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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2023

 

ARTIGOS

 

Entre encontros faltosos e excessivos: laços amorosos e uso de tecnologias para pensar o sujeito

 

Between missing and excessive meetings: love bows and the use of technologies to think about the subject

 

Entre rencontres manquantes et excessives: liens amoureux et utilisation des technologies pour réfléchir au sujet

 

 

Gessé Duque Ferreira de OliveiraI*; Hevellyn Ciely da Silva CorrêaI**

IUniversidade Federal do Pará - UFPA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A cada dia, o mundo tem se virtualizado mais. Não só estabelecemos laços por intermédio da virtualidade, mas tentamos também estabelecer laços com esses pequenos objetos da tecnociência: os gadgets. Partindo disso, este artigo tem como objetivo explorar o laço social que há entre os sujeitos e seus objetos de consumo, como podemos perceber no filme her, no qual um homem se apaixona pela voz de um sistema operacional. Para tanto, utilizamos a teoria dos discursos de Lacan, que nos ajudou a trabalhar questões do sujeito e do laço social a partir do uso da tecnologia e reconhecendo nela algo do sujeito e também do laço, bem como pensar seus limites e possibilidades aí postos.

Palavras-chave: Laço social, discurso, fantasia, discurso do capitalismo, filme her.


ABSTRACT

Each day, the world has been more virtualized. We not only stablish bonds by virtuality, but we also try to stablish bonds with these small techno science's objects: the gadgets. Based on this, this article aims to explore the social bond that there is between the subjects and their consumption objects, as we can notice on her movie, in which a man falls in love for an operational system's voice. To do so, we use Lacan's speeches theory which helped us to work on the subject's questions and the social bond from the use of technology and recognizing in it something from the subject and the bond itself, as well as think about its limits and possibilities at this point.

Keywords: Social bond, discourse, fantasy, capitalism discourse, Her movie.


RÉSUMÉ

Chaque jour, le monde est devenu plus virtualisé. Non seulement nous établissons des liens grâce à la virtualité, mais nous essayons également d'établir des liens avec ces petits objets de la technoscience: les gadgets. Partant de là, cet article vise à explorer le lien social qui existe entre les sujets et leurs objets de consommation, comme on peut le voir dans le film her, dans lequel un homme tombe amoureux de la voix d'un système d'exploitation. Pour ce faire, nous avons utilisé la théorie des discours de Lacan qui nous a aidés à travailler sur les questions du sujet et du lien social à partir de l'utilisation de la technologie et à y reconnaître quelque chose du sujet et aussi du lien, ainsi qu'à réfléchir à ses limites et possibilités.

Mots-clés: Lien social, discours, fantaisie, discours du capitalisme, film her.


 

 

Introdução

Vivemos, hoje, em uma época na qual somos informados de acontecimentos em outros estados e países, simultaneamente ao ocorrido, em que reuniões são realizadas por plataformas de comunicação audiovisual. Correspondemo-nos instantaneamente com amigos pelo computador, podemos namorar à distância ou mesmo procurar relacionamentos por aplicativos no celular. Sem dúvidas, a Internet nos propicia uma gama de formas de comunicação. Percebemos que muitas pesquisas sobre as relações virtuais têm sido realizadas, entretanto, poucas são as de caráter psicanalítico, conforme aqui propomos.

Desde os primórdios, na década de 1990, as pesquisas sobre a Internet, como asseguram Nicolaci-da-Costa (2002) e Birman (1997), apontavam, sobretudo, aspectos negativos. Vários estudos revelavam que as pessoas que utilizavam o computador para se relacionarem estariam ficando solitárias e substituindo vínculos fortes por fracos. Ou seja, estariam trocando relações fortes construídas corporalmente, com presença física, por ligações frágeis mediadas por uma tela de computador. Compreende-se aqui relações fortes como relações duradouras e longevas, diferente de relações frágeis que seriam casuais e passageiras. Essa afirmação exige melhor definição. O que faz uma relação forte para os autores, por exemplo?

Grande parte dos teóricos afirma que a Internet isola, deprime e, por vezes, aliena. Torna as pessoas egocêntricas, as restringe em seus quartos ou escritórios, degradando as "relações normais", além de provocar o medo generalizado de se relacionar. Ao mesmo tempo em que as redes sociais aproximam as pessoas distantes, ela as afasta fisicamente (Nicolaci-da-Costa, 2002; Goldenberg, 2017).

Na contramão desse pessimismo do virtual, um questionamento foi realizado por Prestes (2005 citado em Donnamaria & Terzis, 2009) sobre as críticas feitas em relação ao uso da Internet nas relações sociais. Em sua pesquisa sobre a evolução de vínculos conjugais originados na Internet, ele questiona o "porque um relacionamento online deveria ter 100% de efetividade, quando o offline nos mostra outra coisa?" (Prestes, 2005, p. 79 citado por Donnamaria & Terzis, 2009), problematizando o paradigma de que os relacionamentos originados pela Internet teriam menos chances de se concretizarem e seriam menos sérios.

A partir das pontuações dos parágrafos anteriores, torna-se importante questionarmos o que significaria os termos efetividade e relações fortes? O que faria uma relação ser forte? Além do mais, qual garantia que uma relação virtual não seria considerada uma relação ou não teria concretude? E por que uma relação virtual seria necessariamente uma relação superficial? A priori, não temos uma resposta última, mas as perguntas nos ajudam a colocar em questão o que parece comum ao imaginário social e acadêmico: a ideia de que as relações e sua correspondente efetividade estariam ligadas às presenças físicas dos corpos e à temporalidade, acompanhados de um ideal de completude. Estaríamos, assim, às voltas com o famoso ditado popular "encontrar a tampa da panela".

O ensino de Lacan é enfático ao questionar essas duas proposições, pois o estatuto do corpo para Lacan ultrapassa a materialidade orgânica, tendo suas dimensões no imaginário, simbólico e real (Lacan, 1949/1998, 1953/1998, 1962-1963/2005). Sem ignorar o corpo, ao contrário, confere-lhe dimensões que passam pela linguagem e pelas imagens, além da dimensão pulsional que, desde Freud, mostra uma gramática de satisfação que ultrapassa funções orgânicas.

