, 1968-1969/2008).

Como não se sabe a que Deus, como fiador, poderia garantir, na medida em que ele não é identificável, trata-se de fazer uma aposta que atravessa o impronunciável de seu nome e a incerteza de sua existência, cujo furo desenha o impossível no interior do programa da linguagem, a saber, o impossível de tudo nomear. Se "esse Deus inerradicável não tem outro fundamento senão ser a fé depositada no universo do discurso" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 175), o Um é aquilo que porta a dimensão impossível do impronunciável. Daí o que o unifica e define o campo do Outro não é senão aquilo que se lhe acrescenta, aquilo que se soma a essa falta originária da própria estrutura da linguagem, resultando na fórmula (1 + a).

Aquilo que excede o saber e anima uma vida diz, pois, respeito ao objeto a, ponto a partir do qual o desejo se lança em sua aposta. A tentativa reiterada de busca de satisfação esbarra em um ponto de retorno a um estado mítico anterior de satisfação com um objeto perdido. Assim, o sujeito é efeito da divisão de seu desejo produzida pela linguagem, enquanto o Eu é um acréscimo que lhe vem em ajuda. "O gozo é almejado num esforço de reencontro, e que só pode sê-lo ao ser reconhecido pelo efeito da marca. A própria marca introduz no gozo a alteração da qual resulta a perda" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 119). Aí se escreve o desejo e suscitam-se seus impasses.

Entendida a aposta pascaliana, podemos nos perguntar: por que ela nos auxilia a pensar a crise adolescente?

 

3 Adolescência

A ideia de crise, nascida da psicologia, ganha com a Psicanálise outra inflexão. Freud fala em puberdade, não em adolescência, referindo-se às transformações que se dão no corpo e no simbólico, afetando o saber até então desenvolvido pela criança para lidar com o mundo. Tornou-se senso comum considerar a adolescência como crise na passagem necessária rumo à maturidade. Freud (1905/1976), entretanto, descreve a puberdade como um segundo tempo de emergência da sexualidade. O primeiro ocorreria na infância e retrocederia ou seria detido na latência; enquanto o segundo sobreviria com a puberdade, determinando a configuração definitiva da vida sexual.

Também assevera que, com a chegada da puberdade, introduzem-se mudanças que levam a vida sexual infantil à sua configuração definitiva. A pulsão na infância era predominantemente autoerótica e, na puberdade, encontra o objeto sexual. Surge, então, uma nova fonte sexual para a conjunção das pulsões parciais (oral, anal e fálica): a zona genital, cuja primazia se estabelece então.

Na puberdade, também nos depararemos com o redespertar do Édipo e com a renovação dos conflitos edipianos e das fantasias incestuosas:

Ao mesmo tempo em que estas fantasias claramente incestuosas são superadas e repudiadas, completa-se uma das mais significativas, e, também mais dolorosas realizações psíquicas do período puberal: o desligamento da autoridade dos pais, um processo que, sozinho, torna possível a oposição, tão importante para o progresso da civilização, entre a geração nova e a velha. (Freud, 1905/1976, p. 234).

Diferentemente de sua primeira manifestação na infância, o redespertar do Édipo na puberdade já se inicia com a marca da interdição. O Édipo é reativado em uma época já posterior ao recalque, com esse novo elemento que é a genitalidade. O desejo sexual reativa uma interdição, pondo em questão a impossibilidade de uma harmonia entre a pulsão sexual e a corrente terna sobre o mesmo objeto (Cottet, 1996). Essa impossibilidade, como irrupção real na puberdade, produz um despedaçamento da imagem, como uma fratura do espelho, e o simbólico mostra-se insuficiente para recobrir o real (Lima, 2006). Daí a importância da fantasia, como exercício psíquico que favorece a construção de respostas a essa irrupção do real. A adolescência configurar-se-ia, pois, na enumeração de uma série de escolhas sintomáticas em relação a esse impossível, que é o real da puberdade (Stevens, 2004). Assim temos, conforme a figura 5,

Fig. 5

Podemos, enfim, dizer que, longe de uma crise, encontramos na travessia da adolescência, em termos psíquicos, um complexo trabalho de separação do Outro parental, de um não saber (infantil) para o saber-fazer com o real, de reconstrução imaginária do corpo, de escolha de objeto e de construção de uma posição sexuada, a partir do confronto real com a alteridade que o Outro sexo configura como impossível de complementar.

