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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

Tramas do racismo e das violências na infância brasileira: a obra de arte "Amnésia"

 

Plots of racism and violence in Brazilian childhood: the artwork "Amnesia"

 

Tramas de racismo y violencia en la infancia brasileña: la obra de arte "Amnesia"

 

 

Letícia Teles de SousaI*; Mériti de SouzaI**

IUniversidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca tecer relações sobre a infância, o racismo e as violências a fim de tensionar as linhas que fundamentam discursos e práticas sobre o processo de subjetivação da criança negra no Brasil. Inspiradas em conceitos da Filosofia da Diferença - Esquizoanálise proposta pelos filósofos Deleuze e Guattari, nos estudos étnico-raciais e na obra de arte "Amnésia" de Flávio Cerqueira, apresentaremos alguns fios de análise sobre os diagramas de poder que aprisionam a experiência da infância da criança negra em linhas de sujeição e as resistências que se entreabrem a partir da arte como uma potente intercessora. Consideramos que as capturas do embranquecimento e da miscigenação evocados pela obra indicam que a relação de poder associada ao racismo entranha na sociedade brasileira produzindo subjetividades. Dialogando com Stuart Hall veremos que o racismo será entendido como discurso, pois configura na cultura uma inteligibilidade relativa as diferenças humanas. Importante salientar que apesar da crítica atual realizada por diferentes áreas do conhecimento ao conceito de raça como categoria analítica, ela continua a operar com força através da captura das subjetividades, justamente, por estar pulverizada nas práticas e nos discursos e, sobretudo, em mecanismos estéticos, políticos, ideológicos e morais. Ainda, a partir do bloco de sensações que a arte revoluciona consideramos importante pensar a infância da criança negra como devir-minoritário e tecemos análises sobre a potência que essa obra de arte exala seja apontando para a linha de sujeição do racismo e do embranquecimento, como também, exacerbando a linha de fuga aos moldes violentos que a infância minoritária da criança negra anuncia sobre a existência e os modos de subjetivar.

Palavras-chave: Infância, Violências, Racismo, Arte, Filosofia da Diferença.


ABSTRACT

This article seeks to weave relationships about childhood, racism, and violence in order to stress the lines that underlie the discourses and practices on the process of subjectivation of the Black child in Brazil. Inspired by concepts from the Philosophy of Difference - Schizoanalysis proposed by the philosophers Deleuze and Guattari, in ethnic-racial studies and in the artwork "Amnesia", by Flávio Cerqueira, we will present some threads of analysis on the diagrams of power that imprison the black child´s childhood experience in lines of subjection and the resistances that are half-opened from art as a powerful intercessor. We consider that the captures of whitening and miscegenation evoked by the work indicate that the power relationship associated with racism permeates Brazilian society producing subjectivities. In dialogue with Stuart Hall, we will see that racism will be understood as discourse, as it configures in culture an intelligibility related to human differences. It is important to point out that despite the current criticism made by different areas of knowledge to the concept of race as an analytical category, it continues to operate with force through the capture of subjectivities, precisely because it is pulverized in practices and discourses and, above all, in aesthetic, political, ideological, and moral mechanisms. Still, from the block of sensations that art revolutionizes, we consider it important to think of the black child as a minor-becoming and we will weave analyzes with the power that this work of art exudes, whether pointing to the line of subjection of racism and whitening, as well as, exacerbating the line of flight to the violent molds that the minority childhood of the black child announces about the existence and the ways of subjectivizing.

Keywords: Childhood, Violence, Racism, Art, Philosophy of Difference.


RESUMEN

Este artículo busca tejer relaciones sobre infancia, racismo y violencia para subrayar las líneas que subyacen en los discursos y prácticas sobre el proceso de subjetivación del niño negro en Brasil. Inspirándonos en conceptos de la Filosofía de la Diferencia - Esquizoanálisis propuestos por los filósofos Deleuze y Guattari (1995), en los estudios étnico-raciales y en la obra de arte "Amnesia", de Flávio Cerqueira (2015), presentaremos algunos hilos de análisis sobre los esquemas de poder que aprisionan la experiencia da infancia del niño negro en líneas de sujeción y las resistencias que se entreabren desde el arte como poderoso intercesor. Consideramos que las capturas de blanqueamiento y mestizaje evocadas por la obra indican que la relación de poder asociada al racismo permea la sociedad brasileña produciendo subjetividades. En diálogo con Stuart Hall, veremos que el racismo será entendido como discurso, en tanto configura en la cultura una inteligibilidad relacionada con las diferencias humanas. Es importante señalar que a pesar de las críticas actuales que desde diferentes áreas del conocimiento se hacen al concepto de raza como categoría analítica, ésta sigue operando con fuerza a través de la captura de subjetividades, precisamente porque se encuentra pulverizada en prácticas y discursos y, sobre todo, en los mecanismos estéticos, políticos, ideológicos y morales. Todavía, desde el bloque de sensaciones que revoluciona el arte, consideramos importante pensar al niño negro como un devenir-minoría y tejeremos análisis con la potencia que destila esta obra de arte, ya sea apuntando a la línea de sujeción del racismo y blanquear, así como, exacerbar la línea de fuga a los moldes violentos que la infancia minoritaria del niño negro anuncia sobre la existencia y las formas de subjetivar.

Palabras clave: Infancia, Violencia, Racismo, Arte, Filosofía de la Diferencia.


 

 

Introdução

Este artigo é um desdobramento das inquietações e estesias que a imanência recobra. É um exercício de produzir conhecimento, ou seja, tensionamentos sobre maquinismos operantes no plano de forças social brasileiro que figuram os processos do racismo na produção subjetiva. Constitui-se, ainda, como um endereço que busca dialogar sobre os entrelaces d a infância com o racismo e as violências a fim de balançar as linhas dos discursos e das práticas que povoam e produzem as subjetividades das crianças negras no Brasil. Em outras palavras, com este artigo procuramos escutar os ruídos advindos de um plano social que, por vezes se localiza endurecido, consoante a busca por visibilizar entradas direcionadas a potência da diferença e do devir.

Para isso, apostamos que os diálogos entre filosofia, arte e ciência abrem caminhos na produção de conhecimentos novos e críticos em relação a teoria representacional do pensamento que a pragmática moderna conduz. Assim, a filosofia com a qual nos aliançamos é a Filosofia da Diferença - Esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari (1995, 2010). Ela é uma perspectiva que não opera com a lógica da filosofia representacional e sua tradição de tomar a ciência, a arte, a literatura, a vida, em caráter de exterioridade, moralidade, hierarquia, binaridade e linearidade. Isso implica dizer que a filosofia deleuze-guattariana tem como horizonte a perspectiva de superar o pensamento da filosofia racionalista e encontrar novas imagens para o pensamento. Assim, sua proposta, então, é a de coabitar as fronteiras e conjugar, de forma rizomática, outras conexões sobre a imanência. Posto que, "pensar é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa" (Deleuze & Guattari, 2010, p. 58).

Em outras palavras, Deleuze e Guattari (1995, 2010) provocam leituras sobre o pensamento e a filosofia para além da leitura hegemônica moderna, pois buscam uma teoria não dogmática. Na "caixa de ferramentas" que criaram oferecem pistas de um diagnóstico sobre o ocidente, uma vez que a imagem do pensamento que nele prevalece é atrelada a moral do pensamento. Assim, para os autores a imagem dogmática sustenta a filosofia representacional e se prolifera como clausura, já que opera buscando a identidade e reproduzindo sempre o mesmo; o idêntico.