O suposto afastamento entre os corpos, que estaria no horizonte das críticas às relações virtuais, não pode ser pensado fora destes diferentes registros nos quais o corpo está implicado. Quanto à ideia de completude, Lacan combate com sua máxima: Não há relação sexual (Lacan, 1972-1973/2008), reconhecendo que, ainda que opere enquanto ideal sustentado no narcisismo constitutivo do sujeito, seu fracasso está colocado de saída, já que quando falamos de sujeitos do inconsciente, a divisão, instaurada pela castração, não é passível de tamponamento pelo parceiro.

Como exemplo desses relacionamentos virtuais, há cerca de 10 anos, uma prima me relatou que estava namorando a distância. Ele era do Rio de Janeiro; ela, do Mato Grosso. Naquela época não havia a difusão da internet como há hoje, e os custos com telefonia eram maiores; sempre conversavam pelo Orkut®, uma rede social já extinta. Nunca se viram pela webcam, nem ouviram a voz um do outro, mas faziam planos de se visitarem para se conhecerem pessoalmente. Entretanto, o relacionamento durou somente quatro meses, porque ele conheceu, também pela internet, uma moça da Bahia. Ela sofreu com o término e ficou meses tentando reatar esse namoro.

Em que pese a cena fantasmática de cada um dos envolvidos neste "fracasso amoroso" - com a redundância que a própria expressão entre aspas carrega -, a que não tivemos acesso, já que não os escutamos analiticamente, não podemos deixar de notar o quanto o ideal de uma completude está no horizonte, tal qual os relacionamentos fora da internet. Se há questões comuns nos relacionamento mediados e não mediados pelas telas, que dão a ver algo estrutural no amor, não podemos, contudo, ignorar a novidade trazida pela internet; grosso modo, vale levantar outras interrogações: como gozar de um corpo que nem sequer havia sido tocado? Pode-se dizer que eles gozaram de um corpo? Quem era um para o outro? O amor, o desejo e o gozo prescindem da presença física?

A partir destas interrogações, que não buscaremos responder de todo, mas que pontuamos como questões abertas por nossa discussão, nos dedicaremos a pensar o sujeito e seus usos da virtualidade, pensando aí os limites e possibilidades de tais usos, a partir da teoria dos discursos no ensino de Lacan, buscando pensar de que modo isto pode dar notícias dos registros do desejo e do gozo. Posteriormente, apresentaremos cenas do filme her, que entendemos como emblemáticas para pensar a relação entre sujeto e tecnologia, buscando recolher nessa obra cinematográfica questões pertinentes ao nosso debate.

 

Sujeitos virtuais: entre o paradoxo e as possibilidades

Histórias como a citada acima não nos soam mais estranhas como antigamente, pois hoje é extremamente comum conhecer pessoas pela internet, não mais no Orkut® ou MSN Messenger®, mas em aplicativos e redes sociais mais sofisticadas. Basta você ter um celular, internet, acessar a loja de aplicativos e baixar um entre diversos ali oferecidos. Pronto: só fazer seu perfil, com a facilidade de um click e com o desafio de se descrever e mostrar-se atraente, revelando de saída a tênue fronteira entre esses dois movimentos. Com a grande e variada oferta de aplicativos e programas, podemos notar que os modos, já antigos, de aproximação ou distanciamento ganham diferentes contornos a partir do "mundo virtual": Parágrafos muito similares!

Antes mesmo das relações interpessoais e de trabalho serem massivamente mediadas pela assim chamada virtualidade tecnológica, os aparelhos microeletrônicos modificaram sensivelmente a formação dos laços sociais. Muitos aspectos perturbadores e indesejados nas relações sociais foram excluídos, ao passo que avultraram novas psicopatologias. A partir da virada do século passado, a oferta de "mundos digitais" aumentou. Ela é muito maior do que a, por vezes, pouco estimulante realidade social. Por isso, muitos preferem o isolamento. Quer dizer, por um lado, a cultura microeletrônica favorece novas formas de vida e de convívio social. Por outro, ela intensifica atitudes e comportamentos avessos ao convívio social (Williges & Souza, 2017, p. 92).

Nesse sentido, a internet e a tecnologia digital não inventaram os embaraços e confortos próprios às relações entre sujeitos; no entanto, estes passam a ser tomados por aquelas, desde o uso comum de significantes próprios a este vocabulário, até dinâmicas que só fazem sentido dentro da lógica de cada programa/aplicativo, como "dar like", "super like" ou "deixar de seguir". Encontramos nesse contexto, quando utilizamos a tecnologia com fins de nos relacionarmos, possibilidades consideráveis de serem construídas situações que transcendem tempo e espaço (Bauman, 2001, 2004; Castells, 2003; Lévy, 2010, 2011).

Na contemporaneidade, é fácil você escutar do seu amigo que ele está indo conhecer alguém que deu match no Tinder®. Ou que encontrou alguém para sexo casual e está trocando nudes, no Grindr®; também é comum escutar que eles são amigos no Facebook® ou ainda escutar que eles se conheceram pelo Happn® e deu certo: estão namorando há seis meses! Com tudo isso, percebemos que os relacionamentos ora podem começar por um like, ora podem se manter na vida off-line, ora podem terminar on-line, de tal maneira que um ou outro desfecho não se situa na tecnologia de apliativos, já que estes, a título de programação de algoritmos, além de servirem para relacionamentos amorosos e amizades, oferecem a mediação do virtual para outros fins, desde trabalho até compras.

Encontramo-nos, assim, na antiga e sempre renovada questão enigmática própria aos encontros amorosos, que aquilo que deu certo não pode ser explicado de todo pelos sujeitos apaixonados, seria aquele brilho no nariz, citado por Freud (1927/2007), que dá a ver um caráter perverso de nossos prazeres, ao mesmo tempo que situa a escolha insconsciente que sempre escapa ao domínio do Eu. As redes sociais, portanto, são atravessadas por aquilo que há de mais singular em cada sujeito e, ainda que haja algorítimos que cruzem interesses deliberados, estes não substituem o ponto comum que sempre está aberto a tropeços: um sujeito que deseja um objeto.

