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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

A função sintética do Eu e seus impasses na teoria freudiana1

 

The Ego's synthetic function and its impasses on freudian theory

 

La fonction synthétique du Moi et ses impasses dans la théorie freudienne

 

 

Munique Gaio Filla*

Universidade Federal de São Carlos - UFSCar - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva abordar a função sintética do Eu e os impasses inerentes a sua plena realização, considerando a ambiguidade que tal instância carrega nos escritos de Freud. Em primeiro lugar, a ideia de que as psiconeuroses resultam de um caso de inconciliabilidade entre representações sexuais e o Eu será retomada, a fim de explicitar os problemas resultantes do fato de certos conteúdos psíquicos não se harmonizarem com o último. Em segundo lugar, será recuperado o conceito de narcisismo, já que neste contexto Freud concebe o Eu como uma unidade que precisa ser constituída. Por fim, na principal parte deste ensaio será abordada a função sintética que Freud atribui ao Eu já no quadro da segunda tópica psíquica e do segundo dualismo pulsional. Ao mesmo tempo em que a marca do Eu é sua tendência à síntese, esta fracassa constantemente e conduz à patologia. Isso se relaciona ao fato de essa instância operar não só a favor das pulsões de vida e das atividades de ligação, mas também das pulsões de morte e de sua busca pelo desligamento, o que, por sua vez, afeta os rumos da concepção freudiana da clínica.

Palavras-chave: Eu, síntese, Freud, pulsões de morte, pulsões de vida.


ABSTRACT

This article aims to address the synthetic function of the Ego and the impasses inherent to its full realization, considering the ambiguity that such an instance carries in Freud's writings. Firstly, the idea that psychoneuroses result from a case of irreconcilability between sexual representations and the Ego will be resumed, in order to explain the problems resulting from the fact that certain psychic contents do not harmonize with the latter. Second, the concept of narcissism will be recovered, since in this context Freud conceives the Ego as a unit that needs to be constituted. Finally, in the main part of this essay the synthetic function that Freud attributes to the Ego in the context of the second psychic topography and the second drive dualism will be approached. At the same time that the stamp of the Ego is its tendency to synthesis, it constantly fails and leads to pathology. This is related to the fact that this instance operates not only in favor of life drives and binding activities, but also of death drives and his search for unbinding, which, in its turn, affects the direction of freudian's conception of the clinic.

Keywords: Ego, synthesis, Freud, death drives, life drives.


RÉSUMÉ

Cet article objective aborder la fonction synthétique du Moi et les impasses inhérentes à sa pleine réalisation, en considérant l'ambiguïté que cette instance charge dans les écrits freudiens. Au début, l'idée selon laquelle les psychonévroses résultent d'un cas d'inconciliabilité entre les représentations sexuelles et le Moi sera repris, afin d'expliciter les problèmes résultants du fait que certains contenus psychiques ne s'harmonisent pas avec le dernier. Ensuite, le concept de narcissisme sera récupéré, puisque dans ce contexte Freud conçoit le Moi comme une unité qui réclame d'être constituée. À la fin, dans la partie plus importante de cet essai sera abordée la fonction synthétique que Freud attache au Moi déjà dans le cadre de la deuxième topique psychique et du deuxième dualisme pulsionnel. À la fois que le signe du Moi est sa tendance à là synthèse, elle fracasse constamment et conduit à la pathologie. Ceci se rapporte au fait de cette instance opérer non seulement en profit des pulsions de vie et des activités de liaison, mais encore des pulsions de mort et sa recherche pour la déliaison, ce que, de son côté, affecte les destins de la conception freudienne de la clinique.

Mots-clés: Moi, synthèse, Freud, mort, pulsions de mort, pulsions de vie.


 

 

Introdução

Não é novidade para os leitores de Freud deparar-se com a ambiguidade que caracteriza o conceito de Eu em sua teoria, a qual favoreceu interpretações variadas e até mesmo opostas desta instância, de suas capacidades e de suas fraquezas. Por um lado, ela é associada à razão, à manutenção do equilíbrio psíquico, aos processos conscientes e pré-conscientes, bem como às atividades de ligação e de síntese. Por outro lado, o psicanalista também afirma sua afinidade com a região mais irracional da alma, ao destacar o caráter inconsciente de parte de seus processos, que funcionam de modo primário, e o prejuízo que tal condição causa em sua tendência a unificar os processos psíquicos. Isso ajuda a explicar porque é possível encontrar, entre as referências a Freud e a este conceito, posições teóricas que vão desde a Ego Psychology, conhecida por priorizar o Eu, suas funções ligadas à consciência e sua capacidade de adaptação à realidade, até a teorização de Jacques Lacan, que entende a última corrente como um desvio interpretativo e para quem o Eu não passa de uma imagem de totalidade, constituída a partir da alienação em relação ao outro, conforme aponta sua teoria do estágio do espelho.

Considerando este caráter ambíguo que o Eu assume nos escritos freudianos, o presente artigo se insere no movimento mais geral de reafirmar a importância de que as múltiplas facetas deste conceito sejam apreendidas, sem que ele seja reduzido a este ou àquele aspecto. De modo mais específico, buscaremos voltar mais uma vez à letra do pai da psicanálise através da investigação da função sintética que Freud atribui ao Eu, a qual parece marcar a essência dessa instância, mas, ao mesmo tempo, mostra-se sujeita a uma série de perturbações, que impulsionam as manifestações patológicas da vida psíquica. Mais do que isso, pretende-se apontar que, se a posição que o Eu ocupa no conflito pulsional é levada em conta, a síntese à qual ele aspira revela certa predestinação ao fracasso.

Para explorar tais questões, o artigo seguirá três etapas distintas. As duas primeiras, que podem ser consideradas como etapas prévias, consistem em recortes da história da concepção de Eu na teoria de Freud, em conformidade com a intenção de destacar alguns atributos que lhe são outorgados desde seus primeiros trabalhos, os quais se relacionam, em alguma medida, à sua função sintética, que só será afirmada nesses termos depois da conhecida "virada" de 1920. Em primeiro lugar, no contexto das primeiras teorizações sobre a defesa em curso nas psiconeuroses, em textos ainda chamados pré-psicanalíticos, será considerada a noção de que há representações que são inconciliáveis com o Eu, bem como as consequências patológicas diante da impossibilidade do Eu de se conciliar com determinados conteúdos psíquicos; posteriormente, o Eu será abordado sob o ângulo da teoria do narcisismo, com ênfase no caráter de unidade que é a ele destinado a partir do reconhecimento da constituição do Eu própria do estágio narcísico. Quanto ao terceiro momento deste ensaio, será dedicado a analisar as menções explícitas de Freud, já no âmbito da segunda tópica do aparelho psíquico, a respeito da função de síntese do Eu, bem como as perturbações às quais ela está sujeita, que levam aos sintomas psíquicos. Além disso, será investigada a relação entre a tendência do Eu à síntese e o segundo dualismo pulsional, o conflito entre pulsões de vida e de morte, o que revelará certos impasses inerentes a esta função, que reverberam na própria concepção clínica que Freud sustentava da psicanálise.

 

O Eu contra as representações sexuais inconciliáveis

A ideia de que as representações que não estão de acordo com o Eu são incitadoras do processo defensivo e, por conseguinte, de que algo que não se pode conciliar ou harmonizar com o Eu assume o papel de desencadeador de processos patológicos parece estar presente desde cedo no pensamento de Freud. Desde 1896, quando ele afirma, em A etiologia da histeria, que via de regra sua erupção se deixa reconduzir a um conflito psíquico, oferece-nos sobre o último a seguinte definição: "uma representação inconciliável (unverträglich) põe em movimento a defesa do Eu e convida à repressão (Verdrängung)" (Freud, 1896/1991, p. 209; 1952, p. 447, grifo do autor)2. O efeito patológico resultante desse "empenho defensivo" consiste em a recordação penosa para o Eu ser empurrada para o inconsciente, com a possibilidade de criação de um sintoma histérico em seu lugar. Entretanto, é possível rastrear a presença desta concepção ainda mais cedo nos textos chamados pré-psicanalíticos e com uma abrangência explicativa maior - em 1894, no artigo As neuropsicoses de defesa, este esquema etiológico parece valer não só para a histeria, como também para as demais neuroses. É o que atesta a passagem a seguir, retirada de um resumo escrito por Freud em 1897 acerca de suas teses principais até este período:

A cisão de consciência da histeria não é um caráter primário desta neurose, baseado em uma debilidade degenerativa, segundo assegura Janet, mas sim o resultado de um processo psíquico peculiar que é designado como "defesa" e cuja presença em numerosas neuroses e psicoses, além da histeria, é demonstrada através de análises brevemente comunicadas. A defesa intervém toda vez que na vida de representações acontece um caso de inconciliabilidade entre uma representação singular e o "Eu". O processo defensivo se deixa figurar por meio de uma imagem: é como se à representação que se reprime se arrancasse seu montante de excitação e se aplicasse este em outro uso. [...] A fonte das representações inconciliáveis que caem sob a defesa é única e exclusivamente a vida sexual (1897/1991, p. 242-243; 1952, p p. 481-482).

