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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

Exu e a psicanálise: da culpa à ilusão

 

Exu and psychoanalysis: from guilt to illusion

 

Exu y el psicoanálisis: de la culpa a la ilusión

 

 

Thais Klein*

Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Muito embora psicanálise e religião não se confundam, o pensamento religioso perpassa boa parte da obra freudiana. Trata-se, no entanto, de uma concepção religiosa que tem como centralidade a culpa, uma vez que se articula ao paradigma neurótico e à morte do pai, sendo considerada como uma ilusão análoga à fantasia neurótica. Assim como outras configurações subjetivas provocam a psicanálise na contemporaneidade, as religiões de matriz africana, tal como o candomblé, também provocam a psicanálise e a experiência analítica, posto que se distanciam da centralidade da culpa. O objetivo do artigo consiste em abrir os caminhos para uma discussão ainda incipiente entre a psicanálise e o candomblé e, para tal, parte da figura de Exu, mais especificamente assinalando o lugar plural da corporeidade e das fronteiras com o mundo. Por fim, em diálogo com algumas considerações de Winnicott, a ilusão é tomada não como análoga à fantasia neurótica, mas como um campo de potencialidades que comportam a atualização do passado, do presente e do futuro e a corporeidade. Delineiam-se, a partir dessas considerações, alguns questionamentos que o candomblé implica para a própria experiência analítica.

Palavras-chave: Candomblé, Psicanálise, Religião, Culpa, Corpo.


ABSTRACT

Although psychoanalysis and religion are not confounded, religious thought permeates much of Freud's work. It is, however, a religious conception that has as centrality guilt, since it is articulated with the neurotic paradigm and death of the father, being considered as an illusion analogous to neurotic fantasy. Just as other subjective configurations provoke psychoanalysis in contemporary times, religions of African matrix, such as candomblé, also provoke psychoanalysis and analytical experience, since they distance themselves from the centrality of guilt. The aim of this article is to open the paths to a still incipient discussion between psychoanalysis and candomblé and, to this end, part of the figure of Exu, more specifically, pointing out the plural place of corporeity and borders with the world. Finally, in dialogue with some of Winnicott's considerations, the illusion is taken not as analogous to neurotic fantasy, but as a field of potentialities that involve the updating of the past, present, and future and corporeity. From these considerations, some questions that candomblé implies for the analytical experience itself are outlined.

Keywords: Candomblé, Psychoanalysis, Religion, Guilt, Body.


RESUMEN

Aunque el psicoanálisis y la religión no están confundidos, el pensamiento religioso impregna gran parte de la obra de Freud. Es, sin embargo, una concepción religiosa que tiene como centralidad la culpa, ya que se articula con el paradigma neurótico y la muerte del padre, siendo considerada como una ilusión análoga a la fantasía neurótica. Así como otras configuraciones subjetivas provocan el psicoanálisis en los tiempos contemporáneos, las religiones de matriz africana, como el candomblé, también provocan el psicoanálisis y la experiencia analítica, ya que se distancian de la centralidad de la culpa. El objetivo de este artículo es abrir los caminos a una discusión aún incipiente entre psicoanálisis y candomblé y, para ello, formar parte de la figura de Exu, más concretamente, señalando el lugar plural de corporeidad y fronteras con el mundo. Finalmente, en diálogo con algunas de las consideraciones de Winnicott, la ilusión no se toma como análoga a la fantasía neurótica, sino como un campo de potencialidades que implican la actualización del pasado, presente y futuro y la corporeidad. A partir de estas consideraciones, se esbozan algunas preguntas que el candomblé implica para la propia experiencia analítica.

Palabras clave: Candomblé, Psicoanálisis, Religión, Culpa, Cuerpo.


 

 

A música é a língua materna de Deus.
Aliás foi isso que nem católicos nem
protestantes entenderam, que em África
os deuses dançam.
E todos cometeram o mesmo erro:
proibiram os tambores.
Na verdade, se não nos deixassem tocar
os batuques, nós, os pretos, faríamos do
corpo um tambor.
Ou mais grave ainda, percutiríamos com
os pés sobre a superfície da terra e assim
abrir-se iriam brechas no mundo inteiro
(Mia Couto - Sombras da água)

Como é sabido, Freud não era um homem religioso, muito embora a temática da religião perpasse toda sua obra. Mesmo declaradamente ateu, a tradição judaica (e o pensamento cristão) marcam tanto sua trajetória pessoal, quanto a própria psicanálise. Por outro lado, nota-se uma constante preocupação de que a psicanálise não seja considerada uma ciência judaica, fato que compõe uma das razões pelas quais Freud recebeu com entusiasmo Jung e Oskar Pfister, por exemplo, ambos cristãos protestantes (Gay, 1992). A importância de demarcar uma diferença entre o pensamento religioso e a psicanálise é de fato um ponto central da interseção entre estes dois campos. Por outro lado, o pensamento religioso serviu como ponto nodal da metapsicologia freudiana, sendo simultaneamente um provocador de questionamentos e um interlocutor importante - religião e psicanálise caminham lado a lado. Ora, seguindo as indicações de Dalgalarrondo (2008), estudar, refletir e escrever sobre religião é trabalhar sobre o mesmo material de que ela é feita, a saber: da experiência humana nos seus limites e possibilidades.

