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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.54 no.2 Rio de Janeiro July/Dec. 2022

 

ARTIGOS

 

Utopias e a produção do comum

 

Utopias and the production of the common

 

Utopías y producción de lo común

 

 

Luiz Fuganti*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo problematiza a ideia de utopia, fazendo a distinção entre o que seria utopia passiva e utopia ativa, assim como a dicotomia entre comum e singular. O autor desfaz os principais equívocos acerca do que é ideal e do que é comum, e evidencia nossa cumplicidade na captura de nosso desejo e no sequestro do comum pelo estado.

Palavras-chave: Utopia, Comum, Público, Privado.


ABSTRACT

The article tackles the idea of utopia, making the distinction between passive utopia and active utopia, as well as the dichotomy between common and singular. The author rectifies the main misconceptions about what is ideal and what is common and highlights our complicity in the capture of our desire and kidnap of the common by the state.

Keywords: Utopia, Common, Public, Private.


RESUMEN

El artículo problematiza la idea de utopía, haciendo la distinción entre lo que sería la utopía pasiva y la utopía activa; así como la dicotomía entre común y singular. El autor deshace los principales malentendidos sobre lo ideal y lo común, y evidencia nuestra complicidad en la captura de nuestro deseo y en el secuestro de lo común por parte del Estado.

Palabras clave: Utopía, Común, Público, Privado.


 

 

Utopias e a produção do comum

O tema do comum não só é necessário, como urgente à atual condição das formações sociais humanas, e envolve necessariamente uma potência singularizante que, por sua vez, culmina em um modo de vida ativo que cria as próprias condições de existência. Em outras palavras, esse modo de vida a que devemos aspirar cria seus tempos próprios, sem se adequar a tempos homogêneos e, sobretudo, cria os próprios lugares, os próprios topos que nos fazem repensar a ideia de utopia. Isso porque a utopia envolve um conceito negativo de não-lugar a partir da idealização das condições de existência e, invariavelmente, por mais que sonhemos bonito, acaba mal. E acaba mal justamente porque começamos mal, uma vez que, sempre que idealizamos, este é um mau começo. O ideal em si mesmo não é problema. O ideal é uma ficção. Podemos brincar com ideais, podemos brincar com as ficções. O mais grave é o uso que fazemos deles e, principalmente, o nosso desejo de ideal, quando o ideal supõe um plano fora da existência.

A questão da utopia envolve o desenvolvimento de um pensamento que nos levaria a uma outra visão, a uma utopia ativa, que não estaria condicionada a uma esperança nociva, à vontade vazia de um mundo melhor, ou mesmo a uma paixão triste, como diria Spinoza (Spinoza, 2009). A esperança, assim como o medo, envolve dúvida ou incerteza sobre o futuro. A esperança é a expressão da dúvida em relação ao bem que pode advir, enquanto o medo é a expressão da dúvida em relação ao mal que pode advir. E, onde há dúvida, não há pensamento; onde não há pensamento, há, necessariamente, vulnerabilidade ou submissão a forças que nos determinam de fora. Com qualquer um desses sentimentos, estamos sujeitos a flutuações, isto é, perdemos a direção principal, que é a da tomada de nossas vidas em nossas próprias mãos, a direção de uma afirmação singularizante da nossa existência, ao mesmo tempo em que investimos em uma produção do comum.

Para entendermos melhor seria necessário, antes de tudo, distinguir o que é comum e o que é singular. Estamos sempre envoltos na dicotomia entre o público e o privado (sobretudo quando confundimos o comum com a esfera pública e o singular com a esfera privada).

O público é, na verdade, a captura do comum. Melhor dizendo, é o sequestro do comum. Vemos muitos teóricos, pensadores e militantes fazendo essa confusão ao adotarem políticas públicas, estatais, como se elas fossem isentas dos interesses privados e, portanto, portadoras de um bem comum. Em realidade, o privado é uma invenção do público. Não haveria privado sem o estado. E o estado é sempre um estado de não-relação, que emerge quando certas forças deixam de se interessar por relações transversais e diretas de sociabilidade, e forma-se então um centro de soberania. É esse centro de soberania que sequestra o que é comum.

 

O comum não é o ideal

É importante também termos claro o que o comum não é. O comum não é o ideal. Como dito acima, a forma do ideal supõe um plano fora da natureza. O ideal quer-se exterior e superior a todo existente. O existencial, por sua vez, sofreria, em relação ao ideal, de uma falta de perfeição. Em outras palavras, o existencial seria sempre o que é imperfeito em relação ao ideal, e o ideal, consequentemente, seria o modelo da perfeição. E, em um plano de natureza, a perfeição está sempre ausente, como já era notório para Sócrates, Platão, Aristóteles, e muitos outros pensadores da transcendência: metafísicos, religiosos, místicos, filósofos, teólogos e moralistas que adotam essa orientação de que haveria um plano ideal de referência.