Neste trecho, Freud acrescenta que o motivo da contradição entre o Eu e a representação é a natureza sexual da última, que faz com que o Eu se defenda dela por meio da repressão. O mecanismo em jogo consiste em enfraquecer a representação retirando dela sua soma de excitação, que sucumbe a outro destino. Com esses elementos, o autor estabelece um esquema para a determinação dos sintomas compartilhado pelos três tipos de afecções englobadas pelo termo neuropsicoses de defesa, a saber, a histeria, as fobias e as representações obsessivas, e finalmente a psicose alucinatória. Deste ponto de vista, o artigo de 1894 revela que o gatilho que marca a separação entre a saúde psíquica e essas patologias consiste na ocorrência de "uma vivência, uma representação, uma sensação que despertou um afeto tão penoso que a pessoa decidiu esquecê-la, não confiando em poder solucionar com seu Eu, mediante um trabalho de pensamento, a contradição que essa representação inconciliável lhe opunha" (Freud, 1894/1991, p. 49; 1952, p p. 61-62). A pessoa tem o propósito de empurrar a coisa para longe, não pensar nela e suprimi-la, o que, ao invés de obter êxito, ocasiona as diferentes reações patológicas, que têm em comum a cisão da consciência.

Por mais que o paciente tente se livrar da representação inconciliável, o traço mnêmico e o afeto aderidos à ela já não podem ser eliminados pelo Eu defensor. Se o Eu não é capaz de lidar com tal representação como se não tivesse acontecido, ele encontra a solução aproximada de transformá-la em uma representação fraca por meio da retirada do afeto ou soma de excitação3 aderido a ela. Se essa atitude do Eu defensor resolve o problema de um lado, na medida em que a representação fraca não exige do trabalho associativo e a meta da defesa pode ser traduzida em, justamente, impedir que a representação incompatível entre em associação com o Eu, causa um inconveniente do outro, visto que aquele afeto ou soma de excitação não pode simplesmente permanecer suspenso e requer outra aplicabilidade na vida psíquica.

O fator que estabelecerá as fronteiras entre as diferentes patologias consiste no destino a ser conferido ao afeto retirado da representação em contradição com o Eu - transposição para o corpo através da conversão na histeria e o deslocamento para representações obsessivas ou fóbicas substitutas da representação sexual inconciliável. Nos mecanismos de conversão e deslocamento, Freud reconhece que o Eu se livra da contradição que o assola e obtém vantagens com isso - em maior grau no primeiro do que no segundo, já que no deslocamento o afeto não foi destinado ao corpo e por isso continua perturbando o Eu, ainda que falsamente enlaçado a uma representação adequada a permanecer na consciência. Quanto à confusão alucinatória, a particularidade se encontra no fato de que o Eu defensor parece seguir aquele primeiro ímpeto de se comportar como se a representação inconciliável nunca tivesse existido, já que em vez de torná-la débil, rejeita ou repudia (verwerfen) tanto a última quanto o afeto ligado a ela mediante o refúgio na psicose, às custas de desfazer-se total ou parcialmente da realidade (Realität)4 com a qual a representação inconciliável se entrama (Freud, 1894/1991, p p. 59-60; 1952, p p. 72-73).

Já na primeira teorização freudiana acerca da etiologia das neuroses, o Eu que é assolado por uma contradição - a emergência da representação sexual inconciliável e do afeto penoso ligado a ela - tem sua ação defensiva mobilizada. Ele tenta se ver livre de tal situação impossível de tramitação, que lhe causa um dano permanente. A noção capital de defesa, que embasa o surgimento da psicanálise, entra em cena a partir desses casos de inconciliabilidade com o Eu na vida anímica. Nota-se que a existência de conteúdos psíquicos em desacordo com o Eu consiste em uma condição fundamental para a patologia. Da mesma forma, é possível depreender um dos requisitos cruciais para a saúde psíquica, a saber, que o Eu possa se conciliar com as representações, visto que quando obstáculos são impostos a esta ação, irrompe uma espécie de desequilíbrio que pode levar à repressão e ao surgimento dos sintomas neuróticos - às representações sexuais inconciliáveis, já que não podem se harmonizar com o Eu, resta que sejam destinadas ao inconsciente, como meio para solucionar a insuportável contradição com aquela instância.

Des s e modo, é possível inferir que Freud reconhece certo caráter conciliatório do Eu desde seus trabalhos iniciais, considerando os inconvenientes decorrentes do aparecimento de representações psíquicas inassimiláveis a ele. Se a defesa do Eu é acionada justamente quando determinados conteúdos psíquicos não se conciliam com ele, vemos nascer a imagem do Eu como uma espécie de coesão, de conjunto homogêneo, visto que aquilo que não pode ser englobado neste nexo, aquilo que fica fora por não estar de acordo com ele, poderá ter como destino a repressão e, consequentemente, o isolamento em relação à consciência.

Não podemos deixar de mencionar que Freud desenvolve a noção de Eu em uma direção semelhante - como conjunto ou coesão - no Projeto de psicologia, escrito em 1895, na medida em que o concebe como uma massa de neurônios organizada e constantemente investida, em estado ligado. Essa massa é capaz de inibir os processos psíquicos primários, a repetição das vivências de satisfação e de dor, impedindo o desprendimento de grandes quantidades de energia. Responsável pela função secundária, o Eu cumpre a tarefa de defender o aparelho psíquico da liberação de desprazer, por conseguir se manter no estado ligado e, com isso, influenciar o curso automático da excitação. Nos anos subsequentes, com a publicação da Interpretação dos sonhos e a formulação da primeira tópica psíquica, o Eu ocupa uma posição menos proeminente, já que Freud tende a identificá-lo com o sistema pré-consciente/consciente, que assume a posição defensiva, e a trazer para o primeiro plano o polo do qual é preciso se defender, a saber, o inconsciente, o reprimido e seu funcionamento específico. Contudo, o interesse freudiano pelo Eu é reanimado posteriormente, sobretudo nos textos metapsicológicos e, particularmente, a partir do trabalho sobre o narcisismo, no qual a ideia do Eu enquanto unidade ganha força, conforme veremos adiante5.

 

O narcisismo e o Eu como unidade

Freud se aproxima da noção de narcisismo por meio do problema das escolhas de objeto homossexuais, como bem apontam passagens da edição de 1910 dos Três ensaios sobre teoria sexual e o artigo de Freud sobre Leonardo da Vinci. O autor entende que os homossexuais tomam a si mesmos como modelo dos objetos de amor que virão a escolher, o que significa que amam pela via do narcisismo. Mais adiante, no entanto, por volta de 1911, o narcisismo passa a designar um estágio do desenvolvimento libidinal compartilhado por todos os indivíduos, uma fase que deixa suas marcas por toda a vida6.

A princípio, Freud observava no desenvolvimento da libido apenas as fases autoerótica, referente à sexualidade infantil, conhecida pelos adjetivos "perversa" e "polimorfa" a ela relacionados no segundo dos Três ensaios..., e de amor objetal, própri a à sexualidade adulta, posterior à puberdade. Desde a primeira edição de 1905 da obra citada, a concepção freudiana é a de que as pulsões sexuais parciais buscam a satisfação de modo autoerótico, nas múltiplas zonas erógenas do próprio corpo, que são suas fontes somáticas, cada uma por sua conta, e se unificam após a puberdade para alcançar a meta sexual em um objeto externo, transição que inclui sua submissão ao primado da zona genital e a serviço da reprodução. Nos termos de Pulsões e seus destinos, na infância as numerosas pulsões sexuais guiam-se pela busca do prazer de órgão e apenas quando alcançam determinada "síntese" se voltam à meta reprodutiva (Freud, 1915/1992, p. 121; 1949, p. 218).

