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Tempo psicanalitico

versión impresa ISSN 0101-4838versión On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro jul./dic. 2022

 

ARTIGOS

 

Devir-onça: "Meu tio Iauaretê", de João Guimarães Rosa

 

My uncle Iauaretê

 

Mon oncle Iauaretê

 

 

Maria Cristina Franco Ferraz*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O conto de João Guimarães Rosa intitulado "Meu tio o Iauaretê", publicado em 1961, permanece um texto singular da literatura brasileira. Por meio de um monólogo em situação dialógica, em um português oral sarapintado por expressões e termos em tupi, realiza-se o devir-onça de um ex-matador de onças que nelas encontra seu povo, seus parentes. A leitura enfatiza o caráter indomesticável desse texto ficcional e suas implicações antimetafísicas e políticas.

Palavras-chave: Literatura brasileira, devir-animal, afeto, Guimarães Rosa, filosofia deleuzeana.


ABSTRACT

Written by João Guimarães Rosa and published in 1961, the short story "My uncle the Jaguar" remains a unique fictional text in the Brazilian Literature. By means of a monologue in a dialogical situation and written in an oral Portuguese entangled with expressions and words in Tupi, a becoming-jaguar of a previous jaguar-killer is progressively enacted. This jaguar killer finally recognizes the jaguars as his real folks, as his kinfolk. The article emphasizes the untamable character of Rosa's short story and develops its antimetaphysical and political implications.

Keywords: Brazilian Literature, becoming-animal, affect, Guimarães Rosa, Deleuzian philosophy.


RÉSUMÉ

Publié en 1961, le récit écrit par João Guimarães Rosa intitulé «Mon oncle le jaguar» reste un texte unique, singulier de la Littérature Brésilienne. A travers une sorte de monologue en situation dialogique, écrit dans une langue portugaise tacheté par des termes et des expressions en tupi, ce texte performe le devir-jaguar d'un ex tueur de jaguars qui finit par reconnaître ces félins comme son peupele, sa parenté. L'article met en relief le caractère indomptable de ce texte fictionnel et souligne ses implications anti-métaphysiques et politiques.

Mots-clés: Littérature brésilienne, devenir-animal, affect, Guimarães Rosa, philosophie deleuzienne.


 

 

Publicado pela primeira vez em 1961, o conto "Meu tio o Iauaretê", de João Guimarães Rosa, é um texto único, singular e indomesticável da literatura brasileira. A trama é disparada por uma só voz, feito zagaia1 cortando o ar e a língua portuguesa falada no Brasil. No conto, quem toma a palavra é um sertanejo, índio por parte de mãe e branco por parte de pai. Contratado para desonçar uma vasta região, ele vive em um local ermo, totalmente isolado, em planos gerais. Conforme nomeia: Jaguaretama, terra de onças. O conto é constituído por sua fala dirigida a um outro que permanece calado. Entretanto, as reações, falas, gestos do ouvinte estão indiciados no discurso do protagonista. O personagem implicado na fala do protagonista é um viajante perdido na mata, desprovido de montaria, que foi abrigado por uma noite pelo sertanejo, à espera de um parceiro que chegaria na manhã seguinte. Sua presença é cada vez mais viva e evidente no enredo, que se passa em uma noite na mata, conforme exclama o anfitrião, incitando medo: "Ôi noite clara, boa pra onça caçar!" (p. 216)2. O coprotagonista silencioso tornar-se-á determinante no desfecho.

De saída, cria-se uma instigante situação dialógica em que só comparece a fala do protagonista, uma espécie de monólogo em situação dialógica. O viajante a quem o protagonista se dirige nunca toma a palavra. Logo se entende que ele é branco, como o pai do matador de onças (onceiro), e que está armado com um revólver. Enquanto o onceiro se expõe em sua fala, o visitante branco mantém-se quieto e termina por apontar o revólver para o anfitrião3. Há, portanto, uma discrepância entre as armas do silêncio desconfiado e certa ingenuidade do falante que se expõe e ameaça de modo cada vez mais explícito o hóspede ocasional. Matreirice ingênua e exposta do lado do meio índio; desconfiança e gesto violento do lado do branco. O clima do conto é tenso, ameaçador. Segundo João Adolfo Hansen, esse texto roseano flerta com o gênero dramático. Sua teatralidade desenrola-se em um presente contínuo, na imediatez do acontecimento que não cessa de surpreender o leitor, gerando suspense, quase terror, crescente. A fala do onceiro secreta uma atmosfera de caça, regada à cachaça trazida pelo viajante com a qual, noite adentro, apenas o protagonista vai-se embriagando.

