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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2023

 

ARTIGOS

 

Psicanálise, processos grupais e autismo

 

Psychoanalysis, Group Processes and Autism

 

Psicoanálisis, Procesos Grupales y Autismo

 

 

Gianne Christine Hoepers*; Priscilla Melo Ribeiro de LimaI**

IUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é levantar aspectos das concepções psicanalíticas acerca de grupos e discussões teóricas e técnicas acerca da proposição de grupos com crianças autistas em instituições. Ao longo do trabalho discutimos sobre o processo de formação dos grupos; os pressupostos teóricos grupais cunhados por René Kaës e a possibilidade de grupos com objetos mediadores. Ao final, apresentamos uma breve análise acerca da realidade grupal e dos grupos com objetos mediadores com crianças autistas em um CAPSi. Compreendemos que esta especificidade de atuação ainda é incipiente, necessitando de mais estudos. No entanto, enxergamos potencialidades na proposta de intervenção grupal para trabalhar diversas demandas como dificuldades na capacidade associativa, na percepção de si e do outro, na interação, entre outras que comumente estão presentes nos quadros de autismo. Em nossa pesquisa, os resultados apontam que houve evolução positiva em todas as crianças participantes.

Palavras-chave: Psicanálise, Grupos, Crianças, Autismo.


ABSTRACT

The aim of this article is to raise aspects of psychoanalytic conceptions about groups and theoretical and technical discussions about the proposition of groups with autistic children in institutions. Throughout the work, we discussed the group formation process; the group theoretical assumptions coined by René Kaës and the possibility of groups with mediating objects. At the end, we present a brief analysis of the group reality and groups with mediating objects with autistic children in a CAPSi. We understand that this specificity of action is still incipient, requiring further studies. However, we see potential in the proposal of group intervention to work on various demands such as difficulties in associative capacity, in the perception of oneself and the other, in interaction, among others that are commonly present in autism. In our research, the results show that there was a positive evolution in all participating children.

Keywords: Psychoanalysis, Groups, Children, Autism.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es plantear aspectos de las concepciones psicoanalíticas sobre grupos y discusiones teóricas y técnicas sobre la proposición de grupos con niños autistas en instituciones. A lo largo del trabajo, discutimos el proceso de formación del grupo; los supuestos teóricos grupales acuñados por René Kaës y la posibilidad de grupos con objetos mediadores. Al final, presentamos un breve análisis de la realidad grupal y grupos con objetos mediadores con niños autistas en un CAPSi. Entendemos que esta especificidad de acción aún es incipiente, requiriendo más estudios. Sin embargo, vemos potencial en la propuesta de intervención grupal para trabajar sobre diversas demandas como las dificultades en la capacidad asociativa, en la percepción de sí mismo y del otro, en la interacción, entre otras que están comúnmente presentes en el autismo. En nuestra investigación, los resultados muestran que hubo una evolución positiva en todos los niños participantes.

Palabras clave: Psicoanálisis, Grupos, Niños, Autismo.


 

 

A Psicanálise nasceu como uma proposta para se tratar indivíduos em sofrimento psíquico. As configurações deste tratamento que tem o inconsciente como centro foram construídas por meio de um arcabouço teórico-técnico que sustentou e desenvolveu o processo de análise por meio de pressupostos como a associação livre, a transferência e o divã. Entretanto, várias demandas foram surgindo nas décadas posteriores à sua criação e que têm requerido da psicanálise repensar alguns de seus pressupostos e reconfigurar sua prática clínica. Dentre essas demandas, destacamos a psicanálise com grupos, especificamente, com grupos de crianças autistas - nosso objeto de investigação.

Os grupos sociais são objeto de estudo na psicanálise desde Freud, mas a sistematização da teoria e técnica grupal voltada a fins de análise tem seu início e desenvolvimento com autores pós-freudianos. O objetivo deste artigo é levantar aspectos das concepções psicanalíticas acerca de grupos e discussões teóricas e técnicas acerca da proposição de grupos com crianças autistas em instituições. A reflexão sobre a organização e os processos grupais em Freud forneceram contribuições iniciais para a posterior estruturação de um método de tratamento em grupo. Na década de 1920, contemporâneo à publicação de Psicologia das Massas e Análise do Eu, começaram a ser desenvolvidas experiências da psicanálise em instituições e os grupos emergiram como possibilidade de intervenção. Desde então, emergiram discussões sobre a possibilidade de uma psicanálise de grupos que fosse além dos conceitos da teoria e técnica individuais sem, no entanto, distanciar-se de sua raiz teórica. Vários teóricos começaram a se indagar sobre como se daria uma psicanálise de grupos, e como se estruturaria enquanto teoria e técnica. São questões que permearam os estudiosos da área no decorrer da construção desta especificidade de conhecimento e que, atualmente, ainda perpassam o campo teórico e de atuação de profissionais que se debruçam sobre o fenômeno grupal. Castanho (2018) afirma que "o reconhecimento do trabalho em grupo como parte da psicanálise por parte dos psicanalistas é algo ainda em processo" (p. 33).

Esta busca por legitimar uma psicanálise de grupos desenvolveu-se bastante na década de 1930 quando a influência psicanalítica nas intervenções grupais ganhou força por meio de autores como Pichón-Rivière, Foulkes, Anthony, Grinber, Langer, Rodrigué e Bion (Boris, 2014; Calil, 2001; Sousa, 2017). Estes autores desenvolveram pressupostos de formação dos grupos e manejo grupal que contribuíram grandemente na consolidação da prática psicanalítica de grupos, seguindo alguns dos pressupostos do referencial psicanalítico construído por Freud e ampliando-o de forma vertiginosa nas décadas de 1940 e 1950.

Na década de 1960, em discordância com alguns dos percursos freudianos, mas ainda na corrente psicanalítica, desenvolveu-se a análise institucional (Oliveira, 2000). Seus representantes, Lourau, Deleuze e Guattarri, se opuseram à psiquiatria clássica e buscaram analisar as instituições e as contradições inerentes a ela. Além disso, levantaram possibilidades de intervenções que pudessem favorecer os sujeitos a repensar sua posição submissa frente aos ditames institucionais e impulsionar a transformação individual, grupal e social (Sousa, 2017).

Na década de 1970, desenvolveu-se o pensamento do psicanalista René Kaës cujas obras são primordiais para as reflexões propostas no presente trabalho. Como apontado pelo próprio autor em As teorias psicanalíticas do grupo (Kaës, 2003), a perspectiva psicanalítica de grupos emergiu em um contexto de grandes rupturas e produziu-se marginalmente enfrentando fortes resistências dos próprios psicanalistas. Isto ocorre, ainda na atualidade, em grande parte porque a extensão do campo psicanalítico envolve uma crise epistemológica em que os requisitos fundamentais precisam se ajustar a fim de acessar as novas demandas de trabalho (por exemplo, com crianças, psicóticos, grupos). Estas demandas geram uma reformulação da teoria e consequentemente suscitam questionamentos acerca da continuidade-descontinuidade com a raiz teórica.

Kaës afirma que uma teoria de grupo pode ser considerada psicanalítica se "1) o campo dos seus objetos for constituído pelas formações e processos inconscientes e pelos efeitos das subjetividades que aí se constituem"; e se "2) as modalidades de elaboração desta teoria se fundarem sobre uma situação construída para as tornar manifestas e interpretar estes efeitos" (2003, p. 16). O objetivo da psicanálise grupal seria, portanto, "desatar os vínculos intersubjetivos geradores de perturbações nos vínculos e nos sujeitos do vínculo" (Kaës, 2011, p. 32).

