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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

O nordeste e os nordestinos representados no Rio de Janeiro: Uma análise em torno das produções de memória e identidade presentes na feira de São Cristóvão e na feira de Caxias

 

The northeast and the northeasterners represented in Rio de Janeiro: an analysis around the productions of memory and identity present in the feira de São Cristóvão and the feira de Caxias

 

El nordeste y los nororientales representados en Río de Janeiro: un análisis en torno a las producciones de memoria e identidad presentes en la feira de São Cristóvão y la feira de Caxias

 

 

Rodrigo Sampaio PintoI*; Ricardo SalztragerI**

IUniversidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de tecer considerações analíticas a respeito das representações de Nordeste e nordestinos perpassadas no Rio de Janeiro por meio da Feira de São Cristóvão e da Feira de Caxias. Compreende-se tais lugares e espaços como privilegiados para a análise a respeito dos processos de produção de memórias e identidades dos nordestinos no estado do Rio de Janeiro. O debate gira em torno da problematização da identidade produzida e da evidenciação das diferenças existentes. Com este intuito, realiza-se um debate entre Pierre Nora, a respeito do conceito de "lugares de memória" considerando as feiras analisadas, e Michel Foucault, sobretudo a respeito do poder em sua dimensão positiva ou produtiva.

Palavras-chave: Nordestinos, memória, identidade, produções, diferenças.


ABSTRACT

This article aims to make analytical considerations about the representations of Northeast and Northeasterners in Rio de Janeiro through the Feira de São Cristóvão and Feira de Caxias. We understand such places and spaces as privileged for the analysis of the processes of production of memories and identities of the Northeasterners in the state of Rio de Janeiro. The debate revolves around the suspension of the produced identity and the evidencing of the existing differences. With this purpose, a debate is held between Pierre Nora, regarding the concept of "places of memory" considering the places analyzed, and Michel Foucault, especially regarding power in its positive or productive dimension.

Keywords: Northeasterners, memory, identity, productions and differences.


RESUMEN

Este artículo pretende hacer consideraciones analíticas sobre las representaciones del nordeste y de los nordestinos en Río de Janeiro a través de la Feira de São Cristóvão y Feira de Caxias. Se entiende tales lugares y espacios como privilegiados para el análisis de los procesos de producción de memorias e identidades de los nordestinos en el estado de Río de Janeiro. El debate gira en torno a la sospecha de la identidad producida y la puesta en evidencia de las diferencias existentes. Con este fin, se mantiene un debate entre Pierre Nora, en relación con el concepto de "lugares de la memoria" considerando los lugares analizados, y Michel Foucault, especialmente en relación con el poder en su dimensión positiva o productiva.

Palabras clave: Nordestinos, memoria, identidad, producciones y diferencias.


 

 

Ao longo dos últimos cem anos muito se escreveu sobre o tema da identidade do povo nordestino. Desde meados do século XX, diversos pesquisadores debruçaram-se em investigações que buscavam delinear as origens culturais e étnicas do Nordeste brasileiro e, por conseguinte, dos indivíduos oriundos desta região brasileira, conhecidos nacionalmente como nordestinos. Em relação a este vasto campo de debate, o consagrado livro Nordeste (Freyre, 1937/1967) é tomado como principal referência. Em linha gerais, conforme ia se disseminando a concepção do Nordeste enquanto uma região propriamente atrasada e pouco desenvolvida, a obra almejou, de certa maneira, enaltecê-la, delimitando-a como um lugar que, dentre outras coisas, gozara de fartura econômica, sobretudo à época do período colonial. Nesta medida, as mais diversas glórias de uma região associadas à antiga economia agrária açucareira são devidamente evidenciadas e o Nordeste é, assim, exaltado enquanto local no qual se originou tanto a cultura quanto a civilização brasileira. Não obstante, há também no livro passagens que apresentam a cultura nordestina de forma relativamente negativizada. Quanto a este último ponto, a região é, por vezes, circunscrita como que delimitando um contexto no qual se tecem relações sociais rudimentares como, por exemplo, as coronelistas.

Mais recentemente, alguns pesquisadores retornaram ao tema problematizando as concepções de Freyre. Segundo Albuquerque (1999) e Paiva (2007), por exemplo, tal circunscrição trouxe consigo a consequência de produzir um Nordeste ficcional, disseminando, em âmbito nacional, uma identidade questionável a seu respeito. Neste contexto, o primeiro autor afirma que tal identidade atribuída ao Nordeste consistiu em uma produção ou ficção de natureza imagético-discursiva. Assim, questiona-se a visão que geralmente se têm da região e sobre como ela foi, ao longo dos anos, caracterizada pelas mais diversas artes, principalmente, pela literatura. Em sua argumentação, Albuquerque (1999) afirma que tal imaginário passou por um processo chamado "nordestinização" (p. 311). Em outras palavras, ele parte do pressuposto de que há um jogo de disputas narrativas sobre o Brasil no qual o Sudeste viria a representar o desenvolvimento, o progresso, a industrialização e a Modernidade. Já o Nordeste representaria seu contraponto, ou seja, a negação do Sudeste. Esse processo levaria à percepção no senso comum do nordestino como um sujeito matuto, sertanejo e chucro.

Nesta mesma linha de raciocínio, Paiva (2007) argumenta que o Nordeste é concebido no imaginário social por meio de uma narrativa que conjuntura um conflito secular. Daí sua representação como o lugar do coronelismo, dos latifundiários, dos posseiros, dos sem terras e dos "matadores de aluguel". Em suma, o território do atraso, das injustiças sociais, das desigualdades e da mais extrema violência. Em seu texto, há ainda o questionamento sobre como as migrações ocorridas ao longo do século XX, para a região Sudeste, levaram a cada vez mais a consolidar tal imaginário a respeito dos indivíduos nordestinos.