Seria muito simples demarcarmos nossas diferenças em relação ao pensamento religioso e nos voltarmos para as cátedras, comungando com os nossos acerca da superioridade do pensamento analítico, enquanto as igrejas neopentecostais conversam com as massas e prometem o fim do sofrimento. Talvez, ao sustentarmos essa perspectiva, não estejamos suficientemente atentos ao que Lacan alertou como o triunfo da religião; nas palavras do psicanalista francês: "[a religião] não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião" (Lacan, 2005, p. 65). Em meio ao horizonte complexo ocupado pela religião nos dias de hoje, mais especificamente, refiro-me ao contexto de articulação ao campo político no Brasil, não há escolha para a psicanálise: se o psicanalista deve alcançar o horizonte de seu tempo, o pensamento religioso é um assunto do qual devemos tratar.

Ora, a religião consiste em uma temática central na obra freudiana, destacando-se em textos como Totem e tabu (Freud, 1913/2012), O mal-estar na civilização (Freud, 1930/1974), Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939/1990) e, principalmente, Futuro de uma ilusão (Freud, 1927/1996). Marcado por um ímpeto cientificista, a religião, neste último livro, é concebida como uma ilusão, porque provê o humano com um instrumento que o protege narcisicamente contra o estado de desamparo (Costa, 1989). Trata-se de uma espécie de neurose universal - a ilusão se aproxima da estrutura de uma fantasia. A analogia com a neurose, cerne do argumento em Totem e Tabu (Freud, 1913/2012), implica na ideia do assassinato do pai como origem e no estabelecimento das proibições morais como contrapartida: culpa, religião e neurose andam juntas. Ora, diante desse preâmbulo, fica evidente uma estreita ligação entre a discussão de Freud e a religião monoteísta, que muito embora tenha suas origens em outro contexto, como bem assevera Freud (1939/1990), marca a tradição europeia nos últimos séculos. Mas seria possível tomar as diferentes formas de pensamento religioso dessa mesma perspectiva? Qual tipo de religião poderia triunfar (ou já triunfou) e o que esse triunfo tem a ver com relações de poder e discriminação?

Tomar a questão da religião na psicanálise como partindo exclusivamente das religiões monoteístas, e sua consequente analogia à neurose e à culpa, ignora uma série de outras formas de pensamento religioso. Conforme assinala Dalgalarrondo (2008), a ascensão do cristianismo como uma religião dita universal camufla sua codificação a um tempo e lugar determinado, bem como o pano de fundo colonialista e racista. Determinado uso da religião cristã, nesse contexto, consistiu em uma arma central para a discriminação e opressão de outras formas de experiências religiosas como aquelas já presentes no território brasileiro e/ou vindas de diferentes lugares da África que constituíram as religiões de matriz afro-brasileiras. Não estaríamos, ao encerrar a articulação entre a religião e a psicanálise à dimensão monoteísta, ao paradigma neurótico e à culpa, colaborando para uma perspectiva colonialista e racista? E se Freud tivesse conhecido o candomblé? Ora, se é tão evidente que configurações subjetivas distintas da neurose provocam a psicanálise nos dias de hoje, em que as religiões de matriz afro-brasileiras, que, conforme veremos adiante, se distanciam da centralidade fornecida à culpa, provocam a psicanálise e nos ajudam a pensar a experiência analítica?

Diante desse preâmbulo, o objetivo desse artigo consiste em abrir os caminhos para uma discussão ainda incipiente entre a psicanálise e o candomblé1. Trata-se de uma dobra política e epistemológica, posto que deixa entrever as provocações que determinado pensamento religioso, subalternizado, coloca à experiência analítica. As encruzilhadas são vastas, mas para abrir os caminhos é preciso invocar Exu - é ele que permite passagens, inclusive entre mundos e universos, por isso, é chamado sempre no início de qualquer ritual como garantia de que todos os caminhos estarão abertos.

Enquanto mensageiro, Exu comporta uma espécie de comunicabilidade entre os orixás e os humanos e, como tal, recebe os tributos iniciais de todos os rituais- o padê. Exu come primeiro. Ora, é muito comum, partindo do ponto de vista monoteísta e maniqueísta, associar Exu erroneamente à figura do diabo cristão e ao mau - a culpa e a moralidade são a chave desta leitura. Ao remetê-lo a uma força que atualiza a potencialidade do futuro, mas que é mediadora entre passado e presente, entre ancestralidade e descendência, entre sagrado e profano, entre divino e humano, Exu não comporta um aspecto dicotômico, mas plural e paradoxal. Exu habita o reino do entre. Partindo dessa figura, a articulação entre culpa e pensamento religioso será interpolada, abrindo espaço para pensarmos a ilusão, não como análoga à fantasia neurótica, mas como um campo de potencialidades que comportam a atualização do passado, do presente e do futuro e a corporeidade - deixando entrever algumas provocações para a própria experiência analítica. Antes, no entanto, faremos um breve passeio pela discussão em torno da religião na obra freudiana, principalmente no que concerne a sua articulação à neurose e à culpa.