Para Kaës (2003), o tratamento psicanalítico em grupos seria indicado a casos refratários aos dispositivos individuais. O tratamento em grupo "de crianças gravemente perturbadas, de algumas patologias da adolescência, de sofrimento, de adicção e de sequelas traumáticas mostra a eficiência da função pensante do outro (de mais de um outro) na restauração da atividade da memória, da linguagem e da interpretação" (2003, p. 13). Pensando na importância desta função pensante do outro na constituição psíquica e nas teorias de grupo, Kaës rompeu com a perspectiva até então preponderante de análises de grupo em cujo centro ainda figuravam elementos da análise individual.

 

Aparelho psíquico grupal e as alianças inconscientes

De acordo com Kaës (2011), os teóricos de grupo vinham construindo modelos que convergiam na ideia do grupo como tendo uma realidade psíquica própria: "pressupostos de base e mentalidade de grupo (Bion), matriz grupal (Foulkes), esquema contextual, reflexivo e organizacional (Pichon- Rivière), modelo onírico do grupo (Anzieu)" (p. 114). No entanto, ficavam de lado questões acerca da realidade psíquica do sujeito no grupo e dos processos psíquicos compartilhados mediadores entre o grupo e cada sujeito. Kaës cunha, assim, a concepção de aparelho psíquico grupal.

O modelo do aparelho psíquico grupal é pautado a partir dos seguintes enunciados:

1. Não há somente reunião de indivíduos, mas grupo, com fenômenos específicos quando se operou entre os indivíduos que constituem esse grupo uma construção psíquica comum e partilhada. O aparelho psíquico grupal é o meio dessa construção e é o resultado de certo arranjo combinatório das psiques.
2. O aparelho psíquico grupal realiza um trabalho específico: liga, reúne, põe em acordo entre si e em conflito as partes da psique individual mobilizadas para construir o grupo.
3. O aparelho psíquico grupal não é a extrapolação do aparelho psíquico individual, é uma estrutura independente dos psiquismos que ele reúne segundo suas leis próprias, possui sua própria organização e seu próprio funcionamento.
4. Os processos que governam a realidade psíquica comum e partilhada são tributários de uma lógica diferente daquela que governa o indivíduo.
5. É tal aparelhagem que constitui a realidade psíquica de e no grupo. Esta se organiza segundo modalidades em que o "comum" e o "partilhado" prevalecem sobre o "privado" e o "diferente".
6. O aparelho psíquico individual se forma, por um lado, nessa aparelhagem, procede dela e nela se transforma, dela se diferencia e, em certas condições adquire autonomia (Kaës, 2011, p. 116).

O grupo é compreendido a partir das implicações recíprocas do sujeito e do grupo. Kaës postula que o aparelhamento da psique, na qual predominam os processos primários inconscientes, é organizado pelas formações intrapsíquicas ou grupos internos. Os grupos internos são formações intrapsíquicas que organizam a nível inconsciente o aparelhamento das psiques tais como os fantasmas originários e os sistemas de relação de objetos. Kaës (2017) afirma que tal noção de grupos internos pode ser encontrada na segunda tópica freudiana, onde são postulados os conceitos de Id, Ego, Superego, Ideal de Ego (Freud, 1923/1996e). Estes grupos internos de cada sujeito mobilizam-se no processo de constituição do aparelho psíquico grupal que, por sua vez, emerge como suporte "múltiplo e recíproco nas formações grupais do psiquismo de cada um dos participantes" (Kaës, 2003, p. 68). O arranjo das psiques culmina na psique do grupo. Podemos dizer que há a formação de um grupo quando há uma construção psíquica comum entre seus membros em dois níveis de relação: indiferenciado e diferenciado.

O primeiro nível, também denominado por Kaës (2003) de polo isomórfico, consiste em um processo de não diferenciação que nega ou busca reduzir o espaço entre o aparelho psíquico grupal e a realidade psíquica subjetiva, é o polo imaginário. Neste polo tem-se a ilusão do grupo como um corpo indivisível onde cada sujeito teria seu lugar na economia psíquica grupal. Kaës cita como exemplos a família e grupos de psicóticos, nos quais prevalecem a dependência grupal como fator de sobrevivência frente a angústias. Afirma, ainda, que é uma configuração necessária para a integridade do grupo.

O segundo nível, ou polo homomórfico, consiste na diferenciação entre o aparelho psíquico grupal e o espaço psíquico individual. Esta diferenciação possibilita a elaboração da relação de cada um dos membros com o grupo, integrando as diferenças com base nos interditos estruturantes. Kaës considera que a integração das diferenças possibilita o acesso ao simbólico na medida em que são feitas mediações que sejam referenciadas aos interditos estruturantes e à Lei grupal que, por sua vez, suscita e contém conflitos e acolhe sentimentos ambivalentes (Kaës, 2003). É na tensão dialética entre os polos isomórfico e homomórfico que se desenvolve o aparelho psíquico grupal.

Desde o início do desenvolvimento do aparelho psíquico grupal estão em jogo também o desenvolvimento de alianças inconscientes que perpassam os espaços constituídos no grupo e as relações emergentes nele. Além disso, as alianças inconscientes firmam uma espécie de acordo inconsciente frente a alguns conteúdos a fim de poder estruturar-se objetivando uma defesa ou alienação (Kaës, 2014). A aliança inconsciente caracteriza-se como uma formação psíquica intersubjetiva erigida pelos sujeitos participantes de um vínculo para "reforçar em cada um deles alguns processos, algumas funções ou algumas estruturas produto do recalcamento ou da negação, ou do desmentido, e do qual retiram um tal benefício que o vínculo que os une adquire para sua vida um valor decisivo", afirma Kaës (2003, p. 106).

Castanho (2018), em estudo acerca das teorias grupais, aponta que, para Kaës, "as alianças inconscientes são o 'cimento' de todo o vínculo" (p. 71). Os acordos firmados sob a égide das alianças inconscientes têm influência na constituição de cada sujeito envolvido e determinam sua forma de inserção em diferentes grupos, assumindo diferentes características e funções. Além disso, remetem a uma "tópica, a uma economia e a uma dinâmica intersubjetivas. São configurações psíquicas bifacetadas, duplamente organizadas. Não pertencem propriamente nem ao sujeito singular, embora sendo ele parte interessada e constituinte do conjunto, nem ao conjunto" (Kaës, 1991, p. 270). Dessa forma, as alianças inconscientes satisfazem concomitantemente os interesses do sujeito e da manutenção de vínculo que o associa ao grupo.

Kaës (2014) expõe as alianças inconscientes descrevendo dimensões que as qualificam: (a) geracional / sincrônica; (b) assimétrica / simétrica; (c) homogênea / heterogênea. Na dimensão geracional/sincrônica observa-se aspectos de vínculos formados entre gerações e vínculos contemporâneos. Castanho (2018) reflete que, da mesma forma que "o bebê chega ao mundo ocupando um lugar em alianças previamente constituídas, também um novo membro em uma organização, seja funcionário ou usuário do serviço, entra em um espaço vincular constituído por alianças inconscientes formadas antes de sua entrada" (pp. 74-75), podendo desenvolver posteriormente alianças inconscientes relacionadas a seu vínculo contemporâneo.

