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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

Desrostificação e nomadopolítica em bla bla bla (1968), de Andrea Tonacci

 

Defacement and nomadopolitics in bla bla bla (1968), by Andrea Tonacci

 

Desfiguración y nomadopolítica en bla bla bla (1968), de Andrea Tonacci

 

 

Amanda Souza Ávila LoboI, II*; Milene de Cássia Silveira GusmãoI, II**

IUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB - Brasil
IIUniversidade de Brasília - UnB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto é fruto de parte da pesquisa de doutorado em que buscamos defender, nas três primeiras produções do cineasta Andrea Tonacci, um nomadismo do pensamento, haja vista que, com suas imagens fílmicas, ele realiza um esforço de criação que foge ou faz fugir os mecanismos de poder e controle, optando pelo que vai além da opinião, dos clichês e da conservação, buscando doar um caráter revolucionário e minoritário à sua arte, possibilitando maquinar e construir junto a sua imagem novos sentidos, por meio da promoção do encontro capaz de fazer explodir as forças intensivas e ativas uma vez presentes nelas. Aportamo-nos no média-metragem Bla Bla Bla (1968), de forma a buscar perceber como, nesta película, Tonacci realiza movimentos inventivos de desrostificação, capazes de denunciar o esgotamento de um rosto político e abrir a sua imagem a novas possibilidades, realizando, com isso, uma nomadopolítica, atitude típica de um cinema-menor.

Palavras-chave: Andrea Tonacci, Bla Bla Bla, desrostificação, nomadopolítica, cinema-menor.


ABSTRACT

This text is the result of part of the doctoral research in which we seek to defend, in the first three productions of filmmaker Andrea Tonacci, a nomadism of thought, because with his filmic images, he makes an effort of creation that escapes the mechanisms of power and control, opting for what goes beyond opinion, clichés and conservation. Thus, he gives a revolutionary and minority character to his art, making it possible to machine and build new meanings together with his image. Based on his film Bla Bla Bla (1968), we will seek to understand how Tonacci carries out inventive movements of defacement, capable of denouncing the exhaustion of a political face and opening his image to new possibilities, thus realizing a nomadopolitics, a typical attitude of a minor cinema.

Keywords: Andrea Tonacci, Bla Bla Bla, defacement, nomadopolitics, minor cinema.


RESUMEN

Este texto es el resultado de parte de la investigación doctoral en que buscamos defender, en las tres primeras producciones del cineasta Andrea Tonacci, un nomadismo de pensamiento, ya que con sus imágenes fílmicas realiza un esfuerzo de creación que huye o hace huir de los mecanismos de poder y control, optando por lo que va más allá de la opinión, de los clichés y de la conservación, buscando dar un carácter revolucionario y minoritario a su arte, posibilitando la construcción de nuevos significados junto a su imagen. A partir de su mediometraje Bla Bla Bla (1968), buscaremos comprender cómo, en este filme, Tonacci realiza movimientos inventivos de desfiguración, capaces de denunciar el agotamiento de un rostro político y abrir su imagen a nuevas posibilidades, realizando así, una nomadopolítica, actitud típica de un cine menor.

Palabras clave: Andrea Tonacci, Bla Bla Bla, desfiguración, nomadopolítica, cine-menor.


 

 

Tonacci é um cineasta ítalo-brasileiro, considerado pela fortuna crítica como pertencente ao período do cinema marginal, tido para nós como um pensador nômade e da contracultura, por escorregar sobre as codificações institucionais, legais, contratuais, realizando seus primeiros filmes de modo autoral, usando de baixo orçamento, chegando a dizer, em entrevista realizada em 2005, à Revista Contracampo:

[...] não faço um filme para passar no cinema e dar dinheiro. No fundo, me interessa que esse filme interfira em alguma coisa, provoque alguma coisa, senão uma reflexão, um momento de dúvida, um momento de questionamento seja ele qual for. O que quer dizer isso? Basta esse espacinho na cabeça de alguém, que não seja uma certeza que algo, então, torna a viver. Quando você tem a certeza, pára, a coisa morre. A palavra não é morre, é pára, estaciona (Tonacci, 2005, s/p).

Vemos, portanto, com essa fala, que provocar o pensamento, colocando-o em movimento contínuo de invenção, é um dos critérios eleitos para sua criação. E isso é alcançável por uma série de procedimentos que faz com que a sua imagem saia do mecanismo da representação e da recognição, se aproximando da expressão de uma nomadopolítica1. Isso porque Tonacci cria sem submeter-se às exigências ou colocar-se a serviço do Estado e da moral sedentária, afirmando a força plástica da sua imagem, pois, como nômade, realiza um cinema-menor2, sabendo que:

[...] produzir imagens é muito mais inferir sentidos na realidade do que formatar produtos idealmente pré-vendáveis. [...]. Acredito que hoje já sabemos, consciente e fisicamente, que devemos entender o mundo mais como partes de um processo pensante em acelerada transformação, do que na defesa da rigidez de normas e valores fixos e partidários (Tonacci, s/d).

Para tanto, realizará o que chamaremos de movimentos nomádicos ou nomadologias da imagem, de forma a fazer uso de procedimentos audiovisuais que não se prendem às formalizações clássicas e habituais da imagem orgânica, tanto naturalista quanto realista, feitas com a convicção de que a função do cinema é imitar a realidade; as extravasando por meio da experimentação, fará a ruptura com os critérios constituintes do cinema narrativo e prosaico, que atua pelo uso das conjunções visuais e sonoras ou de suas oposições explicativas. Contrariamente, instituirá uma poética na imagem, capaz de torná-la aforismática3, com o uso dos paradoxos e das ambiguidades. Nesses termos, realizará um cinema capaz de subverter a lógica da representação estatal e mercadológica, apresentando a revolução - na forma e no conteúdo do enredo cinematográfico - por intermédio de um devir-revolucionário4 não comprometido com os modelos padronizados.

Desta feita, trazemos como proposta uma experimentação junto a Blá,Blá, Blá (1968), média metragem tonacciano, buscando perceber como neste filme ele segue a via do pensamento nomádico, apresentando um esforço de problematização da construção do rosto (close)5 no cinema e na sociedade, perpassando por suas relações de funcionalidade, que envolvem regimes estratificados de significância e subjetivação.

É preciso i frisar que Tonacci realiza um esforço em apresentar um esgotamento e/ou esvaziamento do discurso político, instituindo seu limite e sua crise de sentido, por meio do forte uso do primeiro plano. Para tanto, observaremos o trabalho realizado por este diretor entre os opsignos e sonsignos6, que implicam a exposição desse rosto no close, sua relação com os componentes internos e externos, seu enquadramento espacial, sua relação com o som, a luz e o tempo fílmico, buscando daí extrair um possível entendimento relacional entre os movimentos tonaccianos de invenção cinematográfica e suas implicações políticas. Faremos as análises baseando-nos nos estudos dedicados ao pensamento do cinema de Gilles Deleuze, presentes na obra A imagem-movimento (1983), e nos aportaremos também na obra Mil Platôs (1980), vol. 3, de Gilles Deleuze e Felix Guattari, quando estes discorrem sobre a rostidade.

 

A máquina de rostidade e o close

Consoante Deleuze e Guattari (1980/2012a), o rosto constitui-se por uma máquina abstrata, formada por um sistema de códigos que envolve dois eixos: significância e subjetivação. A significância está associada à linguagem, ou seja, àquilo que permite dizer que alguém seja algo, àquilo que a modela, enquanto a subjetivação compreende a construção subjetiva para a qual fluem as significações, fundamentando-as. Por sua vez, estes eixos pressupõem duas semióticas mistas, compostas por aquilo que eles compreendem como muro-branco e buraco-negro.

O muro-branco define-se enquanto superfície de inscrição e contorno que produz significância, delimitando a rede do regime de signos a que se está submetido. Muitas vezes, essa inscrição atrela-se a regimes de interpretação que codificam o rosto segundo o centro da significância e mutilam as possibilidades de novas conexões que eles podem fazer. Já o buraco-negro mostra-se enquanto micromovimentos intensivos de expressão do desejo, que tendem a produzir a subjetivação. Por vezes, essa subjetivação atravessada pela linguagem se torna absorvente, submetendo toda multiplicidade do corpo ao rosto enquanto principal veículo de interação, deixando de ser criadora. Quando isso ocorre, se diz que há uma sobrecodificação do corpo pelo rosto.

