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Tempo psicanalitico

Print version ISSN 0101-4838On-line version ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.55 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2023

 

ARTIGOS

 

Bergson e a clínica psicanalítica

 

Bergson and the psychoanalytical clinic

 

Bergson e la clínica psicanalítica

 

 

João Perci SchiavonI*; Suely RolnikI**

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo procura conjugar aspectos da filosofia bergsoniana com determinantes fundamentais do pensamento analítico, avaliando assim o benefício clínico e ético de suas interações. Para tanto, fará a investigação incidir, especialmente, sobre as noções de "impulso vital" e de "pulsão". O retorno a si, a multiplicidade virtual, os atos livres, a decifração pragmática da força, são temas que se interpenetram de tal modo nas duas experiências do  pensamento, que suas intersecções geram – assim o pretendemos – abordagens mais nuançadas dos problemas analíticos, compreendendo uma retomada essencial da perspectiva ética, não mais situada a propósito do inconsciente, mas constituindo o seu plano.

Palavras-chave: Impulso vital, pulsão, multiplicidade virtual, atos livres.


ABSTRACT

This paper combines aspects of Bergsonian philosophy with fundamental determinants of analytical thinking, thus evaluating the clinical and ethical benefits of their interactions. To do so, the investigation will focus, especially, on the notions of "vital impulse" and "drive". The return to oneself, the virtual multiplicity, the free acts, the pragmatic deciphering of force, are themes that interpenetrate themselves in such a way in the two experiences of thought, that their intersections generate – as intended – more nuanced approaches to analytical problems, involving an essential resumption of the ethical perspective, no longer situated in relation to the unconscious, but constituting its plan.

Keywords: Vital impulse, drive, virtual multiplicity, free acts.


RESUMEN

Este artículo busca combinar aspectos de la filosofía bergsoniana con determinantes fundamentales del pensamiento analítico, evaluando así los beneficios clínicos y éticos de sus interacciones. Por tanto, la investigación se centrará en las nociones de "impulso vital" y "pulsión". El retorno a uno mismo, la multiplicidad virtual, los actos libres, el desciframiento pragmático de la fuerza, son temas que se interpenetran de tal manera en las dos experiencias de pensamiento, que sus intersecciones generan – como pretendo – aproximaciones más matizadas a problemas analíticos, involucrando una reanudación esencial de la perspectiva ética, que ya no se sitúa en relación con el inconsciente, sino que constituye su plan.

Palabras clave: Impulso vital, pulsión, multiplicidad virtual, actos libres.


 

 

Que bien sé yo la fonte que mana y corre,
aunque es de noche
(San Juan de la Cruz)1

 

Introdução: a direção da análise e o movimento da intuição

A concepção de impulso vital em Bergson adquire real interesse para a psicanálise quando a aproximamos da noção de pulsão, não sem fazer desta o ponto de vista analítico por excelência. O alvo do impulso bergsoniano se esclarece ao longo de sua linha evolutiva. É uma ideia a ser incorporada ao campo do pensamento analítico. Poderia sugerir um desenvolvimento ou uma evolução ideal, mas se trata do contrário. É uma incursão direta ao real. O que pareceria um paradoxo quando se considera a direção da clínica analítica, de caráter involutivo, adquire uma inesperada consistência. Eis a pergunta que faz justiça àquela ideia: quando se está à altura do impulso vital? É que existem duas direções pelas quais esse impulso – simples e refinado como a pulsão freudiana – será considerado na metafísica de Bergson: uma ascendente, que se compreende como duração, e outra descendente, que se resolve como espacialização. A primeira é investida no percurso filosófico pelo qual o impulso vital é apreendido em sua origem, ali onde ele não para de começar. A intuição é o método desse "retorno". A segunda, identificada às operações da inteligência e sua exteriorização progressiva, não reúne como a primeira, mas divide, conforme a resistência da matéria à qual se aplica, distribuindo linhas de diferenciação e desenhando formas. Especialização e espacialização se co-pertencem como processos da segunda direção. Esta, entretanto, pode se beneficiar do movimento inverso: não há operação genial da inteligência que não tenha origem numa reversão radical de seu movimento, num retorno do impulso às suas condições originárias, pois daí advém a margem de indeterminação que impele à criação. De fato, é esse benefício que torna o movimento da inteligência, conquanto voltado para a matéria, um expediente da liberdade. É sempre o mesmo impulso, porém orientado a alvos distintos, em direções distintas, divergentes, investindo a matéria (espaço) ou a memória (duração). Ele "precisa", no entanto – e aqui reside o teor ético de nosso assunto – recordar-se de si, sob pena de não exercer sua incalculável potência. Privilégio dessa direção involutiva? E o que o impulso (elã) visa quanto à matéria? Bergson não deixa dúvidas: penetrá-la de tal modo, com tal inteligência e arte, que transforme sua natureza necessária em instrumento de liberdade. O impulso vital aspira aos atos livres.