Nesse sentido, o exercício da Filosofia da Diferença potencializa um paradigma ético-estético-político e lança como proposta a necessidade de movimentar o pensamento para amplificar a criatividade, a criação de conceitos e de fissuras. Importante destacar que os autores indicam que o exercício de criar outras imagens para o pensamento precisa de uma ação de encontro que desloque o programado, isto é, que afeta o pensamento e o movimenta em múltiplas direções de produção do novo. De acordo com a filosofia deleuze-guattariana, estas forças podem ser provocadas pela colisão com os signos e, a arte, nesta linha que se abre, é um signo impulsionador do pensamento que se cria no encontro com a diferença.

Assim, os conceitos deleuze-guattarianos ajudam-nos a perceber como as forças do fora afetam e nos colocam a estranhar a teia dos poderes operantes em um plano imanente, buscando outras direções. Os conceitos, então, não são dotados de total resolutividade aos problemas presentes no plano de forças da sociedade brasileira. No entanto, são ferramentas que nos oferecem possibilidades para criar filamentos para as nossas perguntas e, fundamentalmente, proporcionam a capacidade de libertar um modo de produzir conhecimento de certos poderes da ciência hegemônica quando potencializa pisar em certos terrenos enrijecidos, também, produzidos por ela.

Nisso, os conceitos operam em devir, são móveis, mutáveis; não são dados ou acabados, mas oportunizam romper com a tradição da recognição que replica mesmidades. Para Deleuze (2006), em específico, aquilo que se repete é a diferença, isto é, uma repetição criadora ou então uma colagem de multiplicidades. Nessa perspectiva, versar sobre os problemas já conhecidos é uma oportunidade de diferenciar-se na proporção de desdobrar outras perguntas.

Dessa forma, os conceitos e os signos não trabalham com a lógica de oposição, mas sim com a perspectiva de que estão emaranhados, conectados como rizoma. São linhas que se aglutinam e resistem na intenção de questionar: esses fluxos estão despotencializando ou potencializando a vida? Aprisionando ou liberando a vida? Temos, com isso, que a análise deleuze-guattariana sobre a imanência é eminentemente ética e a produção de outras imagens para o pensamento, um exercício estético e político.

Partindo da perspectiva de conjugar a filosofia, a arte e a ciência, tecemos pontes de diálogo entre os conceitos da Filosofia da Diferença, os estudos étnico-raciais e os blocos de sensação de uma obra de arte brasileira com a intenção de apresentar alguns fios de análise sobre os diagramas de poder e saber que aprisionam o devir-criança em linhas diversas. Consideramos que elas se conectam em movimentos de sujeição e, sobretudo, em movimentos de resistências que configuram linhas de fuga e desterritorializações. Ainda, percebemos que essas linhas em seus agenciamentos se entreabrem a partir da potência que a arte, mas também a vida, evocam e nos convocam a pensar (Deleuze, 2006). Assim, entendemos que o critério de análise da Filosofia da Diferença é uma ética vitalista e, nessa perspectiva, tensionaremos os motes que potencializam ou despotencializam a vida das infâncias das crianças negras permeando os poderes, mas também subtraindo vieses transcendentes, dialéticos e moralistas. Talvez, o que encontraremos seja a potência de um devir-minoritário da criança negra fabular multidões.

Considerando a perspectiva acima problematizamos a relação com o outro no Brasil, no caso, o outro atravessado pela infância, o racismo e as violências, considerando leituras da Filosofia da Diferença que nos ofereçam recursos para problematizar aquilo que a obra de arte, no caso a escultura "Amnésia" (2015), do artista plástico Flávio Cerqueira, convoca. Prioritariamente, entendemos que a obra de arte não se deixa capturar por referências exclusivamente modernas hegemônicas e potencializa devires e virtualidades ao mobilizar e problematizar as linhas duras presentes nas práticas e discursos nacionais. Nossa perspectiva, portanto, intenta mapear as linhas de poder que estão entranhadas nos mecanismos institucionais de captura da subjetividade da criança negra no Brasil e, fundamentalmente, as linhas de fuga a elas. Assim, nossa aposta está para como o encontro com a diferença que a obra de arte de Cerqueira (2015) arranja é capaz de produzir pistas sobre o plano social brasileiro.

Tomamos, portanto, as construções conceituais da filosofia deleuze-guattariana como uma fortuita caixa de ferramentas que dialoga com as experimentações provocadas pela obra de arte "Amnésia" (2015), do artista plástico Flávio Cerqueira (2015), a qual está exposta no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) na cidade de São Paulo (SP). A partir da máxima de Deleuze (1992/2008, p. 133) que aponta para como "pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer", escrevemos para experimentar as potências revolucionárias despertadas pela obra de arte de Cerqueira (2015). Escrevemos, então, para movimentar o pensamento povoando as familiaridades e habitando as rotas de fuga.

Rezino (2017), indica que a arte é o signo que se liberta dos postulados modernos, representacionais e causais entreabrindo pensamentos livres, ecoando outras sensações. Assim, a arte é um signo generoso que se doa com suas intensidades para as outras áreas do conhecimento e, nesse curso, constitui-se como intercessor que se conecta e amplia direções. Diante disso, entendemos que o encontro entre a arte e outras perspectivas produz criação, renovação de postulados caducos, perversão de conceitos e, assim, prolifera a multiplicidade. Como indica Deleuze (1992/2008, p. 156), os intercessores podem ser diversificados "podem ser pessoas - para um filósofo, artista ou cientista; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais (...) Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores"; isto é, a arte, as coisas, as insignificâncias. Dessa forma, a arte ressoa sensações e a obra de arte de Cerqueira (2015) convida ao diálogo.

 

O racismo e sua relação com a produção subjetiva: a obra de arte "Amnésia", o poder e as práticas discursivas

A partir das relações até então desenroladas entre a arte e a Filosofia da Diferença, apresentamos a obra de arte de Cerqueira (2015) na Figura 1, a seguir, com a intenção de tornar visível as forças que podem não estar visíveis nesta arte:

Figura 1 - Foto da obra "Amnésia", de Flávio Cerqueira

Nota: Cerqueira (2015). Escultura de látex sobre bronze. Dimensões:135 x 38 x 41 cm. Acervo do MASP.

Essa obra é uma escultura feita em bronze, um material pouco utilizado em obras similares na arte contemporânea, que apresenta uma criança segurando sobre sua cabeça uma lata de tinta branca que escorre sobre seu corpo. O contraste entre o material de suporte da obra e a tinta branca provocam blocos de sensações em quem observa. Afecta pelas microrrevoluções que o artista convida a sentir. Eis a potência da arte - ser um intercessor que encontra outros planos para criar, afetar, provocar, apresentar o novo e convidar para uma nova sensação diante dos mesmos fragmentos da realidade conhecida.

Na contemplação estética da obra, uma ampliação: há uma criança negra se embranquecendo que nos convoca a problematizar os diagramas de poder que interpelam, na história das crianças no Brasil, a sujeição de crianças negras a essa máquina social. A tinta branca que escorre sobre o corpo da criança e contrasta com a cor do bronze envelhecido, remonta a violência do projeto de embranquecimento infligido à população negra no Brasil. Deixa escorrer a construção da ideia de miscigenação e, sobretudo, do racismo que atravessa a sociedade. Deixa verter as capturas que perduram na produção de subjetividades brasileiras e que evocam um projeto societário da elite branca colonial interessada em fazer desaparecer, paulatinamente, o negro brasileiro utilizando-se do cruzamento entre as raças para fundamentar esta expectativa (Bento, 2002).