As combinações entre o muro-branco e o buraco-negro se dão de muitas maneiras, operando por ordem de razões. Portanto, um rosto é fruto do cruzamento muro-branco-buraco-negro, que constitui um dispositivo, "cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos" (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 36). Sobre esse aspecto, continuam os autores:

O rosto não é um invólucro exterior àquele que fala, que pensa ou que sente. A forma do significante na linguagem, suas próprias unidades continuariam indeterminadas se o eventual ouvinte não guiasse suas escolhas pelo rosto daquele que fala (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 36).

Logo, longe de ser algo idealizado, o rosto mostra-se como um produto político, estético, cultural e social compreendido no acordo tenso existente entre os dizíveis e os visíveis, em luta agônica com as relações de poder, transbordando e implicando as questões macro e micropolíticas. Assim, para Deleuze e Guattari, a máquina abstrata rostifica, delimita uma organicidade para uma multiplicidade e define um modelo central a partir do qual os demais rostos se relacionarão por hierarquias de proximidade e semelhança, excluindo os desviantes: "A máquina de rostidade [...] procede ao quadriculamento prévio que torna possível discernir elementos significantes e efetuar escolhas subjetivas. [...] não é um anexo do significante e do sujeito, ela lhes é, antes, conexa e condicionante" (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 53), criadora de traços individualizantes, produtora de funções e deveres, estabelecedora das distinções e relações sociais. Nesse processo, fica claro que a produção do rosto é padronizada por relações também panfletárias e, por vezes, ancorado em propagandas publicitárias, partidárias e comerciais que capturam os afetos, subjugando o corpo ao socius, compreendido pelos autores como o rosto social consensualmente aceito.

Há, no entanto, uma outra condição de apresentação e tensionamento dessa máquina de rostidade apresentada pelos autores, que se trata de um processo de desrostificação, ou seja, de destruição dos rostos representativos e "clicherizados". Esse processo é disparado pela máquina abstrata de mutação, que atua na ruptura do muro da significância e na fissura do buraco da subjetivação, elevando esse rosto a um estado de assignificância e dessubjetivação, quebrando com o organismo criado pela máquina de rostidade. É um processo que sinaliza um devir do rosto, sob a condição do seu desfazimento e destruição.

No cinema, esses processos de rostificação e desrostificação se dão por meio de um jogo entre o close e a profundidade de campo, bem como pelo vínculo associativo que o rosto estabelecerá com as demais imagens que lhe seguem, de modo a oferecer-lhe ou não as condições de individualização, com atos de comunicação e meios de socialização, operacionalizados na montagem, levando o espectador a se guiar ou a se atordoar por vozes e expressões gestuais. Deleuze, em mais uma intercessão com Bergson, trabalha acerca dessas imagens em primeiro plano na obra A imagem-movimento (1983/2018), situando-a como uma imagem-afecção, que possui dois polos e se encontra no intervalo entre a imagem-percepção e a imagem-ação, sendo considerada como uma "unidade refletora e refletida", capaz de doar uma leitura afetiva ao filme.

Por sua dupla face, então, o rosto constitui-se como reflexivo ou qualitativo, na medida em que se apresenta como uma unidade refletora imóvel, valendo, nesse caso, sobretudo por seu contorno e atuando como uma superfície de inscrição, um eixo de significância um muro-branco; e intensivo ou potente, quando se mostra como micromovimentos expressivos, escapando ao seu contorno e estando mais voltado à subjetivação, ao buraco-negro. É nesse último aspecto que o rosto traz, não os contornos que o envolvem apenas, mas os traços de rostidade que o liberam como expressão de puro afecto7. Daí resulta que as imagens-afecções podem ser apresentadas como close não só de um rosto, como também por partes de um corpo, bem como podem ser atreladas a um objeto, o que Deleuze vai chamar de processo de "rostização" do objeto8. Diz ele: "O conjunto da unidade refletora (superfície de inscrição - ótica) e refletida ou refletiva (movimentos expressivos) constitui o afeto, de modo que [também] [...] há afetos de coisas" (Deleuze, 1983/2018, pp. 142, 155). E ainda:

Mesmo um objeto de uso será rostificado: sobre uma casa, um utensílio ou objeto, [...] dir-se-á que eles me olham, não porque se assemelham a um rosto, mas porque estão presos o processo muro branco-buraco negro, porque se conectam à máquina abstrata de rostificação. O close no cinema refere-se tanto a uma faca, a uma xícara, a um relógio, a uma chaleira quanto a um rosto ou a um elemento de rosto. [...]. A máquina abstrata não se efetua então apenas nos rostos que produz, mas, em diversos graus, nas partes do corpo, nas roupas, nos objetos que ela rostifica segundo uma ordem de razões (não uma organização de semelhança). (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, pp. 46-47, grifo dos autores).

A razão da rostidade no cinema clássico das imagens-movimento está em revelar emoções e possibilitar a identificação e a projeção do espectador por meio da verossimilhança e do reconhecimento, promovendo a integração da narrativa fílmica. Sua funcionalidade, geralmente, relaciona-se a questões como: Em que este rosto se encontra pensando? O que ele informa? O que ele experimenta? Para onde conduz? Na medida em que pensa, o rosto vale por seu contorno, já que, paralisado, capta e exprime o afeto. Por outro lado, se ele experimenta, passa a valer por sua série intensiva, ou seja, sua capacidade de atravessar o contorno e exprimir outras qualidades, conquistando uma "independência momentânea" (Deleuze, 1983/2018, p. 143).

Assim, quando prioriza o polo extensivo, o cinema traz o contorno rostificante como uma placa imóvel de fixação e expressão de uma qualidade sensível generalizante, como um retrato que comporta sentimentos comuns a várias pessoas ou coisas, que atua desenhando a ação possível. O uso do close com essas definições Deleuze exemplifica a partir do filme Orfãs da Tempestade (1922), de Griffith, no qual os rostos das jovens mulheres engrenados nas associações do que vem antes e depois justificam os sentimentos expressos, tornando o afeto reconhecido e comum. Por outro lado, para exemplificar um cinema que faz uso do rosto intensivo e que foge aos seus contornos, apontando para outros afetos e qualidades, Deleuze traz o filme A linha geral (1929), de Eisenstein, no qual o rosto do papa passa da expressão de santidade à expressão de explorador dos camponeses.

Como exemplo de um objeto rostizado, Deleuze traz o brilho da faca no filme Caixa de Pandora (1929), de Pabst, analisando, ainda, como este cineasta realiza com maestria a passagem de um polo a outro da rostidade. De todo modo, enquanto qualidade ou potência expressa por um rosto, a imagem afecção se constitui por significados socialmente partilhados, com coordenadas espaço-temporais bem demarcadas, que permitem a compreensão e a previsibilidade das ações por meio do reconhecimento e da comunicação, em uma conformação aos arquivos audiovisuais já estratificados. Desse modo, tem-se assegurada a sua tripla função: ser individuante (representa um sujeito); socializante (manifesta um papel social) e comunicante (assegura acordos) (Deleuze, 1983/2018, p. 158). Significa dizer que, por meio de um jogo entre o close e os elementos internos e externos do plano, tais como a profundidade de campo, pelo uso do campo e contracampo, bem como pelo vínculo associativo que o rosto estabelecerá na montagem com as demais imagens que se lhe seguem, ele guia o espectador na construção de uma unidade de sentido desembocada na imagem-ação, em um perfeito acoplamento da superfície de inscrição e significação (muro branco - tela) e da subjetivação (buraco negro - câmera). Estas caracterizações ficam mais evidentes em filmes realistas e representativos. Todavia, noutras condições, essa tripla função é suprimida.