Vejamos como as considerações sobre a aposta de Pascal podem nos auxiliar a pensar na função das condutas de risco para os adolescentes. Será que haveria, nessa colocação da vida em risco, a tentativa de colocar o corpo, como objeto a, em jogo? (Gomes, 2018). Ao relacionar a adolescência com o risco, Lacadée levanta a seguinte questão:

Qual o preço que o adolescente terá de pagar para ultrapassar essa etapa de riscos [...]. Como o adolescente lidará com isso? Qual será a sua margem de manobra entre os sobressaltos que surgem e a herança de sua infância? Arriscará toda a sua vida ou saberá consentir com o sacrifício de uma parte do gozo que aí se mostra em jogo? (Lacadée, 2011, p. 28).

Alguns adolescentes parecem sacrificar algo de suas vidas ou parte do próprio gozo, enquanto outros colocam toda a vida em risco. Miller (2003), em seu texto "Sobre a honra e a vergonha", lembra que a aposta de Pascal consiste em um esforço para sustentar a ex-sistência do Outro. O sujeito utiliza-se de um ardil, de uma agitação, a fim de formular que há um Deus com o qual vale à pena apostar todo o mais-de-gozar, o a. Nessa aposta, é preciso pôr algo de si.

Situações como as automutilações, as condutas de risco nas redes sociais, a entrada na criminalidade, a violência, os esportes radicais e tantas outras experiências juvenis poderiam nos sinalizar para uma lógica atravessada pela ausência de rituais, como decorrência de um tempo histórico no qual as tradições e os ideais não indicam mais um horizonte regulador. Podemos supor que, na contemporaneidade, há um desvelamento da inconsistência do Outro.

No período pré-moderno, Deus garantia a ilusão de consistência. Como havia a crença na existência de Deus, valeria à pena renunciar ao prazer imediato. O homem moderno, centrado na Razão Iluminista, tem que se decidir e o fazia com o anteparo racional. Ele podia apostar no acesso à verdade pura, limpa e clara, como queria Descartes, e dispor de sua subjetividade ou ceder às ilusões e às paixões, buscando garantias ilusórias, imaginárias. O que Lacan retoma, na contemporaneidade, é o desvelamento da inconsistência do Outro, já que nem Deus, nem a Razão conduziram o homem a um futuro libertador, progressista e emancipado. O sujeito, diante do real, está sempre despreparado. Como podemos entender, desde o interior dessa lógica, a experiência adolescente?

Podemos, portanto, compreender a relação da aposta de Pascal com o desejo inconsciente como aspecto diabólico, sedutor, exigente, caprichoso, reincidente e convocatório, que forja a ilusão de um acréscimo (1 + a), onde a perda permanece em sua função de causa. Parece-nos que é exatamente assim que cada romance literário o evidencia sob a forma de pacto diabólico. Vejamos, então, como a literatura trata o desejo e a aposta pela via dos pactos diabólicos.

 

4 Pacto Diabólico na Literatura e sua leitura psicanalítica4

Algumas explorações no domínio da literatura e da psicanálise levaram-nos a pensar em uma aproximação entre as condutas de risco na adolescência e as narrativas ficcionais acerca do "pacto diabólico"5, a partir da aposta de Pascal. Essa aproximação nasce do resgate lacaniano da obra O diabo enamorado, de Cazotte, para pensar a formulação da pergunta inconsciente que articula demanda e desejo. No belo texto Le moment du Che Vuoi? dans le graphe du désir: un moment de séparation structurale, Sauvagnat (2017) brinda-nos com uma exposição na qual localiza o ponto preciso dessa articulação, que nos interessa destacar aqui.

Primeiramente, ele ensina-nos que:

O desejo, para Lacan, se diferencia da demanda por um certo número de qualificações:
- a demanda é intransitiva, ou seja, ela não pode ter; ela é igualmente sem condição: o sujeito está ali entregue, em termos militares, ele "capitula sem condição";
- o desejo se caracteriza ao contrário pelo fato de que há um objeto, que constitui uma condição absoluta pela qual, por exemplo, ele pode parecer que está prestes a morrer.(Sauvagnat, 2017, n.p., tradução nossa)6.