Importante pensar as repercussões que esse pensamento provocava no plano social brasileiro da época. Segundo a psicóloga e ativista brasileira Cida Bento (2002), em um contexto pós-abolição e em um Brasil que começava a engatinhar um processo de modernização e crescimento da nação, as elites brancas coloniais interessavam-se por uma única questão: como construir uma identidade nacional? Este cenário favorecia o esgarçamento das teorias "científicas" sobre raça, em geral, importadas da Europa e dos Estados Unidos que surgiam para justificar as hierarquias sociais presentes no plano social e, então, endossar a engrenagem de um maquinismo racista no território brasileiro. Cabe destacar, que a categoria raça surgida no seio dos estudos biológicos entre os séculos XVI-XVII, criou-se com o objetivo de determinar uma dada forma de organização social estruturada, geralmente, em processos de dominação, hierarquia e violências (Munanga, 2003). Uma construção que reverbera ao longo do tempo e sistematiza modos de relação.

Entendemos que, para a época, a ideia de raça fundamentava postulados como o da miscigenação e do embranquecimento em grande cadeia. Sobretudo, na cena brasileira dos anos de 1870, essa visão repercutia na ceara da ciência, da imprensa e da arte produzindo abismos sociais em termos da condição humana de vida na sociedade. Essa realidade evidencia como a arte, a ciência e a filosofia também podem se render aos poderes; podem se assujeitar às correntes totalitárias. A título de exemplo, Cida Bento (2022), ressalta que o teórico Gilberto Freyre (1933/2003) endossou consideravelmente o discurso das elites no tecido social brasileiro, especialmente, por afirmar que as relações inter-raciais distanciavam os conflitos entre brancos e negros, implicando para o primeiro o usufruto de privilégios da condição racial e para o segundo a responsabilização pelos insucessos nas relações sociais (Bento, 2002).

Desse modo, esses discursos ressoam na produção de subjetividades no território brasileiro levando a leituras nas quais predominam concepções sobre o outro e o eu como individualizantes e extremamente separados. Em outras palavras, os conceitos de outro e de eu ficam reduzidos a leituras dos pressupostos modernos nos quais o sujeito seria o que se repete num processo de mesmidade, bem como, ele estaria separado em relação ao outro por diferenças ontológicas comparativas e por uma relação de exterioridade e interioridade.

Por seu turno, a Filosofia da Diferença orquestrada por Deleuze pontua os conceitos de outro e de eu não reduzidos a leituras nas quais o sujeito se repete num processo de infindável recognição e reapresentação resultando na identidade configurado como o mesmo (Deleuze, 1998, 2006). Na perspectiva da filosofia da diferença Deleuze recorre a problematização da interioridade e da exterioridade, bem como, recorre aos conceitos de multiplicidade, diferença, singularidade, estabelecendo uma relação com o outro na qual eu sou um outro também para eu mesmo, assim como sou constituído pelo outro.

Diante disso, a partir do referencial pós-estruturalista e, especialmente, deleuze-guattariano, consideramos importante salientar que compreendemos o constructo raça como uma categoria colada na tradição filosófica e científica moderna primadas na identidade. Esse conceito na contemporaneidade recebe problematizações e descrenças em diversas áreas do conhecimento, entretanto, compreendemos que ele opera um movimento de captura das subjetividades. Desse modo, ainda que não utilizemos o conceito raça como categoria analítica, nosso horizonte figura na análise dessas capturas subjetivas junto da noção de racismo como diagrama que atravessa a sociedade brasileira. Ainda, destacamos a notoriedade que o conceito racismo estrutural ganha em pesquisas e trabalhos psicossociais, mas, como ela se trata de uma perspectiva estruturalista a qual o referencial que utilizamos tece problematizações, preferimos utilizar a ideia de racismo buscando tensionar as cadeias de poder que estas relações configuram na imanência, no corpo, no processo de subjetivação e, portanto, na vida das pessoas.

Importante salientar que apesar da crítica atual realizada por diferentes áreas do conhecimento ao conceito de raça como categoria analítica, ela continua a operar com força através da captura das subjetividades. Como aponta Stuart Hall (2015), um sociólogo britânico-jamaicano, a raça constitui-se como um significante flutuante que na medida que organiza as diferenças constituidoras da humanidade se torna linguagem. Ou seja, constrói-se como um sistema de inteligibilidade que se entranha na cultura pelas cadeias discursivas; pelos seus significantes. Dessa forma, ainda que não centralizemos nossos esforços analíticos na perspectiva da raça como categoria estruturante da realidade, consideramos a construção de Hall (2015) interessante para problematizar a magnitude que esse signo regula nas práticas humanas e, portanto, despendemos problematizações sobre como os discursos e as práticas constituem modos de subjetivar (Foucault, 1969/2008).

A partir de Michel Foucault (1969/2008) compreendemos que as práticas discursivas são linguagens que demonstram saberes e poderes equivalentes dos jogos estratégicos de um determinado tempo e espaço. As práticas discursivas criam suas regularidades e, sobremaneira, suas próprias artimanhas para se autorregular e se sustentar no tecido social de forma a acompanhar as descontinuidades da história (Foucault, 1969/2008). Segundo C arvalho (2001, p. 64), as práticas discursivas referidas por Foucault ( 1969/2008 ) " se articulam com práticas econômicas, políticas e sociais. Deve-se pensar em uma composição complexa de forças em conflito; em uma conformação mais ligada à imagem de rede do que à de espiral". Dessa forma, consideramos que as práticas discursivas se conformam como uma rede de enunciados, bem como de saberes e poderes que estão emaranhados nas práticas sociais, isto é, nos fluxos que concentram a existência.

Essa perspectiva aciona na imanência certas lógicas que sustentam as práticas discursivas produtoras de modos de relação com o crivo das diferenças raciais. Em outras palavras, acreditamos que tais práticas discursivas se movimentam como linhas de um rizoma, isto é, como fluxos presentes em um plano de existência coletivo e social. As linhas, para Deleuze e Guattari (1995), coexistem nesse plano e podem ser corporificadas de modo endurecido ou maleável; molar ou molecular. Elas acontecem de modo segmentar, estratificando lógicas e territorializando saberes ou explodindo como linha de fuga. Esta última, especificamente, aponta para as viscosidades, para a circulação das intensidades que não se submetem às racionalidades modernas e hegemônicas e, assim, para a multiplicidade que encaminha a circulação de outras conexões e territórios (Deleuze & Guattari, 1995). Diante disso e, do sensível que a obra de arte "Amnésia" de Flávio Cerqueira (2015) desperta, evidenciamos a relevância de esboçar pistas de um mapa que forjam o racismo e as violências na experiência da infância das crianças negras no plano social do Brasil contemporâneo. Pois, como aponta Foucault (1969/2008, p. 234):

[...] fazer revelar as práticas discursivas em sua complexidade e em sua densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa - algo diferente de exprimir o que se pensa, de traduzir o que se sabe, e, também, de colocar em ação as estruturas de uma língua; mostrar que somar um enunciado a uma série preexistente de enunciados é fazer um gesto complicado e custoso que implica condições (e não somente uma situação, um contexto, motivos) e que comporta regras (diferentes de regras lógicas e linguísticas de construção); mostrar que uma mudança, na ordem do discurso, não supõe "ideias novas", um pouco de invenção e criatividade, uma mentalidade diferente, mas transformações em uma prática, eventualmente nas que lhe são próximas e em sua articulação comum.