Em continuidade às suas análises, Deleuze associará o rosto ao afeto, mas também o afeto ao primeiro plano e diferenciará o seu uso em função dos seus dois polos, tanto no expressionismo e seu jogo intensivo de luz e trevas, quanto na abstração lírica em que a relação espacial "inscreve o close que reflete a luz" (Machado, 2013, p. 263), extraindo uma característica comum a esses dois movimentos: eles fazem um uso do close que abstrai o rosto das suas coordenadas espaço-temporais, desterritorializando-o, elevando-o a uma pura potência, capaz de emergir o afecto puro, singular e impessoal, ou seja, não mais atrelado a determinada situação, nem vinculado a uma generalidade representativa de sentimentos comuns a outras coisas ou pessoas, nem definido por papéis sociais ou históricos, mas enquanto expressão de uma potência, do afecto em si. A partir dessa possibilidade, o afeto constitui seu próprio espaço-tempo, denominado espaço qualquer. Neste ínterim, não só o rosto, mas o próprio espaço, escapa às suas coordenadas. Sobre o espaço-qualquer, afirma Deleuze:

Um espaço qualquer não é um universal abstrato, em qualquer tempo, em qualquer lugar. É um espaço perfeitamente singular que apenas perdeu sua homogeneidade, isto é, o princípio de suas relações métricas ou a conexão de suas próprias partes, de modo tal que as ligações podem se dar de uma infinidade de modos. É um espaço de conjunção virtual, apreendido como puro lugar do possível (Deleuze, 1983/2018, p. 173).

Por meio de uma montagem fragmentária, do uso de closes cortantes, falsos raccords, desenquadramento, suspensão das perspectivas, jogo de luz e sombras (como no cinema de Murnau), nexos entre a luz e o branco (como em Sternberg, Dreyer e Bresson) e o uso do colorismo (como no caso de Minnelli, mas também na fórmula godardiana "não é sangue é vermelho") dar-se-á a constituição das qualidades puras, capazes de apresentar afectos que transpõem o humano, colocando-o em devir. Não mais o afeto atualizado em uma dada circunstância, mas o afecto como puro virtual, como força e potencialidade desencarnada que não se deixa atualizar e, no entanto, apresenta modos de existência que implicam relações de poder, dever, sensações de impotência, indiferença, de modo não representado. É a qualidade que "dá uma consistência própria ao possível, ela exprime o possível sem o atualizar, embora faça dele um modo completo" (Deleuze, 1983/2018, p. 156), em um esforço em apagar os rostos comprometidos com "a narração das ações e com a percepção dos lugares determinados" (Deleuze, 1983/2018, pp. 184-190).

Nesse caso, o afecto se vê enquanto signo que está no cerne da crise da imagem-ação e na imersão dos opsignos e sonsignos na imagem-tempo. É ele que rompe com as referências motoras no neorrealismo, que fratura os planos na nouvelle vague, que constitui os planos amorfos e espaços desérticos dos Straub, que se desdobra nos jogos de espelhos de Fassbinder e Daniel Schmid, e que está na gênese da ascensão de um cinema capaz de experimentar e levar a pensar sobre as circunstâncias nas quais a máquina de rostidade é desencadeada, conforme veremos em Tonacci, apontando para o caráter multidimensional do rosto que o coloca em conexão com o devir, de modo a afirmar que "introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um" (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 49). Portanto, passar da imagem-afecção para o afecto puro é abrir o rosto para o tempo, potencializando a experiência do pensar, o que pretendemos agora defender na imagem tonacciana de Bla Bla Bla, quando traz o esforço de esvaziamento da máquina de rostidade e conclamação da abertura do rosto ao devir.

 

A desrostificação em bla bla bla

Este filme baseia-se em uma composição nonsense, de recortes de discursos, que buscam tensionar as relações de poder que se inscrevem nas construções políticas, contrapondo os ideais de universalidade e unidade a uma fragmentação que quebra, inverte e embaralha os códigos de funcionamento audiovisual e social. Como o próprio Tonacci relata, são discursos que vão

[...] de santos a Hitlers, a Nietzsche, a Mao, a H. Miller, a Buda, a Franco, a Cristo, a Mussolini, a Getúlio, a JK e Jango e Castelo e a Andrea (Tonacci), costurando-se na reflexão e na trama do pensamento voltado ao poder da ambição e ego cegos que repetidamente na história vem justificando a violência e o extermínio de gente e ideias em nome da justiça, do direito, da paz, de Deus, da liberdade, da nova humanidade, num ritual espiral de cega invenção e progressiva desumanização, chegando hoje ao possível suicídio/genocídio coletivo (Tonacci, 2000, s/p).

A partir dessa fala do diretor de Blá, Blá, Blá, observamos o uso dos regimes de significância e sua rede para a expressão de todo um estado de desilusão com as condições sociais e políticas vigentes no país, que intensificaram o cerceamento das liberdades individuais com o recrudescimento da força policial de repressão, a partir do Ato Institucional nº 5 (AI/5), ações estas respaldadas em valores superiores e transcendentes, quais sejam "justiça, direito, paz, Deus, liberdade", pois que, justificadas em posicionamentos egóicos, elegiam pretendentes e execravam os desviantes das posturas exigidas. Ao extrair essas significações discursivas de materiais heterogêneos, tais como frases e trechos contidos em textos literários, políticos e opiniões próprias, Tonacci renuncia ao papel de detentor da verdade, para trabalhar com o agenciamento coletivo de enunciação, pois que se conecta com outros seres falantes para compor seu filme de um rosto múltiplo e plural.

Agencia, além das palavras e discursos, "material de arquivo "desapropriado" às televisões" (Tonacci, 2000, s/p), mas também os corta, os impossibilita de se desenvolverem, conforme veremos. Com isso, há o agenciamento como aquilo que lhe tira da sua interioridade, já que, conquanto integra experiências subjetivas próprias no filme, estas se misturam às demais experiências discursivas de personagens históricos, literários, em uma ficcionalização que torna todo o filme um grande paradoxo, capaz de codificar e descodificar os signos e a linguagem, colocando a vida e sua constituição artística em processo. Produz, assim, o deslocamento das imagens, conversas e entrevistas, reusa da memória, fazendo delas material plástico que produz efeitos no espectador. Constrói mundos e se multiplica através do que cria, em uma arte intempestiva, nômade, menor que se empenha em amputar o poder, o que resvala em um esforço de Tonacci em desfazer a tripla função da rostidade (individuante, socializante e comunicante), haja vista sua submissão e trabalho em favor de um modelo político esgotado, desrostificando o primeiro plano para produzir um rosto aberto ao novo e à criação. Para tanto, desenvolve uma imagem problematizadora que, atuando em uma espécie de zona indeterminada, se vê repleta de movimentos intensivos e inquietantes, mas também paradoxais e ambíguos. Realiza essa película distribuindo falas a personagens inominados, em uma montagem paralela e não sequencial, dividida em 4 tempos, conforme o próprio Tonacci (2006) informa, nos quais: no primeiro, um político (Paulo Gracindo) direciona-se ao povo por meio de uma emissora de TV; no segundo, há a apresentação de um diálogo de uma jovem resistente com um fotógrafo (Irma Alvarez e Neville D'Almeida (?)); no terceiro, há um ativista enérgico (Nelson Xavier) que reclama pela tomada violenta do poder, em uma conversa com a própria câmera que, funcionando como um sujeito oculto, o interpela em voz off. Frisamos, aqui, o rosto oculto da câmera que, embora não se deixe ver, diz; e, no último, traz imagens de arquivo contendo violência, repressão policial, chefes de Estado, aclamações populares e entrevistas insólitas a militares.

Entre todos eles, uma imagem rostificada se faz presente, a do close de um relógio digital. Nele notamos a superfície, ou seja, seu contorno aparente, bem como os micromovimentos de alteração das horas que apresentam e/ou tensionam a passagem do tempo e dos planos. Por se tratar de uma montagem paralela, não convergente e não dialética, podemos observar que não há disputa narrativa, não há busca por uma síntese, mas há o uso de semióticas heterogêneas para construir uma polifonia fílmica, na qual, ao que parece, há uma denúncia tonacciana de que, enquanto modelo político, os rostos expostos, sobretudo o do personagem de Paulo Gracindo, se esvaem, caem em um vazio por sua contradição, inoperância, impossibilidade ou vontade de poder. Já aqui vemos que Tonacci foge do que colocaria seu cinema como instrumento de poder do estado majoritário ou até mesmo de disputas binárias, para instituir, sem ser panfletário, o devir artístico minoritário. Critica a política do presente e mostra, de modo furtivo, o seu combate em busca de uma criação: a criação de um rosto aberto.