A interrupção do movimento descendente equivale à sua inversão, seja involuntária, como no lapso e no sonho, ou estratégica, mediante a instauração da escuta analítica e de processos análogos a ela (a meditação, a escrita...), reintroduzindo a indeterminação e, com ela, tanto o problema da percepção (modo de ser afetado) como o da condição de escolha (a determinação ética). Para Bergson, é a intuição enquanto método e "precisão" filosófica que suspende a inclinação descendente, instaura o movimento ascendente e garante sua continuidade. Algo semelhante à técnica de parar o mundo, ensinada por Don Juan: se você para de fazê-lo, verá como é assombroso (Castaneda, p. 173). O método da intuição se alia de tal modo ao impulso vital que, se o esforço do pensador for extremo, irá encontrá-lo em sua origem, criando em seguida os conceitos que o tornarão comunicável. É a mesma consciência que se exterioriza como organização inteligente da matéria à medida que opera com ela e que, invertendo sua direção, se recobra como subjetividade no tempo. A tensão máxima do contato requer a distensão enquanto criação de conceitos: "quanto mais profundo for o ponto que tivermos alcançado, mais forte será o ímpeto que nos devolverá à superfície. A intuição filosófica é esse contato, a filosofia é esse elã" (Bergson, 2006, pp. 143-144).

Observa-se uma inflexão similar de pensamento e prática em nosso modo de reunir, num mesmo plano, o processo analítico e o exercício da pulsão. O fato de se tratar, no caso da psicanálise, de uma clínica, não a distancia do pensamento bergsoniano. Se o conhecimento efetuado pela intuição, enquanto método filosófico, se expandir, dizia Bergson,

não é apenas a especulação que lucrará. A vida de todos os dias poderá ver-se assim reaquecida e iluminada, pois o mundo no qual nossos sentidos e nossa consciência nos introduzem habitualmente não é mais que a sombra de si mesmo; e é frio como a morte..." (Bergson, 2007, pp. 147-148).

A análise propõe um caminho inverso ao do recalcamento, o que chamamos de reversão pulsional, evocando de perto o percurso metafísico e clínico de Bergson. Para avaliarmos essa proximidade e sua importância para o pensamento psicanalítico, citaremos uma longa passagem de A evolução criadora, demarcando em seguida a intersecção dos campos.

Tudo se passa como se uma larga corrente de consciência tivesse penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de enorme multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem. Pôde arrastar a matéria à organização, mas isso fez com que o seu movimento ao mesmo tempo se retardasse e se dividisse ao infinito. Por um lado, com efeito, a consciência teve que entrar em dormência, como a crisálida no invólucro onde prepara as suas asas, e por outro as múltiplas tendências que em si continha repartiram-se entre séries divergentes de organismos, que aliás, antes exteriorizavam estas tendências do que as interiorizavam em representações. No decurso desta evolução, enquanto uns adormeciam cada vez mais profundamente, outros despertavam cada vez mais completamente, e o torpor de uns favorecia a atividade dos outros. Mas o despertar podia se fazer de duas maneiras diferentes. A vida, isto é, a consciência lançada através da matéria, fixava a atenção, quer sobre o seu próprio movimento, quer sobre a matéria que atravessava. Orientava-se, assim, quer no sentido da intuição, quer no da inteligência. À primeira vista, a intuição parece de muito preferível à inteligência, visto que a vida e a consciência, nela, se conservam interiores a si próprias. Mas o espetáculo da evolução dos seres vivos mostra-nos que não podia ir muito longe. Do lado da intuição, a consciência viu-se a tal ponto comprimida pelo seu invólucro que teve de reduzir a intuição a instinto, isto é, abarcar apenas a reduzida porção de vida que lhe interessava: e é, aliás, na sombra que o faz, tocando-a quase sem a ver. Deste lado, o horizonte ficou imediatamente fechado. Pelo contrário, a consciência, determinando-se em inteligência, isto é, concentrando-se primeiro sobre a matéria, parece assim exteriorizar-se em relação a si mesma; mas, precisamente por ser de fora que se adapta aos objetos, consegue circular no meio deles, ladear as barreiras que se lhe opõem, alargar indefinidamente o seu domínio. Uma vez liberta, pode aliás reverter ao interior, e despertar as virtualidades de intuição que nela ainda estão adormecidas..." (Bergson, 1964, pp. 190-192).