Além disso, o ideal tem uma eminência - ele se pretende superior à existência. E, exatamente por isso, ele é uma falsa afirmação, a afirmação da realidade de um outro plano que, por efeito, desqualifica este plano de existência como sendo inferior. Sob esse ponto de vista, o ideal seria bom, seria o bem, o verdadeiro e o belo, como afirmava Platão, pois estaria acima das particularidades existenciais das paixões e de tudo o que está no devir, no tempo, no movimento (Platão, 2019). Estaria acima da mudança, seria aquilo que jamais deixaria de ser, e por isso perfeito. O que mudaria seria o que estivesse no devir, por isso o devir seria um princípio de corrupção do ser, um princípio de corrupção do que já está acabado e perfeito. O ideal, portanto, pressupõe uma realidade acabada, e tudo o que está na mudança seria inferior a esse ser permanente.

Esse ideal teria então como valor o fato de estar acima de todo o interesse particular. Por isso se confunde o ideal com o comum. Nós, no entanto, não somos filhos do ideal, considerando-se que ele é uma ficção. O ideal se pretende superior e transcendente, quando, na verdade, é imanente - afinal, tudo pertence ao mesmo plano de realidade, inclusive o ideal, que nada mais é do que uma visão míope da existência, a visão de uma vida separada do que pode, tornada impotente. Essa vida então busca uma fuga de seu estado de impotência, uma compensação e uma salvação, interpretando as dores e o sofrimento como signos de imperfeição. Em outras palavras, como a realidade é interpretada como imperfeita, deve-se fugir dela, e o caminho desta fuga para o ideal tem como consequência o aperfeiçoamento do mundo.

Todo aquele que busca um mundo melhor é necessariamente um moralista, pois acredita que há um dever-ser na existência, mais do que uma potência de acontecer. Esse dever-ser se engajaria nesse ideal de verdade, de bem, de belo, e formataria uma condição humana no corpo, no pensamento e no desejo, formando assim, como diria Platão, uma imagem-ícone a partir da pura forma ou identidade ideal. Como se devêssemos desenvolver uma relação de identidade e semelhança com essa forma ideal.

E todo aquele que tem vontade de ideal necessariamente sofre de uma queda de potência. Essa pessoa está com a vida separada do que pode, pois não frui nem apreende o acontecimento enquanto ele acontece. Está necessariamente colada a algo que aconteceu a ela e a reduziu a esse estado afetivo, o qual toma o lugar de toda a integralidade de uma potência de acontecer. Para resumir, essa potência de acontecer está reduzida a um acontecido. Esse acontecido forma um buraco, e é esse buraco (uma falta) que vai desejar o ideal ou que vai desejar uma compensação. A busca por compensações, salvamentos ou fugas é o que está por trás de nossa vontade de ideal.

E de onde vem todo ideal? O ideal é uma ideia, mas toda idealidade vem do acontecimento. É possível, inclusive, sonhar com um acontecimento ideal, o que não se confunde com um ideal que daria forma ao acontecimento.

Quando criticamos o ideal, estamos criticando a forma da verdade. Nietzsche, em uma obra de sua juventude chamada Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, diz que poderíamos criar uma fábula com a seguinte narrativa: num planeta ínfimo e muito distante, na periferia da galáxia, em um momento infeliz do tempo cósmico, um animalzinho insignificante inventou a verdade (Nietzsche, 2007). E esse teria sido o instante mais mentiroso da história universal. A verdade é uma mentira para prolongar um modo de vida fraco, é sempre uma muleta para os impotentes. O acontecimento é sempre diferencial e, quando se tenta acoplá-lo a uma verdade, ele é esmagado. O horizonte da potência de acontecer, quando ligado a uma forma, reduz a potência a esta forma. Com isso, perde-se a fonte de criação da própria realidade. Assim, surge a crença de que todas as coisas estão dadas e prontas, derivadas de um plano ideal acabado por um poder transcendente - ou seja, não sobraria espaço para nenhuma criação. A realidade, no entanto, está sempre se autoproduzindo. A realidade existe na superfície do acontecimento, e não na forma de uma verdade.