Atentar-nos-emos aos mecanismos de composição interna e externa das imagens, de modo a ficar mais claro o esforço tonacciano de destruição da máquina de rostidade com sua máquina nômade de mutação

 

A máquina de mutação na composição interna e externa

Nessa película, Tonacci, dando a ver seus cortes, favorece o interstício ótico e sonoro, bem como esvazia o discurso, não permitindo a devida operacionalização da máquina de rostidade na composição do rosto político. Esse esforço envidado em problematizar, denunciar o funcionamento e parar a máquina de rostidade, se faz, ainda, por meio de uma máquina nômade e de mutação. Essa máquina fará todo esforço para saída do buraco-negro e atravessamento do muro-branco, para desfazimento do rosto que no filme parece forçosamente se insinuar. É com ela que Tonacci reúne a condição crítica da rostidade à condição criadora da vida desrostificada. Alguns procedimentos presentes na composição interna e externa da imagem tonacciana explicitarão a ação dessa máquina de mutação.

Assim, a composição interna de que trataremos se configura como a relação do close consigo mesmo, ou seja, sua conexão de primeiro plano com seus elementos e dimensões, sejam de profundidade ou de superfície e, por composição externa, compreende-se a relação do close com outros planos ou imagens. Ambas são inseparáveis em uma obra fílmica. Veremos, mais pormenorizadamente, que a relação do close com a profundidade de campo, que o descarte do uso do campo e contracampo, bem como a relação do rosto com a luminosidade e o tempo, farão dessa expressão artística uma via de passagem, como denúncia do esgotamento e busca de um pouco de ar, ou seja, de uma saída de um rosto apartado da existência, preso à morte e busca de uma outra enunciação mais aberta.

Destarte, Tonacci quase não faz uso da profundidade de campo; suas imagens estão mais na superfície - e é essa a sua profundeza, que será capaz de assimilar planos médios ao primeiro plano em Bla Bla Bla. Essa falta de profundidade de campo indica, ainda, uma falta de ação, destacando a presença do rosto que sinaliza o páthos quanto ao acontecimento. Mas, entre o close e a composição interna ou a espacialidade que o acompanha, não há coadunância para formação de unidade narrativa e de sentido, o que dificulta até mesmo a construção psíquica de alguns dos seus personagens. Significa dizer que os discursos são exasperados e/ou esvaziados, não condizentes com a paisagem que os envolve, já que o espaço cênico parece "estrangular" o rosto ou engessá-lo na rostidade de modo a sufocá-lo, como é o caso do político, delimitado no quadro escuro da cabine de gravação, em batalha até consigo mesmo e seu buraco-negro; ou, ainda, colocá-lo em uma condição de fora de lugar, como no caso do viaduto ou do rio onde o ativista e a resistente se encontram, de modo a não permitir a construção de uma história regular, ancorando o rosto a partir das conexões com o contexto exprimido. Aqui, a máquina nômade tonacciana assegura aos rostos uma função apenas diagramática, ou seja, lhes atribui um valor de força que tensiona a máquina de rostidade desterritorializando-a, fazendo-a perder suas coordenadas espaciotemporais. Aliado a isso, com os cortes, ele não para de variar a natureza das intensidades, por vezes jogando o afeto no vazio, fazendo o rosto perder sua face funcional, como é o caso do rosto da resistente que sobrevém, inicialmente, até mesmo sem acompanhamento discursivo algum. Se, por vezes, o filme parece centralizar no rosto do político Gracindo, para que os outros vagueiem em sua órbita, isso logo se desfaz, pois que não há entre eles nada que assegure a continuidade de uma disputa ou debate possível. Com isso, neutraliza essa força ditatorial e não permite, por falta do diálogo, a transmissão dos elementos de poder nas condições codificadas do embate antagônico. Cada um dos rostos, portanto, se mostra enquanto potência de sensação, de estado, ou de ação, mas sem se confundirem com um estado de coisas já atualizado. São puras possibilidades que só remetem a si mesmas.

Assim, sobre esse aspecto do puro afecto, diz Deleuze: "Devemos distinguir entre as qualidades-potências em si mesmas, tal como exprimidas por um rosto, [...], dessas mesmas qualidades-potências, enquanto atualizadas num estado de coisas, num espaço tempo determinado" (Deleuze, 1983/2018, p. 168), haja vista que, se assim Tonacci procedesse, utilizando destas últimas, estaria adentrando no campo da imagem-ação, o que não acontece no filme, pois que acaba indefinido, tendo os rostos apenas como processo, ou seja, como caminho e acontecimento. Por outro lado, ao sair da rostidade para o puro afecto, o diretor faz do filme o próprio acontecimento afetivo, composto de primeiros planos, que tem por objeto a parte do acontecimento que não se deixa atualizar e que excede as causas, remetendo apenas a seus efeitos:

O afeto é como o exprimido do estado das coisas, mas esse exprimido não remete aos estados das coisas, só remete aos rostos que o exprimem e que, compondo-se ou se separando, lhe conferem uma matéria própria movente (Deleuze, 1983/2018, p. 169).

Na composição externa e associativa, essas imagens entram em curto-circuito, já que Tonacci reúne na película temporalidades e espacialidades diversas que se ora ressoam e redundam com os discursos, ora servem para fraquejá-los, parodiá-los e negá-los. Nestes casos, o espaço-qualquer e os closes cortantes são o que vige, quebrando com o espaço hodológico (caracterizado por forças em oposição que reclamam por uma resolução de suas tensões) e euclidiano (como espaço físico e da mise-en-scène que oferece os lugares e condições para concretização da ação), para forçar pensar num mundo desterritorializado, apartado desses rostos e discursos clicherizados. Aqui não há domínio da rostidade e da paisageidade, não há complementaridade, nem repercussão entre eles, um não está em função do outro. Podemos pensar que suas paisagens são menos extensivas e mais intensivas e, portanto, não ordenam lugares, mas abrem caminhos para além das relações internas e externas da imagem, ligados ao virtual e ao campo dos afectos.

Os personagens não se encontram em palanques, não realizam comícios; há elipses nas mensagens que fazem com que percam a referencialidade, em muitos momentos não nos damos conta de quem, quando ou para quem estão falando, não há receptores visíveis para essas mensagens desarmônicas, lembramos que o próprio filme finda inconcluso, com a saída da TV do ar. As mínimas correlações possíveis entre planos, sobretudo quando há reutilização das imagens de arquivo, são desfeitas tão logo se esboçam ao espectador que mais se mostra aturdido. Desse modo, como lugar do possível: "O que a instabilidade, a heterogeneidade, a ausência de ligação de um tal espaço manifestam, na verdade, é uma riqueza em potenciais ou singularidades, que são como que as condições prévias a qualquer atualização, a qualquer determinação" (Deleuze, 1983/2018, p. 173). Tonacci, assim, envolve o espectador em uma paisagem desconhecida que reclama por um rosto por vir, fazendo funcionar uma máquina mutante e de fuga, na qual as impressões visuais não são "unificadas por representações espaciais e temporais" (Deleuze, 1983/2018, p. 174), dando a ver não como a política é, mas como ela aparece engenhosamente criada para atender objetivos determinados e, nesse caso, apresenta a política como afeto e efeito ótico e sonoro, desenvolvida "em quatro tempos paralelos, situados em um país não-definido" (Tonacci, 2006a, s/p).

Por outro lado, como não estabelece relações espaciais, nem outro tipo de raccord associativo entre os quadros que estampam seus personagens e não usa do campo e contracampo, cria uma falsa dialética com sua montagem, tanto sonora quanto ótica, isolando o rosto ao tempo em que esvazia o discurso, retirando a instrumentalização da fala e, conforme já pontuamos, impossibilitando a socialização e a comunicação, portanto, dois dos três pontos apoiadores e funcionais da rostidade, apenas permitindo, em alguns casos, uma rápida individuação, mas tão somente para problematizar sua constituição. No mais, seus personagens possuem mais traços e esboços do que se definem por um estado de coisas, expressando mais potências do que sentimentos que levariam a uma ação. Desse modo, sem ressonância ou redundância possíveis, se a expressão do rosto não guia, tampouco o faz a palavra. Isso dificulta a transmissão da mensagem ao remetente, apontando, antes, para uma incomunicabilidade que não permite ação possível. Assim, ao tempo em que desrostifica, também desverbaliza a narrativa, de modo a escapar da ação, com uma sátira que, por vezes, disjunta os signos óticos e sonoros, de modo que as falas não colaboram para moldura otimizada do rosto no filme, causando estranheza e incompreensão ao espectador. Isso fica muito bem explicitado nas cenas de entrevistas realizadas com militares, via uso criativo e de sobreposição de sons diversos à imagem de arquivo, deixando claro que, enquanto tal, a linguagem não veicula uma mensagem, sem que se possa lastrear as relações entre significantes e sujeitos concernidos no contexto de produção da fala, pluralizando, com isso, os sentidos do seu filme, favorecidos pelo interstício.