Consideraremos certos temas que aparecem no texto transcrito, relacionando-os ao saber da análise e avaliando como este saber ganha novos contornos e pode até mesmo se iluminar, em pontos decisivos, com a metafísica bergsoniana, na medida em que ela se volta especialmente ao impulso vital. A afinidade dos temas não significa sua identidade. Com ela, contudo, pretendemos ressaltar a amplitude clínica e ética do conceito de pulsão e sua adequação ao real analítico.

 

Multiplicidade virtual. Indeterminação. Condição de escolha

A consciência, em Bergson identificada à vida, carregada de "enorme multiplicidade de virtualidades" que se interpenetram – remetendo, para nós, à noção de inconsciente – detém evidente similaridade com as condições originárias do que era, em Freud, a sexualidade infantil: perversão polimórfica. Freud partia daí para pensar as vicissitudes da subjetividade humana. De onde se parte – eis o que é decisivo a uma clínica radical.

A condição polimórfica corresponde, porém, à indeterminação do homem como ser de linguagem. É deste contexto especulativo e clínico que nasce a noção de pulsão. Seria desconhecer a imanência analítica, em curso desde os primórdios freudianos, não conjugar diretamente o polimorfismo perverso e a indeterminação de um dizer, quando essas ideias – que não são certamente as únicas – se reportam à linha unívoca, de cunho ético, de onde a psicanálise retira sua vitalidade e persevera. Reunimos assim digressões teórico-clínicas muito distintas, mas que têm um caráter originário: de onde se parte para pensar o processo da análise e os destinos subjetivos. Pois não é evidente que uma ética orienta o pensamento psicanalítico desde suas condições clínicas originárias? E que a necessidade da escuta flutuante desloca todo o processo analítico de qualquer confusão com fins naturais ou normativos, ou, se preferirmos, com medidas jurídicas ou médicas – razão ética para a sustentação da perversão polimórfica de origem? Como essa decisão não se vincularia à fala e à letra do inconsciente? Existe a psicanálise de Freud e a de Lacan, e tantas quantos são os autores que se dedicam a pensar psicanaliticamente, mas o pensamento prático da análise adquire aqui e ali maior rendimento, apura sua aplicação, torna-se mais e mais afinado, mais e mais sensível à problemática da experiência humana em suas diferentes alturas, ou seja, ganha ou perde em precisão conforme se alie de modo mais consequente ou não àquilo a que tende (pulsionalmente) desde o início, à prática do real. Não fosse assim, não se entenderia a motivação mais profunda de um retorno a Freud como o empreendido por Lacan, um retorno ao fio incandescente da psicanálise, nem a crítica salutar e revitalizante pela qual fizeram-na passar os autores de O anti-Édipo. A teoria das pulsões de Freud não foi concebida para ficar estacionada em um contexto de estritas referências freudianas; ao contrário, ele a propôs como abertura incessante do pensamento. Leia-se Freud à altura de sua exploração inaugural. Foi da consideração da sexualidade humana e de sua encarnação na palavra que Freud extraiu – especulativa e clinicamente – a noção de pulsão e todas as suas consequências, inclusive sua última formulação teórica. Em outras palavras, sua escuta deriva do que chamará, finalmente, de pulsão. É uma ética em exercício, segundo a qual as pulsões de vida e de morte passam a ser critérios clínicos.