Com efeito, há em Albuquerque e Paiva uma perspectiva que em muito se assemelha ao que defendemos neste artigo e que diz respeito à concepção de que a identidade do povo nordestino é propriamente uma produção, ou mesmo, uma invenção constituída através de sua oposição às regiões Sudeste e Sul. No entanto, nosso objeto não será o Nordeste em si, tampouco os nordestinos, mas sim, os indivíduos que, podemos arriscar dizer, são "nordestinizados". Por este viés, desejamos examinar como a identidade de um "nordestino" é produzida a partir do olhar de um Sudeste que insiste em encará-lo como um "outro", um "estranho" ou "diferente". Em outras palavras, buscamos compreender a produção das identidades nordestinas por meio das novas relações que indivíduos que migraram para o Sudeste brasileiro vieram a se estabelecer.

Mais especificamente, nosso campo de análise parte das relações de poder e das redes de sociabilidades desenvolvidas pelos migrantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Para tal, voltaremos nosso olhar às Feiras de São Cristóvão e de Duque de Caxias, tidas como dois dos principais redutos da arte e da cultura nordestina em nosso Estado. Assim, em um primeiro momento, serão examinadas algumas peculiaridades destas duas feiras que, com seus conjuntos de "comidas típicas", artesanatos e programações culturais são vistas, no imaginário popular, como redutos da cultura nordestina no Sudeste do Brasil. A partir deste exame, tecemos uma análise em torno do conceito de "lugares de memória" (Nora, 1993) e, por fim, lançaremos alguns questionamentos sobre o nosso objeto, tendo como base a ótica foucaultiana.

 

Um panorama a respeito da feira de São Cristóvão e da feira livre de Caxias

Inicialmente, gostaríamos de apresentar uma análise em torno de dois ambientes, que de diferentes maneiras, recebem ou/e receberam o carimbo de espaços de manifestações da cultura nordestina no Rio de Janeiro. Trata-se de duas feiras que ocorrem na região metropolitana do estado e das quais traçaremos uma investigação com foco justamente na compreensão da produção da identidade nordestina contidas nessas atividades. Por intermédio da caracterização de ambas as feiras, pretendemos evidenciar resultados do constante processo de produção desses migrantes como integrantes de uma cultura específica e singular. E, principalmente, elencar uma série de questionamentos que possuem como objetivo central direcionar o foco a uma condição de suspensão da identidade nordestina no Rio de Janeiro. Ou seja, o exercício de caracterizar os dois espaços (Feira de São Cristóvão e Feira de Caxias), nos parágrafos abaixo, possui como objetivo colocar em questionamento justamente a percepção de nordestinos que é capturada a partir das atividades ocorridas no interior desses espaços. Trazendo à tona, propriamente, as diferenças e os disparates que inevitavelmente insistem em permanecer por mais que se tenha um esforço em dimensionar uma lógica unívoca.

Nas cercanias da região central do município do Rio de Janeiro, mais especificamente no bairro de São Cristóvão, está localizado o Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. O local goza de privilegiada localização, permitindo acessos por grandes vias de deslocamento como a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, além de ter uma relativa proximidade com as estações de trem e de metrô de São Cristóvão. Vale destacar que não se trata de uma feira livre com funcionamento específico em um dia da semana. O Centro Municipal concentra-se em um pavilhão que fica disponível para visitação e apreciação ao longo da semana. No interior do pavilhão, organizam-se vias centrais que se conectam a dois palcos de apresentação de shows musicais e a um espaço circular no centro do pavilhão, onde costumam se distribuir artistas apresentando suas produções. Tais vias centrais são traçadas por vias menores, semelhantes a becos, que se interligam tanto com as vias centrais, como aos dois palcos localizados nos flancos do pavilhão. O percurso dessas vias apresenta uma distribuição de lojas e restaurantes que oferecem uma diversidade de produtos, variando entre grandes redes gastronômicas voltadas às chamadas "comidas típicas" nordestinas até a pequenos trailers e barracas que oferecem os "produtos típicos" do Nordeste brasileiro. Todo esse universo orquestrado recebe no senso comum carioca e fluminense as alcunhas de Feira de São Cristóvão, Feira dos Nordestinos, ou mesmo Feira dos Paraíbas. E é justamente sobre esta organização que se propõe como de modelo cultural nordestino e o modo como se reconhece publicamente que pretendemos discorrer e analisar neste artigo.

Vale destacar que os horários e dias de funcionamento da Feira de São Cristóvão permitem diferentes atividades e tipos de visitações. O local encontra-se aberto de terça a domingo, sendo: entre 10 e 18 horas, de terça a quinta feira; de 10 às 4 horas, nas sextas e sábados; e de 10 às 20 horas aos domingos. Esses horários podem variar em dias de shows e apresentações. Por conseguinte, ao longo da semana distribuem-se pela feira os mais diferentes indivíduos com os seus vários objetivos de visitação: turistas, transeuntes, expedições escolares, grupos, indivíduos em busca de ofertas de almoço, janta e lanche, nordestinos, cariocas, fluminenses, e um sem número de pessoas que circulam diariamente pelo local. Vale destacar que o ingresso no pavilhão ocorre mediante o pagamento de um valor de entrada que é pago diretamente na bilheteria local (R$10).

Atualmente, o lugar tenciona diversas atividades como shows ao vivo, restaurantes, manifestações de artistas como cordelistas e repentistas, apresentações de grupos de forró, ambientes de prática dos chamados "karaokês", - onde os indivíduos e grupos têm a oportunidade de "cantarolar" músicas de suas escolhas e receber notas por suas atuações musicais, - entre outras atividades. Semanalmente se apresentam artistas em seus palcos principais, que geralmente se vinculam a músicas e danças que são relacionadas ao Nordeste brasileiro, como o forró, o xaxado e o axé. Nomes de destaque no cenário musical nacional como Zé Ramalho, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Wesley Oliveira (o Wesley "Safadão) já se apresentaram nos palcos do Centro Municipal gerando grandes deslocamentos de pessoas. Dentro desta configuração, com shows, apresentações e diversas ofertas, a Feira de São Cristóvão entrou na rota de jovens e adultos que buscam a diversão noturna, transformando-se em um local procurado das noites cariocas e, sobretudo, propiciando encontros familiares, de amigos e de diferentes grupos durante os finais de semana.