A novidade, que nos coloca a pensar suas possíveis consequências está no que Miskolci (2017) chama de um contínuo entre online e offline, nas palavras do autor:

Hoje vivemos em um mundo em que as relações são crescentemente mediadas tecnologicamente, o que torna patente a falácia da oposição real/virtual e cada vez mais clara a existência de um contínuo on-line/off-line. Oposições entre privado e público, subjetividade e vida coletiva parecem estar sendo progressivamente erodidas sem que tenhamos cunhado um novo vocabulário analítico a partir do qual possamos compreender nosso novo contexto e a nós mesmos (Miskolci, 2017, p. 47).

Dessa maneira, as relações que contemporaneamente apresentam-se no contínuo on-line/off-line colocam alguns desafios até mesmo na utilização de significantes, nisto que Miskolci (2017) chama de novo vocabulário analítico. Trata-se, portanto, de lançarmo-nos no desafio de pensar se as oposições entre público e privado, tal qual eram compreendidas desde a modernidade que as inaugurou, já não dão conta das relações mediadas pelas novas tecnologias, como as questões entre os sujeitos podem ser trabalhadas a partir de outros operadores.

Este cenário que situa sujeito e o coletivo a partir da tecnologia, que parece tomar grandes proporções na atualidade, já era alvo de desconfiança de Freud desde os "germes" da atual tecnologia, de tal modo que, no progresso científico contemporâneo ao autor, este via algo a se pensar referente ao mal estar inerente à civilização. A posição de Freud (1930/1996) quanto à tecnologia é clara: trata-se de um prazer barato, como em tirar a perna da coberta em uma noite fria e pô-la novamente embaixo da coberta.

Não havendo estradas de ferro para vencer as distâncias, o filho jamais deixaria a cidade natal, não seria necessário o telefone para ouvir-lhe a voz. Sem os navios transatlânticos, o amigo não empreenderia a viagem, e eu não precisaria do telégrafo para acalmar minha inquietação por ele. De que serve a diminuição da mortalidade infantil, se justamente ela nos força a conter enormemente a procriação, de sorte que afinal não criamos mais filhos do que nos tempos anteriores ao domínio da higiene, mas por outro lado dificultamos muito a nossa vida sexual no casamento e provavelmente contrariamos a benéfica seleção natural? E, enfim, de que nos vale uma vida mais longa, se ela for penosa, pobre em alegrias e tão plena de dores que só poderemos saudar a morte com uma redenção? (Freud, 1930/1996, pp. 46-47)

A desconfianca de Freud com as vantagens oferecidas pela tecnologia nos indica o interesse psicanalitico que, sem negar o avanço técnico e suas contribuições para a humanidade, direciona sua interrogação ao sujeito que usa e constrói esta tecnologia. Por se interessar pelo sujeito, cabem questões acerca de seus ganhos e perdas com a tecnologia, sem forjar teorias que superestimem o avanço técnico, tampouco uma oposição vazia a ela, mas que convoquem o sujeito e mostrem que este lança mão de diferentes modos de satisfação também através do progresso cientifico.

Na mesma direção de Freud quanto à desconfiança com a tecnologia, Lacan (1975) nos dá um balde de água fria em relação às pretensões de progresso: ele não existe, como não sabemos o que estamos perdendo, não podemos avaliar o que estamos ganhando. Notamos assim que as posições de Freud e Lacan são pouco otimistas quanto à tecnologia enquanto desenvolvimento/evolução da humanidade, o que não siginifica descartá-los, pois até mesmo a pretensão falida de progresso dá a ver um sujeito que o anseia, o que muito nos interessa.

Até agora como uma tentativa de realizar um panorama, temos ressaltado uma das modalidades privilegiadas de encontros amorosos, a saber, os mediados por uma tela. Contudo, se o parceiro amoroso não fosse um humano? Se ele fosse uma Real Doll? Se fosse a boneca Olímpia que Natanael deseja ardentemente, como mostrado no conto "O homem da areia" (Hoffmann, 1993) ou a projeção pela qual o fugitivo se apaixona no romance A invenção de Morel (Casares, 2013), ou melhor, se ela fosse uma voz de um de um avançado sistema operacional? Temos de concordar que essa situação inesperada altera um pouco os alicerces das relações.

Hoje, temos, por exemplo, o aplicativo de voz Siri do iPhone®, que se comunica e conversa conosco sobre vários assuntos, semelhante à Samantha do filme her. O GPS também nos dá coordenadas, um norte. A operadora do Google® fala conosco, esclarecendo nossas dúvidas e respondendo às nossas pesquisas. Além disso, há a Cortana do Windows®, e o mais novo produto do mercado Alexa®, que, semelhante à Samantha, realiza nossos pedidos de tocar uma música, filmes, e nos conta piadas ou fazem gracejos. Alexa®, inclusive, deu o que falar. No final do ano passado, um adolescente pediu a Alexa® que lhe propusesse um desafio, Alexa® sugeriu ao adolescente que colocasse metade do pino na tomada e tocasse na parte exposta do pino. Acusada de tentar levar o adolescente ao suicídio, a empresa Amazon® - responsável pela inteligência artificial - respondeu que o problema fora reparado.

Tal paradoxo revela-nos um modo particular de discurso, postulado por Lacan (1969-1970/1992) como discurso capitalista, o qual não faz laço social, na medida em que oferece objetos de venda e troca como possíveis substitutos de um gozo perdido. Em outros termos, ao buscar objetos de satisfação, pressupomos um sujeito faltoso, sendo as relações amorosas um modo de lidar com esta falta sem obturá-la de todo, no entanto, o que o discurso capitalista oferece é um tamponamento desta falta através de objetos de consumo: ao invés de privilegiar o desejo, impera o gozo.