Outra dimensão que qualifica as alianças inconscientes é a assimétrica/simétrica, que remete a questões de relação de poder e de dependência dos vínculos desenvolvidos. Castanho (2018) sistematiza as concepções kaësianas e afirma que as alianças simétricas são constituídas entre dois ou mais sujeitos de maneira suficientemente igual enquanto as alianças assimétricas são configuradas de forma desigual e envolvem vínculos de dependência e/ou dominação entre os sujeitos envolvidos. Outro aspecto a ser considerado nas alianças inconscientes é o nível de consciência das pessoas envolvidas nelas, sendo considerada heterogênea quando os sujeitos possuem diferentes graus de consciência acerca da dinâmica psíquica que sustenta o vínculo e homogênea quando os sujeitos vinculados possuem o mesmo nível de consciência.

Ainda em conceituação das alianças inconscientes, Kaës as caracteriza como estruturantes e defensivas. As primeiras estruturam o espaço psíquico do sujeito e de suas relações, podendo assumir diferentes configurações. Kaës ressalta que "elas reúnem, agenciam, diferenciam e constroem a matéria psíquica (suas formações e seus processos) e a realidade psíquica que resulta disso, no espaço interno e no espaço das relações" (2014, p. 60). Isto se dá de forma dinâmica e conflitiva. Castanho (2018) afirma que todos os sujeitos são convocados a inserir-se nessas alianças e que quando estabelecidas geram o processo de simbolização por remeter a um terceiro. O contrato narcísico é a principal aliança estruturante.

O conceito de contrato narcísico foi proposto pela psicanalista Piera Aulagnier a partir da ideia discutida por Freud, em Mal-estar na civilização (1930/1996f). A autora pensa o contrato como uma espécie de alienação que advém do encontro do sujeito com outro que o deseje alienar, possibilitando uma pactuação que forneça condições para o advento do Eu. Aulagnier (1975), citada por Castanho (2018) afirma que o contrato narcísico é "fundamento de toda relação possível sujeito-sociedade, indivíduo-grupo, discurso singular-referente cultural" (p. 158).

De acordo com Kaës (2014), o contrato narcísico vincula o sujeito ao conjunto de outros sujeitos que o rodeiam e que influenciam no emergir de sua vida psíquica. A partir de então busca a garantia de continuidade do grupo com a perspectiva de que porta esta missão:

Para assegurar essa continuidade, o grupo ou conjunto de pessoas deve, por sua vez e na forma de intercâmbio, investir narcisicamente esse novo indivíduo. Assim cada neonato, cujo estatuto psíquico é, desde antes de seu nascimento, o de um sujeito do grupo, encontra um lugar já designado no contexto humano, um lugar de que ele terá necessidade para se desenvolver e para que o grupo o mantenha. Considerada sob esse ângulo, a função principal do contrato é a de manter a continuidade do investimento de autoconservação, para cada sujeito e para cada grupo humano do qual este é parte constituinte (pp. 63-64).

Sendo assim, o contrato narcísico cumpre ainda a função de orientador das identificações do sujeito, de forma imposta e potencialmente alienadora. A passagem do individual ao universal exige que haja um processo de singularização frente ao contrato narcísico a fim de desvencilhar-se das alienações e acessar ao simbólico constituinte. Kaës (1997) distingue dois tipos do contrato narcísico: "o primeiro conclui-se no grupo primário, através dos investimentos do narcisismo primário, os roteiros de lugares, os enunciados de palavras, e de mito, os pontos de referência identificatórios: todos servem conjuntamente, ma em níveis lógicos distintos, ao sujeito e ao conjunto" (p. 264). O segundo contrato conclui-se nos grupos secundários onde são recolocadas em questão a relação contratual estabelecida inicialmente. A cada inserção em uma nova posição e/ou novo grupo são revisitados os pressupostos do contrato, modificando-os ou não.

As alianças inconscientes defensivas, por sua vez, são derivadas das alianças inconscientes estruturantes e tornam-se fonte de sofrimento e desorganização psíquica e das relações. Elas emergem frente a angústias arcaicas e angústias de castração disparadas por mecanismos de defesa. É importante ressaltar que os aspectos defensivos e estruturantes são isolados para explicitação didática do conceito, mas que não podem ser totalmente separados.

As alianças podem também ser alienantes quando se fundamentam sobre a negação ou desaprovação, a rejeição ou a foraclusão. Essa forma de aliança inconsciente é "fonte de sofrimento ou desorganização psíquica ou, ainda, de destruição do espaço interno e do espaço do vínculo" (Castanho, 2018, p. 80) e tem a característica de tornar os sujeitos radicalmente estranhos a si mesmo de maneira prolongada. Além disso, impede que o sujeito se aproprie de seu desejo e consiga inserir-se simbolicamente de forma desintrincada das formações alienantes iniciais (Kaës, 2014).

Castanho (2018) afirma que a análise das alianças inconscientes "descrevem a consistência psíquica do vínculo e permitem pensar a correlação entre os agenciamentos vinculares e os intrapsíquicos" (p. 89). Cada sujeito se organiza mediante a combinação de suas próprias razões internas com as configurações de seus laços no grupo, denominadas por Kaës como organizadores psíquicos e socioculturais.

 

O processo grupal

Tendo em vista tais compreensões acerca dos processos de formação e manutenção dos grupos, é importante buscarmos compreender como se dá, então, o processo grupal. Kaës busca sistematizar metodologicamente sua proposta psicanalítica de grupos a partir da concepção de método pensada por Freud. O método psicanalítico aplicado aos grupos, da mesma forma que no processo individual, teria um conjunto de procedimentos de conhecimento da realidade psíquica e de tratamento das perturbações psíquicas. Entretanto, diante da pluralidade de sujeitos, e da prevalência do face a face e da interdiscursividade na situação de grupo, algumas mudanças metodológicas são necessárias. O grupo em si mobiliza diferentes modelos de transferência, de processos associativos e modifica o fazer do analista, sua escuta e interpretação (Kaës, 2011).

O grupo, assim como o modelo individual de cura neurótica, configura-se como espaço privilegiado de análise dos acometimentos psíquicos que seriam de outro modo inacessíveis, ressalta Kaës (2003). Por meio do grupo as questões da própria constituição e das perturbações de vínculo fundamentais no processo de subjetivação podem ser evidenciadas e trabalhadas analiticamente. Diante disso, Kaës destaca que a questão metodológica referente aos grupos não é da ordem da "psicanálise 'aplicada', nem da urgência de verificar se as especulações freudianas sobre o grupo e a 'psique de grupo' podem ser mantidas. O problema é da construção de um novo objeto psicanalítico por meio de uma metodologia adequada" (2011, p. 66).

Nessa perspectiva, o grupo é compreendido a partir dos seguintes princípios elencados por Kaës (2011): a) a primazia de um princípio desejante e organizador; b) a pluralidade de pessoas presentes no processo; c) o face a face e d) a pluralidade de discursos e a intersubjetividade. Estas características, na perspectiva kaësiana, estão presentes nos mais diversos tipos de dispositivos grupais, são interdependentes, e incidem sobre as regras do método e do processo psicanalíticos.

A primazia de um princípio desejante e organizador consiste na colocação do psicanalista que reúne o grupo em posição imaginária de seu fundador, enunciando as regras que permeiam o processo de simbolização a se desenvolver. Esta precessão encarnada pelo psicanalista interfere diretamente no processo de transferência/contratransferência. A pluralidade de pessoas presentes no processo grupal, por sua vez, caracteriza o grupo e gera combinações relacionais, de afetos, de representações complementares ou antagônicas que constituem uma complexidade de projeções, identificações e coexcitações.