 

Religião, neurose e culpa

Desde o primeiro estudo publicado especificamente sobre a religião, Atos obsessivos e práticas religiosas (Freud, 1907/1996), Freud sustenta semelhanças entre sintomas obsessivos e práticas de rituais religiosos. Trata-se de conceber a neurose obsessiva como um contraponto patológico da formação da religião, considerando, dessa forma, a religiosidade uma neurose individual e a religião como uma neurose coletiva, universal (Freud, 1907/1996). A articulação entre o pensamento religioso e a neurose prossegue ao longo de toda a obra, enfatizando seja a dimensão da ilusão, tal como na fantasia neurótica (Freud, 1927/1996), seja deixando entrever a centralidade da culpa como contrapartida de sustentação da dimensão da cultura (Freud, 1930/1974). Essa perspectiva fica bastante evidente quando levamos em consideração que a maior parte da concepção freudiana sobre a dimensão psicogenética da religião se fundamenta, como veremos mais adiante, no complexo paterno, mesmo núcleo das neuroses.

Conforme aponta Garcia (2007), a noção de ilusão em Freud, utilizada para circunscrever o fenômeno religioso, é marcada pelo paradigma neurótico, posto que se articula à realização de desejo. Nesse sentido, as formações ilusórias podem ser compreendidas como análogas ao modelo do sonho como realização de desejo, tal como circunscrito em Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1996). A religião, bem como os sintomas e fantasias neuróticos, seria uma tentativa substituta de realização de desejo principalmente devido ao recalque decorrente da culpa da morte do pai e, mais à frente, estaria articulada ao desamparo fundamental. Marcado pela sua época, é possível interpretar dessa discussão que, para Freud, a religião refletiria um estágio da evolução da humanidade onde a supremacia da ciência ainda não teria se estabelecido.

Freud sempre hesitou durante todo o seu percurso entre uma concepção racionalista e intelectualista da cultura e uma concepção que vê o social como produzido por conflitos dilacerantes e inconciliáveis de interesses irracionais e inconscientes (Costa, 1989). Muito embora a problemática da religião se situe sobretudo no contexto desta segunda perspectiva, observa-se certo tom de lamentação. A impressão é de que há frequentemente uma espécie de ideal de que a sociedade fosse formada por homens de razão, e não homens de ilusão. Nesse sentido, Freud parece se associar ao projeto moderno em sua pretensão de organizar o mundo de maneira ontológica a partir de categorias homogêneas inseparáveis. A contraposição entre natureza e cultura é acompanhada da distinção entre sagrado e profano - o abandono da religião corresponde a um processo de crescimento do pensamento científico. A dimensão de ilusão da religião ficaria evidente quando circunscrita como uma concepção errônea sobre a natureza. Por isso, Freud só considerava uma saída ilusória interessante, ou quiçá normal: aquela representada pela arte, mais especificamente, a arte erudita; "uma arte, em suma, escrava da razão" (Costa, 1989, p. 75).

Nesse contexto, determinada interpretação do texto Totem e Tabu (Freud, 1913/2012), que o considera com o objetivo de criar uma teoria psicanalítica da gênese do social, acaba por sustentar uma separação radical entre natureza e cultura. Dessa perspectiva, o texto articularia a gênese do social à culpa decorrente do assassinato do pai primevo, tornando "primitivo" aquilo que o antecede - a religião seria, então, um produto da civilização. Isso, porque neste texto, Freud discorre sobre o horror ao incesto principalmente entre os aborígenes australianos, mas que seria verificável em todas as sociedades, chegando à formulação de que o tabu resulta de uma proibição ancestral, imposta sobre os indivíduos e consagrada aos desejos e impulsos fundamentais do ser humano. Nesse sentido, o totem, mais especificamente, o animal totêmico, é um substituto do pai assassinado pelos irmãos na horda primeva. Esse assassinato fundante é celebrado com um banquete no qual o totem é devorado - o impulso homicida é, assim, sobreposto pela culpa reforçada por atos, crenças e rituais reparatórios (religiosos e análogos ao pensamento obsessivo). Para Freud, "Deus, no fundo, nada mais é que um pai elevado" (Freud, 1913/2012, p. 145).