Próximo ao que Deleuze e Guattari trazem da operação de desrostificação, Tonacci aqui rebate com fluxos de sons e imagens sobre as significâncias e subjetivações, desfazendo as passagens de um estrato a outro, ou de um plano a outro, de um ponto de vista a outro, de modo a mostrar que:

Não há mais estratos organizados concentricamente, não há mais buracos negros em torno dos quais as linhas se enrolam para margeá-los não há mais muros onde se agarram as dicotomias, as binaridades, os valores bipolares. Não há mais um rosto que faz redundância com uma paisagem, um quadro, uma pequena frase musical, e onde perpetuamente um faz pensar no outro, na superfície unificada do muro ou no redemoinho do buraco negro (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 67).

O que há em Blá Blá Blá é uma mostragem9 afetiva, realizada com "relações cortantes e fluentes, que vão transformar todos os planos em casos particulares de primeiros planos" (Deleuze, 1983/2018, p. 171), cada qual com seu espaço-tempo próprio, tanto desconectado, quanto esvaziado, ou ainda evasivo, em uma espécie de perspectiva audiovisual singular. Em muitos momentos, o uso da projeção escurecida do rosto do político Paulo Gracindo, associada à saturação sonora intensa, na qual a fala engasga, reforça esse processo de desrostificação, haja vista seu sombreamento não concluir função antecipadora ou de ameaça, apenas denotar desequilíbrio. Por outro lado, a abertura de campo e a clara luminosidade que acompanha o discurso resiliente e de sotaque estrangeiro da atriz Irma Alvarez quase que a desenquadra da narrativa ostensivamente raivosa e ordenatória do político encenado por Gracindo e do ativista inconformado, Xavier, reforçando a sensação de paralisia e impotência. Assim, também o jogo de luz usado por Tonacci, se estabelece alternância, não figura disputa, tão somente corrobora para esgotar a narrativa e desorganizar o olhar e a atenção do espectador, reafirmando intensidades divergentes, em que cada plano assume uma independência momentânea, tendendo para um limite e limiar que é sempre quebrado nessa mostragem afetiva e aberrante.

No que diz respeito à relação entre o close e o tempo, o filme traz um elemento rostizado, um relógio em primeiro plano, que atrasa e adianta diante das imagens e discursos, denotando uma passagem temporal que realiza uma apreensão de que algo pode acontecer, ou já teria acontecido; porém, nada efetivamente acontece. Desse modo, também não servindo de âncora à ação, apenas atua no reforço do embaralhamento dos códigos discursivos e imagéticos, fazendo da fala mais confusa, irritante e bizarra, na medida em que aparta suas premissas das conclusões e coloca o rosto mais desprogramado e artificializado. Sem função antecipadora ou projetiva, enquanto apresentação temporal, a relação entre o relógio e o rosto só sintetiza esgotamento, corroborando para tornar visível a impotência humana diante das contradições do cotidiano político despotencializado. Todavia, essa estratégia traz uma positividade que é de abertura da imagem a novas possibilidades criadoras contra esse fechamento, pois o relógio atua como um rosto, só que um rosto-limite, ou seja, enquanto um dispositivo desviante, que atravessa o muro da significância e o buraco da subjetividade, desfazendo suas passagens tranquilas, forçando o espectador a pensar nesse intervalo, causando-lhe incômodo: "abre-se um possível rizomático, operando uma potencialização do possível, contra o possível arborescente que marcava um fechamento, uma impotência" (Deleuze & Guattari, 1980/2012a, p. 67).

Nesse caso, o próprio objeto é portador de acontecimentos que não se confundem com suas funções e propriedades, mas as extravasam, alocando uma rostização desterritorializante, na qual o relógio também exprime potências, sem necessariamente articular ou se vincular a dado espaço, tempo ou pessoas. Ousamos dizer que talvez seja ele a expressão do afecto mais impessoal e singular, capaz de expressar a criação do novo pela obra de arte, que nesse filme se mostra como um presente sempre recomeçado, alocado como um páthos levado ao seu limite e afrontado, evitando confundi-lo com um processo histórico atualizado cronologicamente e já passado. Logo, ao trazer a impossibilidade como marca discursiva, o relógio que atravessa as significâncias e as subjetivações libera a imagem do aprisionamento referente ao triste dado histórico e faz ver a denúncia e a contraefetuação10 desse acontecimento pelo artístico. E, ao satirizar sobretudo o discurso político pautado no ódio e na perseguição às diferenças, Tonacci força a pensar em modos de não recair na circularidade e repetição dele, imposta por esse modelo. Sobre esse aspecto, Paulo Emilio Salles Gomes, escreve, no Jornal da Tarde (1973), que Blá Blá Blá chega a conquistar um caráter de ultrapassagem do seu tempo, também por denunciar essa debilidade do poder brasileiro. Diz ele:

A personagem emana de uma terra em transe e não seria de espantar que essa ficção acabasse adquirindo um valor de documento histórico a respeito da debilidade do poder civil brasileiro. A temática de Blá-Blá-Blá é porém mais ampla e ultrapassa o tempo em que a fita foi produzida. Num país em crise e sem poder civil, a eloqüência ingênua e delirante que o filme satiriza continua triunfante. Basta ler os jornais: arma psicológica... sutil e mascarada, de difícil identificação... o inimigo é indefinido e mimetista... se traveste de padre ou de professor, de aluno ou de camponês, de defensor da democracia ou de intelectual avançado... farda ou traje civil... - Eis em plena força o universo brenhoso do Bla Bla Bla (Gomes, 1973/2016, p. 211).

É nesse sentido que Tonacci também traz o procedimento da colagem, com imagens de arquivo para compor seu filme, mas retira deles seu caráter documental e de arquivo, anula sua atualidade retirando de uma hora e de um lugar concretos, buscando mostrar que, se o seu devir fílmico nasce na história e até pode nela recair, não lhe pertence, pois que não tem início, nem fim, mas se apresenta como um meio, que é composto por uma cartografia de resistência e em tensão ao presente em que acontece. Faz, com isso, um reuso da memória, em que, captada pela história, é efetuação de um estado de coisas vividas, e que, em seu devir, possui consistência própria, se torna acontecimento junto ao filme e suas figuras estéticas extravasam os tipos psicossociais e as espacialidades já constituídas, em prol de uma experimentação.

Essa experimentação substitui a aparência verídica dessas imagens, tornando-as matéria plástica que compõe um filme indeterminado e intempestivo, no qual diversos tempos se cruzam e se apagam antes mesmo de se realizarem. Esse procedimento parece deixar claro, ainda, que o passado não possui força fantasmática capaz de nos ameaçar, exceto se encontra meios expressivos que os suscitam no agora, forçando a pensar em condições de como não se entregar ou se deixar capturar por movimentos fascistóides, militarizados, imperialistas e ditatoriais, como não permitir a reanimação de um "aconteceu" que insiste no tempo, que no cinema conduzem "personagens-manequins a papéis enrijecidos, a caracteres estanques, enquanto o vazio cresce" (Deleuze, 1983/2018, p. 161).

Por isso, Tonacci faz agenciamentos singulares e ambíguos com essas imagens, quebrando vinculações reais e lógicas, de modo a esboçar os rostos e colocá-los em conexão, mas também afastá-los, forçando o isolamento e o apagamento. Significa dizer que, se vemos a fabricação e variação dos personagens na operação da rostidade, isso se faz ao mesmo tempo em que também vemos seu esfacelamento. São como duas linhas utilizadas em um procedimento em que se alternam, misturam, cruzam, mas não se confundem. Os personagens vão perdendo unidade a partir dos agenciamentos cênicos, com o jogo de luz, com as imagens que lhe seguem e, sobretudo, com o vazio das palavras, em uma força de subtração tonacciana dos elementos de poder do aparelho de Estado. Dessa forma, extravasa o estado das coisas, traça linhas de fuga, abrindo suas composições. Com isso, faz da memória histórica névoa com a qual age contra seu tempo a favor de um tempo porvir, que não é utópico, nem das revoluções prefiguradas, mas o agora intensivo, no qual é possível um devir-artístico, um devir-outro, um devir-povo, um devir-revolucionário, um devir-democrático que não se confunde com estado de direito, ou seja, com poderes e decisões tomadas no âmbito das leis, por governantes, mas que se apresenta no âmbito da liberdade artística e criadora, que faz do próprio filme um acontecimento complexo de conexões virtuais e não atualizadas.