Por meio de uma construção narrativa bastante artimanhosa, Guimarães Rosa - autor branco, diplomata - silenciou o hóspede branco e armado, registrando ficcionalmente voz e palavra do que foi calado em nossa história e literatura. No final, entretanto, quem empunha a arma é o visitante branco. Filho de índia, o onceiro tinha um pai branco, por ele odiado e renegado. Chamado Chico Pedro, o pai é caracterizado como um "homem muito bruto", "pai de todo mundo", "homem burro" (p. 210). Já pela mãe bugra índia o onceiro nutre um afeto intenso: "A' pois, minha mãe era [índia], ela muito boa. [...] Péua, minha mãe, gentio Tacunapéua, muito longe daqui. [...] Mãe boa, bonita, me dava comida, me dava de-comer muito bom, muito, montão..." (p. 215). A mãe se chama Mar'Iara Maria, nome no qual uma entidade sagrada amazônica (Iara ou Uiara, senhora das águas em tupi) se encontra envolvida e como que cercada pelo nome católico reduplicado (Maria) e, ao mesmo tempo, nele amalgamada. Mar'Iara Maria soa como uma melodiosa rima interna por onde circula o afeto.

A linhagem matrilinear inscreve-se desde o título do conto: meu tio o Iauaretê. Em linhagens matrilineares é o irmão da mãe que ocupa o lugar de referência, o que, de saída, afasta duplamente o protagonista do regime patriarcal branco: tanto pela recusa ao pai branco quanto pela referência ameríndia ao irmão da mãe Tacunapéua. A vinculação aos indígenas, não ao bom selvagem rousseauniano endossado pelo romantismo brasileiro, mas à ferocidade de um mau selvagem, se expressa desde o título do conto. Nomeia-se o tio o Iauaretê: na língua geral tupi, junção de etê (verdadeiro) com iauara (onça)4. Iauaretê: verdadeira onça; onça verdadeira. O sertanejo contratado para "desonçar" a região e que termina por recusar tal tarefa, afirma diversas vezes que as onças são seus parentes5, seu povo. Ele conta que, a partir de certo momento, deixa de caçar onças, e que chega até mesmo a levar outros personagens - muitas vezes pretos - para alimentá-las. Essa relação agressiva com negros desfaz radicalmente outro mito: o da mestiçagem brasileira caracterizada por laços de cordialidade, supostamente isenta de violência e de tensões. Não se pode, entretanto, deixar de observar que o texto, contaminado por termos e sonoridades de extração tupi - mesmo a interjeição "hein?" passa a ser "nhem?", remetendo à língua tupi (nheengatu), ao verbo falar em tupi (Nhehê ou nheeng6) -, é também salpicado por algumas (poucas) pintinhas afro-brasileiras: Erê, e sobretudo, Macuncôzo, um dos nomes do onceiro7.

O conto devora, desde o título, a língua portuguesa, desrecalcando matrizes ameríndias silenciadas e esmagadas na história do país e na língua oficial. No texto de Rosa, forças tupis caçam e acuam o português, sem inviabilizar a compreensão do conto. Conforme observa João Adolfo Hansen a partir de Haroldo de Campos, na fala do onceiro a língua portuguesa é "mosqueada pelo tupi"; o português é rasgado por uma espécie de semi-tupi (Hansen, 2021). Acrescento: mosqueado - corpo do texto pintado feito onça-índio - e moqueado, servido assado em moquém8. Mencionando Haroldo de Campos, Hansen equipara o conto roseano a uma pele de onça esticada na nossa literatura; suas palavras-manchas sarapintam a língua portuguesa. Para melhor participarmos do banquete, vale a pena saborear e comentar alguns trechos.

O onceiro conta que matara muitas onças. Tinha inclusive se besuntado com a banha das presas para perder o medo que delas tinha. Para caçar, aguçou seus sentidos e adotou movimentos e ritmos corporais visando a aprimorar sua arte de caçador. Como as onças, o caçador desenvolve sobretudo o sentido da audição: "Rastrear, a onça não rastreia. Ela não tem faro bom, não é cachorro. Ela caça é com os ouvidos." (p. 205). Apoiado na oralidade, o conto não cessa de caçar os ouvidos dos leitores. De acuá-lo com o temor à estranheza do outro. Ainda nesse sentido, esquiva-se da tradição letrada, deixando-se invadir pelo não letramento de bugres e de onças.