Mas o que seria então um acontecimento ideal? Encontrar o esplendor de sua potencial necessidade. Se os acontecimentos não nos são favoráveis, podemos ao menos nos colocar à altura do acaso. "Torna-te digno do que te acontece", seja o pior ou o melhor. O que é ser digno? É estar à altura do acontecimento. É reunir ou criar forças para extrair de qualquer acontecimento o seu sentido ativo - sem acusar, ofender, julgar ou se sentir julgado. Este seria um ideal no e do acontecimento. O ser ativo, afirmativo, criador de realidade, seria também um ideal, mas não uma forma de verdade, e esta é a diferença.

 

O comum não e o universal

O comum também não pode ser o universal, pois o universal, ainda que não seja transcendente, sobrevoa a natureza. O universal pretende formar uma espécie de sobrenatureza dentro da natureza, uma natureza racional dentro da natureza animal ou física. E esse elemento racional incorporaria e submeteria as partes pois, teoricamente, toda parcialidade estaria dentro de uma universalidade. Segundo esse pensamento, o parcial seria uma redução da realidade, enquanto o universal seria sua totalização. E, por realizar essa totalização, teria o atributo de comum, um ser comum em relação a todas as partes que ele subsume. Isto, de novo, é uma ficção. Todo universal é uma generalidade inspirada na generalidade dos nomes e da linguagem. O nome "árvore" é um universal para todas as espécies de árvores, por exemplo.

A lei também se pretende um universal, no sentido de que diz o que se pode ou não se pode fazer. E possui a contraface de uma sanção, ou seja, se transgredimos aquilo que a lei proíbe, recebemos alguma punição. A lei, assim como o ideal, assim como o universal, tem a natureza de uma forma. No entanto, uma lei não diz o que devemos fazer, ela diz o que não podemos fazer. A norma, por sua vez, é uma interiorização da lei, uma interiorização do estado. A norma não diz o que não podemos fazer, ela nos diz o que devemos fazer, como uma espécie de micropolítica dos comportamentos. Kant, através de seu imperativo categórico, estabelece o sujeito do desejo e sua razão prática (Kant, 2015). O imperativo categórico de Kant implica uma pura forma de dever-ser do desejo. Esse desejo legítimo e superior pode se tornar legislador quando se torna desinteressado das partes. Ou seja, tratar-se-ia de um desejar de modo desinteressado, uma pura-forma de dever-ser universal, que com isso (e por isso) conquistaria a legitimidade de legislar.

Ora, na prática, isso significa que a lei (o estado) se interioriza em nós e se solda ao desejo. E, quando a lei se solda ao desejo, ele se torna sujeito - um sujeito prático. E, sem esse sujeito prático, não haveria o sujeito especulativo, nem mesmo o indivíduo. O sujeito prático e moral é a condição do juízo para Kant, e também do sujeito especulativo de conhecimento. Em outras palavras, o sujeito prático é aquele que introjeta uma pura forma de dever-ser universal, que por sua vez faz coincidir o governo dos outros com o governo de si. Este seria um ideal de democracia, por exemplo, ou um ideal de comum.

Com isso, há um processo de interiorização da forma. Apesar da forma não ser o comum, ela mostra todos os aspectos do que se pretende ser o comum - quando se pretende que o comum seja uma forma de verdade. A forma de verdade é a grande ficção humana. É o que impede o humano de acessar imediatamente o que é comum. Por quê? Porque o comum é aquilo que não tem forma. O comum não pode ter forma.

 

E, afinal, o que é o comum?

O comum é um ser, antes de tudo, mas um ser que não necessariamente tem uma forma. Afinal, se ele é um ser comum a toda e qualquer diferença, existente ou não existente, ele não pode ter a forma de nenhuma delas. Ele não pode se conformar a nenhuma delas. O comum é um princípio de afirmação das diferenças.

Não há diferença real que não implique uma afirmação direta e imediata de um ser comum - que é ao mesmo tempo comum à sua essência e à sua existência. O comum é a única voz, o único sentido para toda e qualquer diferença. Quando se diz que o ser é unívoco, isso quer dizer que ele tem uma única voz, um único e mesmo sentido para toda e qualquer diferença. E qual é esse sentido? É a afirmação da diferença. A afirmação da diferença é o horizonte da diferença, é a condição para a diferença se efetuar. Não há efetuação de diferença sem um horizonte afirmativo. E o comum é o começo da afirmação da diferença, é seu princípio afirmativo. Levar a diferença até o seu termo é torná-la existente.