Nesse sentido, Totem e Tabu (Freud, 1913/2012) é o texto freudiano que melhor representa a problemática da religião de acordo com o modelo da neurose, muito embora essa analogia se repita ao longo da obra, principalmente no que concerne à relação entre a fantasia neurótica e a ilusão. Em Reflexões para os tempos de Guerra e Morte (Freud, 1915/1974), a ilusão começa a ser delineada não apenas como realização de desejo, mas como uma tentativa de dar um destino para uma dimensão indomável ligada ao desamparo - a guerra é uma avalanche brutal sobre as nossas ilusões. É, no entanto, em O Futuro de uma Ilusão (1927/1996), que a ilusão será mais bem articulada à figura do pai idealizado e seu estatuto próximo à fantasia neurótica, não oposta à realidade, será evidenciado. Diferentemente de Totem e Tabu (Freud, 1913/2012), no texto de 1927, Freud não aborda a questão da gênese religiosa, mas a forma como o homem entende e se relaciona com o pensamento religioso. O encargo cobrado pela renúncia pulsional, necessária ao estabelecimento da civilização, exige que sejam oferecidas recompensas. De ntre elas, Freud (1927/1996) menciona os ideais culturais, a arte e as crenças religiosas, que têm como função: "exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs" (Freud 1927/1996, p. 27). As ilusões seriam a contrapartida necessária das privações, posto que na esteira dos interesses da civilização, elas consistem na possibilidade substituta de realização de desejo - função equivalente aos sintomas, sonhos e fantasias na neurose.

A prova de que a temática da religião atravessa praticamente toda a obra freudiana é que o último texto dedicado a esta questão foi publicado no mesmo ano de sua morte. Seguindo as indicações de Mezan (2006), a novidade deste texto em relação ao de 1913 reside na discussão da consequência da religião monoteísta, de sua perspectiva, uma espécie de evolução religiosa devido à espiritualização da ideia de deus. É interessante notar, por outro lado, que o texto não cede à tradição ou a jogos políticos - Freud está disposto a discutir a religião fora dos acordos institucionais, principalmente da Igreja Católica, mesmo em um contexto no qual a proteção desta última, dominante no governo austríaco, é decisiva para sua permanência em Viena às vésperas da invasão da Alemanha nazista. O texto foi escrito em três tempos: os dois primeiros ensaios foram redigidos no verão de 1934, com o título previsto de "O homem Moisés, um romance histórico"; já o terceiro, foi lido por Anna Freud no Congresso Internacional de Paris em agosto de 1938. Freud não se deixa levar por conveniências - afirma que a psicanálise, em busca da verdade, deve se distinguir das ilusões presentes tanto nas fantasias neuróticas quanto no pensamento religioso. A possibilidade de fazer uma distinção entre a ilusão religiosa e a psicanálise, ancora-se sobretudo no paradigma neurótico, na medida em que a psicanálise deve entrever o atravessamento da fantasia neurótica, isto é, ela não pode se aliar às ilusões, ela não é uma Weltanschauung.

Freud (1939/1990) sustenta a tese de que o monoteísmo nasceu entre os egípcios, quando o faraó Amenófis IV, que veio a se nomear Aquenáton, estabeleceu a adoração exclusiva ao deus-sol, Aton, excluindo o antropomorfismo, a magia, a bruxaria e a noção de vida após a morte. Após a sua morte, a tradição politeísta renasce: nesse contexto, Moisés teria sido um nobre egípcio, monoteísta fervoroso, que visava reestabelecer a religião de Aton. Para tal, Moisés teria liderado uma tribo semita, libertando-a da servidão e criando uma nação. Assim como no mito apresentado em Totem e Tabu (Freud, 1913/2012), a massa de escravos foi submetida a restrição libidinal e, diante disso, assassinou Moisés. O recalcamento desse assassinato engendra a fusão com Iahweh, o deus vulcânico de tribos semitas em Madiã: ao longo do tempo, Iahweh toma mais e mais a forma imaterial e universal do deus mosaico, mas a lembrança do assassinato de Moisés nunca veio à tona entre os judeus. Freud teoriza então que o cristianismo rememora, mesmo que de forma oculta, o assassinato de Moisés na morte de Cristo e sua redenção. Desta perspectiva, a religião monoteísta obrigou um esforço de abstração que engendrou a separação do mundo dos sentidos e o pensamento, abrindo caminho para a racionalidade, posto que se articula a uma concepção de deus invisível.

A articulação entre ilusão e religião permanece, portanto, até o final da obra, posto que a religião e, mais especificamente, o monoteísmo continua articulado à culpa do assassinato do pai, ou seja, uma espécie de condição necessária para a realização substituta do desejo diante das restrições pulsionais e da tentativa de proteção diante do desamparo fundamental. Não se trata, portanto, de opor ilusão e realidade, posto que o universo da ilusão comporta simultaneamente uma tentativa de preservar um estado de coisas narcísico e compensar os limites impostos pelo princípio da realidade (Garcia, 2007). Conforme resume Garcia (2007, p. 172),

em síntese, para Freud o conceito de ilusão expressa o desejo de negar o desamparo, a ordem pulsional e o conflito assim como a tentativa de preservação do princípio do prazer e da completude narcísica. Ilusão representa, portanto, uma proteção contra as imposições do princípio da realidade e o reconhecimento da castração e, neste sentido, pode ser entendida como um elemento defensivo e alienante no movimento de constituição subjetiva.

Partindo da inevitabilidade do desamparo e da necessária contrapartida entre civilização e culpa, a ilusão tem origem em um conflito, origem mesma do laço social e das formações culturais. Sob este aspecto, sustenta-se uma tradição que opõe o indivíduo à sociedade, ciência à religião, sagrado ao profano, barbárie à civilização, natureza à cultura, dentre outros pares de opostos.