Fundindo-se cada vez mais ao mundo-onça9, o sertanejo passa a repudiar seu trabalho de matador de onças, entrando em um imparável devir-onça. Vai-se onçando ao longo do texto10, enquanto bebe a cachaça trazida pelo hóspede; o leitor acompanha esse processo, entre fascinado e aterrorizado. O movimento de ultrapassagem da marca identitária moral-metafísica expressa pelo verbo ser é explicitamente efetuada na seguinte passagem do conto: "Eu sou onça... Eu - onça!" (p. 204). Não se trata de um ser que muda e vira outro ser, de um homem que vira onça, ou de uma onça que se domestica. Em "eu sou onça" ainda há um ponto de partida e um ponto de chegada, de uma forma a outra forma de vivente. A interrupção provocada pela elisão do verbo, acentuada pelo recurso ao travessão, faz com que, no lugar de formas em trans-form-ação, forças indomesticáveis se expressem no texto e o atravessem. O que está em jogo é esse traço, o travessão, o que se instaura entre espécies e mundos (Umwelten), pura diferença11 por onde trafegam afetos. Conforme conceituaram Deleuze e Guattari, "o afeto não é um sentimento pessoal [...], é a efetuação de uma potência de matilha, que suspende e faz vacilar o eu [le moi]." (Deleuze & Guattari, 1980, p. 294, minha tradução). Formação de matilha, contágio de e por afetos, união ilícita, fenômeno de fronteira, de margem, aliança monstruosa, casamento contranatural, amores abomináveis, nas franjas entre reinos e espécies (Deleuze & Guattari, pp. 294-296). O travessão no lugar do ser. Travessão-travessia. Terceira margem do rio, que já não pode ser contido em duas. Os termos acima referidos estão no capítulo de Mil platôs dedicado aos devires, em especial ao devir-animal, que parece ter sido coescrito por Guimarães Rosa. Através da ficção.

Eis a cena em que se inicia a aliança entre espécies, no espaço de um travessão que atravessa e ata eu e onça, sem dissolver a diferença ou gerar um terceiro termo reconciliador:

Primeira que eu vi e não matei, foi Maria-Maria. [...] De madrugada, eu tava dormindo. Ela veio. Ela me acordou, tava me cheirando. Vi aqueles olhos bonitos, olho amarelo, com as pintinhas pretas bubuiando bom, adonde aquela luz... Aí eu fingi que tava morto, podia fazer nada não. Ela me cheirou, cheira-cheirando, pata suspendida, pensei que tava percurando meu pescoço. [...] Mexi não. [...] Ela chega esfregou em mim, tava me olhando. [...] Muito tempo ela não fazia nada também. Depois botou mãozona em riba de meu peito, com muita firmeza. Pensei - agora eu tava morto: porque ela viu que meu coração tava ali. Mas ela só calcava de leve, com uma mão, afofado com a outra, de soçoca12, queria me acordar. Eh, eh, eu fiquei sabendo... Onça que era onça - que ela gostava de mim [...]. Abri os olhos, encarei. Falei baixinho: - "Ei, Maria-Maria... Carece de caçar juízo, Maria-Maria..." Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhém... (pp. 207-208).

A aliança contranatural forja uma nova língua, uma linguagem inédita, espécie de entrelíngua, português tupinizado, tupi batizado. Língua de onça tupinizada: jaguanhenhém, jaguanhém - fundindo jaguar e nhehê ou nheeng, falar em língua tupi -, ecoando ainda o diminutivo carinhoso do português e expressando simultaneamente sonoridades de um ronronar afetivo. O afeto felino também vincula Maria-Maria à figura da mãe. Conforme conta o antigo e astucioso matador de onças, antes de conhecer Maria-Maria, ele costumava emular o miado de filhotes, usando esse estratagema para atrair onças: "Eh, sei miar que nem filhote, onça vem desesperada. Tinha onça com ninhada dela, jaguaretê-pixuna [preta], muito grande, muito bonita, muito feia. Miei, miei, jaguarainhém, jaguaranhinhenhém... Ela veio maluca..." (p. 214)