Em resumo, a citada "Feira de Tradições Nordestinas" destaca-se pelas referências identitárias presentes neste espaço. Uma profusão de elementos culturais encontra-se na localidade na modalidade de mercadorias, assumindo termos que remetem a um aspecto de originalidade vinculado ao que se conhece hoje como Nordeste brasileiro: "comidas típicas", músicas, objetos, danças, literatura e manifestações artísticas das mais diversas formam um caldeirão cultural que se encontra circunscrito como "cultura nordestina". O que estamos colocando em debate aqui é justamente o modo como se produz e se distribui essas características e ofertas neste lugar. Ou seja, pretendemos evidenciar que tanto a noção de cultura nordestina no Rio de Janeiro, tal como a sistematização de uma série de produtos e atividades organizadas em espaços como a Feira de São Cristóvão fazem parte de um constante processo de produção.

É de se avultar que os codinomes pelos quais o lugar é tratado popularmente, "Feira dos Nordestinos" e "Feira dos Paraíbas", já escancaram de forma denunciante o foco em uma identificação cultural que busca se relacionar a uma originalidade no Nordeste brasileiro. Por outro lado, a institucionalização por meio da alcunha de Centro Municipal Luís Gonzaga de Tradições Nordestinas leva consigo não somente o elemento de identificação cultural ao qual se reconhece um vínculo com as supostas "tradições nordestinas", como remete diretamente a um artista nordestino conceituado no Sudeste brasileiro, que ganhou fama como migrante no município em meados do século XX. Ou seja, a própria nomenclatura busca estabelecer uma outorga de que na localidade se expressam manifestações de "tradições nordestinas", colocando em evidência uma personalidade artística que, de algum modo, busca expressar, ou mesmo atiçar, um orgulho de tais tradições, representadas justamente na figura de Luiz Gonzaga, o "rei do baião".

Ao adentrar na Feira de São Cristóvão torna-se possível ter uma percepção do estereótipo do nordestino representado no Rio de Janeiro. É uma injeção de práticas, produtos e manifestações que se vinculam aos migrantes nordestinos como elementos de uma unidade cultural. No pavilhão da feira, por meio de suas ruas e galerias (que acima chamamos de vias), é possível observar uma enormidade de produtos vinculados, no Rio de Janeiro, a elementos de origem nordestina: chapéus de cangaceiros, esculturas, bonecas de argila, redes, buchada de bode, carne de sol, acarajé, e uma grandiosidade de produtos variados. Tal como também é possível ter acesso a manifestações como danças, músicas e ritmos que se conectam a uma série de atividades que interagem no espaço constituindo uma narrativa de originalidade do Nordeste brasileiro. De nossa parte, o que se pretende é superar o viés identitário por meio de questionamentos quanto a esta ideia de um Nordeste genuinamente representado nas atividades cotidianas da feira.

É importante destacar que a Feira de São Cristóvão tem sua origem relacionada ao espaço do Campo de São Cristóvão, de onde chegavam meios de transporte de cidades da região Nordeste do Brasil, sejam os ônibus ou os "caminhões paus de arara". Os produtos e as atividades se desenvolviam neste espaço como uma grande feira na qual os indivíduos comercializavam mercadorias oriundas de suas cidades e também se apresentavam artisticamente. Com o passar dos anos a atividade foi se consolidando e os antigos feirantes passaram a disputar o espaço com interesses de diversos setores. Atualmente as atividades se encontram no interior de um pavilhão, em frente ao antigo campo, com organização da Prefeitura do Rio de Janeiro.1

Desta forma, uma vez caracterizado e analisado o espaço abordado nos parágrafos acima, o Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, gostaríamos de nos dedicar à realização de semelhante exercício analítico no que refere à Feira de Caxias. Destarte, considerando as diferenças existentes na ocorrência das duas atividades aqui analisadas, é preciso considerar que o que ocorre em São Cristóvão não se configura como uma exceção no Rio de Janeiro. De imediato, é possível citar uma série de bairros, atividades, comunidades e espaços onde o imaginário social relaciona seus surgimentos à presença maciça de migrantes oriundos do Nordeste. Dentre essas localidades e atividades destacamos aqui a já citada Feira de Caxias.

Contornando as ruas e ruelas nas redondezas da estação ferroviária de Duque de Caxias formou-se uma feira livre de grande dimensão quando comparada a outras atividades semelhantes no estado do Rio de Janeiro. De ocorrência periódica semanal aos domingos, a Feira de Caxias é concebida por meio de atributos e caracterizações inerentes às feiras livres, configurada como um lugar de comércio de diversos produtos que se caracterizam como típicos destas feiras, como temperos, hortaliças, frutas, artigos domésticos, roupas, e uma série de produtos dos mais diversificados. Não obstante, a Feira de Caxias supera a atividade comercial, assumindo uma conjuntura que se propõe como um lugar privilegiado de sociabilidade, onde ocorrem encontros semanais e atividades cotidianas. (Pinto, 2018)

Ora, sendo a Feira de Caxias propriamente tida como uma feira livre, o que ela apresenta como fator motivador que levou a uma dedicação de análise dela neste artigo? Ocorre que uma série de narrativas municipais (município de Duque de Caxias), tal como de reportagens em periódicos fluminenses ao longo do século XX enfatizam que a atividade se tornou regionalmente conhecida por propiciar um ambiente com manifestações de tradições nordestinas e o encontro de migrantes que chegavam ao Rio de Janeiro. Tais reportagens e narrativas inflamaram a fama da feira como um ambiente de comercialização de "produtos e comidas típicas" do Nordeste brasileiro, tal como um espaço privilegiado para as manifestações artísticas de nordestinos. Até os dias atuais é possível se deparar com a venda de produtos que no Rio de Janeiro se vinculam ao Nordeste, como carne de sol com aipim, buchada de bode, sarapatel, tapioca, baião de dois, acarajé e até CD’s e pendrives com músicas de artistas nordestinos (Pinto, 2018).