Para Costa (1989), a natureza de Freud é uma natureza cultural, já que é uma natureza interpretada segundo certos padrões cognitivos-afetivos. De toda forma, seguindo também as indicações de Frantz Fanon (1952/2008), estabelecer uma divisão entre pares de opostos vem na esteira da construção de um discurso hegemônico fortemente racista que consagrou a Europa como epicentro de enunciação a partir do qual foram esboçados padrões de civilização, de produção de conhecimento; e, por que não, de uma forma específica de conceber a religião? Se Freud conhecesse outras religiões, tais como o candomblé, a ilusão teria o mesmo estatuto? A religião seria necessariamente análoga ao paradigma neurótico e a ilusão uma resposta ao desamparo?

Antes de encaminharmos essas perguntas, faz-se importante circunscrever alguns aspectos do candomblé e do orixá Exu que exigem conceber a religião de outra perspectiva, bem como colocam alguns questionamentos para a experiência analítica.

 

Exu, ilusão e criatividade

De uma maneira geral, as menções explícitas ao candomblé no vocabulário do dia a dia remetem a elementos carregados de valores pejorativos. Criminalizado pelo Estado brasileiro, o candomblé sofreu (e ainda sofre) dura repressão, discriminação e perseguição- esse fator, somado à tradição oral implica em uma espécie de desconhecimento geral sobre suas práticas, muito embora uma série de expressões e rituais atrelada a esta religião permeie fortemente a cultura brasileira2. É evidente que esse desconhecimento geral acompanhado de uma permeabilidade na cultura está em consonância com o racismo no nosso país que comporta simultaneamente um aspecto velado e uma suposta assimilação do diferente. Talvez os resquícios do candomblé na cultura de maneira geral sejam indícios da resistência necessária e, inspirando-se em Souza (1994), de um processo de dominação assimilacionista, que consiste em apreender o outro no plano estético, fixando-o como objeto de admiração exótica em troca de seu lugar de enunciação e sua autonomia política. A associação entre Exu e o diabo da tradição cristã consiste, conforme veremos adiante, em um exemplo interessante, posto que além de assimilar a figura de Exu a uma lógica cristã, torna-a pejorativa, ao lado do "mal". O que está subjacente a esse contexto é um ideal de homogeneização política de "embranquecimento" da população conduzida ativamente pelo Estado - e é evidente que o candomblé continua sendo um alvo importante até os dias de hoje.

Diante desse contexto, é preciso deixar entrever alguns pontos do pensamento religioso do candomblé que se distanciam fortemente da tradição judaico-cristã e se aproximam de uma cosmovisão politeísta. Muito embora o candomblé guarde linhas de continuidade significativas com outras religiões espalhadas pelo continente africano, as diferentes nações3 que conhecemos nos dias de hoje são consideradas produto da elaboração criativa dos povos africanos trazidos para o Brasil muitas vezes em articulação com a população indígena (como é o caso do candomblé nação angola no sul da Bahia, por exemplo). Trata-se, portanto, de uma religião de matriz africana, mas que é consolidada nas diferentes regiões do nosso país.

É importante levar em consideração que o regime moral estabelecido nas colônias estava intrinsecamente ligado ao catolicismo. Não à toa, como relata Gilberto Freyre (1987, p.73), nas épocas coloniais, um frade vinha a bordo de todo navio que chegasse em território brasileiro com o objetivo de garantir a consciência, a fé e a religião da colônia. Nas suas palavras: "do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra, entraram livremente trazida por europeus (...)". Se o monoteísmo e, mais especificamente, o cristianismo, comporta a moralidade como base que, segundo Freud (1913/2012; 1927/1996), se articula à culpabilidade decorrente do assassinato do pai necessário ao estabelecimento da civilização, o candomblé é tomado como uma ameaça justamente por não sustentar uma dimensão dicotômica entre bem e mal e uma divisão estrita entre natureza e cultura. Seguindo as indicações de Prandi (2001; 2011), o candomblé pode ser considerado uma religião amoral, na medida em que bem e mal não são tomados como contrapostos, mas são funções de perspectivas: Exu não é bom nem mau, ele é. Não há, portanto, um sistema abstrato de valores morais que regulam a conduta dos sujeitos - a culpa não consiste, portanto em um elemento central do esquema de pensamento.

A corporeidade, que comporta tanto a sexualidade como a sensorialidade, não carrega a culpa que supostamente poderia ser purificada pela alma, por exemplo. No candomblé, o corpo é central nos rituais e consiste no meio pelo qual as entidades se manifestam. O corpo é templo, é sagrado e deve ser tratado, cuidado, zelado e nutrido a fim de ser instrumento de comunicação performática do orixá. A corporeidade é expressão e comunicação e consiste em um elemento chave da ritualística - Prandi (2001; 2011) afirma que o lugar central ocupado pela moralidade nas religiões judaico-cristãs é comparável ao lugar do ritual e da corporeidade nas religiões de matrizes afro-brasileiras. Nesse sentido, a corporeidade não é concebida como estritamente biológica ou pertencente a um indivíduo com limites claros em relação ao mundo - a incorporação do orixá deixa entrever a articulação entre corpo, sensorialidade e mundo. Nos rituais, é pelo corpo que os orixás se manifestam, é pela comida, pela música, pela dança e gestualidade que o ritual se expressa.