Consideramos pertinente esse diálogo com Foucault (1969/2008) pois percebemos que ele se afina com as perspectivas deleuze-guattarianas. Por seu turno, as palavras do autor apresentadas anteriormente parecem exercitar o pensamento rizomático presente na filosofia da diferença. Nisso, acreditamos que a densidade das práticas discursivas que Foucault (1969/2008) se refere, aponta tanto para a força dos poderes impregnados nas relações sociais, como também deixa rastros de que a mudança nas cadeias discursivas passa pela transformação das práticas e do exercício de desvencilhar-se dos poderes soberanos.

Isso significa dizer que a transformação permeia o vertiginoso desafio de criar outras formas de encontro com a alteridade que habita o plano social, visando a superação da legitimação de critérios hierárquicos, binários, transcendentais e arborescentes para a existência. De forma específica para o que propomos como problematização, acreditamos que é preciso tensionar as ficções enunciadas em torno do racismo que regula as práticas presentes nas relações institucionais, familiares e singulares. É necessário, sobretudo, povoar esse campo que se agencia buscando encontrar as brechas que possibilitem arejar os modos de subjetivar.

A partir destas provocações que a obra de arte tem suscitado, consideramos relevante ressaltar que a proposta de articular o racismo como uma relação de poder recheada de linhas segmentares que capturam a subjetividade e as relações no tecido social, permite o esforço de deslocar as artimanhas da imagem do pensamento tradicional. Especialmente, entendendo o racismo como relação de poder, conseguimos minimamente transitar pelo movimento que esta relação desemboca na produção subjetiva e os seus assujeitamentos derivados.

Desse modo, ao mapear o diagrama de forças que produz o racismo tal qual conhecemos na realidade contemporânea, nos deparamos com práticas discursivas - em suas regras, saberes e permanências - que estão encorpadas de uma hierarquia simbólica que é feita por critérios estéticos, morais, psicológicos e políticos arbitrários. Isso aponta para como, historicamente, essas práticas discursivas se capilarizam privilegiando esses critérios e reportando o retrato de um dever ser social que enreda a produção de subjetividades em uma ficção de organização social.

Em outras palavras, o racismo também pode ser lido como uma relação de poder que se entranha no plano social para territorializar a produção de uma subjetividade hegemônica. Como tensiona Bento (2002, p. 01), na concepção criada na modernidade o branco ganha status de "modelo universal da humanidade, alvo da inveja e do desejo dos outros grupos raciais não-brancos e, portanto, encarados como não tão humanos". Compreendemos, assim, que a engenharia social que versa sobre a representação da diferença racial é escrita por uma ciência branca, moderna e hegemônica.

Particularmente, pensando as nuances da realidade brasileira, consideramos que o r acismo no Brasil se arquiteta como um processo de dominação que perpetua os mecanismos políticos, ideológicos e econômicos nas mãos dos humanos encarnados como hegemônicos. Ou seja, prioritariamente, nas mãos dos brancos, na valorização de características coloniais europeias e operacionalizando mecanismos de segregação e dominação da população negra e, sobretudo, da indígena.

A produção hegemônica problematizada acima que versa sobre a vida no plano social brasileiro (mas não só) convoca a articular a concepção de biopolítica cunhada por Foucault (1988/1999). Compreendemos que a intenção do autor consistia na tradução das dinâmicas postas na sociedade moderna que articulavam intervenções e regulações sobre o corpo, especialmente por disciplinas da biologia. Para Foucault (1989/1999), os processos de viver e morrer estavam em pauta e a gestão deles evidenciavam a anuência de um poder soberano que assim permanecia, pois recebia endereços, tecnologias e técnicas de assujeitamento dos corpos e controle da população. Não à toa as igrejas, hospitais, escolas e empresas se configuraram como esses endereços que, fundamentalmente, submetiam a vida e o corpo em condições que "[caiam], em parte, no campo de controle do saber e de intervenção do poder" (Foucault, 1989/1999, p. 134). Portanto, Foucault (1989/1999, p. 134) alertava que, na história do mundo ocidental, o século XIX edificava como "o biológico reflete-se no político".

Esse conceito provoca a reflexão sobre "o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana" (Foucault, 1989/1999, p. 134). Dessa forma, na particularidade do racismo como uma relação de poder entranhada na sociedade brasileira e, especialmente, no governo da vida imposto por diversos dispositivos de controle e disciplina, percebemos que há diferenciados mecanismos que sustentam a existência cravejadas em políticas neoliberais, conservadoras, raciais, de vida e de morte. Nessa via, as práticas discursivas territorializam e desterritorializam a biopolítica ao passo que poder e resistência circulam; coexistindo assim como as linhas segmentares e de fuga propostas por Deleuze e Guattari (1995).

Ainda, consideramos relevante salientar a proposição de Achille Mbembe (2018), sobre a necropolítica nas problematizações que tecemos sobre os movimentos do racismo na produção de subjetividades. O autor, inspirado no conceito de biopolítica de Foucault (1989/1999), inaugura esse conceito a partir de sua leitura sobre os diagramas contemporâneos que sustentam o controle da vida e da morte. Mbembe (2018) provoca a leitura de que apenas a biopolítica não dá conta de pensar as tramas sociais atuais, pois os mecanismos em curso se operam na perspectiva de subjugar a vida pelo poder da morte.

A aposta do autor refere-se à processualidade que o biopoder tomou nos Estados modernos, principalmente após o acontecimento que foi o Estado nazista. Essa fatídica cena histórica esboça uma certa máquina social que gesta e protege a vida a partir da soberania do ato ou ameaça de matar. Por seu turno, o alvo desse poder soberano reside na desumanização daquele que é considerado diferente; divergente da norma hegemônica e, nesse ponto, Mbembe (2018) salienta como esse Estado criado na história da humanidade ilustra um Estado também amalgamado pelas relações de poder do racismo.

Levantamos essas leituras de Foucault (1989/1999) e Mbembe (2018) para salientar como o controle dos corpos e, então, as políticas de vida e de morte, no Estado brasileiro, permeiam os diagramas e complexidades do racismo. Isso significa dizer que a necropolítica como uma linha que indica outras segmentaridades, demonstra que uma nova existência social tem sido produzida, isto é, que a vida destas novas subjetividades está sob o critério biológico, mas também, ideológico, político, estético e ético.

Nessa perspectiva, o racismo é uma engenharia que se retroalimenta tanto da biopolítica como da necropolítica. Assim, esse paradigma que apontamos desatina a tensionar como a concepção de raça parece permanecer fundamentando as práticas, os discursos e as políticas no plano social brasileiro, mesmo com os esforços contemporâneos em superá-la. Sua força, sobretudo, revela como as relações de poder em torno do racismo flertam com as lógicas totalizantes, hierárquicas e coloniais.

Nesse ponto, a obra de arte de Cerqueira (2015) tensiona as conexões que as práticas discursivas do racismo - imbuídas de suas armadilhas da biopolítica, da necropolítica e do governo dos poderes - constituem condições de vida e morte para o negro no Brasil. Ainda, a obra convida a um retrospecto da história brasileira, evidenciando que a produção de subjetividades da contemporaneidade também é composta de linhas historicizadas. Dito de outra forma, compreendemos que as perspectivas em torno da miscigenação e de mitos como a ótica do embranquecimento no Brasil e, fundamentalmente, o mito da Democracia Racial Brasileira (Bento, 2002), possuem o racismo como uma ficção orientativa que desemboca nos modos de subjetivação.