E, também, lembra-nos de que Lacan propõe, então, duas fórmulas, por ele assim sintetizadas:

- O inconsciente é o discurso do Outro (no sentido de uma determinação objetiva: «de Alio in orationae tua res agitur»: teu destino se realiza em [falhas de] teu desejo, a propósito do Outro);
- o desejo do sujeito é o desejo do outro (no sentido do genitivo subjetivo: au sens du génitif subjectif: é enquanto Outro que o sujeito deseja)
Portanto, o caráter "diabólico" de Che vuoi? encarna-se nessa reversão: o desejo do sujeito só pode aparecer sob essa forma estrangeira, invertida, como um "oráculo", um questionamento diabólico (Sauvagnat, 2017, n.p., tradução nossa)7.

Essa pergunta lança o sujeito a uma questão sobre seu desejo, a qual ele responde com a fantasia fundamental.

A fantasia ($ <> a) corresponde a dois movimentos correlacionados:
- De uma parte, é uma significação absoluta, não transcendente, mas visando o sujeito como uma flecha;
- De outra parte, o fantasma designa o ponto de falha do sujeito, de "fading" ao qual responde um objeto apresentado como única fonte de continuidade temporal para o sujeito, mesmo que essa continuidade seja traumática.
O desejo é regulado pela fantasia de uma maneira homóloga à maneira como o eu é regulado pela imagem do corpo (m -----i (a)) no nível inferior. Nos dois casos, esse ajuste é feito em um mal-entendido que inverte a aparência de determinação dos termos, dando a eles uma coloração inconsciente. (Sauvagnat, 2017, n.p., tradução nossa)8.

Dessa inspiração questionamo-nos: o que buscam os personagens pactuários da literatura com a entrega de sua alma e, de modo análogo, o que os adolescentes pretendem obter ao pactuarem com a "oferta diabólica"? Qual a relação entre pacto e desejo?

Para empreender essa análise, selecionamos cinco obras: O diabo enamorado (1772), de Jacques Cazotte (1719-1792), escritor francês crítico das Luzes e da Revolução Francesa; O Fausto (1790-1832), de Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), obra considerada como o maior clássico da língua alemã e elaborada em suas diversas versões no transcurso de grande parte da vida do autor; O mandarim (1880), de Eça de Queiroz (1845-1900). Na literatura brasileira, o Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), talvez o mais importante escritor brasileiro após Machado de Assis. E, também, o inquietante e pouco conhecido romance do clássico literato Dostoiévski (1821-1881), intitulado Os demônios (1871). Buscamos extrair a lógica de cada um desses pactos diabólicos, de forma a tomá-las como meio para entendermos as diferentes modalizações da presentificação do desejo, especialmente para pensar, aqui, as condutas de risco na adolescência, sem nos determos diretamente em seus desenlaces ou na análise da obra em si. Vejamos.

 

4.1 O luto impossível

O tema fáustico foi definitivamente consagrado com o drama trágico de Goethe escrito laboriosamente no transcurso de sua vida, desde sua versão inicial, conhecida como o "Fausto primitivo" (Urfaust) até a sua versão definitiva em duas partes, a primeira de 1808 e a segunda de 1832. A cena inicial  já anuncia com força dramática o tormento existencial do personagem principal e o fracasso de seu projeto de sabedoria (Goethe, 2016, p. 63):

Ai de mim! Da filosofia,
Medicina, Jurisprudência,
E, mísero eu! Da teologia,
O estudo fiz com máxima insistência.
Pobre simplório, aqui estou
E sábio como dantes sou.

E logo depois, confessa o vazio de seu saber "E vejo-o, não sabemos nada!" (Goethe, 2016, p. 63). Apesar de seu grande talento, Fausto sente nada possuir: nem ouro, nem bens, fama ou esplendor. Mesmo sendo "bem-sucedido", ele era um médico rico e sábio; no ocaso de sua vida, ele se vê incapaz de dela extrair um sentido e elaborar o luto de suas perdas. Em sua impotência, marcado pela melancolia, ele flerta com o suicídio.