O comum é um ser de passagem. Todo existente só existe na passagem. É como se houvesse um portal para cada existência, mas, no fundo, o portal é o mesmo para todas as existências. E esse portal é uma zona de passagem, é a dimensão do tempo que faz passar todo o presente. Bergson diria que isso é um aspecto da essência do tempo: há algo que faz passar todo o presente (Bergson,2010). E ele diz mais: o tempo também é aquilo que faz conservar todo o passado. O passado não é o que foi, o passado é. Aqui temos um duplo aspecto da essência do tempo. A essência do tempo como duração.

O comum é um ser que não tem forma, mas que afirma a passagem. Não há existente que não esteja atravessado pelo movimento, que não esteja atravessado pelo tempo, que não esteja em devir, já que é impossível existi r fora do devir. Não cessamos de estar em mudança ou variação. A única constante em nós é a variação contínua. Portanto, a própria variável, que supostamente derivaria da constante e seria inferior a ela, é também derivada da variação contínua. Se há uma substância do real, é a própria mudança, é o próprio devir. Heráclito estava certo: tudo é devir (Heráclito, 1996). O ser é sempre um ser que se diz do devir, e não o contrário. Não é o devir que se diz do ser; é o ser que se diz do devir. Mas esse ser é um ser de passagem, é um ser que faz passar todo o presente. É o próprio princípio do acontecimento.

Se esse ser de passagem é o princípio do acontecimento, e se ele é uma afirmação de tudo o que difere, o acontecimento também é afirmação. O acontecimento e o ser de passagem são uma coisa só e, portanto, acontecer é afirmar. A afirmação começa não no sujeito, não no Eu, não num deus, não numa realidade transcendente, não numa substância ou num substrato; ela começa no acontecimento. Com isso, não há existente que não esteja imediatamente acoplado ao comum, a essa zona de passagem.

 

A utopia ativa

Os estoicos gregos, assim como Heráclito e outros pré-socráticos, diziam que tudo o que existe no espaço é corpo, e tudo o que existe no tempo é presente. No entanto, também há realidades sem existência concreta - como, por exemplo, o passado e o futuro. O tempo aiônico não existe, mas é real. O vazio não existe, mas é real. Segundo os estoicos, o lugar é um efeito incorporal do corpo no vazio, o topos. Esse lugar ou topos só é um limite como efeito, pois é exterior, flutuante, depende de um corpo que se mistura com outros corpos e que leva sua essência vital, a sua potência, até onde ela pode. O efeito disso se chama lugar, na medida que se relaciona com o vazio; e se chama acontecimento, na medida que se relaciona com o tempo.

Nós não temos, portanto, um lugar a ocupar, já que o lugar é sempre um efeito. Em outras palavras, não ocupamos um lugar dado, nós inventamos o lugar. Da mesma maneira, não usamos um tempo que está dado de modo homogêneo, nós produzimos o tempo. Nós fabricamos tempo e fabricamos lugar. Com isso, já se tem uma ideia do que seria utopia ativa - que não tem nada a ver com a utopia sonhadora de "Ah, um dia o mundo será melhor".

Spinoza diz que tudo o que existe é natureza naturada (Spinoza, 2009). No entanto, não existiria natureza naturada sem uma natureza naturante que a produz. A natureza naturante é causa e a natureza naturada é efeito, mas, enquanto efeito, é também efetuadora da causa, efetuadora da natureza naturante. E vice-versa, ou seja, não existe natureza naturante sem o efeito produzido, sem a natureza naturada; e não existe natureza naturada sem causa, sem natureza naturante. Logo, há uma pressuposição recíproca de causa e efeito: a causa é imanente ao efeito, o efeito é imanente à causa. Nada fora, nada transcendente. Tudo é imanente a este mesmo plano de realidade, e mesmo a transcendência é explicada por esse plano de realidade, uma vez que a transcendência é uma ficção, assim como a origem e a finalidade.

No Livro I da Ética, Spinoza diz que há três ilusões de consciência: a ilusão de finalidade, a ilusão de origem e a ilusão de transcendência, ou seja, a causa final, a causa primeira e a causa transcendente são ficções. Segundo Spinoza, no plano da natureza naturada, tudo é modo. E modo, por sua vez, é a modificação da natureza naturante, que é a própria potência absoluta. A realidade é feita dessa potência absoluta que se autoproduz e produz a todas as coisas. Uma potência absoluta é constituída por infinitos atributos ou potências. Tomemos como exemplo o atributo extensão e o atributo pensamento. O atributo extensão é o ser de todo e qualquer corpo. Não há corpo, não há movimento sem o atributo extensão, é o ser comum de todos os corpos. O atributo pensamento, por sua vez, é o ser comum de todas as ideias. Esses atributos constituem e são o ato da própria potência que seria essa natureza naturante, e que faz com que ela se diferencie, portanto, ela é uma multiplicidade em si mesma. E, através de cada atributo que a multiplica, ela tem uma potência infinita de se modificar segundo aquele atributo. A maneira corporal ou a maneira do movimento tem uma potência infinita de modificação. A maneira das ideias tem uma potência infinita de modificação. E tudo é produzido em ato.