A filósofa Marilena Chauí (2003) aponta um panorama interessante sobre a construção de mitos em um plano social. Segundo Chauí (2003, p. 48), um mito "substitui a realidade pela crença na realidade narrada por ele e torna invisível a realidade existente", isto é, ele produz uma narrativa sobre a sociedade que se conserva mesmo que a narrativa originária tenha se perdido. Em outas palavras, os mitos afeitos às práticas discursivas que adotam caricaturas da mesmidade, da hierarquia e das lógicas de causalidade governam os diagramas que pintam uma realidade tal qual a um retrato dos senhores de engenho em suas casas grandes. Esses arquétipos mitológicos, como linhas endurecidas, dão vazão à norma, ao normativo e ao hegemônico. Fazem escorrer as violências, as distopias e o racismo brasileiro.

Consideramos que a autora abre picadas em um plano social endurecido por essa mitologia salientando como as violências, em especial as tramas violentas do racismo, aparecem como esporádicas e não como entranhadas nas relações sociais. Esse panorama proporciona pistas sobre como ocorre a produção das subjetividades nos diagramas do racismo, especialmente, enfatizam como a herança do pensamento moderno, colonial e tradicional operam, geralmente, des-potencializando a produção da diferença de subjetividades negras. A autora convida a pensar sobre como a sociedade brasileira é regida por um plano de forças também mitológico sobre a (não) violência. Dessa forma, esses mitos em potenciais naturalizam a realidade das violências e fazem com que "as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas políticas e sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, a intolerância religiosa, sexual e políticas não [sejam] consideradas formas de violência" (Chauí, 2003, p. 52).

Diante disso, entendemos que os pressupostos modernos que detêm a hegemonia na rede social brasileira atuam no sentido de manterem a suposta não relação entre eu e o outro, recorrendo entre outros artifícios ao conceito de identidade que separa e antagoniza as subjetividades. Esses pressupostos operam como suporte e legitimação ao tratamento desigual e a violência destinada ao denominado outro, encarnado neste estudo - na criança negra. Porém, quando conseguimos pensar e sentir que somos atravessados e constituídos pelo outro, que a diferença se atualiza em virtualidades e devires, enfim que não nos constituímos por eternas repetições do mesmo congeladas no espaço e tempo, podemos ser capazes de questionar as violências dirigidas ao suposto outro individualizado.

Antes que outrem apareça, havia, por exemplo, um mundo tranquilizante, do qual não distinguíamos minha consciência; outrem surge, exprimindo a possibilidade de um mundo assustador, que não é desenvolvido sem fazer passar o precedente. Eu nada sou além dos meus objetos passados, meu eu não é feito senão de um mundo passado, precisamente aquele que outrem faz passar. Se outrem é um mundo possível, eu sou um mundo passado (Deleuze, 1998, pp. 319-320).

Se a realidade não se constitui em antagonismos e distinções, a produção subjetiva também não seguirá esse paradoxo. Conforme a perspectiva deleuze-guattariana teremos que a produção subjetiva é emaranhada por outrem, pela diferença que gera a capacidade de criar. Toda captura orquestrada pelas linhas segmentares indicam a sistematicidade das lógicas cronológicas e representacionais e, portanto, aprisionam o fluxo dos devires. Nesse ponto, a arte é soberana e sua abordagem ultrapassa os pressupostos modernos, pois carrega possibilidades e potências para além da representação, da recognição, do universal. Portanto, a obra de arte se articula ao singular, ao devir, a multiplicidade e problematiza as linhas de força que produzem subjetividades capturadas pelas referências identitárias duras e segmentadas.

Nesse sentido, a obra de arte "Amnésia", de Cerqueira (2015), desenrola a potência da vida e do outro constitutivo dos fluxos da existência que permeiam o plano social brasileiro. A partir do título da obra, o artista nos faz habitar um terreno sedimentado pela ideia da cognição e tensiona sobre o par de opostos amnésia/memória. Em outras palavras, o artista nos faz questionar sobre o que o plano de forças brasileiro tem esquecido ou quer esquecer. Ou então, como lembrar de um fluxo vivido sem o intermédio de um aparato cognitivo que versa sobre a supressão dos seus rastros. Talvez, como inspira a Filosofia da Diferença, a perspectiva esteja em povoar as reticências que ficaram de um dado vivido desatando os nós; abrindo espaço para multiplicidade e, enfim, potencializando a diferença que produz as subjetividades.

Cerqueira (2015), a partir de sua obra de arte, convoca a problematização de uma modalização subjetiva cruel presente no Brasil. Especialmente, sua obra convida a sentir as nuances de um sofrimento que, possivelmente, habita o corpo da figura esculpida: a tentativa de não permanecer o mesmo para enquadrar-se em um diagrama social; a busca por pintar-se como folha branca para brincar de viver; ou ainda, não banhar-se completamento para confrontar os poderes e, enfim, refazer-se sem as armadilhas naturalizadas e assujeitadoras. Em suma, a obra de arte tem muitas entradas, afecta de tantas formas e, a partir da leitura que lançamos, ela desafia a tarefa de como operar a perspectiva ética deleuze-guattariana que desmanche os diagramas do racismo na intenção de encontrar as linhas de fuga que são capazes de desterritorializar e territorializar novos planos.

A tarefa da pintura [da obra de arte] é definida como a tentativa de tornar visíveis forças que não são visíveis. Da mesma forma, a música se esforça para tornar sonoras forças que não são sonoras. Isso é evidente. A força tem uma relação estreita com a sensação: é preciso que uma força se exerça sobre um corpo, ou seja, sobre um ponto da onda, para que haja sensação (Deleuze, 2007, p. 62).

A arte, na perspectiva de Deleuze, reverbera sensações e isso significa dizer que ela potencializa um processo de experimentação e de deslocamento das referências totalizantes. A arte convoca o afeto e a experiência para que assim se possa fabular outras imagens para o pensamento (Deleuze, 1992/2008). Nessa perspectiva, a arte impulsiona a criação do pensamento e é um intercessor que se soma a outras áreas e produz um pensamento diferencial. Rezino (2017) aponta, a partir de sua leitura em Deleuze, que os intercessores são elementos que orientam uma possibilidade metodológica para a criação do pensamento na perspectiva da Filosofia da Diferença. Ainda, a autora evidencia que "os intercessores se manifestam como variações heterogêneas de múltiplos componentes de intensidades, atravessam o pensamento e compõem com ele; o movimenta fazendo-o percorrer caminhos outros" (Rezino, 2017, p. 13).

Consideramos, portanto, que a obra de arte de Cerqueira (2015) é um importante intercessor na produção de um pensamento outro sobre a produção de subjetividades de crianças negras no plano de forças brasileiro. Um pensamento que se expande desfazendo-se das esferas representativas e intelectivas e conecta com a sua sensibilidade: linhas de fuga (Deleuze, 1992/2008; Rezino, 2017). Segundo Deleuze e Guattari (2010), as linhas de fuga emergem das conexões que fazemos com o de-fora, isto é, com o incapturável, com o singular, com a diferença. São estas conexões que permitem a explosão de novas expressões, as quais renovam os discursos e quiçá às práticas. Nesse ponto, Cerqueira (2015) amplia intercessões que tensionem os modos de subjetivar das crianças negras no Brasil.