Cabe retomar aqui brevemente a diferença que Freud verifica entre luto e melancolia. De um lado, o luto (Trauer), como processo dentro dos parâmetros da normalidade, é caracterizado como longo trabalho de elaboração feito gradualmente a partir de uma perda concreta de um objeto significativo, a exigir grande investimento de tempo. De outro lado, a melancolia como um desacordo consigo mesmo, a partir de uma perda não identificável objetivamente que suscita uma dor profunda, o desinteresse pelo mundo, a incapacidade de amar, a inibição da produtividade e o rebaixamento do sentimento de si. (Freud, 1917/1999, pp. 428-429).

Se no luto "é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia é o próprio eu" (Freud, 1917/1999, p. 431). Além disso, ao contrário do processo do luto, o melancólico não sabe o que perdeu em sua perda. O sujeito melancólico identificado inconscientemente com o objeto perdido não é capaz de realizar o trabalho de elaboração da perda sofrida, embora desconhecida. Assim, no afã de livrar-se da dor, entrega-se à afirmação imaginária de seu eu esvaziado e empobrecido, girando enlouquecido em torno dele ainda que seja para diminuí-lo e lastimá-lo, embutindo no autodesprezo a acusação ao outro.

A aproximação entre Fausto e o sujeito melancólico não é arbitrária. A cena inicial da tragédia de Goethe, o "mísero eu", o "pobre simplório" não cultiva nenhuma condescendência em relação aos outros, aos "próximos". Esvaziado de si e desvinculado do outro, o sujeito lança-se na expectativa imaginária de um real salvífico. O pacto diabólico é filho do desespero (Tavares, 2009, 459-486) e traz a marca de um desejo infinitizado de recuperação de um objeto perdido. Daí a sedução demoníaca tomar o protagonista ao prometer tudo o que lhe viria a faltar, como promete o diabo... Na adolescência e seus lutos, a promessa que nunca sacia reenvia o adolescente à depressão e às condutas de risco.

 

4.2 A recorrência do tédio

A segunda modalização remete à construção do grafo do desejo em J. Lacan, na qual ele ressalta, como vimos, que a insciência (nescience) do homem desejante refere-se, não tanto àquilo que ele demanda, e sim a de onde provém o seu desejo. Como "o inconsciente é o discurso do Outro",temos a precedência do desejo do Outro inscrita no grafo por meio da pergunta "che vuoi?" [que queres?] (Lacan, 1960/1998, p. 829).

Ela advém da novela de Jacques Cazzote, O Diabo Enamorado (1772), como pergunta dirigida pelo diabo a Álvaro, personagem principal da trama, ao tomar a forma de um dromedário. No momento que antecede o pacto diabólico, a posição de Álvaro é paradoxal: nada quer, deseja tudo. Talvez seja essa a situação aporética do tédio: os pequenos contentamentos nada são diante da satisfação absoluta. A sucessão da satisfação em um ciclo muito rápido agrava o sentimento de tédio, pois confirma a ilusão da pacificação plena e ao mesmo tempo a destrói.

Assim, Álvaro é um jovem capitão que pertence a uma família de posses e, sem se esforçar, tem acesso a uma boa posição social. Vive de maneira livre e desfruta de inúmeros prazeres: jogos, bebidas, lutas e mulheres. Como militar já afirmou a sua virilidade no campo de batalha e a sua honra já foi reconhecida. Dado à aventura e ao desafio, ele não recua diante do diabo e quer dominá-lo; o pacto, porém, insinua a possibilidade de introduzir em sua vida algo inteiramente novo, inencontrável em sua vida de êxitos e prazeres.

Entretanto, esse êxtase nunca chega, nunca é assim surpreendente. Na temporalidade contraída no pacto, não há passagem para a fruição, somente para o gozo obtido na reiteração do próprio ato. As vivências são simultaneamente frenéticas e entediantes. O sujeito retorna com intensidade ao ponto de partida. Como na adolescência, a imediaticidade da satisfação ganha da espera de um projeto de vida.