A articulação entre toque do atabaque, ritmo e corporeidade, implica em um corpo atravessado por elementos coletivos e/ou alteridades significativas, para usar uma expressão de Donna Haraway (2021). A dança, como elemento central do ritual de candomblé, não é ensinada explicitamente para os filhos da casa de santo, não há uma técnica passada a partir de exercícios ou repetições. O dançar dá-se por uma espécie de comunicação que envolve o ritmo e a gestualidade dos orixás - o tempo e o corpo se entrelaçam atualizando potencialidades, marcando uma oscilação entre interno e externo. Nesse sentido, a principal alteridade significativa que influencia os deslocamentos rítmicos é decorrente das representações gestuais, sonoras, posturais ligadas a um orixá incorporado - ou seja, a música está intimamente articulada aos movimentos corporais. A música, o tempo, a corporeidade assim como outros elementos, tais como a comida, deixam entrever a permeabilidade entre externo e interno, entre corpo e mundo. É justamente essa simultaneidade entre interno e externo que faz a figura de Exu, longe de sua assimilação colonialista, ser um elemento interessante que permite articular algumas discussões sobre a experiência psicanalítica.

A comunicabilidade, enquanto atributo de Exu, está diretamente ligada ao ritmo e à gestualidade, posto esse orixá está fora e dentro do corpo. Essa dimensão distancia-se de saída do abandono da sensorialidade apontado por Freud (1939/1990) no advento da religião monoteísta: o culto a Exu, assim como aos outros orixás, passa pela musicalidade, pela corporeidade, pela comida e pela bebida - isto é, elementos que atravessam o corpo, aspectos que entrelaçam interno e externo. Uma divisão clara entre natureza e cultura, entre corpo e espírito, entre civilização e barbárie, entre sensorialidade e pensamento, não pode ser traçada: em uma cosmovisão politeísta os deuses dançam nos corpos e em todo o Universo. Eles não estão nem aqui, nem no céu, eles se atualizam na dimensão da corporeidade que habita o espaço do entre - não à toa Exu é quem abre caminho para os outros orixás, é o senhor das encruzilhadas e da comunicabilidade que habita o reino do entre.

Ora, é justamente a partir de uma dimensão paradoxal, do "reino do entre dois", para usar uma expressão de Pontalis (2005), que Winnicott (1971/1975) estabelece uma relação essencial entre a ilusão, os objetos transicionais e o brincar. O campo dos fenômenos potenciais, ou, como denomina Dalgalarrondo (2008, p. 68), o "campo transicional", relaciona-se não só ao brincar, mas a toda experiência cultural, incluindo a religião. A ilusão, nesse sentido, não consiste em um estado a ser superado, isto é, em uma forma de funcionamento mental que se aproxima ao funcionamento neurótico - tal como a fantasia que deve ser atravessada. Em Winnicott, a ilusão permite que o bebê crie o mundo e emerja de uma certa indiferenciação com o ambiente, sendo uma fonte ontológica da criatividade e importante para o acesso à realidade. A ilusão, portanto, não consiste em um obstáculo ao conhecimento da realidade, ou é contraposta ao pensamento científico, nem mesmo diz respeito a uma necessidade diante das restrições pulsionais ou do desamparo fundamental, mas é parte das condições de possibilidade para que se possa experimentar sentir-se vivo.

A discussão sobre a ilusão, portanto, é central na tarefa de experimentar o verdadeiro self - que se articula à infindável tarefa de distinção entre a realidade interna e a realidade externa. A indistinção que se inaugura na dependência absoluta entre a mãe e o bebê retorna ao longo da vida de diferentes maneiras: assim como o pai na discussão freudiana, para Winnicott, é necessário conceber uma terceira dimensão que permite desvelar o processo de constituição de si. No entanto, essa terceira dimensão da experiência diz respeito a um processo que, na melhor das hipóteses, se manifestará de diferentes formas ao longo da vida, tendo como início a onipotência. Em relação a esta, de uma maneira geral, pode-se dizer que uma mãe suficientemente boa identificada com seu bebê permite que surja uma superposição entre o seio que o bebê acredita estar criando e aquele que lhe é de fato oferecido. O bebê experimenta a sensação de ter criado o seio, isto é, a ilusão de que criou o mundo. A ilusão, no entanto, não deve ser superada, mas consiste em uma espécie de condição de possibilidade para que o bebê expresse sua criatividade primária. Trata-se de um paradoxo: o bebê cria um mundo do qual depende absolutamente.