Dessa forma, a obra de arte de Cerqueira (2015) também interpela sobre como essas linhas de forças produzem a subjetividade da criança negra e a experiência de sua infância diante das relações de poder do racismo brasileiro. Importante destacar que a criança é uma invenção moderna e tem a vivência de sua infância entremeada às práticas discursivas que versam sobre a cronologia, a representação e à hierarquia (Resende, 2015). Desse modo, consideramos que a criança, desde que nasce, passa por diversos movimentos de violência a depender das condições econômicas, políticas e sociais em que estará envolvida. Um percurso que diz da realidade do plano social brasileiro, mas sobretudo, de diversos endereços no mundo.

Dialogando com a historiadora Mary Del Priori (2012), percebemos que a história das crianças brasileiras é difícil de ser contada, especialmente, por estar entrelaçada nos processos históricos da colonização, do extermínio dos povos originários, da escravização dos negros; dos processos de desigualdades sociais, políticas e econômicas do Brasil. Sobremaneira, por ser marcada por relações de desamparo, violências físicas e simbólicas, invisibilidade e criminalização de seus atos que as distanciaram, em termos históricos, de relações de cuidado, afeto, proteção e recursos materiais e simbólicos para a sua existência.

Importante, também, destacar que na história das crianças brasileiras alguns lampejos institucionais e jurídicos foram organizados com o objetivo de desenhar políticas sociais e de direitos para a infância e a juventude. Isso significa dizer que linhas de fuga desterritorializaram um plano duro de deslegitimação e violência para com as crianças, territorializando um novo campo sob a égide dos direitos humanos, da Constituição Brasileira de 1988 e, sobretudo, do marco legal e regulatório dos direitos das crianças e adolescentes pela Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que versa sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. No plano social brasileiro contemporâneo, reconhecemos a relevância destes marcos legais, mas também problematizamos sobre como eles não são suficientes para empreender uma considerável proteção da criança e, fundamentalmente, são construídos ancorados em uma perspectiva representacional e universal da criança - sujeito de direitos.

Diante desse ponto levantado, a obra de arte de Cerqueira (2015) é uma figura estética que recobra o plano de imanência nos convidando a compor tensionamentos sobre qual é a criança pintada como ideal no plano jurídico e social brasileiro? Qual a infância possível para a criança que não esteja refém à biopolítica, à necropolítica, às relações de poder do racismo, ao mito da não violência brasileira, ao governo das infâncias?

Lançamos estas perguntas com a intenção de remexer as linhas segmentares que remontam o plano de forças brasileiro e, assim, liberar a produção de mapas existenciais para as subjetividades das crianças negras, pois, como nos lembra Deleuze (1997, p. 73), "a criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente. Os mapas dos trajetos são essenciais a atividade psíquica".

 

A arte mobilizando afecções e virtualidades

Importante destacar que a arte fisga e convida para bailar com a novidade, isto é, com a virtualidade que se agencia. Deleuze (1992/2008), em particular, aponta que o convite feito pelas artes é da ordem da sensibilidade; de blocos de sensações que ela pode reverberar em um corpo. Para o autor, a arte é um signo que cria por si mesma os seus agenciamentos. Isso significa dizer que a arte oferece a possibilidade de transgredir os limites da lógica representacional porque dança de forma livre, porque libera a potência e ressoa esse efeito na imanência.

Um mapa de virtualidades, traçado pela arte, se superpõe ao mapa real cujos percursos ela transforma. Não e só a escultura, mas toda obra de arte, como a obra musical, que implica esses caminhos ou andamentos interiores: a escolha de tal ou qual caminho pode determinar a cada vez uma posição variável da obra no espaço. Toda obra comporta uma pluralidade de trajetos que são legíveis e coexistentes apenas num mapa, e ela muda de sentido segundo aqueles que são retidos. Esses trajetos interiorizados são inseparáveis de devires. Trajetos e devires, a arte os torna presentes uns nos outros; ela torna sensível sua presença mútua e se define assim, invocando Dioniso como o deus dos lugares de passagem e das coisas de esquecimento (Deleuze, 1997, p. 79).

Como inspira Deleuze (1997), a arte desemboca uma pluralidade de caminhos, entradas e saídas; é feita de percursos singulares, de devires. A arte, então, tem a potencialidade de desmembrar trajetos e de propor a composição de mapas. O mapa, segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 30), "é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, se preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social". Sendo os trajetos e os câmbios constituidores dos mapas, consideramos relevante apresentar o nosso encontro com a obra de arte de Cerqueira (2015) e, sobremaneira, apresentar esse personagem que nos inspira na composição desse mapa-escrito.

Encontramos com a obra de arte "Amnésia", de Flávio Cerqueira, em uma exposição no MASP na cidade de São Paulo em meados de 2019. Com a possibilidade das conexões via a internet, pudemos reencontrá-la e, num outro espaço-tempo, ser afectadas por suas virtualidades novamente. Essa obra foi produzida em 2015 e fez parte de uma exposição do artista intitulada " Se precisar, conto outra vez" no ano de 2016. Nas palavras do artista, a exposição "buscava narrar novas versões para a história oficial do Brasil" e a obra de arte "Amnésia" "se relaciona com isso ao tratar do embranquecimento da população negra, um lado perverso da ‘mestiçagem’" (SP-Arte, 2018). No ano de 2018, essa escultura, compôs a exposição chamada "Histórias afro-atlânticas" com a curadoria de Hélio Menezes e atualmente, faz parte do acervo do MASP (SP-Arte, 2018).

O artista Flávio Cerqueira nasceu na cidade de São Paulo em 1983 e tem mestrado em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Participou de variadas exposições no Brasil e em outros países do mundo e se interessa pela escultura desde a sua juventude. A partir de sua visita a uma exposição do artista francês Auguste Rodin, no espaço da Pinacoteca de São Paulo, encontra na matéria-prima do bronze um material fundamental para os seus próximos trabalhos (SP-Arte, 2018). Segundo o site Afro (2021), o artista "trabalha com processo tradicional de escultura conhecido como fundição por cera perdida e fundição em bronze" e a partir dessa base molda personagens presentes na vida cotidiana e transporta seus espectadores às narrativas históricas, políticas e culturais do plano social.

De acordo com o site Afro (2021) uma das características do artista Flávio Cerqueira é a de estabelecer um trabalho de coautoria de suas produções com os espectadores. Isso acontece pelo artista utilizar títulos sugestivos e compostos de referências da História da Arte e de retratos da história da humanidade. Em outras palavras, o artista brinca com os trajetos e os devires que habitam a inseparabilidade entre o eu e o outro. Faz de suas obras de arte flechas que afectam pela sensibilidade e como ponte, convidam a traçar linhas movediças de mapas existenciais coletivos e singulares. Nesse sentido, a obra de arte "Amnésia" (2015), segundo o artista em uma entrevista fornecida ao SP-Arte (2018), é uma escultura feita em bronze que versa sobre:

O personagem da escultura simboliza a última pessoa a sofrer esse processo, a lata de tinta que o garoto despeja em seu próprio corpo não tem material suficiente para cobri-lo por inteiro. Como o bronze sempre serviu para registrar um momento histórico, não seria diferente com esse garoto (SP-Arte, 2018).