 

4.3 O preço da riqueza

A perda de si e o tédio, aparentemente lógicas mais distantes da vivência adolescente, cedem passagem ao desejo ardente de entrar na esfera do consumo, motivo recorrente nas narrativas diabólicas e bem ilustrado pela novela  de 1880, O Mandarim, de Eça de Queiroz. Nele, Teodoro, cujo nome significa "presente de Deus", se entrega à tentação de sair de sua vida medíocre e de usufruir as "boas coisas da vida": ouro aos montes, vinhos, comidas e mulheres. Na pensão onde vivia era apelidado de "enguiço", nominação adequada à sua vida amesquinhada.

Teodoro dedica-se à leitura e, por acaso, depara-se com o trecho de um livro que apresenta a possibilidade de assassinar um desconhecido mandarim na China apenas pelo toque de uma campainha e, no mesmo instante, herdar sua imensa fortuna. Nosso personagem é invadido por um dilema moral e a sua hesitação já é ocasião para o surgimento do "tentador", conforme os trechos abaixo (Queiroz, 1880):

No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. D'elle nada conheces, nem o nome, nem semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedaes infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Elle soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição d'um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?
Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogação 'homem mortal, tocarás tu a campainha?'(pp. 12-13).
Foi então que, do outro lado da mesa, uma voz insinuante e metállica me disse, no silêncio: Vamos, Teodoro, meu amigo, estenda a mão, toque a campanhia, seja forte! (p. 14)
- Aqui está o seu caso, estimável Teodoro. Vinte mil-réis mensaes são uma vergonha social! Por outro lado, há sobre este globo coisas prodigiosas: há vinhos de Borgonha, como por exemplo o Romanée-Conti de 58 e o Chambertin de 61, que custa, cada garrafa, de dez a onze mil-réis; e quem bebe o primeiro cálix não hesitará, para beber o segundo, em assassinar o seu pai... (p. 18)

O desejo de riqueza é motivação sedutora óbvia, que aparece na experiência adolescente na avidez por dinheiro e gadgets ou nas relações sexuais e amorosas. Já se sabe o que quer o diabo: a alma imortal. Mas ainda que a morte possa ser postergada, o preço da riqueza e do prazer deve ser pago na hora com um simples toque de campainha. Com ele, a alma já se perdeu na aceitação de um crime de sangue. O assassinato do mandarim longínquo descortina a possibilidade de todos os crimes, até mesmo do parricídio em troca de um cálice de vinho. Se a busca da riqueza é motivação bastante convincente e evidente, seus possíveis desdobramentos são assustadores. O que está em jogo aqui? O discurso capitalista e sua ilusão de completude, de 'satisfação garantida ou seu dinheiro de volta' , enfim, uma aposta material no nível da demanda às artimanhas do desejo. O pacto tem raízes profundas e desenrola-se na adolescência contemporânea com a fluidez do consumo.

 

4.4 A afirmação viril

Guimarães Rosa, no inesgotável clássico da literatura brasileira Grande Sertão: Veredas  (1956), coloca em evidência o dilema viril. Nas muitas tramas que compõem a teia do 'Fausto' dos sertões, deparamo-nos com o desejo de Riobaldo de se apresentar como homem, valente e viril diante de Reinaldo/Diadorim – cangaceiro do seu bando que, na verdade, é uma mulher disfarçada. Riobaldo, o Tatarana, o Urutu Branco, deseja ser homem valente e participar das guerras dos jagunços. A personagem confessa: Mas eu sempre fui um fugidor. Ao que fugir até preciso dar fuga (1956, p. 200). Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Desejo dividido, temor.

Apesar disso, a sua nomeação como Tatarana, lagarta de fogo, vai lhe abrir o lugar simbólico de homem valente. O pactário Hermógenes, na obra, o reconhece como tal: Eh, valente tu é, Tatarana! Gosto dessa sua bizarria (1956, p. 247). A nomeação efetiva-se materialmente: valente é quem empunha uma arma: Mire veja: o rapazinho, no Nazaré, foi desfeiteado, e matou um homem. Matou, correu em casa. Sabe o que o pai dele temperou? Filho, isso é a tua maioridade (1956, p. 126).