Diante desse quadro, o objeto transicional ser á o elemento criado para manter a continuidade ao mesmo tempo em que entra em contato com a descontinuidade: é simultaneamente interno (cont ínuo com a experiê ncia de ilus ã o) e externo (descontínuo, posto que nã o h á controle onipotente sobre ele). O objeto transicional abre, portanto, caminho ao processo de consolidar a capacidade de aceitar a diferença e a similaridade. Conforme aponta Pontalis (2005), o objeto transicional nã o é um substituto do seio materno, mas a primeira possessã o n ão-eu que não pode ser concebida como externa. Nas palavras de Winnicott (1953/1975, p. 15): "de nosso ponto de vista, o objeto vem de fora, mas a crianç a n ão o concebe assim. Tampouco vem de dentro: nã o é uma alucinaçã o ". O objeto transicional é, portanto, caracterizado por es s e paradoxo que não precisa ser contestado ou resolvido, engendrando tanto a possibilidade de experimentar a integração de si, quando de usufruir da não integração. Integrar-se, nesse sentido, implica necessariamente na dimensão corpórea. Trata-se do que Winnicott chama de personalização. A personalizaçã o n ão diz respeito somente à possibilidade de integraçã o e distin ção entre a psique e o soma, mas a uma espécie de alojamento da psique no soma que permite circunscrever a noção de um corpo próprio ou, para usar as expressõ es de Winnicott, da possibilidade de sentir -se vivo e habitando um corpo. Assim, em continuidade com a experiência de ilusão, que o bebê conquistar á uma unidade psicossomática, na qual o corpo e a psique constituem dois componentes de uma mesma substância e estão em constante interação - não há psique sem soma, e vice-versa.

É interessante notar que o objeto transicional pode ser, na melhor das hipóteses, abandonado, mas a área de ilusão experimentada, análoga ao brincar, permanece como o espaço-tempo da criatividade. O espaço potencial é uma espécie de herdeiro do objeto transicional que não se perde ao longo da vida e consiste em uma zona na qual não é preciso distinguir o que é interno e o que provém do mundo exterior - tal como no brincar e na experiência cultural. E m continuidade com a ilusão, é fornecido destaque à potencialidade (não à toa a expressão "potencial" caracteriza este conceito) de atualização da criatividade em uma dimensão que não está articulada nem à realidade material, nem ao plano da realidade psíquica. Trata-se, tanto no brincar quanto na experiência cultural, da experimentação da não integra ção, isto é, de limiares n ão completamente tra çados entre eu e o mundo, a experimentação de um terceiro espaço nem subjetivo, nem objetivo. A dimensão da corporeidade é central, não de um corpo próprio, mas referenciada a uma esp écie de comunicação sens ória. A potencialidade reside justamente nesta área na qual há semelhança e diferença entre o corpo próprio e o corpo do outro, entre a sensorialidade e o mundo

Diante desse quadro, o lugar da ilusão no argumento winnicottiano mostra-se central ao longo de todo o desenvolvimento emocional primitivo, assim como também na discussão sobre a construção da cultura. No texto The place where we live (Winnicott, 1968/2007), Winnicott se refere ao lugar em que nos sentimos vivos e criativos como aquele em que se dão a junção e a separação, o eu e o não-eu, o espaço da ilusão, portanto, como território da criatividade. A ilusão permanece como solo de constituição subjetiva na teoria winnicottiana e não é definida a partir do paradigma neurótico, isto é, como uma satisfação substituta do desejo.

Winnicott provavelmente não tinha notícias do candomblé, mas a dimensão do paradoxo articulada ao tempo, ao ritmo e à corporeidade permite uma aproximação entre psicanálise e religião que, desta perspectiva, se desloca de uma ilusão a ser abandonada ou um passo (ainda incipiente) para além da sensorialidade e deixa entrever uma associação entre religião e criatividade. Exu e o espaço potencial nos exigem pensar a religião como uma experiência que permite engendrar a potencialidade do passado, do presente e do futuro e indissociável da corporeidade. Essa dimensão deixa entrever a potência do candomblé, que longe de compor a moral sexual civilizada, pode resistir até os dias de hoje e, apesar das tentativas de assimilação, continua pulsando vivo nos terreiros espalhados pelas encruzilhadas do nosso país. O psicanalista no Brasil não pode se furtar de ser provocado pelo candomblé. É curioso notar que os psicanalistas se interessam há muitos anos, desde Freud, pela mitologia grega, articulada a uma cosmovisão politeísta, mas parecem não se interessar pela riqueza da dimensão politeísta das religiões afro-brasileiras, vivas e potentes até os dias de hoje. A falta de diálogo entre esses campos denota tanto a reprodução de uma discriminação (quanto, talvez, o medo de que estejamos de fato no plano do "acheronta movebo" (Freud, 1900/1996, p. 15).

 

Considerações finais

A imagem mítica da fundação do Brasil com a missa em Porto Seguro esconde a violência da imposição da religião católica e sua pretensão universalizante, sustentando como bárbaros, primitivos e sobretudo, dentro de sua própria divisão entre bem e mal, aspectos supostamente demoníacos das outras formas de pensamento religioso. Conforme aponta Câmara Cascudo (1971), a vigilância e a violência constante sobre uma massa humana oprimida, assim como a ênfase dada ao pecado, à culpa, à danação - tudo isso marcará o catolicismo que foi imposto nas colônias. Por outro lado, as religiões afro-brasileiras resistem até hoje a estes ataques e guardam concepções bastante distintas da tradição judaico-cristã.