No entanto, a partir de 1911, com a publicação do caso Schreber - por razões que não cabe elencar aqui, mas que se relacionam ao estudo da própria homossexualidade, das chamadas parafrenias e da vida anímica das crianças e dos primitivos - o psicanalista passa a julgar necessária a introdução de um estágio intermediário entre as grandes etapas do autoerotismo e do amor de objeto. Pensar que a pulsão sexual é composta de pulsões parciais autoeróticas, que aos poucos se unificam e tomam seu destino rumo à sexualidade adulta objetal e genital não é mais suficiente para Freud, que se vê obrigado a acrescentar nesse intervalo o narcisismo. Nessa fase mediadora e inevitável, o indivíduo "que reúne {zusammfassen} em uma unidade (Einheit) suas pulsões sexuais de atividade autoerótica, para ganhar um objeto de amor toma primeiro a si mesmo, a seu próprio corpo, antes de passar deste à escolha de objeto em uma pessoa alheia." (Freud, 1911/1991, p. 56; 1955, p p. 296-97).

Com o acréscimo do narcisismo à teoria da libido, é preciso supor o investimento das pulsões sexuais, então reunidas, em si mesmo, antes que se possa escolher um objeto alheio e alcançar o amor de objeto. Para nossos propósitos, no entanto, importa destacar que esta constatação incide sobre as formulações freudianas acerca do Eu, visto que ele está implicado neste si mesmo do qual fala Freud, este ao qual se dirigem as pulsões sexuais parciais sintetizadas em uma totalidade. Em Totem e tabu, o psicanalista apresenta com mais clareza esta relação entre o estágio do narcisismo, o Eu e a reunião das diversas moções pulsionais sexuais:

Nesse estágio intermediário, cuja significatividade se impõe cada vez mais à investigação, as pulsões sexuais antes separadas já se compuseram em uma unidade e também acharam um objeto; mas este objeto não é um exterior, alheio ao indivíduo, mas sim o próprio Eu, constituído nesse período (Freud, 1913/1991, p. 92; 1961, p. 109).

Esta passagem evidencia a concomitância entre a reunião das múltiplas pulsões sexuais em uma unidade e a constituição do Eu como objeto total daquelas, à semelhança do objeto externo, para o qual a pulsão sexual se dirigirá na sequência do desenvolvimento libidinal. Nas palavras de Simanke (1994): "o narcisismo caracteriza-se pela síntese da pluralidade das pulsões parciais em uma unidade; o ego torna-se, assim, o primeiro objeto total da criança" (p. 119, grifos nossos). Deste modo, se as pulsões autoeróticas se relacionam à pluralidade, o narcisismo e o Eu se vinculam à unidade, na medida em que o último é formado justamente neste momento e se oferece como objeto às pulsões sexuais então sintetizadas, concepção que também é defendida por Monzani (1989) em sua afirmação de que "o ego surge como uma unidade frente à diversidade do pulsional, que até então funcionou de maneira anárquica e dispersa - ele aparece, assim, tal como o objeto exterior, como passível de ser objeto da sexualidade" (p. 145).

Portanto, Freud concebe o narcisismo como esse estado de reunião das pulsões autoeróticas para tomada do Eu como objeto, entendendo que o Eu precise ser constituído e que essa formação se efetive justamente neste período. Ao que parece, então, falar de narcisismo significa supor tal constituição do Eu enquanto unidade. É o que mostra o conhecido trecho de Introdução ao narcisismo, em que Freud se propõe a esclarecer a diferença conceitual entre autoerotismo e narcisismo:

É uma hipótese necessária que não esteja presente desde o começo no indivíduo uma unidade comparável ao Eu; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas as pulsões autoeróticas são primordiais; portanto, algo tem que se agregar ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo (1914/1992, p. 74; 1949, p. 142).

Vemos que nosso autor salienta o fato do Eu não estar pronto assim que o indivíduo nasce, uma vez que está em jogo sua concepção de unidade, na qual estamos especialmente interessados. Ele precisa se desenvolver, por uma nova ação psíquica, e só assim se torna possível formar (gestalten) o narcisismo, cuja marca é aquela da unificação. Mesmo que Freud chegue a rever a nítida distinção entre autoerotismo e narcisismo, que se torna mais nebulosa depois de 1914, para os propósitos deste artigo interessa salientar que com essa diferenciação Freud demarcava a antecedência de uma fase primordial, de pluralidade de pulsões parciais autoeróticas e do prazer de órgão, em relação a um momento posterior de síntese das pulsões, de gênese do Eu enquanto unidade e de sua apreensão como objeto sexual total.

É pertinente ainda ter em vista o comentário de Laplanche (1970/1985), que aponta para três pontos de sustentação da tese freudiana sobre o narcisismo - o primeiro deles, de que se trata de um investimento libidinal de si mesmo, comumente referido pela expressão "amor de si mesmo" ; o segundo, diz respeito ao fato de que esse investimento libidinal de si mesmo "passa necessariamente no homem pelo investimento libidinal do ego" ; e o terceiro e mais importante aqui, o de que "o investimento libidinal do ego é inseparável da própria constituição do ego humano" (p. 72, grifos do autor). Assim, notamos, novamente com Monzani (1989), que o Eu necessário à formação do narcisismo parece surgir como "fruto de uma diferenciação progressiva" (p. 245) rumo à unidade, em detrimento da diversidade das primeiras manifestações pulsionais. Diante disso, nota-se a condição da unificação pressuposta na gênese do Eu, fato que tomará outras proporções a partir da afirmação de sua atividade sintética, visto que o Eu não só se constitui enquanto unidade, como também exerce uma tendência de unificação e de reunião na vida anímica, passo que estamos aptos a efetuar após este breve percurso.

 

O Eu, sua função de síntese e os impasses inerentes a ela

Assim, podemos acompanhar, desde os textos pré-psicanalíticos, o inconveniente causado pelas representações sexuais inconciliáveis ao Eu, a partir do qual foi possível inferir certa necessidade de conciliação própria a esta instância; bem como sua condição de não estar pronto desde o início da vida, mas de provir de uma constituição, de uma formação em direção à unidade, que é realçada com as teorizações sobre o narcisismo. Isto posto, interessa-nos explorar alguns textos inseridos no contexto do conhecido tournant de 1920, em que se desenrola a introdução do novo dualismo pulsional e da segunda tópica psíquica, uma vez que tais características do Eu se acentuam ainda mais, definem-se com maior precisão e se ampliam, em alguma medida, por meio da definição de sua função de síntese na vida psíquica. Des s e modo, nos guiaremos por dois movimentos, de certa forma concomitantes. Um deles consistirá em delinear a atividade sintética propriamente dita e as dificuldades impostas à plena realização dessa função, que são uma das condições essenciais para deflagrar as manifestações patológicas. Além disso, indicaremos as relações que este caráter do Eu estabelece com o conflito pulsional, o que mostrará certa predestinação ao fracasso desta síntese, e certos impactos clínicos dessa posição ocupada pelo Eu.

Já em Além do princípio de prazer, Freud afirma que no curso do desenvolvimento do Eu, "acontece repetidamente que certas pulsões ou partes de pulsões se mostram, por suas metas ou suas reivindicações, inconciliáveis com as restantes que podem unir-se (zusammenschließen) na unidade abarcadora (umfassende Einheit) do Eu" (1920/1992, p. 10; 1967, p. 7). Concepções semelhantes se repetem em Psicologia das massas e análise do Eu, conforme demonstra a menção freudiana à "unificação do Eu" (Vereinheitlichung des Ichs) presente no curso do desenvolvimento psíquico (1921/1992, p. 76; 1967, p. 84), e no artigo Psicanálise, de acordo com a noção de que há uma "integridade" do Eu em ação na vida psíquica (1923a/1992, p. 242; 1967, p. 222), que pode ser entendida no sentido de sua qualidade de ser inteiro ou total. Ainda nessa página do último escrito, Freud também menciona que o estopim para as neuroses consiste no conflito entre aspirações sexuais inconciliáveis com tal integridade do Eu, de modo que o reprimido por ele consistirá, justamente, em representações com as quais não é possível estar de acordo, as quais se tenta segregar.