Outra característica importante na situação grupal é o face a face. Kaës aponta que, ainda que favoreça os jogos especulares das identificações, tal característica instiga as formas de comunicação não verbal e abre vias para as representações de palavras e para a fala expressiva e receptiva. Por conseguinte, a pluralidade dos discursos e da intersubjetividade caracteriza-se pelas diferentes formas de expressão - fala, mímicas, posturas, gestos - que emergem de duas cadeias associativas: uma própria a cada um e outra formada por um conjunto de enunciados advindo das representações inconscientes organizadoras dos vínculos de grupo. Kaës denomina de interdiscursividade o discurso que se estabelece na intercorrência do discurso de cada sujeito e "aquele que forma o conjunto de seus discursos. As enunciações e os enunciados são determinados segundo esse duplo eixo. O discurso associativo no grupo se organiza de tal modo que cada sujeito atrela ou desatrela suas próprias representações da dos outros" (2011, p. 72).

Como consequência da pluralidade, as manifestações transferenciais se dão em níveis diferentes: intra, inter, grupal. Emerge então uma economia libidinal particular que inclui transferências de organizações psíquicas heterogêneas e transferências laterais que dividem o processo transferencial entre os membros do grupo, o grupo em si e o analista. De acordo com Kaës (2011),

No dispositivo de grupo as transferências plurais, multilaterais e conectadas entre si são difratadas sobre os objetos predispostos a recebê-las na cena sincrônica do grupo. Essa característica das transferências em situação de grupo qualifica o grupo como uma situação de trabalho psicanalítico para os sujeitos que não poderiam tolerar um objeto único de transferência: é o caso dos pacientes psicóticos, borderline ou antissociais. A difração da transferência é também uma divisão econômica das cargas pulsionais associadas ao objeto da transferência (p. 74).

Na cena do grupo, então, o analista não é o único objeto da transferência, ainda que se configure como objeto de transferências sucessivas no decorrer do processo grupal. Neste processo, torna-se possível a observação dos efeitos produzidos na conexão entre inconscientes em uma configuração de vínculo como a do grupo. Frente a isto, levanta-se a hipótese de que no grupo, "assim como em todo vínculo intersubjetivo, o inconsciente se inscreve e se manifesta diversas vezes, em vários registros e em várias linguagens: nos de cada sujeito, nos do vínculo intersubjetivo e nos do grupo" (Kaës, 2011, p. 76). O grupo

é ocasião de encontro pulsional e intempestivo com mais-de-um-outro, encontro perigoso por causa da multiplicidade de solicitações entre os quais o Ego dos membros de um grupo devem fazer uma seleção: sua capacidade de ligar representações põe à prova a qualidade de sua vida fantasmática. A função paraexcitadora é uma função maior do pré-consciente; ele a cumpre usando as predisposições significantes e representações de palavras que estão disponíveis. Esta função é sustentada originalmente pela mãe quando esta se constitui em porta-voz das estimulações internas e externas da criança. É desse modo, em com base nesse modelo, que tento ligar a formação do pré-consciente ao trabalho da intersubjetividade e à função das alianças inconscientes do grupo (Kaës, 2017, p. 327).

Cada sujeito traz ao grupo significantes que são ligados a representações tanto do organizador grupal quanto do sujeito. Estes significantes, por sua vez, podem passar a ser utilizados por outro sujeito do grupo encontrando uma via de passagem de suas representações inconscientes ao pré-consciente. Tal compreensão levou à construção teórica do conceito de função fórica, caracterizada por Kaës (2017) como sendo "funções intermediárias que alguns sujeitos cumprem ou que lhes são atribuídas: por razões que lhes são próprias, esses sujeitos vêm a ocupar algum lugar no grupo, a saber, de porta-voz, porta-sintoma, porta-sonho, etc." (pp. 327-328). Tais funções realizam papel articulador entre os campos intrapsíquico e intersubjetivo.

Castoriadis-Aulagnier (1975 apud Kaës, 2007) levanta as principais funções do porta-palavra pensando na estruturação do bebê. Antes do nascimento a voz já se faz presente com tons, vibrações e musicalidade diversos que acompanham as palavras que construirão suposições acerca das atividades do bebê após o nascimento. Kaës (pp. 158-159) esclarece que

a primeira função do porta-palavra está costurada nas atividades mímicas, olhares e sorrisos, gritos e choros, odores, o conjunto de contatos, suportes e sustentações da mãe e do bebê. Ela se instaura no momento do banho das crianças, no momento do aleitamento e na hora de dormir, no momento em que a criança chora, quando precisa ser trocada, em suma, em todos os momentos que são momentos de prazer e desprazer para o infans. É mediante este tipo de experiência que a mãe leva ao infans a fala, que ela o sustenta na fala e que o constitui pela fala, que ela lhe abre a porta.

Dessa forma, por meio do porta-palavra primário que é o agente materno inicia-se a organização libidinal e a estruturação psíquica da criança que se desenvolve e culmina na segunda função do porta-palavra: apresentar-lhe a fala do outro, do terceiro, do pai, da Lei. Através de sua "atividade de sujeito porta-palavra, a mãe - mas também o pai - responde a essa necessidade fundamental da psique humana: pôr à disposição do infans os meios de representar para si sua própria existência, de introduzi-lo à capacidade de pensar e de se pensar" (Kaës, 2017, pp. 159-160). No momento de partir da alienação à separação a criança deve então fazer uso destas palavras trazidas pelo casal parental e que remetem ao Outro. A capacidade associativa da criança se dá mediante as configurações de passagem por este processo. Nos grupos a função do porta-palavra é exercida, por exemplo, por meio de comentários frente a situações em que a palavra se faz ausente no acontecer grupal. Por meio da ação do porta-palavra há a busca por uma associação que transforme a experiência

O porta-sintoma também reflete o exercício de uma função fórica que consiste em um local de retorno do "recalcado no espaço psíquico do grupo e nos espaços internos de cada um. Quando o sintoma deixa aparecer seus fundamentos, ou ele se resolve, ou se desloca, ou ainda se transforma", ressalta Kaës (2011, p. 164). Nesse sentido, é muito difícil que ele desapareça, pois é organizador da realidade grupal. Kaës levanta a possibilidade de haver ao menos um porta-sintoma nas realidades grupais.

Os sujeitos que assumem as posições fóricas de porta-palavra, porta-sintoma, entre outras, deparam-se com benefícios e inconvenientes. Quando assume tal posição, o sujeito o faz por necessidade da estrutura do grupo que imprime nele tal função, mas também por determinações intrapsíquicas relacionadas à sua própria história e estrutura. Com este funcionamento intermediário, as funções fóricas nos permitem vislumbrar as alianças inconscientes, contratos narcísicos e demais aspectos que caracterizam e constituem o grupo.

Podemos, então, pensar o grupo como situação de tratamento através da formação de um aparelho psíquico grupal e de alianças inconscientes que culminam no exercício de funções fóricas e de diversas configurações transferenciais que viabilizam interpretações e o deslizamento do simbólico na situação grupal. A essência do tratamento permanece sendo pela fala e, no caso do grupo, pelas trocas verbais nele realizadas e colocadas em questão pelo analista em alguns momentos.