Destarte, fica demonstrado que Tonacci faz com sua imagem o "apagar dos rostos no nada. Mas ela tem por substância o afeto composto pelo desejo e pelo espanto que lhe dá a vida, e o desviar dos rostos no aberto, no vivo" (Deleuze, 1983/2018, p. 161). Com isso, queremos dizer que, por trazer um rosto heterodoxo, faz do seu filme não um quebra-cabeças a ser decifrado, mas um elemento caótico, repleto de incertezas, ambiguidades, paradoxos e impasses, cujo absurdo desfecho (saída do ar da rede de TV), intriga e faz pensar no estado de letargia, impoder ou espera pelo acidental. E, nessa narrativa de inação, esse acidental pode ser pensado como o fora, esse transbordamento da tela que impacta em um convite a um possível engajamento afetivo, que pressupõe a produção de novos modos de dizer, se comportar, desejar, escolher e agir no mundo de forma transformadora, pois que, próximo a Deleuze e Guattari (1980/2012a, p. 37), Tonacci parece compreender que "tampouco estão completamente prontos os rostos concretos que poderíamos nos atribuir". Assim, leva a pensar sobre as circunstâncias nas quais a máquina de rostidade é desencadeada, além de apontar para o caráter multidimensional do rosto que o coloca em conexão com o devir. Então, por meio do uso destes signos heterodoxos, possibilita pensar na construção do próprio socius em uma trilha nonsense, problematizando os diversos modos de realização do afrontamento às convenções morais e à pífia encenação política, contraponto aos rostos atravessados por forças ressentidas que demarcam o ego e atualizam o desejo na sujeição, invisibilidade e morte do outro, forças ativas de despersonalização, de desrostificação, em prol de uma construção social mais empática, aberta e múltipla. Destarte, acerca da escolha e comentário de um fotograma que mais tenha lhe impactado neste filme, Tonacci11 revela ser o último, em que Gracindo, apesar do que diz no signo sonoro, desmorona sobre si mesmo no signo ótico:

É um momento, um fragmento mesmo, 1/24 de segundo da possível expressão de um sentimento referente à frase final de Primavera Negra, de Henry Miller ("Esta noite vou pensar no homem que eu sou"), frase que encerra o discurso do "ditador" diante das câmeras. Mas a duração desta cena já muda após a última palavra, dura mais que um segundo e, na escolha deste fotograma, busquei uma imagem em que Paulo Gracindo melhor expressasse para mim o amargo desgosto daquela derrota da arrogante ilusão de Ser (Tonacci, 2012, p. 108).

Aqui, frisamos, Tonacci alcança a apresentação desse rosto político como sintoma de uma doença social e egóica e, por isso, empreende toda uma força de paragem e isolamento na sua evolução para propor sua cura a partir da desrostificação que atesta a necessidade de uma outra abertura social, de um devir-povo. Estando próximo às análises que Deleuze realiza em Crítica e Clínica (1993) acerca da literatura de Melville, Kafka, Proust e Woolf, bem como da cinematografia de Welles na Imagem-tempo (1985), mostra que o delírio, a anarquia e a aberrância de suas imagens, se despontam doentes quando expõem um amor ao poder e um querer dominar, mas salutares, quanto invoca as condições de resistência a essa dominação e sua esmagadora força de aprisionamento, em seu devir-artístico, ou seja, "enquanto querer artista ou 'virtude que dá', criação de novas possibilidades no devir emergente" (Deleuze, 1985/2013, p. 173). Assim, realiza uma reviravolta no pensamento quando usa do interstício entre os signos óticos e sonoros, liberando audições e visões do regime concordante das significâncias e subjetivações.

Diante do exposto, fica explícito que a força do close constituída de muro-branco e buraco-negro está em forte derrocada. E não à toa; ainda sobre essa última cena do filme, Tonacci afirma que gostaria que ela fosse realizada não com a saída da TV do ar, mas com uma invasão do povo à emissora, como modo de marcar sua perspectiva político-anárquica e de tensionamento à máquina de rostidade ditatorial e farsesca trazida por Paulo Gracindo, que teima em persistir. Em suas palavras:

Tem uma cena que não foi realizada, e que seria a cena final desse filme: aquele estúdio onde Paulo Gracindo está falando, as portas sendo arrombadas, entrando uma massa de gente. Eu não tinha como fazer isso naquela época. Simplesmente, a alternativa foi "pshuuuu", tirar do ar (Tonacci, 2012, p. 123).

Portanto, realiza com essa película um jogo entre a problematização da construção da rostidade e a saída dela. E, em um compromisso ético autoimposto na relação entre as imagens e na manipulação do seu material arquivístico, se traz o discurso e o close, que faz com que eles delirem; esvazia-os por meio da montagem, dos seus primeiros planos cortantes, dos raccords falsos, das sobreposições sonoras, da relação com a luz, abrindo a imagem fílmica a outros fluxos de pensamento, desrostificando, enunciando seu projeto nomadopolítico.

 

Nomadopolítica e devir-menor em bla bla bla

Observamos que, aqui, há uma aproximação dos procedimentos com aquilo realizado por Beckett, em que, para além de constatar a falência e o esgotamento, busca criar possibilidades de pensar e enunciar uma nova política. Faz isso por meio de um estancar das vozes dos personagens, bem como das misturas entre os diversos discursos literários, históricos e enunciados próprios fabulados. Com o uso do recurso de encontros heterogêneos entre diversos materiais e recortes, expande sua experiência estética pela potência do impessoal, que faz de cada primeiro plano um acontecimento singular. É por meio desse procedimento que ele esgota a linguagem do possível, atualizado em um estado de coisas, e cria outro possível estético como extensão do virtual, capaz de abrir mundos e construir novos territórios do pensar, que escapam à tomada de consciência. Logo, não promove dialética, nem pretende construir uma unidade com seus contrários, mas mantém os opostos localizados apenas para permutá-los e recombiná-los, realizando, também aqui, uma disjunção inclusiva, com a qual joga com o espectador, sem submeter o olhar, o audível ou o sensível a ordens de preferência. Isto porque não desemboca com suas imagens em nenhuma ação, mas faz com que cada uma delas possua uma vibração intensiva diversa e suspensa de uma utilidade prática, que as eleva para além do cansaço ao esgotamento e joga o filme em uma condição aberta. Esse além do cansaço se dá por fragmentações exaustivas capazes de decompor o ego e não permitir o ressoar das significações, nem tampouco o redundar das subjetivações, rachando ao máximo o esquema muro-branco e buraco-negro. Utiliza dos discursos entrecortados para não permitir que haja corroborações entre eles e construções em torno de uma dada certeza ou verdade, cancelando, com isso, as possibilidades uma vez insinuadas. Próximo a Beckett na língua II, realiza aqui um possível no qual elas ora se separam e se opõem, ora se confundem. Porém, valendo cada uma por si só, cada um dos primeiros planos traz possíveis "com seus objetos, com suas vozes, que lhes dão a única realidade à qual eles podem pretender, constituem 'histórias'. [...] só têm a realidade que suas vozes lhes dão, em seus mundos possíveis" (Deleuze, 1992/2010, p. 77).

Ao final do seu filme, prevalece um eu fendido e em dissonância consigo mesmo, que recita trechos diversos que sabe que mal se escuta. Por outro lado, o esgotamento estampado nos demais rostos e nas imagens de arquivo trazidas demarca uma história agonizante, com destroços e agitações, em uma espécie de memória desintegrada e que fala sozinha, o que faz com que Tonacci a reutilize ao seu modo e possa, no jogo de combinatórias, também usar para retalhar e esgotar o discurso delirante do poder como objeto nas mãos de um sujeito. Desta feita, libera tanto sua imagem ótica quanto sua imagem sonora das amarras históricas em que elas poderiam recair, definindo-as muito mais por sua tensão interna, desprendida e de esburacamento e problematização com o já passado e, no entanto, presente, em sua abertura processual ao futuro. Significa dizer que essa abertura se apresenta sob a problematização de como acabar com esse esvaziamento e a reverberação de suas vozes e histórias?