Tais descrições do Eu recuperam tanto os primeiros textos freudianos sobre a teoria da defesa, ao retomarem a ideia de que aquilo que não se concilia com o conjunto do Eu é por ele reprimido, quanto aqueles aspectos para os quais a teoria do narcisismo lançou luz, ao enfatizarem a característica de que o Eu se configura como uma unidade. Além disso, chamam a atenção para a tendência do último de abarcar ou abranger os conteúdos psíquicos em sua totalidade. Entretanto, é somente em A questão da análise leiga que é atribuída ao Eu, pela primeira vez, a função de síntese (Synthese), conforme atesta a seguinte constatação freudiana: "O Eu é uma organização notável por uma aspiração muito peculiar de unificação, de síntese" (Freud, 1926a/1992, p. 184; 1948, p. 223)7. Este caráter é acentuado no Eu em detrimento de sua ausência no Isso, marcado pela desarticulação, onde tendências até mesmo opostas coexistem e perseguem seus propósitos cada uma por sua conta. Na Conferência 31, tais aspectos são reforçados - Freud reafirma que o Isso não possui uma "vontade total" como o Eu, mas apenas o impulso em satisfazer suas necessidades pulsionais, e ainda acrescenta:

Mas o que singulariza muito particularmente o Eu, em contraste com o Isso, é uma tendência à síntese de seus conteúdos, à reunião (Zusammenfassung) e à unificação de seus processos anímicos, que ao Isso falta completamente. Quando no que segue tratarmos sobre as pulsões na vida anímica, cabe esperar que alcancemos reconduzir a suas fontes este caráter essencial do Eu. Por si só produz aquele alto grau de organização que o Eu necessita para suas melhores operações. O Eu se desenvolve desde a percepção das pulsões até seu governo, mas este último só se alcança pelo fato de que o representante pulsional é subordinado a uma união maior, acolhido em um nexo (Zusammenhang) (1933/1991, p. 71; 1961, p p. 82-83).

Assim, o Eu parece não apenas provir de um processo de formação direcionado à unidade, conforme já vimos na passagem pelo narcisismo, mas também exerce, ele mesmo, a tendência de síntese, de reunião e de unificação dos processos anímicos8. Tal caráter essencial o distingue enquanto instância psíquica e justifica o grau elevado de organização que também lhe é próprio, em detrimento da região do Isso. Por ora, retenhamos que há uma relação importante desta característica com as fontes pulsionais, assunto ao qual retornaremos mais tarde. Tenhamos em vista que isso também explica a capacidade do Eu de alcançar o domínio sobre os representantes psíquicos das pulsões e que as relações entre o Eu e o Isso se desenrolam sem grandes intercorrências quando o primeiro consegue acolher as exigências pulsionais do segundo.

Em conformidade com esta perspectiva, se voltarmos ao escrito sobre a análise leiga, vemos que Freud defende a ausência de uma rivalidade "natural" entre o Eu e o Isso, na medida em que o segundo surge a partir do primeiro. No entanto, reconhece que são "requisitos ideais" aqueles que permitem a governabilidade do Isso pelo Eu - "[...] isso anda bem quando o Eu possui sua íntegra organização e capacidade de rendimento, tem acesso a todas as partes do Isso e pode exercer sua influência sobre elas" (Freud, 1926a/1992, p. 188; 1948, p. 229). Se tais exigências são cumpridas, "não há perturbação neurótica alguma", continua Freud; o inconveniente é que elas carregam a marca de serem "ideais" - na prática, parte das pulsões não podem ser admitidas no conjunto harmônico do Eu e seguem caminhos independentes dele rumo à satisfação. O problema, então, remete aos casos já mencionados de inconciliabilidade, que tem como resultado a ação repressiva do Eu, como tentativa de segregar de vez aquilo que é discordante em relação à sua unidade e não pode ser incorporado a ela.

Des s e modo, a função de síntese do Eu é situada em relação ao problema com o qual esta organização tem de se haver quando não se concilia com as moções pulsionais do Isso, de modo que o ponto de irrupção das manifestações patológicas seja situado justamente neste comprometimento da atividade sintética. Na terminologia da teoria estrutural do aparelho psíquico, a princípio, haveria apenas o Isso, de modo que o Eu se constituiria a partir deste e seria fraco e impotente no início da vida. Nesse sentido, ao Eu infantil, diante de uma exigência pulsional perigosa - que não se harmoniza com ele e, portanto, não pode ser abarcada em sua unidade -, resta tratá-la como se fosse um perigo vindo do mundo externo, isto é, tentar empreender a fuga, através da repressão. Contudo, na medida em que a fuga de si mesmo é inviável, o Eu limita seu "campo de poder", de modo que a moção pulsional reprimida seja abandonada a seu próprio destino no Isso e se torne inacessível ao Eu. O problema levantado por Freud é que "nem sequer mais tarde, já fortalecido, pode o Eu cancelar a repressão; sua síntese está perturbada, uma parte do Isso fica como terreno proibido para o Eu" (Freud, 1926a/1992, p. 190; 1948, p. 230, grifos nossos), o que mobiliza as reações patológicas, justamente porque o Eu perde sua influência sobre essas partes do Isso, que buscam satisfações substitutivas irrompendo no Eu e provocando os sintomas:

De repente vemos frente a nós o quadro de situação de uma perturbação neurótica: um Eu inibido em sua síntese, que não possui influência alguma sobre partes do Isso, que se vê forçado a renunciar a muitas de suas atividades a fim de evitar um novo choque com o reprimido, que se esgota em ações defensivas, inúteis na maioria das vezes, contra os sintomas, os derivados das moções reprimidas; e um Isso em que certas pulsões cobraram autonomia, perseguem suas metas sem consideração pelos interesses da pessoa total e só obedecem às leis da psicologia primitiva que impera nas profundezas do Isso (Freud, 1926a/1992, p. 190; 1948, p. 231).

O prejuízo na atividade sintética do Eu, como mostra a passagem acima, é correlato a uma inibição, a uma limitação do Eu, na medida em que determinadas pulsões do Isso passam a agir por conta própria, sem se deixar influenciar por aquela instância, momento a partir do qual se instaura a patologia. A relação entre os danos à função sintética do Eu e a neurose são reiterados por Freud mais a frente, ainda no texto citado, ao afirmar que o Eu do doente "perdeu sua unidade, e por isso também não abre caminho a uma vontade unitária." "Se fosse de outro modo, não seria um neurótico", acrescenta ainda nosso autor (Freud, 1926a/1992, p. 207; 1948, p. 251). Além disso, Freud menciona a luta do Eu contra os sintomas, enquanto derivados das moções reprimidas, rementendo ao fato de que as moções pulsionais do Isso que o Eu não pôde acolher em sua unidade são afastadas por meio da repressão, mas continuam seguindo seus caminhos e buscando a satisfação substitutiva através do sintoma. Isso justifica a afirmação de Freud, localizada em Neurose e psicose, segundo a qual o sintoma se impõe ao Eu enquanto um "intruso" que "ameaça e prejudica" sua uniformidade ou homogeneidade (Einheitlichkeit), de modo que o Eu passa a lutar contra o sintoma, assim como havia entrado em conflito com aquela pulsão considerada perigosa, "e tudo isso dá por resultado o quadro da neurose" (Freud, 1924a/1992, p. 156; 1967, p. 388).