Nós somos modos desses atributos. O nosso corpo é um modo do atributo extensão. A nossa mente é um modo do atributo pensamento. Nós somos uma potência em ato, um grau de potência, um modo que se atualiza necessariamente a cada ato, pois não há potência sem ato. A potência não é uma possibilidade, é uma realidade. Se fosse uma possibilidade, precisaria de uma causa exterior para se efetuar. Não, ela tem uma causa imanente. Ela tem já um mínimo de ato que a efetua necessariamente.

Todos nós, toda e qualquer realidade, toda e qualquer diferença é uma potência em ato. Portanto, o ato já é o princípio afirmativo da diferença, já é o princípio diferenciador da diferença. E o ato começa no comum, na zona de passagem. À medida que o ato se atribui, e que esse comum se atribui à diferença, esse ato se singulariza. Então há uma produção de singularidade à medida que a diferença se acopla diretamente ao comum, sem a mediação das representações.

Uma representação sempre vem de um acontecido - do corpo, da mente ou dos afetos. Um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer e se torna o princípio de mediação. E essa mediação se intromete, impede que nos relacionemos imediatamente com o comum e que nos relacionemos imediatamente com o singular. Através das mediações, portanto, nós ficamos separados do comum e do singular. E são essas mediações que inventam as ficções do público e do privado, as ficções do individual e do coletivo, as ficções do universal e do particular, as ficções do subjetivo e do objetivo. São realidades que existem, mas apenas em um nível raso. Podemos brincar com elas, sem que as tomemos como última palavra quanto ao que é o comum e o que é o singular.

À medida que compreendemos o comum, e esse comum se atribui, o apreendemos como afirmação diferenciante de cada potência. O comum necessariamente se torna uma fábrica de singularidades. A própria singularização ou diferenciação da potência, à medida que se autoproduz, ao mesmo tempo produz e amplia o comum. Isto é também dizer que a singularidade comuniza e o comum singulariza. Com isso, se dissolve a falsa contradição entre o comum e o singular, e consequentemente caem por terra as oposições representadas de indivíduo e coletivo, particular e universal, público e privado.

Se chegarmos a esse nível, não precisamos de estado, não precisamos de moral, não precisamos de metafísica. Isso seria uma utopia?

 

Ao desejo nada falta

Spinoza diz que a potência, ao se efetuar através do ato, pode adquirir três qualidades. O ato pode ser uma paixão triste ou uma paixão alegre, e pode também ser uma ação. O ato necessariamente é paixão ou ação, mas a paixão pode ser triste ou alegre. A paixão triste nos separa do que podemos e nos impede de acessar o que podemos, diminuindo a nossa capacidade de existir. A paixão alegre aumenta a nossa capacidade de existir e, apesar de nos manter ainda separado do que podemos, é uma condição para nos ligar ao que podemos. Há, portanto, uma diferença de natureza entre os dois tipos de paixão.

Já na ação estamos necessariamente ligados ao que podemos. A partir da nossa própria potência, geramos uma modificação, uma determinação intrínseca que faz com que inventemos uma maneira de existir da qual extraímos força, não importa o que nos aconteça, de bom ou de ruim. A partir da nossa própria força, da força que nos faz existir, inventamos uma maneira tal que, na verdade, é uma linha de devir e não uma forma final do ser. É uma linha de acontecimentos que necessariamente bebem direto do comum, uma afirmação que diferencia a nossa potência, ou seja, que faz com que nos modifiquemos. E essa modificação, por sua vez, faz aumentar a nossa potência de existir. Isso é uma ação.

Um afeto ativo não é determinado de fora. E, se não é determinado de fora, tampouco é parcializado por uma força ou encapsulado em um estado afetivo, ou seja, não está limitado à experiência vivida. Mantém-se ligado à potência de acontecer e, assim, não é coagido por nenhuma forma exterior. Seu desejo não segue ou idealiza forma alguma. O essencial não é uma forma de verdade, mas uma zona de passagem. E zona de passagem é aquela que deseja antes do nosso desejo, ela já está ali, esperando que aconteçamos. É uma zona que necessariamente faz com que nossa diferença seja afirmada.