Tonacci responde a esse questionamento perpassando pela desrostificação e pela paródia dos episódios passados, deixando indefinidos personagens, espaços, lugares e temporalidades que atravessam a imagem fílmica, como também impossibilitando o debate e o encontro agônico entre esses corpos. Ressaltamos que o rosto aqui problematizado não é de um tipo psicossocial, mas se apresenta como força intensiva que molda um modo de existir sedentário e estatal. Para tanto, Tonacci escapa do rosto pragmático do cinema clássico, subordinado às necessidades semânticas e semióticas da narrativa, capazes de garantir a progressão do "contar" da intriga, para construir um rosto que não tem que ser compreendido, mas sentido e experimentado pelo espectador, com suas ambiguidades, explicitando aqui sua função mais descritiva e de mostragem. Assim, não reduz o rosto a um espaço objetivo e a um modo narrativo de apreensão que conjuga a visão e a fala. Do contrário, expõe o rosto ao tempo, fazendo com que ele perca sua clareza comunicacional e socializante, dotando-o, por vezes, de gestos incompreendidos e desnecessários. Com isso, a superfície do rosto ganha em profundidade, complexidade e opacidade, expressando não sentimentos comuns que levariam a qualquer movimento catártico e de identificação, mas sensações, afectos, mobilizando temporalidades distintas e fazendo-as se atravessarem. Na relação com a mise-en-scène, o rosto ganha com a paisagem que não o envolve em uma condição performática, que permite pensar como a associação das ressonâncias de significância e redundâncias da subjetivação atravessam e produzem as lutas, os territórios, as fronteiras, o espaço social e o político, bem como apresenta as estratégias para que sejam desfeitos, relacionando estrato e nomadopolítica.

Portanto, o pensamento nômade aqui se ergue nos buracos e desvios expostos na relação do esgotamento com o isolamento e a exaustão dos personagens, com a subordinação da forma do sujeito à intensidade do afecto, com o esvaziamento da linguagem e com a construção de espaços furtivos. É pela via da fragmentação e da desconexão que Tonacci reclama seu porvir, em um jogo dúbio entre a parte do acontecimento já estratificada e sua porção intempestiva, ainda em potência. Sua proposta política, assim, faz-se mais voltada à resistência, se deslocando dos sentidos clássicos da chamada à revolução, enquanto movimento totalizante, reconciliado e como finalidade da história, atrelado a uma estratopolítica, à qual é creditada o poder de superação das contradições sociais e econômicas por meio de uma progressiva tomada de consciência dos sujeitos, para a detecção de um povo por vir, ou seja, de que não há um povo capaz de tomar o poder, mas uma heterogeneidade sem possibilidade de união homogeneizante que coteja frente às impossibilidades, condições várias de criação de uma nomadopolítica.

É a partir do devir-revolucionário que Tonacci produz enunciados coletivos e práticas cinematográficas que atuam como germes para construção de um povo por vir. Com sua anarquia, dá vazão e fluidez à sua imagem, direcionando e deslocando a construção política a um fora, ou seja, aos limites e fronteiras que fogem às totalizações, às normatizações do poder, dramatizando a propagação das derivas sem se deixar capturar pelo amor ao poder e promovendo as rachaduras no já instituído. Acerca desse posicionamento nomadopolítico, Domenico Hur faz a seguinte consideração:

A nomadopolítica opera como um dispositivo de desterritorialização que instaura outras linhas de possível, ou melhor, linha de fuga e desejantes perante os processos de captura do Estado [...]. Age pelo primado das forças instituintes que podem implodir os modelos tradicionais de funcionamento político partidário, estatal e capitalista. Fomenta novas experimentações ante práticas instituídas e hierarquizadas [...]. É a revolução posta em prática, em movimento, em ação, que engaja múltiplas facetas da própria vida. É crítica à ideia de que tomar o poder do Estado ocasiona a transformação social e está muito mais próxima da irrupção de um devir-revolucionário do que de uma preocupação com o futuro da Revolução (Deleuze, 2007b), ou seja, é mais a propagação magmática de fluxos do que a estratificação de uma estrutura (Hur, 2019, p. 133).

Com isso, a experimentação artística tonacciana permite imaginar e construir um povo, um lugar, apostando em uma política reinventada que traça seus fluxos de resistência e possibilidades, a partir de um devir-revolucionário que enseja pensar que os devires e transformações podem se dar "em qualquer momento, nas pequenas e grandes práticas, nos âmbitos molecular e molar, no cotidiano e no partido, na família e no Estado, nos planos subjetivo e institucional, desejante e social e não há fórmula pressuposta para isso" (Hur, 2019, p. 134). E, em continuidade a este aspecto do devir-revolucionário presente também na filosofia de Deleuze, a assertiva de Pellejero mostra o quanto ela se aproxima muito do fazer cinematográfico tonacciano por nós aqui trazido. Diz ele:

O devir-revolucionário aparece, nesse sentido, como o poder de variação e reordenação dos objetos e dos sujeitos, dos signos e das significações de um mundo prévio. [...]. De repente, o objeto da luta deixa de ser defesa de um estado de coisas e a realização de uma série de possibilidades para se perfilar como divergência essencial e multiplicação de perspectivas. Trabalho de destotalização da vida, o devir-revolucionário é um processo que coloca em questão (que enfraquece) qualquer dialética historicista (Pellejero, 2011, p. 18).

Desta feita, sem confundir sua nomadologia com ideologia, situa seu pensamento subtraindo as estruturas do poder que o poderiam subjugar. Não luta, não reivindica direito ao poder, não é reativo (não reage aos afetos do poder), mas se coloca em tensão com ele, resistindo na esfera da intempestividade. Assim, não é uma força que se opõe ao aparelho de Estado, mas que destrói a sua imagem, não permite suas cópias e a reverberação do seu rosto, rumo a um devir-minoritário que não cede às amarras do poder estatal, que não aspira suas conquistas e que, nem por isso, é desmobilizador, mas que devém nômade sempre que se confronta com a opressão, a injustiça e a miséria estatizada que asfixia a política, agenciando novas sensibilidades para a ação e o pensar. Isto porque:

Devir-menor não é uma utopia, mas a possibilidade de alcançar uma linha de transformação em situações históricas que fazem parecer qualquer mudança como impossível. Devir-menor não é uma verdade política universal, mas apenas uma estratégia singular não totalizável [...]. Não é uma solução para tudo nem para todos (e essa é sua fraqueza), mas pode ser a única pra alguns (e essa é sua força). Não a arte (técnica) do possível, mas a arte (transformação) do impossível (Pellejero, 2011, p. 27, grifos do autor).

Claro está que a aposta política tonacciana neste filme de afectos é tensionar seu presente por meio da problematização dos modelos políticos de rostidade, a partir da apresentação dos devires possíveis que nos atravessam e nos compõem quando nos agenciamos com dadas condições. Com sua violência estilística, que se faz com o caos, a fragmentação e o estilhaçamento, desestabilizando o seu presente para pensar de outro modo, tensionam as práticas e relações de significância e subjetivação que habitam o social. Para tanto, dá a ver com suas imagens que, embora nômades e sedentários, partilham o mesmo mundo, e não o fazem da mesma maneira, mas de modo bem diverso e inconciliável: "Daí por que um sedentário jamais pode entender o sentimento de "asco" que um nômade tem pelas chamadas lutas pelo poder e pelo prestígio - prêmios máximos do mundo sedentário (e motivo maior da prisão do pensamento)" (Schopke, 2012, 174, grifos da autora).

 

 

Referências

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Tonacci, A. (2006, dezembro). Entrevista. Revista Teorema, 10; reproduzida no site da Abraccine (2017). Entrevista concedida a Ivonete Pinto e Marcus Mello. Recuperado em 02/04/2019 em: <https://abraccine.org/2017/01/22/andrea-tonacci-territorio-da-ambiguidade/>         [ Links ].

Tonacci, A. (2012, jul./dez.). Entrevista. Revista Devires. Dossiê: Devir-Tonacci. Belo Horizonte, 9(2) 01-201. Recuperado em 30/05/2022 em: <https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-9-n-2-dossie-tonacci/>         [ Links ].