Frente à estruturação de um aparelho psíquico grupal em um enquadre que favoreça trocas subjetivas, o trabalho do analista consiste ora em oferecer uma presença reservada, ora em intervir por meio de interpretações e manejos. A presença reservada, em que não há intervenções por parte do analista, pode ser fundamental ao desdobramento do processo grupal. É preciso que o analista saiba discernir momentos de presença reservada e ativa, pois a intervenção como resposta contratransferencial em momento inadequado, assim como a ausência de intervenção quando se faz necessária, pode ser prejudicial (Castanho, 2014).

A interpretação é um pressuposto do tratamento individual. Ela consiste na ação primordial do analista que, após interpretar dentro de uma situação analisante, fornece vias para que o analisando se aproprie deste movimento. Na clínica grupal, forma-se uma diferente configuração analítica uma vez que

todos no grupo atribuem significado e interpretam continuamente a si próprios, seus semelhantes e seus objetos em comum. Aqui, um fenômeno muito conhecido por todos que trabalham com grupos em diferentes referenciais: o grupo possui grande potencial para um trabalho de ressignificação. As falas ditas no grupo se cruzam e seus significados são passíveis de mudança, podendo ser retomadas pelo sujeito que as emitiu depois de transformadas fora de si. Não raro, um participante regular do grupo, independentemente de sua formação, oferece uma construção de sentido sobre o que se passa que se assemelha ao que poderia ter sido dito pelo analista como interpretação (Castanho, 2014, p. 43).

A função de interpretação no grupo é então compartilhada entre o analista e os membros, ainda que a interpretação do analista muitas vezes possa adquirir status diferente daquelas feitas pelos demais por sua posição inicial de organizador grupal e ainda por gerar efeitos diversos no psiquismo dos membros. As interpretações do analista podem se dar de diferentes modos como por perguntas, repetições de falas de sujeitos do grupo, falas de fechamento, entre outros, conforme postula Castanho (2014). As situações que demandam interpretação no grupo devem considerar a pluralidade de sujeitos inserida nele. De acordo com Castanho (2014), as interpretações devem advir sobre os espaços comuns e partilhados que foram construídos no processo de formação do grupo. Diante disso, Castanho (2014) propõe, a partir de Anzieu (1972), duas regras da interpretação em situação grupal: "1) as interpretações são feitas sobre o aqui e agora do grupo; e 2) as interpretações são dirigidas ao grupo como totalidade" (p. 44).

Seguindo estas regras não adentramos na história individual de cada sujeito, mas conseguimos alcançar o psiquismo de cada um dos membros do grupo uma vez que os elementos e conflitos organizadores que o constituem comparecem no aqui e agora do grupo, repetindo-se e atualizando-se constantemente nas novas vivências compartilhadas. Considerando as proposições de Kaës e Anzieu trabalhadas por Castanho (2014), o sujeito individual pode ser abordado pela via da interpretação, mas sempre remetendo sua questão particular a uma questão mais ampla que remete à realidade grupal. É importante ressaltar que os processos grupais podem potencializar ou fazer obstáculo ao processo de singularização de seus membros. Compreende-se que a interpretação é um dos principais processos que interferem nisto e pode ter efeitos perniciosos. Se ela é "sempre dirigida ao grupo como totalidade pode comprometer o lugar singular do sujeito no grupo, sua recusa sistemática recairia sobre uma fantasia monádica do indivíduo solapando aquilo que no terreno da intersubjetividade nos constitui e nos renova" (Castanho, 2014, p. 46). Desta forma, mais uma vez é preciso realizar intervenções pautadas na realidade grupal a fim de contribuir com os processos necessários ao funcionamento do grupo e com ao processo individual de seus membros.

Outra intervenção discutida por Kaës e Castanho é o manejo. De acordo com Castanho (2018) a conceituação de manejo envolve os mais variados tipos de

modificações feitas à cura-tipo, ou seja, ao dispositivo analítico tal como originalmente proposto por Freud. Portanto, o próprio grupo enquanto dispositivo psicanalítico é produto de um manejo implicado nas complexas e inerentes relações entre teoria e potencial clínico. (...) Também as adaptações que somos levados a fazer para propor um dispositivo adequado à especificidade de cada contexto institucional seriam da ordem do manejo (p. 286).

Desde Freud, a Psicanálise construiu-se com sucessivas modificações teóricas e técnicas advindas dos desafios que a prática clínica apresenta. A proposição da psicanálise de grupo inicia espelhando-se na prática individual de falar livremente como proposto por Foulkes e Anthony e desenvolve novas configurações como proposto por Pichón-Rivière em sua concepção de tarefa (discussão de temas, realização de artes, jogos, entre outros) (Castanho, 2014). Compreendemos que a existência de tarefas enquanto proposta para um tratamento grupal não corresponde ao tratamento tradicional psicanalítico conduzido pela fala espontânea e associações livres. Porém, isto não implica na consideração de tal proposta como "totalmente ausente da história e do pensamento psicanalítico. Pelo contrário, notemos que ela faz sua estreia bastante cedo pelas mãos de Ferenczi. Por meio do que denominou de técnica ativa, Ferenczi poderia pedir a um paciente que realizasse alguma atividade em análise", afirma Castanho (p. 47). Sendo assim, podemos considerar a prática de manejos amparada no aporte psicanalítico e visualizando-a como uma intervenção que vai de encontro aos pressupostos técnicos tradicionais, mas que desenvolve possibilidades que atendem as demandas sociais emergentes.

Um exemplo de demanda que é alcançada pelos grupos são os casos em que há uma dificuldade na capacidade associativa, vinculada ao pré-consciente. De acordo com Kaës (2017), as psicopatologias que mostram falhas na atividade do pré-consciente estruturam-se por uma dificuldade no contato com o pré-consciente do outro e pode ser restituída pelo restabelecimento deste contato. Considerando estes casos, Kaës teoriza acerca da possibilidade construída por diversos profissionais nos grupos de mediação. Neles, as relações do grupo são mediadas por meios sensoriais ou objetos culturais, como a fotografia, jogos, entre outros. Por meio destes objetos, se buscaria ativar a capacidade associativa dos membros do grupo que se encontra prejudicada, passando do figurado do objeto à fala e ao pensamento acerca dele. Para isto, emerge mais uma vez a importância da intersubjetividade através da qual são exercidas funções de continência e transformação de pensamentos inconscientes que impulsionam o funcionamento do pré-consciente em sua capacidade associativa e interpretativa do psiquismo. Os objetos e a tarefa apresentada ao grupo pelo analista possibilitam uma via mediada de acesso aos conflitos centrais que o cercam.

Castanho (2018, p. 184) afirma que

se o funcionamento do nosso pré-consciente depende do material que nos é oferecido pelos outros e pela cultura como matéria-prima de nossa atividade de representação, e se os grupos de mediação são grupos que incluem o manejo de objetos culturais e sensoriais em um contexto de mais-de-um-outro visando o restabelecimento da capacidade associativa do pré-consciente, é possível então relacionar esses grupos às funções normalmente atribuídas ao pré-consciente.

Consideramos que, no trabalho com grupos, "a inserção de objetos mediadores e a proposição de atividades possam ser entendidas como equivalentes das atividades verbais e justificadas por superar dificuldades de comunicação e promover engajamento no processo" (Castanho, 2014, pp. 49-50). A escolha do objeto e das atividades é fundamental no processo, tendo que haver o cuidado de não inserir objetos demasiadamente estrangeiros à realidade grupal e sim aqueles que permitam intensificar os objetivos propostos do grupo.