O que era embuste, ardil, aproximável da potência da métis grega que presidia à arte da caça (Détienne & Vernant, 1974), vai transformando o sobrinho-do-iauaretê, que entra em um irreversível processo de outramento (Gil, 2000), mais precisamente, de onçamento. A mãe do onceiro é por ele também identificada às onças mães, a algumas delas pelo menos:

Mãe minha bugra, boa, boa pra mim, mesmo que onça com os filhotes delas, jaguaraím. Mecê já viu onça com as oncinhas? Viu não? Mãe lambe, lambe, fala com eles, jaguanhenhém, alisa, toma conta. Mãe onça morre por conta deles, deixa ninguém chegar perto, não... Só suaçurana é que é pixote13, foge, larga os filhotes pra quem quiser... (p. 221)

Desse modo, muitas aproximações, além do próprio nome, se estabelecem entre a onça Maria-Maria e Mar'Iara Maria, a mãe bugre e boa. Essa ligação articula-se tanto aos parentes em linhagem matrilinear (o tio, irmão da mãe, que encabeça o texto) quanto ao afastamento em relação ao mundo dos brancos, do pai violento e daquele Nhô Nhuão Guede: "pior homem que tem: me botou aqui. Falou: - 'Mata as onças todas!'" (p. 222). Não caberia introduzir Édipo nessa relação apartada do modelo da família patriarcal, mais próxima do povo das onças - de algumas delas pelo menos. Eis como o onceiro apaixonado descreve Maria-Maria, compondo o que Deleuze e Guattari chamaram de um bloco de sensações (Deleuze & Guattari, 1991, p. 154) atravessado por micropercepções afetivas, sinestesia misturando sobretudo visão, olfato e tato, tudo bem de perto:

Maria-Maria é bonita, mecê devia de ver! Bonita mais do que alguma mulher. Ela cheira à flor de pau-d'alho na chuva. Ela não é grande demais não. É cangussu, cabeçudinha, afora as pintas ela é amarela, clara, clara. Tempo de seca, elas inda tão mais claras. Pele que brilha, macia, macia. Pintas, que nenhuma não é preta mesmo preta, não: vermelho escuronas, assim ruivo roxeado. Tem não? Tem de tudo. Mecê já comparou as pintas e argolas delas? Cê conta, pra ver: vareia tanto, que duas mesmo iguais cê não acha, não... Maria-Maria tem montão de pinta miúda. Cara mascarada, pequetita, bonita, toda sarapintada, assim, assim. Uma pintinha em cada canto da boca, outra atrás das orelhinhas... Dentro das orelhas, é branquinho, algodão espuxado. Barriga também. Barriga e por debaixo do pescoço, e no por de dentro das pernas. Eu posso fazer festa, tempão, ela apreceia... Ela lambe minha mão, lambe mimoso, do jeito que elas sabem alimpar o sujo de seus filhotes delas; se não, ninguém não aguentava o rapo daquela língua grossa, aspra, tem lixa pior que a de folha de sambaíba; mas, senão, como é que ela lambe, lambe, e não rasga com a língua o filhotinho dela? (pp. 209-2010)

Note-se a estratégia de indiciar a reação do ouvinte, duvidoso quanto à descrição dos matizes da pelagem de Maria-Maria: "Tem não? Tem de tudo." Com efeito, não há uma pinta igual à outra. O corpo pintado da onça recebe uma palheta de pura variação, entre tonalidades, brilho, maciez, dependendo da estação do ano e da luz do dia14. Tato-visão: potência háptica do olhar. Tons que escapam à nomeação, que excedem o esquadrinhamento seccionante recoberto pelas palavras: matizes. Como, por exemplo, "ruivo roxeado". A descrição vai-se aproximando do corpo da onça, penetrando até no interior das orelhas. Proximidade. Troca de carinhos: carícias e lambidas. A mesma língua capaz de rasgar um corpo serve para limpar filhotes e acariciar o amante. Língua que raspa, que pode tanto fender quanto acarinhar. Invenção de novas perspectivas entre homem e onça, entre o filho de índia e o animal feroz, efetuada na própria língua, português raspado e sulcado pelo semi tupi; desdomesticação do humano, do animal, da linguagem. Essa inflexão mobiliza o regime ficcional. Em uma breve passagem do conto, Guimarães Rosa deixa uma pista sobre a trama entre linguagem, identidade e ficcionalidade, acionando uma metáfora cara tanto à formação identitária quanto à mímesis: "Mecê acha que eu pareço onça? Mas tem horas em que eu pareço mais. Mecê não viu. Mecê tem aquilo - espelhim, será? Eu queria ver minha cara..." (p. 204).