Na verdade, não só a neurose é um signo de que o Eu não conseguiu a síntese que almeja em sua tarefa de dominar a complexidade psíquica e de que perdeu sua uniformidade nessa tentativa. Ainda em Neurose e psicose, Freud afirma que tanto a neurose, quanto a psicose resultam de um "fracasso na função do Eu" (1924a/1992, p. 158; 1967, p. 391), mais precisamente em sua função sintética, diante de seu empenho em conciliar ou reconciliar (versöhnen) exigências tão díspares quanto aquelas impostas pelo Isso, pelo Supereu e pelo mundo externo, que desde O Eu e o Isso são apontados por Freud como as três subordinações do Eu. Se na neurose o Eu entra em conflito com o Isso, a serviço do Supereu e da realidade, na psicose, o Eu luta contra o mundo exterior, cede aos desejos do Isso e se afasta da realidade. Também pode acontecer de que o Eu não ceda a nenhum dos três senhores: "o Eu terá a possibilidade de evitar a ruptura em direção a qualquer um dos lados deformando-se ele mesmo, consentindo prejuízos a sua uniformidade e eventualmente segmentando-se e partindo-se" (1924a/1992, p. 158; 1967, p. 391). Trata-se da cisão ou clivagem do Eu (Ichspaltung), que acontece quando ele se utiliza do mecanismo da recusa (Verleugnung) diante de um trauma psíquico. Tal decomposição do Eu também pode ser incluída entre os fracassos de sua atividade de síntese que se associam a manifestações patológicas. Freud alerta o leitor em A cisão do Eu no processo defensivo: "A função sintética do Eu, que possui uma importância tão extraordinária, tem suas condições particulares e sucumbe a toda uma série de perturbações" (1940a/1991, p. 276; 1955, p. 60). Deste modo, em uma palavra, a perda da unidade do Eu é uma marca fundamental do limite entre o normal e o patológico. O Eu que não produz síntese, segundo os termos utilizados por Freud no Compêndio de psicanálise (1940b/1991, p. 181; 1955, p. 107), está entregue ao adoecimento.9

Ora, se a partir dos textos pré-psicanalíticos sobre as neuropsicoses de defesa foi possível inferir a tendência à conciliação do Eu, com a posição ocupada por essa instância na segunda tópica essa inclinação parece se radicalizar e a expressar sua própria natureza: "[...] uma ação do Eu é correta quando cumpre ao mesmo tempo os requisitos do Isso, do Supereu e da realidade, vale dizer, quando sabe reconciliar entre si suas exigências" (Freud, 1940b/1991, p. 144; 1955, p. 69). Ao mesmo tempo, tal tarefa de conciliação ou reconciliação está intimamente relacionada com a função de síntese e de unificação do Eu, na medida em que se trata de combinar ou harmonizar diferentes aspirações, conforme atesta Freud neste trecho, retirado do Manuscrito inédito de 1931: "A tarefa, que é atribuída ao Eu, de unificar (vereinen) as exigências de sua libido com as imposições do seu Supereu e as condições do mundo externo não é fácil" (1931/2019, p. 69). Isso também explica porque nosso autor sugere, no que diz respeito ao encargo de conciliação mencionado, que o Supereu consiste em um modelo para o Eu, na medida em que aquele consegue reunir, nele mesmo, influências do Isso e do mundo exterior. Por dever sua gênese às primeiras moções libidinosas do Isso, dirigidas aos progenitores no Complexo de Édipo, os quais são introjetados por meio da identificação, ao mesmo tempo em que provém da realidade externa e exercem sua influência crítica sobre a criança, o Supereu representa o Isso e a realidade exterior, e é capaz de alcançar aquilo que o Eu tanto almeja, conforme é afirmado em O problema econômico do masoquismo (Freud, 1924b/1992, p. 172; 1967, p p. 379-380).

Cabe acrescentar, ainda, que a busca pela síntese colocada em ação pelo Eu é tão marcante que Freud entende que o Eu tenta acolher em sua organização o próprio sintoma. Em Inibição, sintoma e angústia, nosso autor relembra que tanto aquelas moções pulsionais reprimidas, quanto o sintoma que emerge a partir delas "gozam de certa extraterritorialidade" em relação ao Eu, que deixa de poder inclui-los em sua organização, e, consequentemente, gozam também de certa independência em relação à última (Freud, 1926b/1992, p. 93; 1948, p. 125). Diante dessa conjuntura, desses limites e inibições que lhes são impostos, resta ao Eu, por conta de sua essência, tentar se conformar ao que escapa ao seu domínio:

[...] o Eu é coagido (genötigt) por sua natureza a empreender algo que temos que apreciar como tentativa de restabelecimento ou de conciliação. O Eu é uma organização, se baseia na livre circulação e na possibilidade de influência mútua entre todos os seus componentes; sua energia dessexualizada revela ainda sua origem em sua aspiração à ligação e à unificação, e esta sua compulsão à síntese (Zwang zur Synthese) aumenta à medida que o Eu se desenvolve mais forte. Assim se compreende que o Eu tente também cancelar a estranheza e o isolamento do sintoma, aproveitando toda oportunidade para ligá-lo de algum modo a si e incorporá-lo a sua organização através de tais laços (Freud, 1926b/1992, p. 94; 1948, p p. 125-26, grifos nossos).

Vale a pena deter-se em um comentário mais extenso a respeito desta citação. Em primeiro lugar, interessa-nos destacar que essa passagem aponta para mais uma importante expressão da inclinação à síntese pela qual se distingue o Eu, que reitera a dimensão que essa função assume para a instância citada e pode ser resumida pela ideia de ganho secundário da doença. Diante do incômodo causado pelo sintoma, o Eu se empenha em uma adaptação em relação a ele, que passa a compor o seu "conjunto" ; por estar "disposto à paz", o Eu também se propõe a incorporar o sintoma, que chega a se tornar indispensável para seu funcionamento (Freud, 1926b/1992, p. 96; 1948, p. 127). Isso não significa, contudo, uma solução milagrosa; ao contrário, o Eu intensifica suas limitações nessa fusão com o sintoma, uma vez que se vê coagido a buscar satisfações naquilo que era inconciliável com ele e que retornou do reprimido através do sintoma. Nesse sentido, ele se altera ao executar a atitude defensiva e nessa busca de conservar sua unidade a qualquer custo, já comprometida no processo patológico. Essa relação estreita entre Eu e sintoma não produz outra coisa senão resistência no processo analítico.

Is s o posto, é vantajoso passar a uma segunda consideração sobre o fragmento de texto citado - colocar em relevo o uso que Freud faz da palavra "compulsão" (Zwang)10 para se referir à atividade de síntese, que parece seguir na esteira da utilização prévia ao verbo nötigen para designar o fato do Eu ser coagido, forçado ou obrigado, por sua natureza, à tentativa de restabelecimento ou de conciliação. Até agora, havíamos chamado a atenção para esta função do Eu através de termos semelhantes como inclinação11, aspiração ou tendência. O recurso a Zwang merece atenção por sugerir algo a mais, que só podemos compreender se explorarmos o termo, ainda que rapidamente. Quanto à acepção do termo Zwang, segundo a investigação de Assoun (1994), ultrapassa o campo da neurose obsessiva (Zwangsneurose), a partir do qual é mais conhecido, e abrange processos psíquicos muito variados nos textos freudianos, conforme atestam a presença de expressões como ação compulsiva (Zwangshandlung), pensamento, representação ou ideia obsessivo(a) ou compulsivo(a) (Zwangsdenken, Zwangsvorstellung, Zwangsidee). Para o comentador, é necessário supor nele "uma conotação de inelutabilidade, de alguma coisa que não se pode evitar e que não depende de si" (Assoun, 1994, p. 337). Algo que vem com violência, como uma exigência da qual não é possível se subtrair e que carrega as ideias de obrigação e de imperativo, de modo que aquilo que se realiza "sob Zwang" remeta a limitação e inibição, continua o autor, o que é congruente com o fato deste substantivo ser "o substantivo cognato do verbo zwingen - 'coagir, obrigar'" (Souza, 2010, p. 248). Ainda com Assoun, a noção de Zwang flerta com a de uma forte pressão (Drang) e, por conseguinte, com a própria ideia de pulsão (Trieb). Este parentesco entre Zwang, Drang e Trieb também pode ser encontrado em Hanns (1996), que chama a atenção para outra expressão em que Zwang entra em cena - a "compulsão à repetição" (Wiederholungszwang) e para o modo como ela é empregada em Além do princípio de prazer, com o propósito de "destacar o caráter avassalador e irresistível da determinação biológica à qual sucumbe o sujeito, condenado a realizar a 'pulsão' para além de sua vontade" (p. 108). É como se, com o uso de Zwang, fosse possível enfatizar o quanto a pulsão se impõe ao indivíduo e o coage a satisfazê-la.