O mito distorcido do herói armado, do guerreiro cangaceiro, empolga o imaginário masculino e desperta muitos adolescentes. Por que distorcido? Porque o herói não se insere em uma narrativa mais ampla e de natureza ético-política. Cada um deve "fazer", "ganhar" materialmente o seu nome, a sua posição viril. A virilidade assinala um horizonte irredutível no campo de sobredeterminações, ganhando na adolescência uma função. Muitas vezes, a coragem almejada e ilusória, a ilusão fálica de poder e o temor no lugar do reconhecimento social tornam-se recursos adolescentes face ao Outro sexo e ao encontro com o real.

 

4.5 A disposição da revolta

Destaca-se nas narrativas adolescentes, também, a dimensão da revolta. A palavra diabólica é justamente esta: você pode tudo, porque eu posso lhe dar e posso lhe dar porque tenho tudo. Eis a figura do diabo seduzindo o jovem revoltado ao tomá-lo como a imagem invertida da dominação. A fonte de inspiração desta reflexão pode ser encontrada no romance metafísico de Dostoiévski (1821-1881), Os demônios  (1871). Nele o engenheiro Alexej Kirílov investiga "as razões pelas quais os homens não ousam se matar". O que os impede é o "medo da morte e este os leva a inventar Deus, o usurpador de sua vontade livre:

Se não existe Deus, então eu sou Deus [...] Se Deus existe, então toda vontade é dele, e fora da vontade Dele nada posso. Se não existe, então toda vontade é minha e sou obrigado a proclamar o arbítrio [...] Se há um Deus então toda vontade é sua e eu não posso me livrar de sua vontade; mas, se não há, então toda vontade é minha e é minha obrigação manifestar minha própria vontade  (Dostoiévski, 2013, p. 597; Fogel, 2014, pp. 123-159).

Aí estaria a pedra angular do niilismo: não há sentido algum, não há limite algum, podemos ser tudo.

A revolta constitui o fundamento de um sentido, construído para suturar o vazio niilista. Ela constitui uma narrativa, conferindo coesão onde reina o sem sentido. Por que, entretanto, somente alguns são movidos pela revolta? Por que ela ganha forma recorrente mais na adolescência que em outro período da vida?

Os eventos originários causadores da revolta devem ter força suficiente para romper as barreiras que impedem a sua manifestação, como o medo, a indiferença, a crença. Aparentemente, tais barreiras mantêm o sujeito em uma posição estrutural de imobilidade, impotência ou submissão. Os revoltados são aqueles que, sob o impulso daqueles eventos originários de sofrimento, são capazes de saltar sobre tais barreiras, ainda que o risco da queda seja permanente, confirmando na agitação de superfície, muitas vezes, a impotência do revoltado.

 

5 Considerações Finais

Diante das cinco figuras do pacto diabólico - o luto melancolizado, a fuga reiterada do tédio, a sedução da riqueza, a afirmação viril e a revolta -, podemos retomar a aposta de Pascal e pensar a adolescência.

A aposta psíquica inconsciente, na forma como Lacan a lê, aproxima-se, assim, do pacto diabólico no ponto em que se escrevem tanto o desejo inconsciente quanto a busca de um suposto seu garantidor. Como vimos, entretanto, em Pascal, trata-se sempre de uma aposta sem garantias, o que remete ao Outro como anteparo do Eu. Nesse sentido, o lugar do Outro ganha relevância na medida em que pode se apresentar como o diabo, o enganador que se faz garantidor, mas ao preço de destituir o sujeito de sua responsabilidade.

Se as matrizes da aposta pascaliana ou as figuras do pacto diabólico nos permitissem cernir a dimensão do desejo e abrir suas compotas, certamente teríamos uma teoria preventiva eficaz contra o risco, a violência, a infelicidade e o mal-estar. Porém, não há cálculo exato que desenhe, no horizonte do trabalho contínuo na adolescência, uma única linha em relação ao desejo e à responsabilidade.