Ora, se a teoria psicanalítica foi sustentada em certos aspectos no molde colonialista, faz-se imprescindível que escutemos outras perspectivas não apenas para subverter o silêncio, mas principalmente para escutar nossos próprios silêncios quanto a esses temas. Parece residir aí a potência da clínica e, sincronicamente, o risco de que se torne, ela mesma, uma forma de opressão. Nesse sentido, em que aspectos as religiões afro-brasileiras provocam a discussão já estabelecida até então entre psicanálise e religião? E se Freud, além das religiões judaico-cristãs, tivesse conhecido o candomblé? É evidente que essa pergunta não é possível de ser respondida, mas a própria possibilidade de formulá-la revela que a psicanálise, em sua origem, carrega uma atitude moderna que se sustenta na tentativa de abstração da representação de sujeito, como se houvesse um modelo universal, atemporal e livre das marcações sociais de diferença. Ora, seguindo as indicações de Rufino (2018, p. 4),

Exu serve também para pensar a vida e o mundo como projeto inacabado, que pode se constituir enquanto outra possibilidade. Ele traz uma ideia que acho fundamental para nós brasileiros, enquanto paridos dessa tragédia do colonialismo: é preciso se reconstituir dos cacos e do desmantelamento.

A partir de algumas premissas apresentadas, mais especificamente ligadas à corporeidade e a dimensão paradoxal trazida por Exu, foi possível destacar que a mesma chave de leitura utilizada para versar sobre a religião monoteísta não pode ser sustentada no que concerne ao candomblé. Nesse sentido, o modelo neurótico, que articula o assassinato do pai, à culpa e à fantasia não parece ser um referencial interessante para se fazer um diálogo entre psicanálise e candomblé. Ora, a clínica psicanalítica contemporânea tem se deparado cada vez mais com desafios que passam ao largo do paradigma neurótico - o candomblé não colocaria um questionamento análogo aqueles suscitados por configurações subjetivas não neuróticas? Muito embora esta pergunta sirva sobretudo como provocação, ao longo desse escrito foi possível entrever que a centralidade da corporeidade, do ritmo e do mundo ao redor, torna as premissas do candomblé distanciadas da culpa e do abandono da sensorialidade.

No candomblé, como foi exemplificado com a figura de Exu, o reino do entre não permite a sustentação de dicotomias rígidas - corpo e alma, civilização e barbárie, bem e mal são potencialidades humanas e das alteridades significativas. Nesse sentido, longe de uma ilusão que deve ser superada, o candomblé deixa entrever a potência da ilusão tomada enquanto criatividade, sustentando a existência dos modos de subjetivação que, em função da lógica colonial, foram subalternizados O candomblé, não tomado como uma ilusão que deve ser superada, desafia o psicanalista que percebe a necessidade de uma psicanálise situada (Haraway, 1995) a se aventurar nas encruzilhadas de outras formas de subjetivação. Ora, assim como devemos nos deslocar da centralidade fornecida à neurose, o candomblé e, mais especificamente, Exu, o orixá do reino do entre e da comunicabilidade, exige que olhemos o mundo para além dos limites impostos por uma concepção pretensamente universalista, mas que esconde uma dimensão colonialista e racista. Nesse contexto, nada melhor do que deixá-los com uma historieta do próprio Exu:

Exu pintou a metade direita do corpo de vermelho e a outra metade de preto. Aí apostou com dois amigos que aquele que soubesse dizer qual era a sua cor ganharia uma incrível recompensa. Os dois acharam muito fácil, mas cada um só estava vendo uma metade do corpo de Exu. E discordaram tanto que acabaram brigando. Exu riu muito e depois falou: Vocês não saberão como eu sou se não derem a volta em torno de mim (Oliveira, 2007, p. 107).

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
Thais Klein
E-mail: thaiskda@gmail.com

 

 

*Psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica (PPGTP-UFRJ), doutora em Saúde Coletiva (IMS-UERJ), membro do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC-IPUB-UFRJ), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sandor Ferenczi e professora adjunta do departamento de psicologia da Universidade Federal Fluminense (polo Rio das Ostras).
1Trata-se de um desenvolvimento de algumas ideias apresentadas previamente no artigo "Abrindo os caminhos: em que o candomblé provoca a psicanálise?" (Klein, 2022).
2Para fornecer apenas alguns exemplos: a tradição de usar branco na passagem do ano, o ato de pular sete ondas, a tradição de comer feijoada às sextas-feiras, os elementos rítmicos do samba, a expressão "axé", dentre muitos outros (como aspectos musicais, da alimentação, da linguagem).
3Nação é a expressão usada para distinguir diferentes segmentos a partir da linguagem utilizada nos rituais, o toque dos atabaques, a liturgia de maneira geral. A nação faz alusão aos países de origem dos povos escravizados - as principais são: Nagô, Jeje, Bantu e Angola.

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