Atualmente, a feira permanece localizada nas redondezas da estação de trem de Duque de Caxias, se estendendo entre as ruas laterais à via férrea, entre os bairros do Centro e da Vinte e Cinco de Agosto. A atividade passou por recentes investidas de tombamento com a justificativa de que a feira se associava ao arcabouço cultural do município com forte marca dos migrantes nordestinos (Pinto, 2018). Embora não haja mais os artistas circulando por suas ruas, como é evidenciado em fotografias de reportagens do século XX, os chamados "produtos típicos" continuam sendo comercializados, seja nas barracas por toda a extensão da feira, seja no antigo espaço onde se localizava um palco artístico dedicado a apresentações de grupos e cantores de forró e xaxado, projeto conhecido como "Forró na Feira". Mais recentemente, alguns esforços dos feirantes e do poder público para manter a caracterização vinculada aos migrantes nordestinos levou a inauguração de um novo espaço no interior da feira intitulado "Forrobodó: danado de bom". Este último, organizado mais recentemente, como uma representação institucionalizada que tem como marca central um chapéu de cangaceiro, concentrado em um galpão com diversas barracas comercializando os chamados "produtos típicos", sobretudo, os gastronômicos, e um palco musical que investe na música vinculada ao Nordeste brasileiro como o forró e o xaxado.

Com efeito, apesar das diferenças perceptíveis entre estes dois locais (Feira de São Cristóvão e Feira de Caxias) - diferenças quanto às suas localizações, formas de organização, circulação de mercadorias, bem quanto à natureza, estruturação e formato das atividades nelas propostas -, chama atenção a relação estabelecida entre os espaços e a circulação de "nordestinos" que por lá deixam marcas. Conforme destacamos, o que pretendemos investigar aqui é justamente a padronização dos indivíduos oriundos do Nordeste, no Rio de Janeiro, que se fazem representados pelo senso popular nesses espaços/atividades, já que se compreende que tais lugares e atividades se inserem em um terreno de alegorias correspondentes à produção de um imaginário fundamentado pela ótica identitária. Logo, considerando tal problemática relativa à construção de uma imagem que se faz ilustrar nessas feiras, vale questionar: o que é esse Nordeste compreendido e remontado nestes empreendimentos? Qual a imagem de "nordestino" que se pretende retratar? Do mesmo modo, como reunir ou englobar indivíduos tão heterogêneos em torno de uma identidade "nordestina"?

É por meio destes questionamentos que nos propomos a desenvolver uma análise crítica a respeito desses lugares por meio de um diálogo entre Nora e Foucault.

 

Os lugares de memória de Nora

O conceito de lugares de memória foi formulado por Nora (1993) no famoso artigo "Entre memória e história: a problemática dos lugares". Em si, ele foi circunscrito em um contexto que Nora descreveu como o fim das "sociedades memórias", ou seja, aquelas que se notabilizavam pela capacidade de garantir a conservação e a transmissão dos mais diversos valores através das gerações. Com efeito, este modelo de sociedade se destacava por trazer consigo uma pluralidade de instituições responsáveis por sustentar tal conservação e, dentre elas, podemos mencionar a igreja, a escola, a família e o Estado. Neste sentido, Nora considera que essas instituições utilizavam, por meio da socialização e de um processo de instrução, a saturação de valores impregnados que vão sendo interiorizados e absorvidos pelos indivíduos. Daí a lógica de suposição de estabilidade e manutenção destes valores que vão sendo transmitidos à medida que a estrutura institucional cumpre sua função.

Pois bem, é mediante ao declínio destas "sociedades memória" que Nora vem denunciar o aumento do interesse pelos "lugares de memória", definidos, em linhas gerais, como os restos de um passado cada vez menos presente. Em si, eles emergem, sobretudo, pela necessidade de, segundo Nora (1993), "criar arquivos, organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são naturais" (p. 13). Os lugares de memória surgem e se fortalecem, justamente, do sentimento de perda da memória e, consequentemente, buscam através da constituição de um arcabouço cultural, a restituição da identidade - perdida a partir do declínio das "sociedades memória" - de um povo ou coletividade.

Neste prisma, vale destacar que, em meio aos acontecimentos relacionados ao findar das "sociedades de memória", Nora enfatiza que as identidades ficaram diretamente afetadas, uma vez que sua força aglutinadora - a memória - estava desaparecendo. Logo, com o consequente degringolar das identidades, os "lugares de memória" possuiriam um duplo papel: consistir em espécies de refúgios da memória e, sobretudo, fazer consolidar as tradições e as identidades em uma sociedade que efetivamente assistia a seus esfacelamentos.

Em resumo, os "lugares de memória" são tidos como lugares que se fazem com foco na almejada manutenção de identidades, com o sentido de preservação de memórias e de pertencimento a um grupo. Dentre eles, incluem-se arquivos, museus, espaços culturais, associações, monumentos, festividades, panteões e uma série de outras produções de modalidade ritualística que atravessam o material e o simbólico. Nesses lugares, por meio de símbolos, objetos, performances e manifestações propõe-se o fortalecimento de laços de grupos que se perderam a partir das mudanças sociais contemporâneas.

Nesta perspectiva, é interessante marcar que com o findar das "sociedades memória", Nora vem falar do surgimento das "sociedades de história", que seriam dotadas do criticismo inerente à própria história. É em meio a essas sociedades que a memória antes enaltecida nas "sociedades memórias" ganha um aspecto de "criticismo generalizado", no sentido de que os antigos lugares responsáveis por resguardar e enaltecer a memória como um elemento de coesão de grupos passam a ser frutos de investigações e análises. Em meio a este movimento, a memória entraria em desaparecimento e emergiram os "lugares de memória" frente a uma necessidade de manter vivos os rituais em uma sociedade que já não mais os valorizava.