Tonacci, A. (1968). Blá, Blá, Blá. São Paulo, 26 min. 16mm, P&B. Produção; Direção e Roteiro: Andrea Tonacci; Fotografia: João Carlos Horta; Montagem: Geraldo Veloso; Elenco: Paulo Gracindo, Nelson Xavier, Irma Alvarez, Marcelo Pitch, Bazer, Leto, Kiko, Eduardo Mamede, Teo Feltrini. Produtora: Total Filmes.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Amanda Souza Ávila Lobo
E-mail: asgavila@gmail.com
Milene de Cássia Silveira Gusmão
E-mail: mcgusmao@gmail.com

 

 

*Doutora no Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGMLS/UESB). Mestre em Memória pelo mesmo programa. Técnica Universitária na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante dos Grupos de Pesquisa: Cinema e Audiovisual: Memória e Processos de Formação Cultural (UESB) e Cultura, Memória e Desenvolvimento (UNB). Bolsista FAPESB.
**Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia atuando no curso de graduação em Cinema e Audiovisual e no Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB). Coordenadora do Mestrado Interinstitucional em Memória: Linguagem e Sociedade (convênio UESB/IFMA). Líder do Grupo de Pesquisa em Cinema e Audiovisual: Memória e Processos de Formação Cultural. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cultura, Memória e Desenvolvimento (CMD/UnB). Integrante da Rede Latino Americana em Educação, Cinema e Audiovisual - Rede Kino.
1A nomadopolítica não se refere a uma política voltada às determinações de poder presente nos estratos, nas instituições e no Estado, mas à primazia dos deslizamentos destes jogos de poder já instituídos, que com sua fluidez promovem condições de problematizações mais transformadoras e que excedem à mera ocupação de lugares da estrutura institucional e estatal. Trata-se, aqui, de uma política artística que força pensar em novos rostos políticos e sociais que comportam modos de perceber, sentir e enunciar diversos dos já presentes na estratopolítica. Para uma maior compreensão e diferenciação dos termos estratopolítica, tecnopolítica e nomadopolítica, indicamos o livro do pesquisador Domenico Hur, intitulado Psicologia, política e esquizoanálise (2019), ao longo do capítulo 5, "Práticas e agenciamentos psicopolíticos".
2Aqui, para conceituação do menor, nos reportaremos a uma intercessão com o texto dedicado a Carmelo Bene, "Um manifesto de menos", de Gilles Deleuze. Nessa obra, Deleuze tratará de um teatro menor no procedimento dramatúrgico desse autor, qualificando, com isso, a invenção de um teatro construído na ambição de amputar das peças tradicionais todos os elementos majoritários e de poder que habitam a representação teatral. A encenação teatral consiste em desenvolver as virtualidades de uma peça que vigora graças à eliminação dos personagens que representam o estado e as soberanias estatais. Porém, esse conceito é também desenvolvido por Deleuze em outras obras como Kafka, por uma literatura menor (1975), na qual Deleuze e Guattari definem a literatura de Kafka como um procedimento minoritário que consiste, precisamente, no uso menor que um escritor faz de uma língua maior com o propósito de arrancá-la dos seus sulcos coloquiais. Já no Mil Platôs (1980), vol. 5, os autores Deleuze e Guattari falarão de um uso menor em uma ciência nômade, estabelecendo uma conexão entre tais termos e a experiência do fora. Tal empreendimento pode ser explicitado no platô intitulado "Tratado de nomadologia: a máquina de guerra", no qual o pensamento nômade conjuga a experiência do fora com os procedimentos filosóficos minoritários. Sendo assim, quando aqui falamos de um cinema menor, queremos, com essa expressão, enaltecer o cinema de Andrea Tonacci. Assim, v oltado ao cinema, o menor se configura enquanto aquilo que rompe com critérios normativos e morais da imagem cinematográfica do cinema clássico, consideradas como moldes (o padrão/maior), trazendo configurações estéticas inovadoras, amorais e disruptivas. Deleuze compreende, nesse âmbito, como modulações (o menor) as diversas maneiras de operar as variações nesse molde, que podem ocorrer por imbricações temporais, descentramentos, encadeamentos descontínuos, ambiguidades narrativas, disjunções, apresentação inusitada dos personagens, enfim, uma imagem em incessante devir.
3A linguagem aforismática será aquela capaz de causar estranhamento, estabelecendo a sensação de ignorância que coloca em xeque a ideia de sentido e significado primeiros. O aforisma deixa claro que o sentido não é um objeto mental, mas um acontecimento que está no mundo ainda que incorpóreo e em uma espécie de quase-existente e se faz na relação e no encontro com outros corpos, como efeito desse encontro. Noutros termos, a lógica do sentido pressupõe a ideia de que um corpo não possui sentido em si, mas "adquire vários no instante mesmo em que se relaciona com os outros" (Schopke, 2012, p. 182). Assim, os significados que conhecemos são artificiais e dinâmicos, já que os sentidos são múltiplos. Querer fixar um sentido único às coisas é uma produção sedentária. Pluralizar os sentidos é uma construção nomádica. A arte aforismática é aquela que permite ao espectador, uma vez em contato com a obra, inferir sentidos diversos sobre ela, sem aprisionamentos.
4Devir-revolucionário corresponde a um modo de fazer política que escapa às figurações clássicas próprias de um espaço de representações de poder bem demarcadas, tais como o partido, o Estado e suas estratificações, a família, a religião etc., para se fazer em uma ambiência coletiva mais aberta, por meio de encontros inusitados, em espaços não engessados, tais como manifestações de rua, ocupações, coletivos diversos, expressões artísticas e, em nosso caso específico, nos espaços de pensamento criados pela obra de arte tonacciana, que faz da figura revolucionária condição para entrar em devir, forçando o espectador a se perguntar sobre o que fazer ao sair da exibição dos seus filmes. Relaciona-se a uma nomadopolítica, ou seja, a um modo de disseminar multiplicidades e criar aliançar para constituir novos territórios, sem desejar os jogos do poder, nem se submeter a eles, todavia, produzindo problematizações, conforme veremos na análise fílmica.
5Close é o primeiro plano. Gilles Deleuze, na obra A imagem-movimento (1983/2018, p. 142), afirma que o primeiro plano é o rosto e ambos são o afeto, a imagem-afecção. Portanto, para esta proposta, sempre que usarmos os termos close, rosto, primeiro plano e imagem-afecção, eles serão equivalentes. A nossa principal diferenciação será entre a imagem-afecção e o puro afeto.
6Signos óticos e sonoros, respectivamente.
7O puro afecto ou afecto em si não se confunde com uma ideia abstrata e essencial como pensado no platonismo, nem é predicado de um sujeito. Aqui é numa intercessão com Maine De Biran, que Deleuze o conceitua como aquilo que existe em relação com um corpo, mas não se confunde, nem se restringe a ele, bem como excede as causas que o dispara. Dessa forma, é expressão que não pode ser medida, nem comunicada, pois é da ordem do imensurável e só pode ser sentida. Diz Deleuze (1983/2018, p. 156) sobre os afectos: "[...] são qualidades ou potências consideradas por si mesmas, sem referência ao que quer que seja de diferente, independentemente de qualquer questão sobre sua atualização. É o que é tal como é por si mesmo e em si mesmo".
8As traduções brasileiras por vezes usam o termo "rostização", como é o caso do termo referido na obra A imagem-movimento; por outra, o termo "rostificação", como é o caso da obra Mil Platôs. Desse modo, ao trazermos neste artigo um ou outro, eles terão a mesma equivalência e significações sinônimas.
9Tensionando o conceito de montagem que significa a determinação do todo fílmico através da associação dos planos pelos cortes por meio do uso dos raccords (que dão continuidade lógica à narrativa) e falsos raccords (que estabelecem as rupturas nessa logicidade, desorientando a narrativa), o conceito de mostragem cunhado por Lapoujade e retomado por Deleuze, aponta para a montagem descontínua, mais associada aos falsos raccords, se fazendo no intervalo entre as imagens, demonstrando um movimento aberrante e estando mais associada às descrições entre os diversos planos em interação. Aqui se apresentam as "desproporções das escalas, a dissipação dos centros e os falsos raccords" (Deleuze, 1985/2013, p. 51). Este último promoverá a inserção do intervalo na imagem, quebrando as relações de causa e efeito uniformizadoras de sentido.
10Contraefetuar o presente é, a partir dele e de sua constatação trágica, criar algo novo.
11Presente no dossiê Devir-Tonacci, da Revista Devires, Belo Horizonte, 9(2), jul./dez. 2012.

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