Tendo isso em vista, em Moisés e a religião monoteísta, Freud considera que tanto os sintomas, quanto as limitações do Eu decorrentes do processo defensivo, têm um "caráter compulsivo" (Zwangscharakter), e oferece aos seus leitores a seguinte definição acerca do último: "por causa de uma grande intensidade psíquica, mostram uma ampla independência a respeito da organização de outros processos anímicos, que são adaptados aos requisitos do mundo exterior real e obedientes às leis do pensar lógico" (1939/1991, p. 73; 1961, p. 181). Além disso, continua nosso autor logo em seguida, fenômenos compulsivos são "um Estado dentro do Estado, um partido inacessível, inviável para o trabalho conjunto, mas que pode chegar a vencer ao outro, chamado normal, e constrangê-lo (zwingen) a seu serviço". Des s e modo, as alterações do Eu produzidas pela defesa, enquanto fenômenos de caráter compulsivo, podem consistir em obstáculos posteriormente, no sentido de significarem conflitos entre o mundo externo e o Eu, levando em conta que o último se aferra à organização que conquista na luta defensiva e não quer abrir mão dela - incorporando até mesmo o sintoma, como já vimos. Da mesma forma em que essas limitações do Eu podem ser incluídas na categoria do que é compulsivo, podemos compreender a escolha de Freud pelo termo compulsão para acompanhar a síntese empreendida pelo Eu como um indício de que este é forçado a reunir os conteúdos psíquicos em sua totalidade; buscar a síntese, deste ponto de vista, escapa às exigências do mundo real e do pensamento lógico e carrega a conotação de uma imposição, como acontece com aqueles outros processos psíquicos de natureza compulsiva.

Levando em conta as características da compulsão, a relação entre a compulsão e a pulsão mencionadas e a referência à compulsão à síntese do Eu, é chegado o momento de abordar uma questão de extrema relevância para nossa discussão, a saber, que tipo de relação se estabelece entre a função sintética, própria da natureza do Eu, e as pulsões na vida anímica. Se na citação recuperada algumas páginas acima da Conferência 31 Freud indicava ter expectativas de poder reconduzir às fontes pulsionais este "caráter essencial do Eu" - ponto que havíamos deixado de lado propositalmente -, na passagem recentemente reproduzida de Inibição, sintoma e angústia sobre a compulsão à síntese, assume-se abertamente que o Eu opera com energia dessexualizada, e que isso se relaciona à sua aspiração à unificação e à ligação. Mas o que significa tal dessexualização? Para responder a essa questão, é pertinente retornar à obra O Eu e o Isso, em que o tema foi desenvolvido por Freud com mais detalhes.

Ora, sabemos que a esta altura, Freud pressupunha o conflito pulsional entre Eros e pulsões de morte. O primeiro grupo busca produzir a reunião da substância viva em unidades cada vez maiores, para produzir uma ligação e assim conservá-la, ao passo que o segundo ambiciona o contrário, a saber, retornar ao estado inorgânico, dissolver nexos e coerências, promover o desligamento e a destruição. A energia com a qual operam as pulsões de vida é a libido e nessa categoria ampla estão incluídas as pulsões sexuais propriamente ditas, as pulsões sexuais sublimadas e de meta inibida e as pulsões de autoconservação (Freud, 1923b/1992, p. 41; 1967, p. 269). Como a sublimação implica na renúncia a alvos propriamente sexuais, por meio do desvio para novas metas, há uma aproximação entre dessexualizar e sublimar e, à primeira vista, ambos os processos se situam no âmbito das pulsões de vida. Da mesma forma, parece se estabelecer uma afinidade - para não dizer uma sobreposição - entre o Eu, com sua função de síntese, e o propósito de Eros de união e ligação. Nesse sentido, seria possível inferir que a atividade sintética do Eu, tão específica a sua natureza, seria a expressão de sua fonte nas pulsões de vida. Entretanto, isso significaria desdenhar outro aspecto da dessexualização em curso no Eu que só poderia levar a conclusões precipitadas quando ignorado, afinal, já sabemos que a própria função sintética está sujeita a falhas, que contribuem decisivamente para as manifestações patológicas, o que sugere que a equivalência entre Eu, tendência à ligação e pulsões de vida não deva ser tão simples assim.

Assim, para compreender melhor a dessexualização é preciso retomar o papel da identificação para a formação do Eu, que até então havia sido circunscrito sobretudo à melancolia, mas é significativamente expandido por Freud em 1923 - todo Eu é, essencialmente, formado por identificações; seu caráter é produzido por elas. O autor considera que os investimentos de objeto partem do Isso e que o Eu, ainda fraco no início da vida, consegue fazer com que o Isso renuncie a certos objetos através da identificação, por meio da construção do objeto em seu interior - o que, a propósito, envolve a fundamental superação do Complexo de Édipo. Deste modo, a escolha erótica de objeto se transforma em uma alteração do Eu, necessária para que o último possa se impor ao Isso como objeto de amor e dominá-lo, em alguma medida. Nesse sentido, há uma mudança de libido de objeto em libido narcisista, que traz com ela uma desistência das metas sexuais, uma dessexualização, entendida por Freud como um tipo de sublimação, conforme já procuramos apontar. A partir dessa sublimação, o Eu poderia conquistar a renúncia a determinados objetos, elaborar sua perda e fornecer novas metas e novos objetos para a libido, por meio de sua conversão em libido narcisista (Freud, 1923b/1992, p. 32; 1967, p. 258). É para essa capacidade do Eu que Kupermann (2010) chama a atenção neste comentário: "a sublimação aponta, de um lado, para a possibilidade do trabalho de luto e, de outro, para o movimento metonímico do desejo, constituindo tanto uma 'modificação da finalidade' quanto uma 'mudança de objeto' da pulsão" (p. 202).

No entanto, essa mesma atitude do Eu contém outra faceta, não menos importante. Se até agora a essência do Eu parecia se confundir com o próprio objetivo de Eros, já que as pulsões de vida, cuja energia é a libido, buscam a ligação, a produção de unidades cada vez maiores e sua conservação, assim como o Eu tende à síntese - até mesmo quando se trata dos sintomas, derivados do reprimido, que ele incorpora em sua unidade -, a ideia da dessexualização ou sublimação mediadas por essa instância revela que o Eu pode também servir ao desligamento, à dissolução de nexos e coerências - à pulsão de morte. Resignar à meta sexual significa também produzir uma desfusão das pulsões de vida e de morte, que comumente atuam em fusão, resultando em um enfraquecimento do componente erótico que liga a potência de destruição, de modo que a última fique livre para atuar no psiquismo. Freud sugere que essa agressividade livre se destina para o Supereu, que se torna cada vez mais cruel e dominador com o Eu. Vale acompanhar as palavras de Freud a respeito dessa outra faceta do Eu, que até então parecia ter afinidade apenas com Eros e suas aspirações à síntese:

Ao apoderar-se assim da libido dos investimentos de objeto, ao atribuir a si a condição de único objeto de amor, dessexualizando ou sublimando a libido do Isso, trabalha contra os propósitos de Eros, se põe a serviço das moções pulsionais inimigas (Freud, 1923b/1992, p. 46; 1967, p p. 274-75).

Quer dizer que o Eu é aquele cuja essência é a tendência à síntese e, nesse sentido, um representante de Eros, ao mesmo tempo em que presta auxílio às pulsões de morte através do trabalho de identificação e de sublimação, enfraquecendo a mescla entre os dois grupos de pulsões e liberando a destruição para o Supereu. Como esta instância se volta contra o próprio Eu, Freud sugere a comparação do último com os protistas, que padecem diante de produtos catabólicos que eles mesmos criaram. Dessexualizar ou sublimar, ações equivalentes mediadas pelo Eu, podem implicar tanto na produção de novas metas e objetos, no reforço das pulsões de vida e, consequentemente, da atividade de ligação e de síntese, quanto na desfusão pulsional, no incremento das pulsões de morte e, por conseguinte, no incentivo ao desligamento e no enfraquecimento da função sintética.

Freud coloca -nos, então, diante desse paradoxo do Eu que, por sua vez, se estende à concepção da libido narcisista e do narcisismo propriamente dito, conforme é possível perceber quando confrontamos algumas constatações do psicanalista. Ao retornar para Além do princípio de prazer, por exemplo, podemos observar o momento em que o psicanalista chega a um impasse - como seria possível derivar de Eros, conservador da vida, a pulsão sexual sádica, que quer danificar o objeto sexual? A suspeita dele é a de que esse sadismo deve ser uma pulsão de morte empurrada para fora do Eu e exteriorizada no objeto, pelo esforço empreendido pela libido narcisista, que só depois entra a serviço da função sexual (Freud, 1920/1992, p. 52; 1967, p. 58). Neste caso, podemos inferir que Freud salienta o narcisismo em sua relação com as pulsões de vida, com a conservação do Eu e de sua integridade, iluminada por esse desvio da pulsão de morte em direção ao objeto, por essa saída diante do masoquismo primário. Algo semelhante se repete em uma passagem de O Eu e o Isso, este ponto de vista a partir do qual libido narcisista e pulsão de morte parecem ser excludentes, na ocasião em que Freud diz que a angústia de morte só pode se instaurar no Eu se ele abre mão de boa parte de seu investimento libidinal narcisista e consegue, assim, renunciar a si mesmo como objeto, tal como faz com objetos externos que lhe oferecem perigo. Ambos os casos se contrapõe àquela visão da libido narcisista, também presente em O Eu e o Isso, como aquela que resulta na desfusão das pulsões, com o enfraquecimento dos componentes eróticos e liberação de tendências agressivas, em auxílio à pulsão de morte. Deste ângulo, narcisismo e morte se aproximam e a sublimação pode ser encarada como aquilo que promove a presença da pulsão de morte desligada no interior do Eu, ao invés de impulsionar o investimento em novos objetos, transformando-se em narcisismo de morte, como também afirma Kupermann (2010, p. 202).