Deste modo, pretendemos nos dedicar a questionar esse percurso representado por Nora entre uma sociedade memória e uma sociedade de história, sobretudo, porque nos chama a atenção o pressuposto de solidez atribuído às "sociedades memória". Ou seja, consideramos problemático considerar que, em conjunturas anteriores, tais sociedades - tidas como sólidas e estáveis - fossem dotadas de uma capacidade catalisadora que possibilitasse que valores distintos se englobassem em torno de uma memória, tendo por função a conservação e a transmissão dessa mesma ao longo das gerações. Segundo o nosso entender, tal pressuposto de estabilidade nas "sociedades memórias" suscita questionamentos em torno das disputas existentes no interior das produções de quaisquer processos mnêmicos e identitários. Assim, a hipótese de existência de modelos de sociedades pretensamente tão consistentes provavelmente desconsidera todas as diferenças e discrepâncias que, nestas configurações sociais, se encontram em constante disputas, negociações, resistências e reivindicações. Em outros termos, por mais que se suponha que tais sociedades tenham produzido culturas e memórias unívocas por meio de mecanismos de imposição, é preciso questionar justamente a ótica de desaparecimento das diferenças. Afinal, é possível à pretensão de estabilidade dessas sociedades suprimir por completo e de forma tão consistente uma infinidade de diferenças e disputas? Onde estariam essas diferenças em meio às imposições ocorridas pelos mecanismos de constituição das sociedades memórias? Cabe, em poucas palavras, questionar se as transformações - denunciadas por Nora - que atingem diretamente as "sociedades de memória" não seriam justamente resultantes dos constantes processos de disputas e negociações entre diferentes interesses que sempre se encontraram presentes nessas sociedades.

Com efeito, acreditamos que por mais que se tenha a presunção e o esforço de unificar experiências e memórias para formar valores identitários, ao longo de todo este empreendimento, as mais variadas diferenças ainda permanecem. Assim, mesmo nos espaços onde se criam estratégias e mecanismos para fortalecer uma suposta cultura unívoca, é preciso considerar as disputas que envolvem uma série de exclusões daquilo que era tido como diferente dos valores a serem fortalecidos e transmitidos. Por este viés, propomos denunciar que por mais que se usem de mecanismos variados para a produção de uma memória uníssona, as diferenças persistem e que aquilo que é excluído para a produção de uma identidade ou de uma memória aparentemente estabilizadas não é totalmente soterrado. O que estamos defendendo aqui é que o processo de produção de memórias e de identidades sempre pressupõe uma série de exclusões e que é somente a partir destas exclusões que se alcança a pretensa e ilusória ideia de uma similaridade, valendo denunciar que o que foi excluído do campo identitário pode, justamente, ser reorganizado e criar novos contextos e disputas sociais.

Portanto, por todos estes fatores, achamos problemática uma possível apreciação das duas Feiras em questão neste artigo enquanto "lugares de memória". Aqui colocamos em xeque tanto a ideia de um Nordeste originário quanto a concepção de uma identidade nordestina, bem como as pretensas estabilidade e solidez por Nora pressupostas em todo o processo de produção mnêmica.

 

A crítica genealógica de Foucault

Efetivamente acreditamos que, a partir de um olhar foucaultiano, as questões em jogo podem ser desenvolvidas por outro viés: que cultura nordestina é essa representada em espaços como a Feira de São Cristóvão e a Feira de Caxias? Que Nordeste é esse? Que nordestino é esse? Por meio dessas perguntas retomamos o que Foucault (1979) - devidamente apoiado em Nietzsche - concebe como uma genealogia, considerando que "o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate" (p. 13). Ou seja, seguindo esta linha de raciocínio, o trabalho de busca pela essência seja do Nordeste ou de sua população necessariamente esbarraria, em suas bases, em uma série de disparates e em uma profusão de elementos os mais diversos possíveis. Nesta medida, o endossamento da ideia de uma identidade, essência ou origem comum aos indivíduos da região Nordeste representaria uma ilusão, uma vez que quanto mais procurássemos algo a todos semelhante, mais encontraríamos uma pluralidade imensa de diferenças em jogo, inviabilizando quaisquer concepções vinculadas à ideia de uma "cultura nordestina".

É, portanto, dentro deste prisma de análise que nosso objeto de estudo se encontra. Em suma, não se trataria de incessantemente buscar uma origem em comum para as coisas, mas sim, de lançar mão de um método que permite perceber que quanto mais se investiga historicamente um objeto, mais se adentra no campo das diferenças. Assim, o que se propõe aqui é problematizar a concepção de uma cultura nordestina e de um sujeito nordestino vinculado a raízes culturais originárias de um Nordeste fundante. Ora, o caminho que permeia as considerações genealógicas presentes em Foucault permite problematizar os questionamentos a respeito da busca por uma base ou princípio que englobaria um conjunto de indivíduos em torno de costumes homogêneos. Trata-se, pelo contrário, de esmiuçar os fatos de modo a salientar as mais diversas particularidades, propiciando o realce dos desvios e das singularidades aí em jogo.

Em suma: a proposta genealógica escapa ao viés identitário, possibilitando a exploração das potencialidades e dos diversos processos e singularidades. E, por meio do realce destas variantes, ela torna possível uma investigação que não se baseia em quaisquer tentativas de uniformização. Temos uma genealogia que por meio de uma minuciosa análise não se apega a tentativas de amarrar elementos irregulares e divergentes em uma lógica sequencial.