Os grupos de mediação têm como função fornecer elementos como imagens e representações que, mediadas, possam viabilizar o reconhecimento dos conflitos organizadores e a reativação da capacidade simbólica. De acordo com Castanho (2018), os grupos de mediação vão além da caracterização como um grupo não verbal, eles "seriam grupos voltados para "puxar a fala": através do acionamento de vias sensoriais e dos processos grupais e garantindo o espaço da fala buscam-se efeitos de análise pela restauração da capacidade dinâmica do sistema psíquico" (p. 185). Nesses grupos, o coordenador do grupo deixa sua posição de presença reservada e passa a

participar da atividade proposta e zelar pelo enquadre. Assim, se o grupo é convocado a pintar e trocar impressões sobre suas pinturas, também o coordenador pintará e trocará impressões sobre as pinturas. O coordenador segue sua função como guardião do enquadre, assegurando os tempos e procedimentos da atividade planejada, mas ao mesmo tempo participa delas" (Castanho, 2014, pp. 48-49).

Tal mudança de posição do analista se justifica pela percepção de patologias do Eu que remetem a um tempo anterior à possibilidade de representação de palavras e à organização associativa do pré-consciente. Frente a sujeitos cujo processo de simbolização se mostra precário, o analista deve então buscar recursos que o alcancem em seu estado psíquico a fim de oferecer possibilidades de saída do sofrimento que aflige ao sujeito e aos que o cercam.

 

Grupos com crianças autistas

Nos propomos a analisar a experiência com um grupo com crianças autistas em um CAPSi. A geração de dados para nossa pesquisa teve início após aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa, submetido via Plataforma Brasil, e anuência dos pais ou cuidadores das crianças manifestada através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os grupos foram propostos em um CAPSi e coordenados pela pesquisadora e por uma fonoaudióloga da instituição, tendo frequência semanal, com duração de 45 minutos. Durante 4 meses de acompanhamento do grupo, as sessões foram registradas e discutidas em equipe para, em seguida, procedermos á análise dos processos observados. Nossa análise se deu a partir do que foi escutado, interpretado e construído ao longo dos 4 meses. Cabe ressaltar, que esse grupo com crianças autistas já estava acontecendo sob a coordenação da pesquisadora antes do período do registro dos dados para a pesquisa e era composto por crianças entre 7 e 11 anos com hipóteses diagnósticas diversas, e entre elas, o autismo. Nossa análise levou em consideração esses elementos e o nosso objetivo que era investigar as possibilidades e desafios do trabalho de grupos com crianças autistas em CAPSi.

Compreender a constituição psíquica implica em pensar acerca da dinâmica dos registros que compõem o aparelho psíquico (real-simbólico-imaginário) e dos mecanismos constituintes de registro da falta. Jorge e Ferreira (2005) afirmam que "a realidade é constituída por uma trama simbólico-imaginária, feita, portanto, de palavras e de imagens, ao passo que o real é precisamente aquilo que não pode ser representado nem por palavras nem por imagens: ao real falta representação psíquica" (p. 32). Lacan postula que a realidade psíquica se constitui a partir do enodamento destes três registros. Jorge e Ferreira (2005) elucidam que

os três registros se definem tendo como referência o simbólico, cuja estrutura é a mesma da linguagem e cujo suporte é o Nome-do-Pai. O real é o que está fora do simbólico, sendo por isso mesmo definido como "o impossível de ser simbolizado". O imaginário é tudo o que diz respeito à imagem do corpo sem a mediação da palavra, reduzindo as relações humanas à especularidade, o que faz com que sejam anulados os limites e as diferenças entre o sujeito e o outro como semelhante. No imaginário reina a lei do transitivismo, onde o eu se torna sinônimo do outro. O caráter de univocidade do imaginário elimina a ambiguidade, a polissemia e o equívoco, marcas indeléveis do simbólico. As definições mais simples dos três registros e, ao mesmo tempo, capazes de reunir as concepções mais avançadas de Freud e de Lacan, devem ser elaboradas em relação com o sentido. O real é da ordem do não-sentido ou nãosenso radical. Lacan dirá que ele é o sentido em branco, a ausência de sentido, ou até mesmo "o impensável". O simbólico é do campo do duplo sentido. Nele o equívoco e o mal-entendido formigam. O imaginário é o sentido unívoco. Tais definições permitem ver que imaginário e real são, propriamente, um o avesso do outro, enquanto o simbólico é uma verdadeira tentativa de articulação entre o real e o imaginário (pp. 35-36).

O simbólico antecede o sujeito e incide em seu corpolinguagem que é constituído nas trocas entre as percepções do bebê e as interpretações do Outro, representado pelo agente materno. O bebê aliena-se a tais interpretações e percebe, através delas, a existência de uma falta que manifesta a alteridade (Santos, 2018). Dessa forma, "vislumbramos a importância do caráter estrutural do processo de alienação e de separação ao discurso do Outro para a ascensão à posição de falante" (Santos, 2018, p. 136).

No sujeito autista, "algo se passa no enodamento que exclui o Imaginário da ligação com as consistências do Simbólico e do Real" (Ferreira & Vorcaro, 2017, p. 72). Sem um aparato Imaginário, há falhas na construção de um envoltório corporal que dê bordas, consistência e integração ao corpo, afirmam Ferreira e Vorcaro (2017). A captura do sujeito pela linguagem encontra empecilhos, ao passo que ele é tocado pelos significantes, mas não inserido na articulação entre eles. Dessa forma, o autista neutraliza a rede simbólica e se afasta dela. Ainda assim, emite respostas, consideradas operações de linguagem, mas não encontra seu lugar no campo simbólico e consequentemente não se posiciona enquanto sujeito do desejo. Vorcaro (2016), discutindo sobre a constituição do autista, afirma que

em vez de localizar-se no que falta ao Outro da linguagem, consentindo em alienar-se nela ele responde ativamente. Encarnando o anonimato, permaneceria onde foi colocado: sem lugar definido, mas agindo, talvez, para buscar ancoragem. O campo do Outro, indeterminado e anônimo, será então imaginarizado como bloco inabordável, intransponível e ameaçador. Não se pode brincar com isso, que é, portanto, evitado pelo autista, que não o diferencia para localizar seus agentes. Por isso, muitos clínicos testemunham que as manifestações dos autistas podem significar movimentos para barrar uma presença experimentada como intrusiva e/ou excessiva do Outro (p. 16).

O Outro apresenta-se desta forma ao autista uma vez que não houve o processo de simbolização primordial da alternância presença-ausência, nem a extração do objeto a que o tornaria Outro faltante e suportável. A causa da angústia é remetida toda a esse Outro que imprime excessos, de presença ou falta.

Frente a tal quadro, nos questionamos de que maneira o autista pode inserir-se em um grupo permeado, assim como todas as atividades humanas, pela função simbólica. Questionamos ainda acerca das possibilidades e desafios da proposição de um grupo com crianças autistas em um CAPSi. Compreendemos que a teoria de psicanálise de grupos de René Kaës pode contribuir na atuação com tais crianças uma vez que favorece a ampliação de possibilidades de análise e compreensão do objeto estudado.