O que é a diferença? É a potência virtual, portanto, não atual. É a potência que não existe - é real, mas não existe, pois é virtual. Essa diferença necessariamente se diferencia dela mesma na existência. E, ao se diferenciar na existência, gera uma realidade nova, um valor. Gera algo que pode afetar e ser afetado independentemente de quem o gerou. Esta é a fonte da autonomia. Esta é a fonte real da sustentabilidade.

Não temos de idealizar nada, buscar verdades, ideias, o bem, o modelo. O que precisamos é fazer com que nosso horizonte seja a zona de passagem, a esteira por onde passam os movimentos do nosso corpo, pensamento e desejo. Esse passar, esse devir, essa variação contínua da nossa potência preenche a nossa capacidade de existir com intensidades ou variações inéditas. E isso faz com que nós incorporemos força, produzamos força e aumentemos a nossa potência de acontecer.

O problema do comum sequestrado por uma forma é que ele coloca a forma no lugar do acontecimento. Isso em si é sintoma de uma potência que se esburacou e perdeu a superfície, perdeu sua zona de passagem. É como um cavaleiro que, ao tentar montar em um cavalo sem sela, cai ao chão. Nós caímos da altura da nossa potência de acontecer e ficamos reduzidos a um acontecido em nós, isto é, desejamos a partir da queda. E quando fazemos isso, desejamos de modo intencional. Esse modo intencional nos faz desejar objetos. Com isso, ao desejo falta um objeto, seja material, seja ideal. Esse desejo é constituído na falta. Isso é uma fraude.

Ao desejo, na verdade, não falta nada, porque o desejo começa não no buraco ou na falta, naquilo que ele não tem, mas em sua própria potência. É a presença da potência em acontecimento que deseja em nós. Esse desejo então seria intensivo, e não mais o desejo intencional. É o desejo intensivo que é a linha de diferenciação da potência, que põe a potência em acontecimento. E a potência em acontecimento é criadora de realidade e criadora das próprias condições de existência. Ela cria o seu topos, ela cria o seu tempo, ela cria os seus elementos, ela cria as intensidades que a preenchem. A potência ou o desejo criam a própria substância que vai preenchê-los.

Ao desejo nada falta, mas isso depende da invenção de uma maneira de viver. O modo de vida é a fonte de autonomia. Muitos movimentos progressistas buscam sempre uma organização, como se a organização fosse a fonte da resistência, em vez de se concentrarem em um plano de composição que é mais profundo do que a organização. Não que a organização não seja necessária, mas é secundária e - principalmente - insuficiente. É preciso atingir um plano de composição, de relação direta, de maneiras de existir que não invistam em formas de verdade, em formas de tutela, em formas de dependência da esfera pública, por exemplo; mas que invadam o que se pretende público, que se apropriem do estado e o coloquem a serviço da vida, até que ele se torne desnecessário. Podemos chamar a isso de ideal, mas ao menos é um ideal na imanência; é uma utopia, mas uma utopia ativa. Podemos fazer isso aqui e agora, e não ficar sonhando com o futuro da revolução.

 

Interventores da realidade

O comum é inapropriável, e é apenas por ficção que nos apropriamos dele. Assim como Nietzsche diz, nós só julgamos por ficção (Nietzsche, 2007). A vida é aquilo que não pode ser julgado. O julgamento pressupõe a elevação de um ponto de vista que se torna totalizante, que se pretende único e superior a todos os outros, e que envolveria a todos os outros. É a ficção do uno e do todo. No entanto, se o comum é inapropriável, por que perdemos a relação direta com ele? Por que inventamos um estado que sequestra o comum? Eis o problema da condição humana.

A condição humana de miséria e de impotência não é um mal em si, ou causada por uma matrix que estaria fora e se apropriaria do humano. Se tudo vem de um plano de imanência, de uma realidade única imanente, toda dor tem também um sentido alegre. Além disso, como diz Spinoza, é impossível que algo nos afete se não tiver algo em comum conosco (Spinoza, 2009). Ou seja, um bem só nos afeta porque tem algo de comum conosco, e também está submetido ao comum. Mas, se um mal nos afeta, pasmem, também é porque tem algo de comum conosco e também está submetido ao comum. O bem e o mal são derivados. Primeiro vem o comum.

O bem é sempre um efeito de um bom encontro, e o mal é sempre um efeito de um mau encontro. Com isso, estabelecemos que o que há são bons encontros e maus encontros. Mas o que é um mau encontro e um bom encontro? Um mau encontro é um modo que decompõe as ligações entre as forças que nos constituem, diminuindo nossa capacidade de sentir, agir e pensar, isto é, reduzindo nossa força de existir. O bem nasce de um bom encontro, e aumenta nossa potência, se compõe com as nossas forças, com as velocidades e tempos que as constituem, aumentando nossa capacidade de sentir, agir e pensar, aumentando a realidade e o modo de apreender essa realidade. Então, na verdade, o bem é o efeito de um aumento de potência que nos preenche de alegria, enquanto o mal é o efeito de uma diminuição de potência que nos preenche de tristeza.