A descrição do artista sobre a confecção da escultura amplia horizontes na composição que fazemos. Suscita novos tensionamentos. Nesse sentido, percebemos que o corpo esculpido na escultura representa o tamanho de uma criança real, de uma criança negra que faz parte do plano social brasileiro. Ainda, visualizamos escorrer sobre esse corpo a tinta da cor do processo de embranquecimento que se esparrama pelas subjetividades de tantas outras crianças negras. Como salienta o artista, esse personagem é o último corpo a passar por esse processo e a tinta despejada não é suficiente para embranquecê-lo. Na tentativa de dar conta na relação entre a escultura, o título e a descrição do artista percebemos que o trajeto do pensamento não é universal ou deve obedecer a imagem dogmática do pensamento. Em outras palavras, não precisamos criar conexões ditadas pela coerência racionalista do pensamento ou buscando uma verdade é possível fabular outros conceitos; povoar outros territórios.

Como inspira Deleuze (1992), a aposta está em como a arte pode ser um intercessor potencializador de novas nuances para os velhos problemas. Sobre isso, Abreu (2010, p. 290) pontua que " a filosofia procura as artes e as ciências para compor com elas blocos de resistência ao dogmatismo em filosofia e aos poderes que visam a separar as potências vitais daquilo que elas podem". Dessa forma, mobilizadas pelo intercessor que a obra de arte de Cerqueira (2015) figura, salientamos como esta obra exala virtualidades que desenrolam tanto as linhas da sujeição e do embranquecimento como representantes da vontade de poder colados à maioria, como também, as linhas de potência e de fuga que colocam a minoria da criança negra em experimentação.

Em outras palavras, a produção de subjetividades das crianças se produz nos planos molares e moleculares da realidade e isso significa dizer que ela é feita tanto por linhas endurecidas que se segmentarizam e territorializam cadeias de poder, como por linhas de fuga que desterritorializam o instituído liberando a diferença; anunciando a vida (Deleuze & Guattari, 1995). A partir dessa perspectiva deleuze-guattariana, intentamos dizer primeiro que a relação do racismo, bem como a relação que temos para com a infância da criança, são relações forjadas no bojo de uma sociedade moderna interessada em classificar, separar e hierarquizar a diversidade humana em pressupostos como a lógica formal, a linearidade e em mecanismos de controle e disciplina (Resende, 2015).

Fundamentalmente, a lógica de governo da infância para as crianças negras se desdobra de forma desafiadora, visto que crescem e se subjetivam imbricadas nas violências do racismo, na violência de Estado, nas tramas das desigualdades e, até mesmo, em ações violentas de políticas sociais e jurisdições brasileiras criadas para defenderem os direitos dessa infância denegada. De acordo com Lira e Hanna (2016, p. 1), "segundo dados da Unicef, a cada dia, 28 crianças e adolescentes morrem no país devido a situações de violência" e essas mortes, geralmente, tem endereço, cor e idades específicas. Em outas palavras, consideramos pertinente pontuar que seja pela bala perdida, pelo tiro certeiro ou pelas políticas sociais que não alcançam as experiências das infâncias e juventudes brasileiras, a processualidade das violências do racismo continua roubando as vidas de crianças e adolescentes negros, pobres e periféricos.

Nesse ponto, a tinta insuficiente que Cerqueira (2015) assinala abre margens para a legitimação de políticas de morte enredadas nos poderes do racismo rondarem a experiência da infância das crianças negras. Essa tinta ficcional que não cumpriu a sua função de embranquecer o plano social brasileiro, mas que se esparramou pelo solo e enraizou-se como modo de subjetivação, ainda, tem efeitos. O principal deles é o de subtrair os trânsitos e as potências dos mapas existenciais de crianças e jovens negros brasileiros.

Considerando que poder e resistência circulam, isto é, que linhas endurecidas e maleáveis transitam sobre um plano de forças, apresentamos um segundo ponto de intercessão que a obra de arte de Cerqueira (2015) estica. A partir da descrição do artista, testemunhamos que a tinta branca que se faz insuficiente para tornar a criança negra - branca - diz sobretudo, da rota de fuga que se inaugura. Em outras palavras, acreditamos que a possibilidade de quebrar a norma está no reconhecimento de que essa tinta do embranquecimento não é suficiente para cobrir a alteridade da subjetividade negra, isto é, de sua humanidade e de sua singularidade.

Essa linha de fuga que explode expõe que práticas discursivas do racismo, da biopolítica e da necropolítica, empregadas pela branquitude, não conseguem recobrir totalmente a produção subjetiva, sendo que algo escapa a esse recobrimento e envereda por novas possibilidades. A rota de fuga explicita e propõe a necessidade de ruptura com o destino revelado e problematizado por Fanon (2008) em "Peles Negras, máscaras brancas", de que no plano social atravessado pelo racismo parece haver apenas o caminho de incorporação do branco para o negro poder sentir-se humano.

Acreditamos que essa ruptura, especialmente, para a vivência da infância das crianças negras delineia novos rumos pra a produção subjetiva, compondo com a diferença outros modos de relação que superem o crivo da ficção das diferenças raciais. Consideramos, portanto, que esse corpo negro não precisa da tinta branca para ser legitimado como humano e essa é uma das pistas da transformação profunda e necessária das relações em sociedade que Fanon (2008) deixou como legado. É preciso que busquemos, cada vez mais, a potencialização de todas as vidas e não umas em detrimento de outras.

Assim, a potência dessa obra de arte também está na criação de condições revolucionárias que desestabilizam as relações de poder calcificadas para com a criança negra no Brasil. Ela evidencia a relevância de que os diversos campos do saber tensionem os efeitos que a linha dura do racismo e da modernidade diagramam na produção de infâncias negras. Nessa perspectiva, ensejamos que o movimento de subtrair a hierarquia, o poder e a transcendência possibilitam brotar uma infância minoritária que impulsiona um devir-minoritário da criança negra. Em suma, considerar os fluxos de um devir-minoritário para a criança negra potencializa sua existência, embala sua produção desejante e, busca, cada vez mais, distanciar os processos que aprisionam ou furtam a vida na processualidade das violências e do racismo no tecido social brasileiro. Essa é a aposta.

 

Devir-minoritário da criança negra: um anúncio da multidão de minorias

O bloco de sensações que a obra de arte de Cerqueira (2015) reverbera provoca revoluções que denunciam as relações de poder do racismo e anunciam que a vida das crianças negras não pode ser preenchida por um balde de tinta branca. Ela não cabe nessa tinta; nessa cor do embranquecimento que opera com violência uma modalização subjetiva. Nessa perspectiva, a obra de arte exacerba que essa tinta não é o único destino para o negro brasileiro. Ainda que ela permaneça como tinta invisível nas práticas discursivas orientativas das relações do plano social, como nos debruçamos a tensionar nesse escrito, acreditamos que a infância das crianças negras não deve ter sua produção subjetiva exclusivamente impregnada com as marcas desta tinta. A vida exige mais; a vida quer encontro com a diferença para poder inventar-se.

Os tensionamentos que esboçamos neste escrito, portanto, evidenciam a necessária transformação das práticas discursivas para a produção de outros modos de subjetivar. Nisso, consideramos que a Filosofia da Diferença lança ferramentas importantes para uma análise ética das relações de poder que impregnam a imanência de linhas duras e segmentares, bem como flexíveis e de fuga. Posto que, os discursos e as práticas operam nesse plano de forças ora potencializando e ora aprisionando a vida nas relações e utilizam paradigmas de captura subjetiva que são incorporados pelos mecanismos institucionais de dominação, sujeição ou resistência.