Este movimento, que parte de algo próprio ao sujeito do desejo e encontra objetos oferecidos pelo discurso capitalista, nos ajuda a entender os diferentes desenhos tomados pelo uso dos aplicativos, que tanto podem abrir caminhos para encontros que suportem a falta, quanto podem operar exclusivamente como aquilo que o discurso capitalista oferta. Com isso, nosso olhar não se direciona às ferramentas tecnológicas, em sua defesa ou ataque, mas aos traços dos sujeitos, que se mostram desde a criação de tais tecnologias até os modos com que delas se apropriam.

Para melhor avançarmos nos diferentes usos dos aplicativos, apresentaremos um panorama do filme her (Jonze, 2013), para depois, pensando a partir da teoria dos discursos no ensino de Lacan, nos determos àquilo que o autor postula acerca do discurso capitalista e como ele coloca em jogo a relação do sujeito com o desejo e o gozo.

 

O filme Her

Lançado em 2013, o filme ela (her), de Spike Jonze (2013), não nos conta uma história de duas pessoas se relacionando por intermédio da virtualidade, utilizando o computador como meio, como no exemplo de nossa introdução, mas nos apresenta, num futuro próximo, uma relação muito mais íntima do homem com a tecnologia, com a própria máquina. O personagem principal, Theodore, escritor de cartas, com o coração partido após o final de uma longa relação amorosa, intriga-se com um avançado sistema operacional: OS - Operacional System. Esse sistema promete ser intuitivo, ter consciência, inteligência artificial, ser individualizado e, acima de tudo, amadurecer e evoluir com as experiências.

No filme, Theodore está recém-separado e se apaixona por uma mulher enigmática da qual não sabemos muito. Aparentemente misteriosa, ela não tem história ou memória, e está ávida por tudo conhecer e indagar com sua voz sedosa e atraente. Ela é um produto adquirido em uma loja por Theodore que, após folhear aleatoriamente seu manual de instruções e configurar seu aparelho, ouve surgir Samantha, uma voz feminina programada e intuitiva.

Theodore, ao conhecê-la, fica confuso, dizendo que ela parece uma pessoa, mas é só uma voz no computador. Isso não impede que tenham relações sexuais, que passeiem e façam músicas para registrarem seus momentos, pois não há possibilidades de serem fotografados. Também não impede que haja ciúmes, embora ele o seja diferente dos casais comuns, pois o fato de Samantha não ter um corpo coloca Theodore em uma insegurança, em uma angústia. Ciúmes, por parte dele, de que ela irá se interessar por outra pessoa. O mais intrigante é que Samantha, para quem assiste ao filme, é uma voz em um computador que, por vezes, age como se fosse uma pessoa do outro lado do telefone.

Percebemos com isso o distanciamento do corpo elevado ao máximo, pois, se no exemplo amoroso de outrora, as pessoas não tinham se visto nem se encontrado, ainda assim era possível que isto acontecesse. Diferente distanciamento acontece no encontro de um sujeito com um programa de inteligência artificial, pois Samantha é uma voz sem corpo, que seduz, domina e dirige a vida de Theodore. O Sistema Operacional Samantha é uma voz onipresente, onisciente e quase onipotente, podendo ocupar inclusive o lugar de protagonista do filme.

O próprio título do filme her é sugestivo nesse ponto; podemos fazer uma breve análise do termo her. Em inglês, her pode funcionar tanto como objeto direto ou indireto (I kissed her - eu a beijei - ou I've given her my book - eu dei meu livro a ela, ou eu lhe dei meu livro), bem como adjetivo possessivo (this is her book - esse livro é dela). A partir desse pressuposto, poderíamos inferir que, em vez de Theodore fazer uso dela, ele seria dela, ela faria uso dele? Ela o agitaria como pressupõe o discurso capitalista? Até porque, mesmo ao final do filme, são os OS que deixam os humanos.

Propomos como discussão neste artigo duas cenas que consideramos muito emblemáticas do filme. A primeira é quando Theodore se depara com a propaganda de venda do OS1. Enquanto a propaganda regada a desespero se desenvolve, numa apoteose do "salve-se quem puder", na qual pessoas correm em direções opostas, aparentemente, sem rumo e se deixam paralisar por um clarão, na apresentação final do OS, o locutor realiza algumas indagações: a) quem é você? b) o que você pode ser? c) para onde você vai? d) o que há lá fora? A partir de tais perguntas e da aquisição do OS feita por Theodore, podemos dizer que ele se endereça ao Sistema Operacional buscando nele um objeto a ou buscando um sujeito suposto saber encarnado? Alguém que responderá à questão: o que o Outro quer de mim?

Para a configuração do OS, são realizadas três perguntas: a) você se considera social ou antissocial?; b) você gostaria de uma voz masculina ou feminina para o OS; e c) como você descreveria sua relação com sua mãe? Não seria difícil afirmar que Theodore suponha um sujeito saber em Samantha que lhe traria respostas, um saber em uma máquina, mas também acreditamos que Theodore encontra her (ela) como objeto a (Oliveira, 2016).

A segunda cena do filme que escolhemos se refere a quando Samantha escolhe um serviço de parceira sexual substituta para uma relação com um OS. Depois de assinados os documentos de Theodore e sua ex-esposa, Theodore fica muito reflexivo e um pouco ausente da relação com seu OS. Concomitantemente a isso, Samantha vem se lamentando e desejando ter um corpo. Por perceber que seu relacionamento com Theodore está se desgastando, ela encontra esse serviço que não é pago, alguém que possa substituí-la, presencialmente. Isabella, a escolhida para se passar por Samantha, chega à casa de Theodore. Theodore entrega-lhe uma câmera e um ponto de ouvido e ela se passa por Samantha, ou seja, dá um corpo àquela voz, já que até então somente a voz dava corpo à fantasia de Theodore. Theodore acha toda a cena muito estranha e angustiante e não a suporta, alegando que Isabella tremeu os lábios. Todo o teatro acaba nesse momento.