Mas, à medida em que nós existimos de uma certa maneira, podemos criar essa mesma maneira na relação com os outros e com o mundo, de um modo tal que aquilo que nos acontece pode ser combustível de criação de realidade - seja bom ou ruim. Pode acontecer que nos acomodemos após um bom encontro e percamos força. E, mesmo os maus encontros, que diminuem nossa potência, podem ser tomados como provocações, podemos extrair forças deles.

Com isso, podemos dizer que o mal, a tristeza, a dor, o tudo o que neles há de negativo são interventores da realidade. Fazem parte da realidade, assim como quando temos febre: se não delirássemos, não tomaríamos uma atitude. Se não tivéssemos uma dor, não tomaríamos uma atitude. Então, há sempre um aspecto extremamente necessário e perfeito da dor. A dor e o sofrimento fazem parte da perfeição.

A dor, contudo, deve ser transformada em parto: trazer à existência uma realidade que ultrapassa qualquer dor, uma vida nova. Desse ponto de vista, o estado é um mal que acontece aos humanos quando eles se separam do que podem, quando, nessa separação conjunta do que podem, criam um conjunto desejante e um conjunto de crenças. Então o estado nada mais é do que o efeito de uma rede de desejos e crenças. Foucault dizia que o estado nem sequer existe (Foucault, 1979). O que é o estado, afinal de contas? Somos nós. O que é o capitalismo? Somos nós. Nós somos cúmplices, pois desejamos de maneira a dar sustentação a isso.

O estado, assim como o capital, é um preposto, isto é, depende de uma rede de afetos. Obviamente, essas formações de soberania se abatem sobre os indivíduos e fabricam a subjetividade miserável, as vidas separadas do que podem - através das famílias, das escolas, dos sistemas jurídicos, dos sistemas políticos, das instituições. Sempre há uma guerra total e permanente sobre as nossas forças ativas e sobre as nossas intensidades. A nossa intensidade e força ativa não são legitimadas, exceto quando viram funções de outra coisa. Esses centros de soberania colaboram para nos roubar, para nos submeter.

Mas onde, em que lugar, em que tempo, em que momento nós nos tornamos cúmplices, nós permitimos que isso aconteça? A vida e a morte são modos da potência, que é algo mais profundo ainda do que a própria vida. E, quando uma vida está separada do que pode, impotente, essa vida vai fazer de tudo para se empoderar, e então quererá impor o seu poder. Nisso, entra em cena o estado de não relação - que pode ser desde o macroestado, um poder material, soberano, um centro de poder com palácios e leis, poderes espirituais ou igrejas -, que faz de nós identidades isoladas, com as quais não conseguimos mais nos relacionar, exceto por mediação.

O estado nada mais é do que uma mediação, uma falsa relação por ser apenas uma representação da relação. Temos, atualmente, a axiomática do dinheiro-mercadoria, uma axiomática generalizada que substitui tudo. Tudo se torna substituível, tudo se torna equivalente. E, se há equivalente e substituto para tudo, então acaba-se a singularidade. Temos, no máximo, subjetividades, mas não singularidades. E toda subjetividade é assujeitada, é um modo de assujeitar o desejo. As singularidades encobertas são nossa potência de acontecer, linhas de vida que fazem com que inventemos a própria vida em ato, que fazem com que produzamos eternidade na existência.

Estamos duplamente separados do que podemos. Primeiro, porque caímos e levamos muito a sério as nossas dores e os nossos prazeres. Através de nossas dores, nos fazemos de vítimas e buscamos justiça, vamos acusar alguém. Tentamos encontrar a causa imaginária para nossas impotências. Nunca nos vemos como cúmplices, apenas como vítimas. Ao mesmo tempo, sentimos que temos direito aos nossos prazeres, àquilo que acreditamos trazer alegria para nossas vidas, e queremos manter aquilo no lugar. Assim o amor, por exemplo, é sempre uma vontade de apropriação. Não é o amor ativo, é sempre um amor passional que quer se apropriar dos corpos e das mentes. O modo humano de amar é miserável. O que se chama de amor na verdade é uma vontade de poder.