A adolescência e as condutas de risco, em especial aqui as condutas de risco na adolescência, nos ensinam que:
1. Se tivéssemos a garantia da existência do Outro, não precisaríamos nem nos separarmos dele, nem nos responsabilizaríamos por nossa aposta.
2. Se a escolha fosse racional, cognitiva, já teríamos eliminado todo sofrimento e mal-estar na passagem adolescente.
3. O lugar do Outro carece ser considerado nas escolhas que os adolescentes fazem, interferindo nas suas modalizações, como vimos nos pactos diabólicos, ainda que se trate de uma ficção/fixão.
4. Se não é possível conhecer a perda que condiciona o desejo, podemos tomar a maneira como ela se escreve para cada jovem como índice do trabalho clínico a ser realizado com cada um em sua singularidade não generalizável.

Dessa maneira, tomando a aposta de Pascal, tal qual relida por Lacan, para tratar as condutas de risco na adolescência, podemos extrair alguns elementos que colaboram com a clínica, assim como as políticas juvenis, a saber:
a. O adolescente conta com o outro para dele se separar;
b. As instituições, nesse sentido, podem se fazer parceiras da travessia protagonizada pelo próprio jovem;
c. O desejo atravessa condições obscuras para se afirmar, podendo produzir situações inusuais ou avessas ao que se poderia esperar de um adolescente;
d. Responsabilizar-se não é tarefa simples, pois implica a obscuridade do desejo e daquilo que o condiciona;
e. Nem sempre o sujeito adolescente age a seu favor, pois o circuito pulsional não é alimentado por uma meta progressista;
f. Ainda que o sujeito seja sempre por sua condição responsável, sua experiência subjetiva não elimina, mas antes concorre com sua condição material, econômica, social, racial e de gênero.

Portanto, se, de um lado, o pacto diabólico nos permite pensar a dimensão da responsabilidade em sua dimensão subjetiva, por outro evoca a responsabilidade em termos do Outro societário, da alteridade. Nesse sentido, a figura do pacto diabólico coloca em cena o lugar do Outro contemporâneo com suas promessas fugazes de felicidade sem exigência de contrapartida, sob o desvelamento da inconsistência da função da alteridade.

Parece-nos assim que, desse encontro entre Psicanálise, Filosofia e Literatura em torno do desejo inconsciente, da aposta de Pascal e do pacto diabólico, resta a ser explorada e desenvolvida em suas consequências éticas e políticas a questão da responsabilidade na atualidade - matéria relevante para se analisar o contemporâneo. Por isso mesmo, tomar o desejo, o pacto e o diabo como chaves de leitura de sintomas sociais complexos e experiências subjetivas contemporâneas parece-nos central, motivo pelo qual o esforço de sistematização deste artigo se fez relevante.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 21/06/2020
Aprovado para publicação em: 02/02/2022

Endereço para correspondência
Carlos Roberto Drawin
E-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br
Jacqueline de Oliveira Moreira
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br
Andréa Maris Campos Guerra
E-mail: andreamcguerra@gmail.com
Nádia Laguárdia de Lima
E-mail: nadia.laguardia@gmail.com
Patricia da Silva Gomes
E-mail: pgpsicologa@gmail.com

 

 

*Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da FAJE, Professor Aposentado do Departamento de Filosofia da UFMG. Doutor e Mestre em Filosofia UFMG.
**Professora da Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Mestre em Filosofia pela UFMG. Psicanalista. Bolsista Produtividade CNPq PQ1D.
***Psicanalista e Professora no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde coordena o Núcleo @PSILACS (Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo). Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ) com Estudos Aprofundados na Université de Rennes 2 (França). Coordenadora do Projeto Psicanalise e Decolonização com a Editora n-1. Membra-fundadora da Rede RICA (Rede Internacional de Investigação em Psicanálise e Criminologia), do GT Psicanálise, Clínica e Política da Associação Nacional de Pesquisa em Psicologia (ANPEPP), da Rede Interamericana de Pesquisa e Psicanálise e Política (REDIPPOL) e da Rede Internacional Coletivo Amarrações.
****Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Possui graduação em psicologia pela UFMG, mestrado e doutorado em Educação pela UFMG. Possui pós-doutorado em psicanálise pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordena o grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e cultura digital, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.
*****Psicóloga pela PUC-Minas, Psicanalista, Especialista em Psicologia Clínica pelo CFP, Mestre e Doutoranda em Psicologia - Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Integrante do grupo de pesquisa: Além da Tela: psicanálise e Cultura Digital, vinculado ao Programa de Pós-Graduação da UFMG.
1O jansenismo é um conjunto de princípios estabelecidos por Cornélio Jansênio (1585-1638), bispo de Ipres, condenado como herege pela Igreja Católica, que enfatizam a predestinação, negam o livre-arbítrio e sustentam ser a natureza humana por si só incapaz do bem.
2O pensamento, também conhecido como A Aposta de Pascal, está inserido em um compilado das anotações do filósofo que não foram publicadas por ele em função da sua morte. Os filósofos e religiosos de Port Royal fizeram uma edição para publicação. (Chaui, 1988).
3A discussão da aposta de Pascal e da Adolescência foi extraída da dissertação de mestrado de Patrícia Gomes (2018).
4Essa análise é oriunda da pesquisa "Adolescências e Leis", publicada em artigo científico (Moreira, Guerrra & Drawin) e em livro (Guerra, Moreira, Sauvagnat, & Ramirez, 2020).
55 Em uma primeira incursão no tema do "pacto diabólico" recorremos ao Google e localizamos sete personalidades históricas que em diferentes momentos da modernidade alimentaram o imaginário coletivo por terem realizado tal tipo de pactuação: Gilles de Rais (1405-1440), francês e um dos principais tenentes de Joana d`Arc que foi, talvez, um dos primeiros assassinos em série do mundo; UrbainGrandier (1590-1634), sacerdote católico também francês que seduziu muitas mulheres do próprio convento e, posteriormente, foi acusado de bruxaria; Giuseppe Tartini (1692-1770), músico italiano que compôs o famoso solo de violino "Il trillo Del diavolo" (O trinado do diabo);  NiccolòPaganini (1782-1840), virtuose do violino e também italiano; Charles Baudelaire (1821-1867), poeta francês considerado "maldito", autor de As flores do mal, precursor do simbolismo; Robert Johnson (1911 -1938), músico negro norte-americano, compositor de blues e, finalmente, Charles Manson (1934-2017), também norte-americano e fundador de um grupo misterioso na década de 1960,  responsabilizado por muitos crimes, mas celebrizado pelo chocante assassinato da atriz Sharon Tate, então grávida de oito meses. A "aposta" ou o "pacto" tornam-se "diabólicos" quando pretendem ser a ultrapassagem da condição humana da finitude efetivada nas condições vigentes no ponto de partida do pactuário.
6Do original: Le désir, pour Lacan, se différencie de la demande par un certain nombre de qualifications:
- la demande est intransitive, c'est-à-dire qu'elle ne peut avoir d'objet; elle est également sans condition: le sujet y est livré, en termes militaires, il  «capitule sans condition»
- Le désir se caractérise au contraire par le fait qu'il a un objet, qui constitue une condition absolue, pour laquelle par exemple il peut prétendre être prêt à mourir.
7Do original: Lacan propose alors deux formules:
- L'inconscient est le discours de l'Autre (au sens d'une détermination objective: «de Alio in orationae tua res agitur»: ton destin se réalise, dans [les failles de] ton discours, à  propos de l'Autre)
- le désir du sujet est le désir de l'autre (au sens du génitif subjectif: c'est en tant qu'Autre que le sujet désire ).
Dès lors le caractère «diabolique» du Che vuoi? s'incarne dans ce retournement: le désir du sujet ne peut lui apparaître que sous cette forme étrangère, inversée, comme un «oracle», un questionnement diabolique.
8Do original: Le fantasme ($ àa)correspond à deuxmouvementcorrélés:
- D'une part, c'estune « signification absolue », non pas transcendante, mais visant le sujet comme  une flèche
- D'autre part, le fantasme désigne un point de défaillance du sujet, de «fading» au quell répond un objet présenté comme «diachronique», c'est-à-dire seule source de continuité temporelle du sujet,meme si cette continuité est traumatique.
Le désir se règle sur le fantasme d'une façon qui est homologue à  la façon dontle moi se règle surl'image Du corps (m --- i(a)) à l'étagein férieur. Dans les deux cas, ceréglage se fait dans une mé connaissance quiinversel'apparence de determination des termes, leur donnantleur coloration inconsciente".

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