Desse modo, problematiza-se a visão de um Nordeste tido como cenário originário de um essencialismo cultural e social, donde hipoteticamente a identidade e a memória nordestina seria procedente. Aqui, mais do que incessantemente remeter às concepções identitárias a respeito dos indivíduos oriundos do Nordeste brasileiro, sinalizamos as dissemelhanças das diversas realidades enfrentadas nas localidades do Nordeste brasileiro. Logo, gostaríamos de direcionar a dois sentidos: problematizar a significação de Nordeste com foco na problematização do imaginário social em que se representa o nordestino; e colocar em proeminência as múltiplas distinções e contrastes a cada vez que ao Nordeste e ao nordestino nos voltamos, viabilizando conceder o devido valor às singularidades, para além da busca por uma identidade ou origem fundante.

Por este viés, o que comumente se identifica por "Nordeste" ou os comumente englobados sob a nomenclatura "povo nordestino" passam a ser analisados de modo a levar em consideração as singularidades espaciais de cada ponto dessa região, com suas diferenças climáticas, culturais, de solo, de cultura agrícola, além de todo espectro socioeconômico. E, desta maneira, vislumbramos um Nordeste desmembrado de um aparato de regionalização e heterogêneo à legitimação de um discurso unicista. O que se procura combater aqui é justamente o discurso unívoco vinculado a uma cultura nordestina, a uma identidade nordestina e a um Nordeste que, em si, são produzidos no interior de relações de poder.

Seguindo estas premissas, torna-se possível perceber a profusão de diferenças entre indivíduos do Recôncavo Baiano, da Grande Recife, do sertão cearense, dentre outras diversas regiões e localidades. E, mais profundamente, seria possível destrinchar as devidas diferenças entre cada uma dessas localidades no Nordeste brasileiro permitindo alcançar não uma origem única das coisas, mas sim, as mais diversas peculiaridades encontradas a cada vez que aprofundamos mais e mais a análise. Tampouco se buscaria encontrar um essencialismo em sub-regiões como o Recôncavo Baiano, a Grande Recife e o sertão cearense como contraponto a um essencialismo do Nordeste, mas sim, complexificar a análise de modo a salientar as mais variadas diferenças existentes mesmo dentro destas sub-regiões.

 

A identidade nordestina como uma produção das relações de poder

Tornando a tratar da Feira de São Cristóvão e da Feira de Caxias, destacamos que determinadas práticas disseminadas nesses espaços são reconhecidas popularmente como manifestações da identidade e da cultura nordestina. E, conforme vimos, tais feiras se notabilizam como locais de reconhecimento entre conterrâneos e de possibilidades de realização de atividades culturais de seus locais de origem. Entretanto, insistimos aqui em analisar tais espaços pela ótica foucaultiana, com tudo o que nela vem a pesar a lógica das diferenças.

Assim, as chamadas "comidas típicas", por exemplo, recebem a alcunha relacionada a uma culinária nordestina manifesta no Rio de Janeiro. Mas, cabe questionar: seriam estas iguarias pertencentes a toda a dimensão territorial da qual as cidades e localidades se encontram regionalizadas como Nordeste? A carne de sol, a buchada de bode e o acarajé, por exemplo, são produtos que integram a mesa dos indivíduos oriundos do Nordeste, desde a Bahia até o Ceará? Pelo contrário, não seriam estes produtos e manifestações os resultados do que podemos chamar de uma "produção do Nordeste" e dos "nordestinos" efetuada no próprio Sudeste? Talvez seja interessante encarar a Feira de São Cristóvão e a Feira de Caxias não como espaços propícios de manifestações genuínas de nordestinos por meio de sua cultura e de sua identidade, mas sim, como algo que traz consigo o recorte excludente que se faz constantemente, neste caso no Rio de Janeiro, em relação ao Nordeste e aos nordestinos.

Gostaríamos também de retomar o debate em torno do conceito de Nora para contrapô-lo à lógica foucaultiana, questionando se é possível afirmar que as feiras aqui tratadas podem ser reconhecidas como "lugares de memória". Ora, destacamos a proposta do historiador francês de diagnosticar o findar das "sociedades memória" como limiar do debate em torno dos "lugares de memória". Dentro deste contexto, os lugares de memória seriam empossados pela história com o objetivo de petrificar a memória em um contexto de crise. Em outras palavras, seriam "restos" inseridos em uma sociedade que não olha mais para o passado, mas sim, para o que há de novo, para o futuro ("sociedades de histórias"). Logo, possuiriam a finalidade de substituir os atos ritualísticos em uma sociedade - agora - sem rituais, dando um ar de eternidade por meio de um aspecto nostálgico e de uma consciência comemorativa.

Seguindo esta lógica, os lugares de memória seriam os resíduos de um passado em uma sociedade de história que olha em direção ao que é renovado, sendo, portanto, alocados como, segundo Nora (1993), "marcas testemunhais de uma outra era" (p. 13). Em uma sociedade que aspira pelo novo, se configurariam como espécies de monumentos de insistência em um aspecto ilusório de eternidade, resíduos testemunhais de um passado que não se busca mais valorizar, monumentos que buscam se contextualizar por meio da sacralização de um passado que está o tempo todo sendo dessacralizado.

Com base nestes pressupostos, o primeiro ponto a ser questionado em torno do enquadramento dos citados espaços como "lugares de memória" diz respeito às suas categorizações como "restos". De fato, discordamos de que seja possível caracterizar a Feira de Caxias e a Feira de São Cristóvão como elementos do passado que emergiram por meio de uma perpetuação da memória. Com efeito, as atividades desenvolvidas nos dois espaços pressupõem uma caracterização mais multifacetada. Em seus interiores podem ser reconhecidas atividades, produtos e manifestações que não se reduzem a uma imagem de "restos", uma vez que se encontram em constante diálogo com o cotidiano que permeia as suas realidades. Obviamente, não se trata de desconsiderar o sentido nostálgico presente nas duas feiras, sobretudo, no que se refere a uma caracterização que buscaria glorificar um passado amparado neste Nordeste produzido. Exemplos são as imagens enaltecendo cangaceiros na Feira de São Cristóvão, a comercialização de cordéis que buscam romantizar um Nordeste originário, a musicalidade fortemente marcada por ícones que dimensionam uma identidade nordestina como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, tal como a presença de muitos migrantes nordestinos e seus descendentes circulando nos espaços com a crença de "compartilharem" memórias e culturais. Entretanto, as feiras aqui citadas se integram com o tempo presente em constante diálogo com aquilo que se propõe como "novo": presença de jovens "curtindo a noite" nos chamados karaokês na Feira de São Cristóvão, comercialização de diversos produtos, realização de encontros entre diferentes grupos e perfis, shows, enfim, diversos elementos de socialização que se relacionam com diferentes grupos e faixas etárias.