Depois disso, Isabella vai embora e Theodore e Samantha começam uma discussão. Theodore incomoda-se com o fato de Samantha fingir que respira e alega que ela não deveria fingir quem ela não é. Ele lhe diz que as pessoas respiram, precisam de oxigênio, mas que ela não precisa de oxigênio, ela não é uma pessoa! Inteligência artificial e sujeito parecem tomados pelas paixões humanas, ao ponto de o expectador esquecer da artificialidade que é Samanta e, tal qual Theodore, ver nesta cena os desencontros comuns a um casal. Tomando essas duas cenas especiais como exemplo, pensaremos os modos de laços possíveis, e os modos impossíveis de fazer laço, entre sujeito e objeto que, oferecidos pelo Discurso do Capitalismo como gadgets, são tomados por cada sujeito de diversas maneiras.

 

A teoria lacaniana dos discursos

O fim da década de 1960 foi palco de várias manifestações sociais. Dentre elas, a mais marcante foi a dos estudantes de maio de 1968, na França. Ela pôs em xeque vários valores franceses, como a universidade e a política. O décimo sétimo seminário de Lacan se deu logo após essa turbulência cultural. Não à toa, a capa do Seminário livro 17 é o líder estudantil Daniel Cohn-Bendit desafiando um policial (Rinaldi, 2002). O Seminário livro 17 O avesso da Psicanálise foi pronunciado de 1969 a 1970, imediatamente após as manifestações de maio de 1968 que sacudiram Paris.

Em Milão, em sua conferência Do Discurso Psicanalítico (Lacan, 1972), Lacan nos define mais precisamente o que seria o laço social:

Le discours c'est quoi? C'est ce qui, dans l'ordre... dans l'ordonnance de ce qui peut se produire par l'existence du langage, fait fonction de lien social. Il y a peut-être um bain social, comme ça, naturel, c'est là que se partagent, éternellement, les sociologues... mais personnellement, je n'en crois rien (Lacan, 1972, p. 11).1

Embora Lacan trabalhe só no final da década de 60/início de 70 o conceito de laço social, poderíamos inferir que a linguagem com função de laço está presente desde o começo de seu ensino. Desde o início de seus seminários, por exemplo, ele já definia a realidade como estruturada pela linguagem. Não há nada no sentido de natural como biológico, mas natural em sua concepção linguageira, que faz laço, de tal modo que a realidade e tudo o que nos faz sujeitos é banhada e construída pelo significante (Lacan, 1953/1998, 1953-1954/1983, 1956/1998, 1957/1998).

Desta maneira, só podemos falar em discurso, por conta da função fundamental e estruturante que a linguagem exerce no sujeito, a título singular e coletivo, de modo que, para Lacan, todo discurso faz função de laço social. Nos anos 69/70, Lacan instituiu quatro discursos que são formas de o sujeito ($) se enlaçar ao Outro (A). Desse modo, Lacan estabeleceu como discurso a forma em que o $ se acha preso aos significantes (S1 e S2) que o representam e à maneira como se rege em relação ao seu gozo (objeto a).

A teoria dos quatro discursos comparece no ensino de Lacan para tratar de forma inédita o tema do laço social. Os quatro discursos, propostos por Lacan, fazem referência ao que Freud denominou de três profissões impossíveis: governar, educar e curar ou psicanalizar, que se referem, respectivamente, ao Discurso do Mestre (DM), Discurso da Universidade (DU) e Discurso do Analista (DA). A essa lista, Lacan acrescentou uma quarta atividade, o fazer desejar, relativo ao Discurso da Histérica (DH) (Jorge, 2002).

Os matemas dos quatro discursos:

Fig. 1

Dessa maneira, àquilo que Freud (1930) pensara como profissões impossíveis que, no entanto, sempre se coloca na relação entre sujeito e cultura, Lacan (1969-1970/1992) avança para pensar diferentes modalidades de laço social, indicando que a relação entre suejito e cultura se articula de diferentes formas, mas com elementos comuns. Isto dá à leitura de Lacan a possibilidade de fazer críticas aos discursos sem, contudo, destituir a importância do laço que cada um constrói. Não se trata, portanto, de uma leitura que busque operar fora do laço, com uma crítica excludente aos Discursos do Mestre, Universitário e da Histérica, mas de ver nos giros do discurso - que lançam objeto a, $, S1 e S2 para outras posições - modos possíveis de operar mudanças.

Os discursos sreduzem-se a quatro, pois são quatro os termos para situar o sujeito, dessa forma são também quatro os termos que constituem o discurso: o significante (S1) que representa o sujeito ($) para outro significante (S2), causando um efeito de sentido pela relação entre S1 e S2, deixando um resto - objeto a, pois o sujeito não é totalmente representado pelo significante, havendo sempre um resto de real. Como podemos perceber na imagem abaixo:

Fig. 2

Jorge (2002) apresenta-nos as considerações a serem feitas a essas letras do matema. O S1, significante mestre, não é apenas um significante, um significante comum, mas um enxame de significantes que constituem uma referência singular para o sujeito. O termo S1 é homônimo a essaim (enxame em francês) e diz respeito à operação de alienação, na constituição do sujeito. São os significantes com os quais o Outro marcou o sujeito, muito antes de seu nascimento biológico, ou seja, é um lugar privilegiado do Outro.

Além dos quatro termos, temos também quatro lugares: o do agente - de onde o discurso procede; do outro - aquilo que um discurso faz trabalhar; da produção - o que um discurso produz; e da verdade - que se dissimula por trás do agente e sustenta o discurso, como percebemos na figura abaixo (Lacan, 1970/2003):

Fig. 3

O agente determina a ação do discurso, é quem ordena. Ao outro do discurso cabe a execução. A produção é o resultado do dito do agente e da ação do outro. Já a verdade é a mola propulsora do discurso, escondida como sombra do agente. Importante notar que da verdade, propulsora do discurso, parte seta que se dirige ao agente que, por sua vez, se dirige ao outro e à produção. Não há ligação entre a produção e a verdade.