E há uma dupla captura que nos acompanha. Começa pelo mau uso do que nos acontece. Nós usamos mal o mal que nos acontece, e usamos mal o bem que nos acontece. Quando usamos a dor de modo vitimista e justiceiro, este é um duplo mau uso. Da mesma forma, quando usamos o bem que nos acontece de forma complacente e empoderadora, como um prazer-descarga, que nos descarrega e distensiona, em vez de nos intensificar, eis o primeiro dos seus maus usos. Em seguida, aprofundamos essa separação, porque então vamos buscar, nessa vida, nesse mau jeito, um empoderamento, uma forma de manter e multiplicar as compensações exteriores. E, com isso, nosso desejo se torna intencional e uma falsa natureza em nós, que deseja a partir de uma falta.

 

Como não ser cúmplice?

É necessário, urgente, e possível deixarmos de ser cúmplices. Basta pararmos de apontar o dedo para fora - inclusive para o bem -, e nos focarmos na maneira de viver. É como um passo atrás em relação aos objetos materiais ou ideais, antes do bem e do mal, para assim voltarmos para a zona de passagem, para o modo de vida.

A maneira de viver é a causa real do bem e do mal que nos acontece. É onde nós somos cúmplices. Isso porque a maneira de viver depende da nossa potência ou impotência. Impotência na medida que somos determinados de fora e uma maneira de viver nos é imposta. E potência na medida em que podemos reagir - não ressentir. O ressentimento é uma intoxicação, uma não digestão, um ruminar eterno. Reagir é processar, é fazer do mau encontro combustível de criação de uma nova maneira de viver. É se ligar aos movimentos intensivos e não meramente aos movimentos extensos; se ligar aos tempos de acontecimento que duram, e não meramente aos tempos cronológicos; encontrar e cultivar os sentidos de oportunidade, e não meramente achar que algo tem de acontecer no momento "certo", ideal.

O sentido mais oportuno é perceber que as coisas não são de qualquer maneira em qualquer momento e em qualquer lugar. É uma suavidade, uma maneira de encontrar. Nós, humanos, só trombamos, nós não encontramos. O encontro é essencial, temos que aprender, como diria Vinícius, a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Encontrar, nesse caso, o desejo do outro no seu tempo próprio. Encontrar o próprio desejo no seu tempo próprio. Afirmar os tempos próprios. A única violência é aquela que impede o tempo próprio de durar, porque esmaga a força que nasce da duração do tempo próprio. É a experimentação que singulariza. Deixamos de ser cúmplices quando focamos na maneira de acontecer que depende de nós. Quando assumimos a responsabilidade, aproveitamos nossas dores e nossos prazeres, e extraímos intensidade tanto de um quanto do outro. No fundo, o que queremos é intensidade, não prazer. Queremos potência de criar, e não a felicidade fictícia de um lago tranquilo onde não seríamos perturbados pelos acontecimentos.

É fundamental assumirmos a responsabilidade ética (e não moral) de ligar a nossa vida ao que ela pode. E a nossa vida pode se elevar à mais alta potência de acontecer quando deixarmos de valorizar demais os acontecidos em nós, quando deixarmos de ficar presos ao que nos aconteceu e quando deixarmos de idealizar o que vai (ou pode) ser. Quando dermos menos importância às dores e nos ligarmos mais à potência plástica da vida de variar. Nós podemos mudar, nos dinamizar, nos deslocar rapidamente em vez de chorar o leite derramado. Isso é fundamental.

 

 

Referências

Bergson, H. (2010). A evolução criadora. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Unesp.         [ Links ]

Bergson, H. (1999). Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Heráclito. (1996). Pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural. (Coleção os pensadores)        [ Links ]

Kant, I. (2015). Crítica da razão pura. Trad. Fernando Costa Matos. Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

Nietzsche, F. (2007). Sobre verdade e mentira. Trad. Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra.         [ Links ]

Platão. (2019). A república. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro        [ Links ]

Spinoza, B de. (2009). Ética. Trad. Tomaz Tadeu. São Paulo: Autêntica.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Luiz Fuganti
E-mail: fuganti@escolanomade.org

 

 

*Filósofo, pensador nômade da filosofia da diferença e clínico. É idealizador da Escola Nômade de Filosofia, - um movimento nômade de pensamento e práticas de criação de si, atuando na implementação de movimentos éticos e estéticos em arte e cultura. É também autor do livro Saúde, Desejo e Pensamento, considerada uma das maiores referências e melhores introduções ao pensamento nômade e à filosofia da diferença. Como pensador da saúde, um dos focos principais de sua atuação é problematizar uma instrumentalização para a prática da esquizoanálise, desconstruindo noções e práticas presentes em um tipo de clínica que enquadra a vida em formas de assujeitamento.

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