O onceiro não dispunha de um espelho, por menor e mais modesto que fosse, assim como a literatura brasileira não espelhava essas forças ferozes, indomesticáveis -- povo de índios e onças. O detalhe da falta de um espelhim não pode passar despercebido para leitores de Guimarães Rosa, que problematizou em seus textos ficcionais quem fala e quem cala (como em Grande sertão: veredas, o doutor ouve e anota o que Riobaldo lhe conta) e que revirou espelhos pelo avesso, tal como no conto "O Espelho", do livro Primeiras estórias. O sobrinho-do-iauaretê nunca se viu no espelho. E nunca tinha sido visto no espelho ficcional.

Ele tampouco é afeito a retratos: "gosto de retrato aqui comigo não..." (p. 224). A rasura da identidade e seu estilhaçamento em multiplicidades heterogênas também se manifesta nos muitos nomes do onceiro: todos e nenhum. É o que ele conta:

Ah, eu tenho todo nome. Nome meu minha mãe pôs: Bacuriquirepa. Breó, Beró, também. Pai meu me levou pra o missionário. Batizou, batizou. Nome de Tonico; bonito, será? Antonho de Eiesús... Despois me chamavam de Macuncôzo, nome era de um sítio [...]. Agora, tenho nome nenhum, não careço. Nhô Nhuão Guede me chamava de Tonho Tigreiro. [...] Agora tenho nome mais não... (p. 215)

Os nomes vários, de origens e línguas diversas, são todos deixados para trás à medida que o personagem encontra seu povo, seus parentes. Esse contágio e afeto dão a ver outros regimes de pensamento. Por exemplo, o modo anta de pensar e de saber: "Muita anta, por aqui. [...] Dia quente, anta fica pensando tudo, sabendo tudo dentro d'água." (p. 216). Ou o pensamento-onça:

Mecê sabe o que é que onça pensa? Sabe não? Eh, então mecê aprende: onça pensa só uma coisa - é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar. Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando assim, enquanto que tá andando, tá comendo, tá dormindo, tá fazendo o que fizer... (p. 223).

Inevitável associar o bom-bonito ao kalòs kagathós grego, no qual beleza e bondade se fundem, são indiscerníveis, intercambiáveis. Mas aqui chama atenção, sobretudo, o ritmo macio, elegante, pausado - bonito, bom, bonito, bom - do andar e dos movimentos de felinos enquanto estão sossegados. Para concluir, vejamos de que modo o sentido ancorado na linguagem se esgarça no desfecho, a um só tempo convocando e desafiando toda tentativa de tradução e de interpretação. O final enigmático é ainda atravessado por uma inegável ambiguidade que, por vezes, os leitores (mesmo os críticos) procuram colmatar: se trata dos estertores do onceiro, vencido pela bala certeira do visitante, ou de sua virada definitiva para fora do mundo humano, ao encontro do seu povo, de seus parentes? Deixemos que a estranheza do devir onça desafie de vez toda interpretação, arrastando o sentido para outras paragens:

Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata não... Eu - Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...
Hé... Aar-rrã... Cê me arrhoôu... Remuaci... Reiucàanacê... Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...15 (p. 235).

 

 

Referências

Campos, H. de (1976). Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Cocci, E. (2018). A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1980). Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (1991). Qu'est-ce que la philosophie? Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Détienne, M., & Vernant, J. P. (1974). Les ruses de l'intelligence - La mètis des Grecs. Paris: Flammarion.         [ Links ]

Ferraz, M. C. F. ([1999] 2010). Platão: as artimanhas do fingimento. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará (coleção Conexões); Lisboa: Nova Veja (coleção Passagens).         [ Links ]

Gil, J. (2000) Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Ed. Relume Dumará (coleção Conexões).         [ Links ]

Hansen, J. A. "Aula sobre o texto 'Meu tio o Iauaretê' de Guimarães Rosa". Recuperado em 14/04/2021 em: <https://www.youtube.com/watch?v=ziWrXEkrC_0>         [ Links ]