Dessa forma, a arte de Cerqueira (2015) suscita quebrar com os pensamentos caducos no que diz respeito a imagem universal pintada para a criança negra e, sobretudo, tensionar a produção do racismo entremeada à história, cultura e relações sociais brasileiras. Em última instância a obra de arte evoca em sua potência a emergência da produção de outros devires para a experiência da infância das crianças, em especial da criança negra presente no plano social brasileiro.

Assim, considerar o movimento do devir significa dizer que ele é composto por fluxos, por potências, pela diferença e por trânsitos. O devir não se circunscreve em uma forma ou uma sucessão de fatos que levam a transformação e a metamorfose, sua composição é molecular e seu curso se faz na relação de partículas e afetos que se agenciam nas relações (Deleuze & Guattari, 2010). Diante disso, pensar o processo de devir para a criança é esboçar uma outra imagem para o pensamento, visto que, admitir a criança como devir é vê-la escapar das exigências desenvolvimentistas ancoradas na lógica formal e cronológica e, então, encontrá-la compondo trajetos, experimentando suas potências com os recursos que acessa da imanência. De acordo com Ceccim e Palombini (2009, p. 308), "a criança é um conjunto de potências devindo", sua passagem percorre intensidades e se constitui agenciando linhas de um mapa.

Guattari (1987, p. 67), em seu livro Revolução Molecular: Pulsações políticas do desejo, versa sobre um devir-criança para destacar que a revolução das relações de poder, em especial a do capitalismo ou aquelas presentes em um sistema fascista, "passa por uma libertação prévia de uma energia de desejo", pela superação de relações de alienação que recaem nas experiências de mulheres, minorias sexuais e especialmente das crianças. Em outras palavras, Guattari (1987) aponta para as molecularidades, para a fluidez do devir-criança que habita um plano coletivo e singular e, desse modo, para um devir-minoritário para criança.

Liberar o desejo para o devir-minoritário da criança, significa pensar o momento da sua infância "como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação" (Kohan, 2003, p. 63). Sobretudo, consideramos que liberar as forças do devir-minoritário para a criança negra se refere à revolução molecular que ela pode tecer. Isso significa dizer que o devir-minoritário diz de uma potência revolucionária que uma minoria pode catalisar para constituir modos de vida nômades e, então, se libertar do jogo representacional minoria vs. maioria e os poderes envolvidos (Deleuze & Guattari, 2010).

A partir da filosofia deleuze-guattariana entenderemos que a relação entre a maioria e a minoria não difere de quantidade, mesmo porque na perspectiva dos autores u ma minoria é muito maior, em termos quantitativos que a maioria, uma vez que, o que ela anuncia na exterioridade dos encontros é a multiplicidade. Nesse sentido, a compreensão sobre maioria diz respeito ao modelo majoritário que ela empreende e que se desenrola na consolidação da figura dominante do homem branco, hétero, falante, europeu e civilizado como o metro padrão. Por ser a representação do ideal, o modelo majoritário define com base na hierarquia a própria ideia de minoria. A minoria, na repercussão da maioria, é um modelo que não possui modelo próprio tal qual ao modelo majoritário da maioria, mas, caso o construa esse será capturado como forma de rivalizar com a maioria hegemônica. Maioria, portanto, é uma construção política que metaboliza relações de poder e dominação no plano social.

Por seu turno, Deleuze e Guattari (2010) evidenciam que para uma minoria ser maior do que a maioria é preciso que um membro dela se descole dela nesta captura de representação (como menor quantitativo e refém do ideal do modelo majoritário) e crie devires minoritários. Nesse sentido, não basta ser criança e/ou ser criança negra é preciso produzir um devir-criança e um devir-criança negra minoritários. É fundamental provocar uma revolução pelo devir, por devires minoritários que não se coadunem com a imitação ou correspondência simbólica, mas que se desenrolem no real, na imanência (Deleuze & Guattari, 2010). Ou seja, é preciso libertar as crianças das capturas do racismo e do governo das infâncias para que elas apontem para as linhas de fuga, criem modos de vida na expedição, na relação com o que vivem e sentem, nos mapas que podem tracejar (Ceccim & Palombini, 2009).

Dessa forma, consideramos que a conjunção entre a arte de Cerqueira (2015), a Filosofia da Diferença e a potência do devir-minoritário encaminham ranhuras de um plano endurecido pelos poderes contemporâneos e, assim, possibilitam encontrar brechas das linhas estratificadas da modernidade para agenciar o inédito e a diferença. Em outras palavras, ensejamos nesse escrito tensionar e apresentar rotas de fuga que considerem outros modos de relação para com a experiência da infância da criança negra no maquinismo social brasileiro. Ou seja, é fundamental ampliar as conexões de experimentação da imanência, de exploração dos espaços, de vivências intensivas e descobridoras de outros mundos reais e imaginários, de condições sociais que possibilitem a criação de sabores próprios para se fazer gente.

Consideramos que tecer devires-minoritários para a infância da criança negra é apostar na potência da vida endereçar múltiplos circuitos para os modos de subjetivar, ainda que esta esteja atravessada pelas tramas das desigualdades, do racismo e da vontade de homogeneização. O devir minoritário das crianças é incontável; ele insiste em criar outras linhas possíveis para existir, pois seu desejo não se finda em uma matriz cronológica temporal, mas ocupa uma geografia molecular das intensidades (Kohan, 2003). Apostamos, portanto, que o devir-minoritário das crianças negras provoca a produção de multidões de minorias que desestabilizam o programado da universalidade da maioria (Cardoso Jr., 2012). Anuncia a vida que pede passagem para resistir e criar.

Nesse sentido, a multidão pode ser entendida como uma multidão de singularidades dotada da capacidade de autogerir uma forma de vida aquém do paradigma de representação do poder soberano e das formas tradicionais de governo. Assim, partindo do diálogo da perspectiva da Filosofia da Diferença, de minoria e da compreensão de multidão desenhada por Michael Hardt e Antônio Negri, nos interessa considerar que o devir-minoritário é preenchido por uma multidão de diferenças e cada sujeito é uma multidão de convenções de singularidades (Cardoso Jr., 2012).

Dessa forma, a concepção de multidão é uma proposta política que deseja constituir um coletivo de sujeitos comuns como multidão de diferenças. Essa multidão tem potencial de superar a ideia de singularidade individual e impulsionar a singularidade enquanto diferença, para enfrentar as forças soberanas (neoliberais, fascistas, necropolíticas). Assim, acreditamos que a multidão de devires-minoritários da infância das crianças negras, junto a outros devires-minoritários podem abrir novos rumos para a composição de mapas coletivos no plano social brasileiro.

Este escrito apresenta picadas e pistas que remontam a multiplicidade de diferenças constituidoras da vida e das relações em sociedade. Consideramos que estas linhas que lançamos possuem potencialidade para proliferar micropolíticas que desassosseguem os poderes que esmagam o desejo ou o limitam a própria clausura. Portanto, micropolíticas que libertem o devir-minoritário da infância das crianças negras e legitimando-as a agenciar outros afetos, outras experimentações e, então, criar existências.

 

 

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Endereço para correspondência
Letícia Teles de Sousa
E-mail: leticiatelesdesousa@gmail.com
Mériti de Souza
E-mail: meritisouza@yahoo.com.br

 

 

*Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Psicóloga formada na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL); mestranda em Psicologia Social pela UFSC e bolsista FAPESC; ORCID 0000-0002-0491-4235.
**Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP; Pós-Doutorado no CES - Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra; professora permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC; ORCID 0000-0002-8157-7615.

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