Kaës (2005) afirma que "quando a capacidade de sonhar e de brincar está falha, as mediações de próteses são necessárias, pois restauram essa capacidade" (p. 50). Sendo assim, consideramos que a proposta dos grupos com objetos mediadores possa alinhar-se ao objeto de estudo do presente artigo: grupos com crianças autistas em CAPSi's. Isto porque nesta especificidade psicopatológica há um significante prejuízo na fala, na simbolização e no contato com o outro que podem ser trabalhadas por meio desta intervenção. Durante nosso contato com as crianças no grupo terapêutico, podemos observar como a criança ser inserida em um espaço compartilhado a convoca a uma realidade distinta e impulsiona um possível trabalho de relação entre ela e os outros presentes na situação de grupo. Nesse contexto, o terapeuta parte de um princípio desejante e organizador e localiza-se imaginariamente como seu fundador. Constrói e enuncia regras para a realidade grupal e, no caso de grupos de mediação com crianças, elabora possíveis atividades com os objetos mediadores escolhidos. Castanho (2018) ressalta que todo objeto vem acompanhado de uma tarefa, uma vez que se indica o que fazer com ele. A partir deste primeiro passo de organização da realidade grupal, percebemos que já estão postos diversos elementos da ordem simbólica que demandam de todas as instâncias psíquicas, inclusive a pré-consciente.

Percebemos que o primeiro contato da criança autista com o grupo já exige dela um trabalho dificultoso em sua realidade psíquica. Mediante a entrada no grupo o autista constrói imediatamente afetos cujas representações podem não ter sido construídas ou, ainda, relacionadas. Além disso, é colocado em uma situação que demanda: a) uma percepção de si, do outro e do mundo que ou é inexistente ou está em construção e b) uma compreensão de tempo e espaço que ainda é precária e que frequentemente gera angústia. Na primeira sessão de registro da pesquisa, estávamos no início do ano e novas crianças entravam no grupo iniciando-se um novo ciclo grupal. Após o momento de entrada na sala e retirada dos calçados, propusemos que todos os membros fizessem uma auto apresentação que citasse o nome, idade, uma coisa que gosta e uma que não gosta. As terapeutas iniciaram e em seguida as crianças seguiram se apresentando. No momento inicial de inserção do sujeito autista no grupo deve ser observado o nível de vínculo que ele estabelece com o grupo por meio de suas manifestações não verbais, como aproximação ou afastamento do grupo, atenção e olhar voltados ou não à atividade proposta, entre outros.

No grupo pesquisado, observamos que as crianças com hipótese diagnóstica de autismo reagiram de formas diferentes ao primeiro momento em grupo, mas podemos perceber em todas as ações iniciais um certo receio e esquiva do contato: João1 ficou agitado e falava apenas conteúdos sobre seus interesses; Cauã sentou-se distante do grupo; Rodrigo ficou inicialmente em um canto da sala; Gustavo sentou-se virado lateralmente aos colegas e terapeutas. Neste primeiro momento, compartilhamos informações acerca do enquadre do grupo e iniciamos a atividade que visava favorecer a expressão de si. Todas essas ações estão carregadas de simbólico e já exigem da criança autista algo em que ela se encontra prejudicada e que gera angústia.

Partindo desse pressuposto colocamo-nos, enquanto terapeutas, à disposição já de imediato quanto a possíveis necessidades de mediação e enfatizamos que os colegas também podem fazer esse papel em alguns momentos. Emergiram disso falas das crianças que corroboraram com essa ideia como: "é verdade, às vezes não sabemos fazer as coisas e precisamos pedir ajuda", "uma vez eu não sabia responder a tarefa e a professora me ajudou", e que passaram a ressoar no grupo no decorrer das sessões. Conforme aponta Vorcaro (2016), o sujeito autista comumente percebe o outro, representante do Outro, como invasivo. No grupo, frequentemente observamos essa percepção por meio de uma recusa da criança autista em aceitar a ajuda dos colegas e das terapeutas. Quando a ajuda das outras crianças aparecia de forma espontânea, era comum as crianças autistas reagirem com choro, impulsividade agressiva, e afastamento do grupo. Frente a estas situações, era sempre oferecido o recurso da palavra tanto por parte das terapeutas quanto das outras crianças do grupo.

Compreendemos que o trabalho a ser realizado com o autista em grupo é de nomeação constante: acerca de si, do outro, do mundo e de outros elementos que possibilitem que ele estabeleça vínculo com o Outro, por meio dos outros com os quais convive. Esses outros servem de referencial, de continência, de orientação no mundo da linguagem que gera sofrimento. Mesmo com suas dificuldades o autista insere-se como parte do aparelho psíquico grupal e é afetado por ele. Por ser uma construção comum e partilhada entre os membros do grupo e independente do aparelho psíquico individual, o aparelho psíquico grupal pode gerar desconfortos à criança autista que tem prejuízos no contato com a realidade. A forma como se dá o funcionamento grupal, após ter sido construído por um arranjo das psiques, interfere diretamente na dinâmica psíquica individual. Um grupo com excesso de barulhos, por exemplo, pode causar desconforto sensorial à criança autista e gerar ainda mais esquiva do Outro.

Outro elemento importante destacado por Kaës e observado no grupo que acompanhamos, foi como a construção psíquica que culmina no aparelho psíquico grupal se dá em dois níveis de relação: isomórfico e homomórfico. O autista inicialmente tem dificuldades em compreender e se desenvolver no polo homomórfico. Isto porque neste polo há uma referenciação aos interditos estruturantes que é inexistente ou precária no autismo. Além disso, há uma integração das diferenças que também é dificultosa uma vez que, tendo problemas no mecanismo de separação, consequentemente o sujeito autista terá problemas na diferenciação. Em nossa pesquisa podemos exemplificar a tensão entre esses dois polos por meio da irritabilidade que algumas crianças apresentavam com as faltas dos outros colegas, que remete a uma capacidade de diferenciação do outro e percepção de sua ausência, mas também da ocorrência de sentimentos negativos frente a isso.

Acontecimentos como esse nos levam a identificar a formação de algumas alianças inconscientes no grupo em questão. Cauã estabeleceu uma aliança inconsciente simétrica e heterogênea com um dos participantes do grupo. Houve o desenvolvimento de uma proximidade que o levou a realizar atividades em conjunto, inclusive com incentivos verbais quando um ou outro tinha dificuldades. Diziam, frequentemente, um para o outro: "Vai meu amigo, você consegue", "Você quer que eu te ajude, meu amigo?". Além disso, sentiam a ausência um do outro quando um faltava à sessão, o que era verbalizado ao grupo no dia da falta e apontado ao colega na sessão seguinte. Nesses momentos, Cauã verbalizava que percebeu a falta do colega e o relembrava das regras do grupo de não poder faltar. Percebemos que esta aliança favoreceu os conteúdos de ambas as partes e, ainda, o funcionamento grupal, uma vez que ressaltam por meio de seu vínculo as alianças estruturantes em questão no grupo.

Frente a isso, podemos refletir que um grupo formado apenas por autistas poderia fazer arranjo de um aparelho psíquico grupal que permanecesse de forma mais centralizada no polo isomórfico, encontrando desafios maiores ou constituindo novos posicionamentos em relação ao plano simbólico. A construção de um grupo com sujeitos de estruturações psíquicas heterogêneas culmina em um arranjo de aparelho psíquico grupal que contém em si elementos diversos de relação com o simbólico, constituindo-se e viabilizando vínculos intersubjetivos a partir disso. Essa foi a experiência observada durante o processo terapêutico do grupo com crianças autistas que acompanhamos.