Uma transversal bergsoniana a propósito do elã vital e da linguagem alcança, ao nosso ver, o sentido involutivo que atribuímos à pulsão e seu exercício. O filósofo de As duas fontes da moral e da religião, a quem se contesta uma presumida concepção menor de linguagem, estabelecerá, contudo, liames frequentes entre a indeterminação, a liberdade e a linguagem. Dirá, por exemplo, que o

impulso de vida [...] consiste [...] numa exigência de criação. Não pode realizar uma criação total porque encontra pela frente a matéria, isto é, o movimento inverso ao seu. Mas apodera-se dessa matéria, que é a própria necessidade, e tende a nela introduzir o máximo possível de indeterminação e de liberdade (Bergson, E. C., 1964, p. 250).

Ora, a linguagem participa essencialmente desse embate liberador:

Seja o que for pode designar seja o que for', é o princípio latente da linguagem infantil. Foi um erro confundir essa tendência com a faculdade de generalizar.  [...] O que caracteriza os sinais da linguagem humana não é tanto a sua generalidade como a sua mobilidade. [...] Uma inteligência que reflete é uma inteligência que, virtualmente, já se conquistou a si própria. Mas falta passar da virtualidade ao ato. É de presumir que, sem a linguagem, a inteligência teria ficado sujeita aos objetos materiais que era do seu interesse considerar. Teria vivido num estado de sonambulismo, exteriormente a si própria, hipnotizada pelo seu trabalho. A linguagem contribuiu muito para a liberar. A palavra, própria para ir de uma coisa a outra, é com efeito, essencialmente, deslocável e livre. Poderá pois estender-se, não só duma coisa percebida a outra coisa percebida, mas também da coisa percebida à recordação dela, da recordação nítida a uma imagem mais vaga, duma imagem vaga, mas ainda representada, à representação do ato pelo qual se tem a representação dela, isto é, à ideia. Abre-se assim aos olhos da inteligência, que estava voltada para fora, um inteiro mundo interior, o espetáculo de suas próprias operações..." (Bergson, E. C., 1964, p. 172).

Bergson não trata a linguagem como sistema, independente dos atos de linguagem. Os problemas de linguagem não são exaustivamente linguísticos, eles se inserem na corrente dos problemas vitais. O virtual não é o estrutural, ele é a própria essência da vitalidade, e por isso compreende, imediatamente, vida e linguagem. É uma das faces do real, a potência, inseparável da outra, que diz respeito aos atos. No nível do real, da mais alta potência, os atos atingem a condição de atos livres. É a parcela de real no lapso que faz deste um ato livre, insubmisso.

Pensar uma multiplicidade virtual como constituinte do campo analítico é torná-lo homólogo ao campo pulsional. Não há dúvida que essa multiplicidade, não importa o grau de acuidade em que é apreendida, inspira de saída a técnica analítica, esclarecendo, sobretudo, porque a técnica é coextensiva à ética do inconsciente. O que se chamará de memória no bergsonismo irá subsumi-la, a essa multiplicidade, assim como a indeterminação que a acompanha, quando se trata de pensar suas vias de atualização. Vemos que é possível entrelaçar, harmoniosamente, os dois pensamentos, se nos dedicarmos a pensar a pulsão como o ponto de vista analítico por excelência.

A consciência (ou a vida, ainda nos termos bergsonianos) introduz a indeterminação na matéria, hesitações e dilemas, elevando-a à duração e a uma condição originária de escolha. Guattari dirá: "matéria de opção", ou seja, a matéria sob a ótica do impulso vital (Guattari, 1988, p. 15): o real analítico. Num primeiro momento, a duração se define pela sucessão, enquanto o espaço remete às coexistências; ela se define igualmente pela novidade, e a matéria, sempre espacial, pela repetição. Mas é assim apenas relativamente. A duração não é de fato sucessão real sem ser, de um modo mais profundo, coexistência virtual. "Coexistência consigo de todos os níveis, de todas as tensões, de todos os graus de contração e de distensão", diz Deleuze.