Entretanto, não se trata somente de uma discordância quanto a definição como resto. Efetivamente, a própria definição de resto está inserida na lógica produtiva do poder. Ou seja, aquilo que é posicionado como resto só o é por meio de uma produção que busca dissociar o que é resto e o que não é. Daí o esforço em sempre tornar evidente que em torno dessas descrições e associações existe um permanente processo de produção. Por outro lado, a própria seleção de elementos, produtos e manifestações que se encontram presentes nas feiras são resultados de processos de produção, em uma efetiva e constante seleção daquilo que é incluído e daquilo que é excluído dos lugares. Não se trata, portanto, de restos, mas, sim, do processo de produção de uma identidade, de uma cultura e de uma memória e, consequentemente, daquilo que se configura como um "resto".

Há também um segundo ponto que devemos retomar: seriam estas manifestações culturais efetivamente oriundas do Nordeste? Ou trata-se de manifestações de uma identidade produzida no Rio de Janeiro e, assim, representada na Feira de São Cristóvão e na Feira de Caxias? Em outras palavras, o que estamos destacando é justamente o caráter produtor do poder, ou seja, uma lógica que concebe o poder como produtor de verdades e identidades. Por meio de tal compreensão colocamos em suspensão prerrogativas consagradas perante o senso comum a respeito das duas feiras, questionando, justamente, a lógica identitária e de pertencimento que levaria a um suposto reconhecimento dos citados ambientes como manifestações legítimas de memórias e identidades de nordestinos no Rio de Janeiro. Deste modo, pretendemos dar enfoque a compreensão de que os indivíduos que se manifestam no espaço como nordestinos são enquadrados como tal (nordestinos ou paraíbas) no Rio de Janeiro e, conforme destacamos, tal enquadramento pressupõe inclusões e, principalmente, exclusões que irão dar sentido à produção de uma identidade e de uma memória. Desse modo, não seria possível resumir o que se passa nas duas Feiras como uma mera ritualização encarregada de glorificar o passado dos "nordestinos", vinculando-se a um Nordeste celebrado e enaltecido. O que propomos aqui é, justamente, uma ampliação dos questionamentos a respeito do processo de produção dessa identidade e consequentemente desse Nordeste consagrado nos dois ambientes e nas manifestações que lá se fazem.

Conforme estamos destacando, quando se propõe o debate acima, privilegiamos a concepção foucaultiana do poder como produtor de sentidos. De acordo com esta concepção, o autor nos convida a um olhar para o outro lado do poder, jamais se restringindo ao seu viés negativo, descendente e repressor. De fato, seria preciso superar uma noção restritiva que assume "uma concepção puramente jurídica deste mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz não" (Foucault, 1979, p. 8), pensando em seus mecanismos próprios de produção, em uma rede microfísica de poder que produz os mais diversos fenômenos subjetivos e sociais.

Pensar no poder por seu viés produtivo é, portanto, complexificar as relações sociais. O que queremos defender com isso é que, ainda conforme Foucault, ao produzir sentidos, o poder produz os próprios indivíduos, taxando-os de alguma maneira através de algum pretenso e ilusório viés identitário. Como exemplo, mencionamos a produção da identidade nordestina e de uma memória associada ao processo de migração que foi motivado pela caracterização do Nordeste relacionada ao sertão; ou então, o próprio processo de produção das Feiras de Caxias e de São Cristóvão que carregam consigo os sentidos identitários de "nordestinos", "comidas típicas" e "cultura nordestina". Em suma, não se trata, de acordo com a ótica que estamos valorizando, de negar o caráter repressor do poder, mas sim, de considerá-lo em uma dimensão diversa que enfatiza o seu caráter produtivo. Para Foucault (1979): "deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir" (p. 8).

O reconhecimento da problemática em torno da produção da(s) identidade(s) nordestina(s) presentes nas redes de produtividade do poder alcança maior profundidade quando da análise da produção de verdades. Assim, Foucault enfatiza que não se pode dissociar a "verdade" do poder. Ou seja, a verdade também está associada à "rede produtiva" do poder:

[...] A verdade é deste mundo; ela é produzida nela graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos [...] (Foucault, 1979, p. 10)

E, nessa medida, cabe levantar a interrogação: qual a produção de verdades que se pretende questionar aqui? Trazer à tona este questionamento, é justamente colocar um ponto de interrogação a respeito do que se pode conceber como um Nordeste unívoco. Trata-se, em outros termos, de destacar que para além das várias verdades produzidas a respeito dos "nordestinos" que chegam ao Rio de Janeiro, bem como do sentido unívoco desta produção identitária, encontram-se indivíduos propriamente plurais.

Nestes termos, o que estamos problematizando é um discurso que se propõe a acolher a representação de uma resistência cultural dos "nordestinos" nos dois ambientes. Primeiramente porque suas trajetórias e desejos, embora encontrem pontos em comum, possuem dimensões particulares. E, como exemplo, podemos mencionar a própria decisão de migrar em direção ao Sudeste, mais especificamente ao Rio de Janeiro. Tradicionalmente, a explicação para o deslocamento em massas corresponde à lógica de atração (aquilo que motiva os indivíduos a se deslocarem em direção ao seu novo destino) e de repulsão (o contexto no local de partida do deslocamento). Neste sentido, os migrantes nordestinos estariam fugindo de condições sub humanas motivadas pelos ciclos de seca no sertão em busca de novas formas de sobrevivência em um polo industrializado e urbanizado no país.