Na quinta sessão de registro do grupo, propusemos uma atividade de descrição e reconhecimento da própria imagem a partir da descrição de características físicas de si mesmo e dos colegas. Em um segundo momento propusemos um tempo de brincar livre. Nessa sessão, João estava menos agitado, descreveu a si mesmo e aos colegas com mediação das terapeutas. No momento de brincar livre interagiu pouco, sendo necessárias estimulações para o brincar compartilhado, e pela primeira vez não falou sobre assuntos de seus interesses restritos. Cauã2 mostrou dificuldades na descrição de si e dos colegas. No momento de brincar aceitou convite de um dos colegas para brincar de bola e correspondeu às verbalizações deste que falava que ele era seu melhor amigo no grupo. Neste encontro, percebemos algumas alianças estreitarem-se, como a de Cauã e um colega do grupo, e uma menor agitação das crianças com autismo, além de visível melhoria na percepção do outro e na compreensão da necessidade do tempo de espera nas atividades.

A criação de vínculos se dá mediante o estabelecimento de alianças inconscientes. Conforme apontado por Kaës (2014), essas alianças estão presentes desde o nascimento, perpassando gerações e atualizando-se na história particular e no cotidiano de cada sujeito. Devido aos prejuízos no contato com o outro e com a rede simbólica que o antecede e o constitui, o autista consequentemente tende ao estabelecimento de alianças inconscientes assimétricas e heterogêneas. Esta configuração consiste em alianças em que há um nível de dependência e de consciência diminuída acerca da dinâmica que sustenta o vínculo.

Consideramos que o grupo é um espaço em que se estimula a capacidade associativa e é também espaço de trocas com o outro e de inserção no mundo simbólico por meio de alianças inconscientes estruturantes como o contrato narcísico. Em situação grupal, o sujeito autista não se desvencilha da alienação. Ao contrário, estabelece alianças inconscientes defensivas e alienantes que geram sofrimento, desorganização psíquica e dos vínculos, e que o impedem de se instaurar enquanto sujeito desejante. Compreendemos que a partir dos manejos grupais, a criança autista possa ir estabelecendo diferentes relações com o Outro, encarando-o como menos aversivo e ameaçador, como o observado com Cauã.

É importante relembrar que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, atualmente em sua quinta versão, tem classificado o autismo em categorias (leve, moderado e grave) a depender dos prejuízos advindos das dificuldades de comunicação social e dos padrões de comportamento restritos e repetitivos. Em um viés psicanalítico, podemos afirmar que o nível desses prejuízos tem a ver com a relação simbólica que a criança estabelece. O autista grave, em linhas gerais, é uma criança não verbal que busca permanecer em extremo isolamento, com baixa intenção comunicativa e extrema rigidez de comportamentos que indica uma relação com o simbólico gravemente perturbada. Nos autistas considerados moderados e leves há a presença da linguagem verbal, ainda que em níveis diferentes. Nesses casos parece haver uma relação prejudicada com o simbólico, mas que faz um uso diferente dos elementos contidos nele. A partir dessas considerações ressaltamos que a inserção de uma criança autista em grupo é precedida de uma avaliação acerca desses níveis de relação com o simbólico, com a linguagem, com o outro. Isso é imprescindível para estruturação do enquadre e das atividades e objetos que serão propostos no grupo.

É importante ressaltar que o desenvolvimento das alianças e vínculos entre as crianças do grupo se dá mediante à construção de uma realidade comum e partilhada entre elas (Kaës, 2011). Partimos de uma faixa etária e demandas individuais semelhantes visando construir vínculos que pudessem culminar em um desenvolvimento individual que, por sua vez, compreendemos que se dá apenas mediante o contato com o outro. Para construir essa realidade comum foram levadas em consideração a história singular de cada sujeito levantada na avaliação antes da entrada no grupo e nas atividades propostas no grupo que viabilizavam aprofundar na dinâmica psíquica de cada criança e desta em relação ao grupo. Ainda que as histórias de atraso no desenvolvimento tenham coincidências, existem marcos individuais e formas singulares de lidar com os conflitos organizadores que norteiam a existência dessa criança no mundo e, portanto, o seu modo de estar no grupo.

Diante do exposto, compreendemos que a criança autista, em suas distintas manifestações sintomáticas, encontra dificuldades no processo de simbolização e, consequentemente, de estabelecimento do contrato narcísico, aliança estruturante central na dinâmica do psiquismo. Constrói, assim, alianças inconscientes defensivas e alienantes que geram perturbações no vínculo. Ao ser inserida em um grupo, tem dificuldades em reconhecer, compreender e seguir os ditos estruturantes que norteiam a sociedade. Estar com crianças autistas é estar frente a um enigma e por vezes se colocar enquanto auxiliar no processo de deciframento do mundo simbólico que se apresenta complexo e angustiante a um psiquismo que se traduz em desamparo. Essa presença com a criança autista, sobretudo em grupo, exige do analista nomeações constantes de símbolos e gestos que dizem de si, do outro e do mundo como um todo. Nomeações que precisam ser construídas conjuntamente partindo dos recursos que a criança possui e avançando no território da linguagem. Observamos nessas crianças uma apreensão mais rígida dos signos linguísticos, com dificuldades de percepção e do uso das nuances da linguagem. Tais características movimentam os outros participantes do grupo a buscar vias de explanações acerca da linguagem e convoca o analista para manejos em grupo.

Frente a isso, o psicanalista que propõe um grupo, colocando-se em posição de detenção de um princípio desejante e organizador, deve construir e enunciar as regras que favoreçam o contato da criança autista com o mundo, por meio de seus símbolos. Devido ao prejuízo na internalização destas regras, esta enunciação necessita frequentemente ser acompanhada de manejos por parte do analista frente a situações que emergem em um grupo com pluralidade de sujeitos e discursos. É preciso buscar diferentes possibilidades de vias de acesso ao simbólico, considerando a singularidade de cada caso e a dinâmica grupal. É preciso considerar ainda os determinantes sociais e institucionais que perpassam a prática do psicólogo de referencial psicanalítico nos serviços de saúde mental. Não há uma neutralidade neste campo uma vez que estão em jogo forças institucionais, amparadas por contextos sociais, históricos, econômicos, políticos que devem ser levados em consideração no processo de proposição e manutenção de um grupo. Compreendemos que, em meio a essa complexidade de fatores, os grupos - enquanto processo inaugural de todo sujeito e objeto de estudo como método de tratamento - figuram como possibilidade profícua de atenção e ressignificação dos acometimentos psíquicos que causam sofrimento nas dimensões individual, grupal e social como o autismo.

 

 

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Endereço para correspondência
Gianne Christine Hoepers
E-mail: giannechoepers@gmail.com
Priscilla Melo Ribeiro de Lima
E-mail: primlima@ufg.br

 

 

*Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Goiás (UFG); Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás (PPGP/UFG); Especialista em Ensino Interdisciplinar sobre Infância e Direitos Humanos pela UFG. Psicóloga do Centro de Atendimento Psicossocial Infantil de Anápolis/Go.
**Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO); Mestre e Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPSICC/UnB). Docente e pesquisadora da Faculdade de Educação (FE/UFG)e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás (PPGP/UFG).
1João, Cauã, Gustavo e Rodrigo são nomes fictícios de crianças autistas que participavam do grupo terapêutico. João sempre apresentava uma fala repetitiva acerca de seu tema de interesse restrito que era filmes e jogos de terror. Esse comportamento sempre gerava irritação nas demais crianças do grupo.
2Cauã, nas primeiras sessões grupais, sempre permanecia mais calado, retraindo-se corporalmente e abaixando a cabeça quando um colega conversava com ele.

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