Rosa, G. (2001). "Meu tio o iauaretê". In Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Rosa, G. (1969). Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio Ed.         [ Links ]

Santiago, S. (2017). Genealogia da ferocidade. Recife: CEPE.         [ Links ]

Sperber, S. F. (1992). "A virtude do jaguar: mitologia grega e indígena no sertão roseano". Remate de Males - Revista do Departamento de Teoria Literária, 12. Campinas: IEL/UNICAMP.         [ Links ]

Uexküll, J. von (2010). Milieu animal et milieu humain. Paris: Éditions Payot & Rivages.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Maria Cristina Franco Ferraz
E-mail: mcfferraz@hotmail.com

 

 

*Profa. Dra. Maria Cristina Franco Ferraz é mestre em Letras (PUC-RJ), doutora em Filosofia (Universidade de Paris I-Sorbonne), com três estágios pós-doutorais em Berlim. Professora Titular da ECO/ UFRJ. Autora dos livros: Nietzsche, o bufão dos deuses (Rio de Janeiro e Paris), Platão: as artimanhas do fingimento (Rio de Janeiro e Lisboa), Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio), Homo deletabilis - corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao XXI (Rio de Janeiro e Paris), Ruminações: cultura letrada e dispersão hiperconectada (Rio) e, em colaboração com Ericson Saint Clair, Para além de Black Mirror: estilhaços distópicos do presente (São Paulo: n-1, 2020).
1O personagem central da história caçava onças com uma zagaia, uma espécie de lança curta.
2Para simplificar as referências neste ensaio, todas as citações do conto de G. Rosa estão referidas em Rosa (2001).
3Silviano Santiago observa: "Se a fala tem origem em, se ela pertence ao onceiro [...], não há dúvida que a transcrição fonética que nos chega (essa é pelo menos a principal ilusão vendida ao leitor pelo texto ficcional) é de total responsabilidade do pseudonarrador anônimo e coprotagonista silencioso que teve o cuidado de registrar na memória, de anotar ou gravar a voz alheia." (Santiago, 2017, p. 112).
4Assim como o gavião, o jaguar (declinado como a palavra feminina onça) é animal sagrado, totêmico em várias culturas primeiras das Américas.
5O vocábulo parente, referido à onça, é empregado 15 vezes ao longo do conto. (Santiago, 2017, p. 116).
6No conto, Rosa cria o verbo nheengar, aclimatando o tupi ao português. Cf. Campos, 1976, pp. 59-60.
7Em um texto dedicado ao conto em questão, Haroldo de Campos acrescenta uma nota de rodapé esclarecedora: em carta datada de 26/04/1963, Guimarães Rosa lhe teria explicado que "... o macuncôzo é uma nota africana, respingada ali no fim. Uma contranota. Como tentativa de identificação [...] com os pretos assassinados [...] na desordem dele, final, o sobrinho-do-iauaretê emite aquele apelo negro, nigrífico, pseudonigrificante, solto e só, perdido na correnteza de estertor de suas últimas exclamações." (Campos, 1976, p. 62).
8Moquém é um tipo de grelha em que se assam alimentos.
9Remeto aqui ao sentido de mundo-entorno, Umwelt, proposto por Jakob von Uexküll (Uexküll, 2010), que, mais atualmente, tem sido discutido e posto em questão em favor de uma maior ênfase teórico-filosófica no reino vegetal (cf. Coccia, 2018, pp. 44-45).
10"De repente, eh, eu oncei... lá." (p. 230).
11Parodiando Jacques Derrida, Viveiros de Castro cunhou, a partir desse conto, o termo diferOnça. Cf. <https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/65767/39718>.
12Certa maneira de pescar com arpão. Do tupi sosóka.
13Inexperiente, que joga mal.
14Essa perspectiva pode ser aproximada do sentido grego de poikílos (o que é multicor, brilhoso, heteróclito, ofuscando a nitidez da razão), termo desqualificado pela filosofia socrático-platônica (Détienne & Vernant, 1974; Ferraz, 1999).
15A ênfase na ambiguidade final, de que certas interpretações procuram se afastar, também é assinalada por Silviano Santiago, que acrescenta entre parênteses: "a forma verbal rêiucàanacê, que ecoa numa espécie de risada: êeêê... êê... ê... ê... - últimas palavras do conto". Cf. Santiago, 2017, p. 113.

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