Segundo o nosso entender, não se trata de negar tais problemáticas, mas sim, de interrogar: seria a "fuga da seca" a motivação única para o processo de deslocamento? Tal explicação não desconsidera justamente as diferenças espaciais existentes entre as diversas localidades do Nordeste brasileiro? Logo, é preciso ressaltar as motivações de âmbito pessoal, familiares, bem como as diferenças de cada localidade de origem. Ou seja, os fatores que motivam o deslocamento de um grupo de pessoas são variados, não havendo um sentimento comum de superação de uma determinada mazela como elemento que une a todos os indivíduos migrantes, neste caso, a "fuga da seca do sertão nordestino". Não obstante, a própria lógica produtiva do poder permite a produção de verdades a respeito de um sentimento comum de fuga de um ambiente vinculado à seca, concentrando explicações e justificativas em torno desta problemática.

Em segundo lugar, e ainda considerando os quesitos de atração e repulsão - embora linhas de explicação conciliem em tratar o processo de industrialização e modernização ocorridos nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo em um sentido oposto a uma repulsão em algumas localidades do Nordeste, sobretudo aquelas mais próximas ao sertão - não se pode desconsiderar, em todo este contexto, a diversidade de realidades enfrentadas nas trajetórias individuais. Ou seja, os migrantes oriundos do Nordeste são originários de uma vastidão imensa de realidades: do sertão, do agreste, do litoral, das pequenas, médias e grandes cidades, dos bairros marginais, das áreas mais valorizadas, dentre outros. Ao chegarem ao Rio de Janeiro (em nosso caso específico), por mais que se destinem a uma localidade na região metropolitana, cada um vivenciará a migração a seu próprio modo, de forma que a imagem de um Sudeste como a terra de oportunidades e progresso não se encontra, efetivamente, representado na realidade da maior parte destes indivíduos. E isto porque a percepção de uma realidade do Rio de Janeiro da "cidade maravilhosa", tal como do Sudeste como região das oportunidades de emprego e de superação das mazelas da vida, é justamente o resultado de uma produção, uma verdade construída pelas malhas do poder. Logo, é preciso compreender que, assim como a ideia de uma região Nordeste subdesenvolvida é fruto de uma produção, a concepção do Rio de Janeiro e da região Sudeste em geral como uma terra de progressos e maravilhas também o é.

Por fim, as relações construídas e consolidadas no Rio de Janeiro enfrentam novas nuances e influências que quando consideradas permitem aprofundar as dimensões das diferenças. Ou seja, constituem-se novas relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Logo, o questionamento não é em torno de uma manutenção cultural. E aqui voltamos a citar os espaços como a Feira de Tradições Nordestinas de São Cristóvão, a Feira Livre de Duque de Caxias. Afinal, seriam esses espaços a comprovação de uma estratégia de manutenção das raízes culturais que solidificam o viés identitário do migrante nordestino no Rio de Janeiro? É possível transportar culturas do Nordeste em direção ao Rio de Janeiro? E mais gravemente, como expressar uma infinidade de práticas culturais em torno de espaços específicos? Ou, seria possível lugares como a Feira de São Cristóvão e a Feira de Caxias expressarem culturas e realidades tão distintas por meio da alcunha de Nordeste e nordestinos? O levantamento dessa série de questionamentos propicia justamente direcionar a um olhar mais atento aos modos de produção de verdades em torno desses lugares, das concepções de Nordeste e de nordestinos.

Portanto, o que se pretendeu neste artigo foi o levantamento de uma série de questionamentos com foco na problematização do viés identitário na Feira de São Cristóvão e na Feira de Caxias. O desenvolvimento teórico daquilo que Nora conceituou como "lugares de memória" se tornou importante para a compreensão e dissociação desses espaços como elementos puramente vinculados a um passado, ao enaltecimento dos "restos" ou mesmo como um diagnóstico efetivo de manifestações de cultura nordestina. É justamente por meio da ótica foucaultiana do poder como produtor de coisas que buscamos desconstruir a percepção dessas feiras dentro do conceito de "lugares de memória", colocando-as como resultantes de processos de produção de nordestinos e de um Nordeste no Rio de Janeiro.

 

 

Referências

Albuquerque Jr, D. M. (2011). A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. (Organização e tradução de Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Freyre, G. (1967). O Nordeste. (4ª ed.). São Paulo: José Olímpio.         [ Links ]

Nora, P. (1993, dezembro). Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História do Departamento de História da PUC-SP. (10), 7-28.         [ Links ]

Paiva, C. C. de. (2007). Imagens e Sons do Nordeste brasileiro. Interculturalidade, Literatura, Cinema e Televisão. In Paiva, C. C., Barreto, V. S., & Barreto, E. B. (Orgs.). Mídias e Culturalidades: Análise de produtos, fazeres e interações. João Pessoa.         [ Links ]

Pinto, R. S. (2018) Memória e identidade dos migrantes nordestinos no município de Duque de Caxias: a Feira de Caxias como parâmetro de resistência cultural e social. Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Rodrigo Sampaio Pinto
E-mail: rodrigopinto011@gmail.com
Ricardo Salztrager
E-mail: ricosalz@gmail.com

 

 

*Atualmente é doutorando em Memória Social pelo UNIRIO, sendo contemplado com bolsa de doutorado CAPES. Mestre em História Social pela UERJ.
**Psicanalista. Professor Associado da UNIRIO. Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
1Para maiores detalhes, remetemos a Angelo, Elis Regina Barbosa; Barros, Luitgarde Oliveira Cavalcante (Org). Territórios culturais no Rio de Janeiro: a Feira de São Cristóvão. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.

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