Isso posto, vale retomar um aspecto da análise feita por Safatle (2007) a respeito da segunda teoria pulsional freudiana, na qual o autor, na esteira de Jean Laplanche, comenta a metamorfose ocasionada pelo fato de Freud passar a vincular a libido, a energia da sexualidade, à potência unificadora de Eros: "A definição de libido como Eros unificador [...] parece implicar em um abandono da noção de libido pensada a partir de uma energia livre própria a essa sexualidade fragmentada e polimórfica tematizada anteriormente por Freud" (p. 159). O impulso para isso, ainda segundo a leitura de Laplanche interpretada por Safatle, estaria na centralidade que o narcisismo adquire na teoria freudiana, "com seus mecanismos de projeção e introjeção que unificam os destinos da pulsão à repetição da imagem do Eu" (p. 159). É pertinente acompanhar algumas passagens de Vida e morte em psicanálise, em que Laplanche (1970/1985) exterioriza esse ponto de vista, sem entrar nas peculiaridades de sua leitura da última teoria das pulsões freudiana. Lá o autor afirma que "com o desenvolvimento da teoria do ego e de seu investimento libidinal narcísico, a 'vida' se fez mais imperativa e mais invasora" (p. 126), porque o Eu passa a exercer não só os poderes da autoconservação, mas também da sexualidade, do amor e das escolhas de objeto, sob a égide do narcisismo. Quando Eros vem à tona para Freud, "como aquilo que procura manter, preservar e mesmo aumentar a coesão e a tendência sintética tanto do ser vivo, quanto da vida psíquica", aquela dimensão que a sexualidade tinha nas origens da psicanálise, de ser hostil à ligação - as representações sexuais inconciliáveis ao Eu -, de se relacionar com o desligamento e de poder ser ligada apenas pela intervenção do Eu, acaba se perdendo. Laplanche (1970/1985) diz: "o que surge com Eros é a forma ligada eligadora da sexualidade, posta em evidência pela descoberta do narcisismo" (p. 126, grifos do autor), o que converge com o que observamos a respeito das relações da unidade vinculada ao narcisismo, em comparação com a pluralidade das pulsões autoeróticas. Se voltarmos a Safatle (2007), vemos a importância disso para o conceito de pulsão de morte, visto que era necessário encontrar um novo destino para aquela força de desligamento que antes caracterizava a própria sexualidade, enquanto energia livre cuja única preocupação era alcançar a satisfação: "Ou seja, a polaridade vida/morte na teoria pulsional f reudiana recobre, na verdade, a distinção entre energia ligada em representações através da capacidade sintética do Eu/ energia livre inauguradora da dinâmica psíquica" (p. 160).

Esse último trecho citado demonstra que, desse ponto de vista, a energia livre, consequentemente o desligamento e a disjunção, ficariam apartados do Eu, conforme sua aspiração sintética, concordante com Eros. No entanto, isso parece dar conta apenas de um dos aspectos da libido narcisista levantados aqui, a saber, aquele em que ela afasta a pulsão de morte do seio do Eu e a direciona aos objetos, em que ela sublima investimentos de objeto do Isso para atribuir-lhes novas metas, investi-los novamente em outros objetos, atuando como representante de Eros. A partir disso, levanta-se o seguinte problema: se tudo que é desligamento é estranho ao Eu, como explicar aquele fator da dessexualização ou sublimação que revela a dimensão mortífera da libido narcisista, os serviços que ela presta à morte? Parece que a oposição vida e morte é inerente ao narcisismo e ao Eu. Não é nossa intenção abordar aqui teóricos pós-freudianos que se atentaram para a faceta mortífera do narcisismo, mas ressaltar que o próprio Freud concedeu aos leitores indícios suficientes de que o mesmo Eu cuja essência é a inclinação à síntese e à conciliação, que tem afinidades com Eros e que configura, ele mesmo, uma totalidade, conforme revela o narcisismo, também atua a favor das pulsões inimigas ao fomentar a desfusão das pulsões, ao consentir com o desligamento e ao liberar a morte nele mesmo.

 

Considerações finais

O trajeto percorrido revelou, por um lado, o quanto o Eu, para Freud, carrega a marca da unidade e do esforço em direção à síntese dos conteúdos psíquicos em seu conjunto; por outro lado, tornou explícitos os impasses à realização plena desta tarefa. A condição do Eu de servir tanto às pulsões de vida, quanto às pulsões de morte, já que trabalha por meio da dessexualização da libido, torna impossível o alcance da síntese, por mais que essa instância psíquica aspire a conquistá-la. Isso nos reconduz à questão colocada no início deste trabalho: aquela da ambiguidade do Eu na teoria freudiana, que procuramos explorar ao longo dessas páginas, seus impactos para a teoria do Eu em psicanálise e, por conseguinte, para as diretrizes do tratamento psicanalítico.

Consideramos mais fecundo concluir este ensaio com a indicação de algumas consequências dessa posição do Eu que parecem importantes para o tratamento psicanalítico, em vez de tentar retomar o que já foi dito ou arriscar um resumo. Vimos que a irrupção da patologia, para Freud, tem relações diretas com a falha da função sintética do Eu, com o comprometimento de sua unidade e com o seu fracasso na tarefa de reconciliar exigências muito distintas em sua integridade. É bem conhecida, também, a aposta freudiana de que uma das principais metas do tratamento consiste em fortalecer o Eu do doente, mais precisamente em promover sua unificação e preservar sua organização, sua integração, como Freud descreve no artigo Psicanálise (1923a/1992, p. 246; 1967, p. 226). Contudo, pelo breve percurso traçado aqui, percebe-se que há uma impossibilidade intrínseca ao Eu de exercer plenamente sua função sintética. Ele acaba por servir à ligação, mas também ao desligamento, por sua própria condição de ser constituído por identificações e de operar com a libido narcisista, que serve, ao mesmo tempo, à vida e à morte, problema que afeta os destinos da clínica e cuja dimensão é vislumbrada pelo próprio Freud em alguns momentos de sua obra.

É o caso de Análise terminável e interminável, onde ele afirma que a situação analítica depende de uma cooperação, de um pacto, entre o Eu daquele que está em sofrimento e a pessoa do analista - o Eu é um aliado nesse processo, na medida em que o objetivo é tentar submeter setores que estão fora do domínio do Eu à sua síntese. Freud diz, então, que essa aliança depende que o Eu seja normal, não psicótico, não alterado, afirmação imediatamente seguida pela constatação do autor de que o Eu normal e a normalidade em geral não passam de uma "ficção ideal". Ou seja, é um ideal esse de "um Eu normal fictício que asseguraria ao trabalho psicanalítico uma aliança de fidelidade incomovível" (Freud, 1937/1991, p. 241; 1961, p. 80). Todo Eu é alterado, em alguma medida, pelos processos de defesa e se encontra constrangido por limitações; todo Eu está mais ou menos próximo do Eu psicótico, aquele que já não leva em conta a realidade exterior e apresenta um elevado grau de desorganização. Nesse sentido, a tarefa de conciliação e unificação que é imposta ao Eu, se não falha totalmente, como no caso em que se sucumbe à loucura, falha parcialmente, levando à neurose ou aos traços neuróticos que podem ser encontrados em todos os indivíduos, de modo que o próprio pensamento freudiano já sinaliza os entraves do cumprimento daquele objetivo definido para o trabalho psicanalítico, de fortalecer e unificar o Eu.