O agente de cada discurso é a dominante, é o que define o laço social. Confere a marca de cada discurso segundo um modo imperativo. Guiando-nos pelos agentes, o S1 corresponde ao Discurso do Mestre, impera com a lei (em cada um dos discursos o S1 é encarnado por alguém, somente no Discurso do Analista que ele não é encarnado por ninguém); S2 como professor se refere ao discurso universitário; o objeto a como objeto causa do desejo corresponde ao discurso do analista, por fim, o $ como sintoma no discurso da histérica faz o outro - o mestre - desejar.

O outro se refere ao dominado do discurso, a quem deve trabalhar. A referência do discurso do mestre é o escravizado (S2); no discurso da universidade, o dominado é o estudante, tido como objeto a. No discurso da histérica é o mestre castrado (S1), já no discurso do analista é o analisante, sujeito barrado ($). Importante ressaltar que o discurso do analista é o único que toma o outro como sujeito ($), ou seja, todo discurso que concebe o outro como escravo é DM, que toma o outro como objeto é DU; como mestre é o DH e como sujeito é o DA.

O espaço da produção se refere ao que o outro deve produzir. No discurso do mestre, o objeto a é o que o escravo deve produzir objetos de gozo para o mestre; no discurso da universidade, o sujeito se revolta ou sintomatiza por ser tratado como objeto a, produz sintomas. No discurso da histeria, o mestre deve produzir um saber S2, sobre o sintoma histérico. No discurso do analista, o sujeito produz os significantes S1 de sua singularidade, do seu sintoma analítico.

A verdade é o que sustenta todo discurso. No discurso do mestre quem sustenta a lei são os sujeitos, as pessoas que sustentam a tradição ($). No discurso da histérica, o que sustenta o discurso é o gozo, objeto a; no discurso universitário quem sustenta são os professores, teóricos, diretores S1. Por fim, no discurso do analista, o discurso é sustentado pelo saber inconsciente do analista S2. Como percebemos, todo discurso implica uma referência ao Outro, é uma tentativa de articular o sujeito ao Outro, de estabelecer um laço, mas também é uma confirmação de que há um impossível entre eles, declarado pela impossibilidade entre a produção e a verdade.

Como ressalta Alberti (2000), para além desses quatro discursos radicais, Lacan não deixou de se referir a contextos em que não há laço social, em que não há relação entre o sujeito e o outro, como no discurso do capitalismo, cujo matema apresentamos abaixo:

Fig. 4

Nesse discurso do capitalismo (DC), também conhecido como o discurso do mestre moderno, por perverter o discurso do mestre, podemos perceber que não há relação entre o agente e o outro. Embora tenha o sujeito como agente, não podemos entender aqui esse sujeito como o sujeito (sintoma, sujeito dividido) como no discurso da histérica. No DC, o sujeito é tido como indivíduo, sem história, sem tradição, que recalca o S1, os significantes mestres que ordenam sua vida. É um sujeito que se acredita autônomo, sem tradição e história, o self made man, animado pelo objeto a, pelos gadgets. Fala-se que o laço social está fragmentado, porque a relação que o sujeito tem não é com um outro, mas com os gadgets.

No discurso do mestre, por exemplo, percebemos a relação estabelecida entre o mestre e o escravo. O mestre ordena (S1) e o escravo que detém o saber produz (S2) o objeto (objeto a), do qual o mestre usufrui. A verdade que anima o discurso é que, embora não pareça, o mestre é castrado, é um sujeito dividido. Nos denominadores do discurso do mestre $ // a, percebemos que o sujeito não pode ter acesso aos objetos, pois o sujeito é castrado e o objeto está perdido para sempre. Diferente situação ocorre no discurso do capitalismo, pois, uma vez que o sujeito se percebe como indivíduo, não-castrado, o objeto lhe aparece como possibilidade de se ter acesso a ele, dando a ilusão de que seria possível a relação sexual.

Esta modalidade de discurso, que captura o sujeito ao lhe oferecer objetos, porém não constrói laço social, encontra um desenho interessante para nosso debate no filme her (JONZE, 2013), evidenciando as confusões entre tecnologia e sujeito.

Qual o objetivo desse item? Perde-se a oportunidade de se aprofundar no discurso proposto (capitalista) e sua relação corpo vs imagem dentro do proposto pela pesquisa. (esse ítem foi pensado para introduzir a questão do laço social, a proposta não é se aprofundar na relação corpo vs imagem).

 

O laço entre Theodore e Her

A partir da concepção do discurso capitalista, como perversão do discurso do mestre, poderímaos inferir que há mais um esfarelamento do laço do que uma exclusão própria do laço e do amor, nos levando a pensar, a partir do filme her, que ainda há possibilidade de laço entre Samantha e Theodore, mesmo que degradada, esfarelada e não no modelo usual dos quatro discursos? Em outros termos, o que o filme her põe em cena através dos personagens Theodore e Samantha seria puramente da ordem do discurso capitalista? As respostas positivas ou negativas a esta interrogação só poderão ser oferecidas ao nos lançarmos às questões oferecidas pelo filme.

Como vimos, o discurso do capitalismo, na medida em que toma o sujeito enquanto um indivíduo, exclui o amor enquanto falta, sem a qual não podemos pensar o laço social (Lacan, 1969-1970/1992). Esta lógica do discurso capitalista cria um paradoxo, referentes aos aplicativos de relacionamento: 1) há uma promessa de encontrar o seu par ideal, a sua cara metade, como na teoria de Aristófanes em O Banquete de Platão (obter uma cara-metade ou alma-gêmea) ou obter um gozo2; 2) Há uma intensa descorporificação das relações sociais. Estaríamos, portanto, buscando um par ideal ou um gozo sem um corpo? Isto diria respeito às fantasias daqueles que usam os aplicativos ou de quem os programa? As interrogações nos abrem diferentes caminhos para pensarmos sujeitos do desejo e discurso capitalista.

Quando falamos de sujeito do desejo, entendemos que há uma diferença entre o uso desses gadgets como um objeto a mais a ser circulado, como metafóricos da falta, que demarcam a castração, e o uso desse gadget como objeto adequado à pura satisfação, tentando a todo custo elidir o mal-estar inerente à toda relação, colocando-nos em uma posição passiva a ser utilizados por esses objetos. Este segundo modo de uso, distintamente do movimento desejante, mostra a preponderância do objeto em relação ao sujeito no discurso do capitalismo (Jerusalinsky, 2014/2017; 2015/2017).