A própria condição para a saúde psíquica, o pleno desempenho da função sintética do Eu, torna-se um horizonte a ser perseguido e nunca plenamente alcançado, pelas contradições inerentes a essa instância tão complexa na teoria freudiana. Se, em última instância, o Eu atua a favor da vida e da morte, da ligação e do desligamento, como presumir que ele pode se fortalecer no trabalho analítico ao ponto de exercer plenamente sua função de síntese e de conciliação? Ao mesmo tempo em que Freud posiciona o Eu enquanto ponto de sustentação para a clínica, já que ele carrega a marca da atividade sintética, as limitações desta, bem como dos possíveis fortalecimento e unificação daquele, não podem ser ignoradas pela psicanálise. Portanto, uma clínica que se pretende psicanalítica, a despeito das diferentes linhas teóricas pós-freudianas, ao diluir tal ambiguidade do Eu e apostar apenas em suas potências, também se esquece das armadilhas que ele mesmo coloca e, assim, corre o risco de cair em um engodo a respeito do qual o próprio Freud já teria nos advertido.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 18/11/2020
Aprovado para publicação em: 08/03/2021

Endereço para correspondência
Munique Gaio Filla
E-mail: muniquegf@gmail.com

 

 

*Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos. Possui mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da mesma universidade, na linha de pesquisa da Filosofia da Psicanálise, com ênfase na teoria freudiana. Atualmente, é doutoranda pelo mesmo programa e bolsista FAPESP.
1Este artigo é resultado parcial da pesquisa de Doutorado em andamento e só se tornou possível pelo apoio institucional e financeiro da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) (Processo 2018/09039-0).
2As referências aos textos de Freud no corpo do texto seguirão o seguinte modelo: data original de publicação, data de publicação da edição argentina (Amorrortu Editores), paginação desta edição; data de publicação da edição original alemã (S. Fischer Verlag), paginação desta edição.
3Embora sejam tratados com a mesma conotação neste trecho, os termos afeto e soma de excitação não parecem ser equivalentes no vocabulário psicanalítico de Freud. Nos dois últimos parágrafos do artigo em questão, o autor esclarece que está assumindo a concepção de que há alguma coisa - "montante de afeto (Affektbetrag), soma de excitação (Erregungssumme)" - que se espalha pelos traços mnêmicos e tem as propriedades de uma quantidade, "suscetível de aumento, diminuição, deslocamento e escoamento", análoga à carga elétrica dos corpos pressuposta pela física (Freud, 1894/1991, p. 61; 1952, p. 74). Andre Green alerta para o uso de Affektbetrag como um recurso de Freud para destacar o aspecto propriamente econômico de Affekt que, por sua vez, também remete a uma qualidade subjetiva, em um sentido próximo de Empfindung ou Gefühl no alemão. A Erregungssumme, por sua vez, remete unicamente a uma quantidade de energia, ainda de acordo com Green (1973/1982): "Portanto, se todo afeto remete ao aspecto quantitativo [...], nem toda quantidade de energia está forçosamente relacionada com um afeto" (p. 19).
4É necessário adicionar certas ressalvas à posição na teoria freudiana de termos como "realidade", "realidade objetiva" ou correlatos, por exemplo "mundo externo". Freud não parece conceber uma realidade externa independente daquele que a percebe, em que os objetos têm uma existência em si, já que as relações do indivíduo com o mundo são mediadas, desde o início, pelo princípio de prazer, e o que se reconhece como Eu e como não Eu - o objeto externo - depende das qualidades de prazer e desprazer. Para mais detalhes sobre essa interpretação da noção de realidade em Freud, ver Soria (2019, p p. 193-203), que insere o autor, no que diz respeito a este tema, na esteira das filosofias anti-dogmáticas.
5Um panorama mais minucioso do desenvolvimento do Eu na teoria freudiana pode ser encontrado no trabalho de Monzani (1989, p p. 240-249).
6Para um estudo detalhado da história do conceito de narcisismo nas obras de Freud, ver a dissertação de mestrado de Filla (2018), intitulada A constituição do conceito de narcisismo na teoria freudiana (1895-1914).
7Há quem aproxime as funções do Ich freudiano com o entendimento de Kant com base nesta função sintética - Brook (2003, p. 30) aposta nessa e em outras comparações entre os modelos de mente dos dois autores e indica que, embora as funções do entendimento sejam mais amplas que as do Eu em Freud, em ambos os casos a síntese representaria um papel central. O desenvolvimento do Eu na psicanálise freudiana e dos processos secundários a ele relacionados possibilitaria a ligação e a síntese de representações, que se encontram desligadas nos processos psíquicos primários. Para uma discussão a respeito de analogias desse tipo, ver o artigo de Filla (2019), intitulado Reflexões sobre o Eu na teoria freudiana: limites de aproximações entre Kante Freud. De todo modo, pode ser proveitoso ter essa imagem em vista para compreender tal "força unificadora do Eu", para usar uma expressão de Safatle (2007, p. 161).
8Nota-se que há um aspecto duplo da unificação, já que o Eu provém de um processo de unificação e, ao mesmo tempo, exerce a atividade de unificar conteúdos psíquicos por sua função sintética, que será delimitada na sequência. Vale acrescentar que Freud parece não explicar muito bem o que levaria o Eu a se constituir enquanto unidade - a não ser pelas observações ligadas ao autoerotismo e ao narcisismo, como vimos. Em uma nota de rodapé de Psicologia das massas e análise do Eu, ele tenta justificar esse fato colocando como pano de fundo uma espécie de tendência geral do psiquismo à unificação: "No processo de desenvolvimento da criança em adulto, sobrevém em geral uma integração cada vez mais ampla da personalidade, uma reunião das diversas moções pulsionais e aspirações de meta que cresceram nela independentemente umas das outras" (Freud, 1921/1992, p. 76; 1967, p. 84, grifos do autor). Concepção análoga é apresentada no Manuscrito inédito de 1931, na ocasião em que Freud afirma que tendências em contradição na vida psíquica precisam se unificar e se conciliar: "Alcançar uma conciliação (Versöhnung) assim é uma demanda feita a todas as pessoas que vivem neste mundo. Aquele que falha completamente nessa tarefa sucumbe à psicose e à loucura" (1931/2019, p. 67).
9É importante destacar que, para Freud, não há uma diferença de natureza entre o saudável e aquele que adoece psiquicamente. A patologia depende, sobretudo, de relações quantitativas, das proporções das forças envolvidas no conflito psíquico. De modo convergente, a condição do conflito psíquico está posta para todos os indivíduos, de forma que o aparelho psíquico não se divide apenas em situações patológicas. Como vimos, o Eu se origina a partir do Isso, pela influência do mundo exterior, que faz com que haja uma diferenciação, responsável pela própria origem do aparelho anímico. Nesse sentido, não se pretende, de modo algum, indicar que a falha da função sintética do Eu seja responsável pelo conflito psíquico, mas sim que esta falha seja considerada como uma das condições essenciais para os desequilíbrios quantitativos entre as forças que caracteriza o adoecimento psíquico, pois o fracasso do Eu em sua tarefa de unificação implica um grave prejuízo na capacidade de mediação do conflito, pela qual a instância psíquica do Eu é responsável. Conforme veremos no final deste artigo, como as perturbações na síntese do Eu parecem estar sempre presentes, em maior ou menor grau, devido à posição que essa instância ocupa na vida psíquica, é possível observar consequências mais ou menos patológicas disso; dito de outro modo, sofrimentos mais ou menos prejudiciais ao indivíduo.
10Como aponta Souza (2010), Zwang é traduzido tanto por "obsessão", quanto por "compulsão" em português. Tais termos nem sempre são intercambiáveis e o recurso a cada um deles varia de acordo com o contexto, uma vez que "as palavras de duas línguas não cobrem a mesma área semântica, dificilmente 'equivalem' em toda a extensão" (p. 250). De todo modo, "tanto em 'obsessivo' como em 'compulsivo' se acha o elemento de coação indispensável num equivalente estrangeiro a Zwang" (p. 248). Na expressão Zwang zur Synthese, o termo que nos interessa foi traduzido por "compulsión" na edição argentina e por "compulsão" na edição da Companhia das Letras (1926c/2014, p. 21).
11Esse termo é empregado por Freud em Inibição, sintoma e angústia, na investigação sobre o processo de formação de sintoma na neurose obsessiva: "Nesta operação se evidencia a inclinação (Neigung) à síntese, que já reconhecemos no Eu" (1926b/1992, p. 107; 1948, p. 142).

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