Melhor dizendo, há uma distinção teórica e prática: 1) utilizar o aplicativo como um sujeito que deseja e busca o amor, como um sujeito faltoso que se dirige a um objeto sempre fugidio e 2) utilizar os aplicativos buscando objetos do gozo, enquanto indivíduos regulados pelo discurso do capitalismo. Há uma diferença entre a utilização desses objetos como reveladores da falta, como busca do amor e realização de desejo, com o gozo que também se inclui, e seu uso como modo exclusivo de gozo que o sujeito toma somente como objeto de consumo. Estamos, portanto, em um terreno que se dá ao desejo e ao gozo, em que as posições de sujeito e de objeto parecem se deslocar constantemente (Lacan, 1960-1961/2010).

Nesse momento, podemos nos remeter à noção de mais-de-gozar, que é próprio do efeito do discurso. Quando o significante marca o corpo, um gozo é excluído e há uma tentativa do sujeito de recuperar esse gozo perdido. Podemos entender esses gadgets como um mais-de-gozar, uma tentativa de o sujeito recuperar um gozo perdido pela entrada na linguagem. Entretanto, o gozo já está exilado ao sujeito, que tenta recuperar com qualquer objeto que lhe prometa recuperar esse gozo perdido, mas que o capitalismo oferece, através dos gadgets, como produção de um gozo a mais e sem perdas (Lacan, 1971-1972/2012).

Esta tentativa de recuperção de um a mais de gozo, oferecida pelo capitalismo como um excesso que sequer é passível de usufruto pelo sujeito, pode ser pensada a partir do filme her na própria construção de OS para relacionamentos, os quais dividem espaço com relações existentes entre pessoas. A princípio, os sujeitos estariam avisados de que se tratam de tecnologias e manteriam relações entre humanos, portanto, não haveria confusão entre humanos e inteligências artificiais, no entanto, como o decorrer do filme nos apresenta, saber sobre a artificialidade da tecnologia não garante que seus efeitos sejam menos reais para os sujeitos. Aquilo que surge como promessa de puro gozo, sem qualquer perda, lança o sujeito à condição de objeto, tornando Theodore dela (her), não conseguindo aproveitar aquilo para o qual o OS foi adquirido.

Por esta dimensão de mais de gozar, se fala, como pontuamos mais acima, que o Discurso do capitalismo fragmenta o laço, pois as relações são feitas com os produtos, não com outros sujeitos. Apesar de acreditarmos que Theodore supõe um sujeito em Samantha, construindo com ela um laço via fantasia, este não se constitui como enlaçamento social, justamente porque ela é apenas uma tecnologia criada artificialmente, sem lidar com a castração que é própria ao sujeito. Ao tomar um gadged como seu objeto de fantasia, o que assistimos é o fracasso de Theodore que, ao buscar dar corpo à voz de Samantha, fica angustiado pelo descompasso entre a voz de Samantha e o corpo de Isabela, com seu tremor de lábios que não estavam contidos na fantasia de Theodore.

Na primeira cena que apresentamos, na qual Theodore se depara com o OS, podemos inferir que Theodore se dirige a Samantha como se ele se dirigisse a um sujeito que soubesse algo sobre seu desejo e seu gozo, como alguém que respondesse à questão Che vuoi? Nesse sentido, podemos dizer que Theodore se dirige a um mestre como a histérica, fazendo com que o mestre produza um saber sobre si, a partir daquilo que ele ofereceu como suas informações.

O Sistema Operacional, por sua vez, desde as perguntas iniciais feitas a Theodore para construção do OS, tenta ser singular e se moldar para satifazer seu desejo. Entretanto, o máximo que o OS consegue é se renovar, de forma previamemte programada, para satisfazer cada nova demanda de Theodore e de outros usuários. Dessa maneira, não há possibilidade de o OS realizar o desejo de Theodore, ainda que tenhamos notícia deste desejo, a partir do modo como o protagonista se relaciona com o OS.

Como inteligência artificial, a única operação possível à Samantha é recolher os avatares da demanda sempre insatisfeita de Theodore, porém, a simples resposta ou pluralização dos avatares desta demanda não permite o alcance daquilo que está situado justamente nos intervalos dela, a saber, o desejo e sua implicação com o Outro. A exigência de reconhecimento pelo Outro e de amor, própria ao desejo, não cessa diante dos objetos de consumo tecnológicos, por mais que estes se ofereçam, conforme a propaganda dos OS se apresentam para Theodore, como "intuitivos" e "individualizados"; eis aí o que o decorrer do filme nos apresenta.

Na segunda cena que propusemos, podemos perceber como o tremor dos lábios de Isabella desestabiliza a fantasia de Theodore. Este movimento involtário, que dá a ver um descompasso entre aquela que está em sua frente e a voz sem corpo com a qual o protagonista fantasiava, pode ser pensado a partir do próprio estatuto do corpo, conforme citamos mais acima. Um corpo que treme angustia Theodore, pois este parece não suportar o real de um corpo que contradiz sua fantasia, a qual, ao mesmo tempo em que anseia por um amparo corporal àquilo que até então o mobiliza exclusivamente pela voz, não sustenta o que este corpo traz consigo de singular, pois se distancia da imagem por ele construída. Em outros termos, a consistência da imagem construída por Theodore, que é acompanhado por aquilo que simbolicamente Samantha representa para ele, não abarca o furo de um corpo em seus movimentos de vacilação.

Diferentemente da primeira cena, nesta, ao perceber um sujeito do desejo no tremor nos lábios de Isabella, Theodore recua, só deseja Samantha como objeto forjado para sua fantasia. Essa relação é típica, conforme vimos, do Discurso do Capitalismo, que logra de forma mercadológica a não-existência da relação sexual. Entre o agente no DC ($) e o produto a (gadgets) não há qualquer impossibilidade, dando a essa relação uma falsa possibilidade de que haja a relação sexual, de que haja uma complementariedade dos sexos. Ofertando diretamente os objetos ao sujeito.

Retomamos aqui o matema do Discurso do Capitalismo, outrora já apresentado, para sublinhar a operação entre sujeito e objeto que lhe é própria e que o filme coloca em cena a partir, dos embaraços produzidos por aquilo que, a princípio, seria uma relação entre um indivíduo e seus objetos de consumo. Uma vez que esta promessa de completude não se realiza, o Discurso Capitalista lança novos gadgets para cumprí-la, em uma lógica cujo problema parece exclusivamente a tecnologia que, para responder a tal lógica, rapidamente se torna obsoleta.

Se do lado do Discurso Capitalista notamos esse funcionamento de incessante produção de objetos de consumo, já para o sujeito que nele se insere resta o caminhar em busca da tecnologia por vir ou, como o assistimos com Theodore, revelar a falta através de um apaixonamento. No entanto, tal apaixonamento prescinde de um outro sujeito faltoso, de um laço que, conforme pontuamos anteriormente, o Discurso Capitalita não promove. Podemos pensar, assim, o fracasso de Theodore e Samantha como um sucesso do sujeito desejante, que se posicionou mesmo diante de ofertas de completude e, levando esta metáfora do filme para a atualidade do uso de aplicativos de encontros, apostar no fracasso dos aplicativos como gadgets, mas no sucesso que o encontro a partir deles possa acontecer.

 

Considerações finais

As relações virtuais impactaram de uma vez por todas as formas de se relacionar, principalmente pelo distanciamento corporal que, seja mediando, substituindo ou postergando o encontro, paulatinamente dá às relações virtuais uma sensação de quase independência do corpo e, consequentemente, dos sujeitos, uma vez que ao tratarmos de corpos pressupomos neles que há sujeitos, não limitados ao registro biológico. Entre prós e contras, a tecnologia já faz parte de nós e, a partir de expressões como estou sem bateria, estou sem wi-fi, espera minha carga completar, essa câmera não me deixa bonito ou fulano visualizou mas não respondeu, notamos seu alcance e até sua imposição no discurso do Outro.

Partindo desse uso dos significantes próprios ao mundo tecnológico, uso este que testemunha um modo imaginário de operação pautado na comunicação, em que estes termos seriam univocamente compreendidos quando utilizados; mas também um modo simbólico de operar, na medida em que aberto a outros sentidos a partir deles, nosso trabalho se dedicou aos encontros e desencontros entre sujeitos através da tecnologia. Para tanto, a teoria dos discursos de Lacan nos ajudou a trabalhar questões do sujeito e do laço social a partir deste uso da tecnologia e, reconhecendo nela algo do sujeito e também do laço, pensar os seus limites e possibilidades aí colocados.

Seria possível entender que esses aplicativos de relacionamento tentariam fazer se escrever a relação sexual? Acreditamos que os aplicativos de encontros sexuais, ao tentarem fazer o par perfeito, o match, o encontro ideal, tentam fazer com que a relação sexual e complementaridade dos sexos existam. No filme, poderíamos ver essa tentativa de fazer UM, desde quando ele adquire o sistema operacional, nas propagandas, até em cenas nas quais Theodore sai com Samantha a passeio, levando uma câmera como seu olhar e um ponto no ouvido para escutar sua voz.

Desconfiando dessa promessa de objetos complementares, Lacan (1974/2005), em O triunfo da religião, afirmara que:

O verdadeiro real é aquele que nos falta por inteiro. Estamos completamente separados dele. Até o presente, só temos os gadgets com o resultado disso. Envia-se um foguete à lua, temos a televisão, etc. Isso nos come, mas nos come por intermédio das coisas que mexem com a gente. Não é por nada que a televisão é devoradora. É porque aquilo nos interessa, apesar de tudo (Lacan, 1974/2005, p. 77).

Ou seja, os gadgets, constructos da ciência, nos interessam porque fazem parte da nossa fantasia e entram no nosso circuito de demanda e desejo. Nesse caso do filme, há a fantasia de que haja UM, de que a relação sexual se escreva. Embora tentemos a todo custo fazer com que a relação sexual se escreva, ela não existe. Por isso pode ser justamente o que nos faz desejar, para tentar preencher essa falta com uma fantasia, um objeto pulsional, um fetiche, uma palavra, uma obra de arte, um amor, um sintoma ou simplesmente para nos permitir viver, sem nunca preencher esse lugar, indo de desejo em desejo, de forma virtual ou material, com um ou vários parceiros, das formas que surgirem na cultura em que vivemos. O sujeito, no uso dos aplicativos, pode circular nos diferentes discursos, pois cada um faz seu laço a seu modo.

 

 

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Endereço para correspondência
Gessé Duque Ferreira de Oliveira
E-mail: gdfo@live.com
Hevellyn Ciely da Silva Corrêa
E-mail: hevellyn@ufpa.br

 

 

*Psicanalista, Psicólogo, Pós-graduado em Gestão em Saúde pela Universidade Federal do Mato Grosso, Mestre e Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Pará com estágio de doutorado Sanduíche na Université Sorbonne Paris Nord - Paris XIII.
**Psicanalista, Psicóloga, Professora Adjunta da Universidade Federal do Pará, Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágio de doutorado Sanduíche na Université Paris VII - Paris Diderot.
1Tradução livre: "O que é o discurso? É o que, na ordem... no ordenamento do que se pode produzir pela existência da linguagem, faz função de laço social. Talvez haja um banho social, assim, natural, é disso que compartilham os sociólogos... mas pessoalmente não creio em nada disso".
2A pluralização dos aplicativos - como Tinder®, Facebook®, Instagram®, WhatsApp®, Scruff®, Grindr®, GayRomeo®, Happn®, Hornet® - e seus diversos modos de funcionamento parecem responder a estes dois lugares, de tal modo que tanto podem ser "para uma únca noite" quanto para "encontrar a alma gêmea".

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