Além disso, com a coexistência é preciso reintroduzir a repetição na duração. Repetição "psíquica" de um tipo totalmente distinto da repetição "física". Repetição de 'planos', em vez de ser uma repetição de elementos sobre um só e mesmo plano. Repetição virtual, em vez de ser atual. Todo o nosso passado se lança e se retoma de uma só vez, repete-se ao mesmo tempo em todos os níveis que ele traça (Deleuze, 1999, p. 42).

Essa repetição virtual, envolvendo uma repetição dos planos da memória, compreende pontos de vista distintos e, no entanto, coexistentes, tal como podem ser apreendidos, por exemplo, num sonho ou num sintoma, na medida em que estes se oferecem à análise. Os pontos de vista distintos se reúnem (ao mesmo tempo) como modos e graduações do exercício pulsional.

A pulsão e seu exercício são o correlato daquela repetição virtual, implicando os diferentes graus de sua atualização e muito especialmente as suas soluções ético-clínicas, a um só tempo pragmáticas e extemporâneas. É uma memória da força.

Considerar uma multiplicidade a partir da duração é apreendê-la do ponto de vista do vivo. Duas condições aí se conjugam: o contínuo da duração e essa multiplicidade virtual que, como insiste Deleuze, não se divide sem mudar de natureza, gozando, "essencialmente, de três propriedades: da continuidade, da heterogeneidade e da simplicidade" (Deleuze, p. 32, 1999). Seria preciso dizer ainda que ela é intensiva, conforme os planos intensivos da memória. A outra multiplicidade, extensiva,  relativa à matéria, por mais que se divida, não muda de natureza, sendo numérica, descontinua e atual. Deleuze usa o exemplo do amoródio para falar de um complexo afetivo que se propõe, de início, como  indivisível; quando se passa à sua análise, à sua decomposição, aparecem as duas vertentes, inclusive a precedência de uma em relação à outra. Ou seja, ao se dividir, o afeto muda de natureza e tudo se recompõe em face desse novo estado e da nova coloração que imprime às demais disposições afetivas. O delírio persecutório de Schreber será lido em termos semelhantes por Freud. Deus deseja transformá-lo em mulher, não sem antes atentar contra sua vida e abandoná-lo como a um trapo. A perseguição movida pelo Dr. Flechsig se desdobra em perseguição movida por Deus. A gênese do delírio se realiza por divisões sucessivas: eu o amo (ao Dr. Flechisg); não, não o amo (pois isso é inaceitável); na verdade, eu o odeio; não, não sou eu quem odeia (o que denunciaria a origem do afeto), é ele que me odeia e por isso me persegue. Se começarmos a análise, como faz Freud, pelo ponto de chegada, percorrendo a direção contrária à da evolução do delírio e segundo – diria Lacan – o desenvolvimento da verdade, com seu caráter involutivo, veremos a seguinte decomposição: ele me odeia, visto que me persegue; não, vendo melhor (segundo uma "retificação das relações do sujeito com o real"), não é ele que me odeia, sou eu que o odeio; na verdade, não o odeio, eu o amo, mas não me é fácil aceitar esse amor. É claro que a análise exigiria novos passos, pois o que me leva a amá-lo, a ele, Flechsig? Freud dirá que subsiste o pai de Schreber por trás do Dr. Flechsig. Nada impede, porém, de estender a análise segundo as proposições de O anti-Édipo, e conceber o educador, o pedagogo do século XIX e seu modelo disciplinar em franca ascensão (conforme as análises definitivas de Foucault a respeito) por trás do pai de Schreber. Delírio histórico, político, extra-pessoal, a par de um desmoronamento pessoal tanto mais violento quanto mais vinculado a um ideal de eu inabalável, justificativa última das Memórias de Schreber: com elas se oferece generosamente à pesquisa científica do seu tempo e à dissecção dos sábios. A par da restituição delirante e mesclando-se a ela, esse ideal de ser objetivado. Os planos de memória e seus graus intensivos são frequentados de um modo distinto por um poeta. Lacan irá distinguir um escrito como o de Schreber e os de San Juan de la Cruz, de Nerval ou Proust. Detecta uma necessidade de reconhecimento em Schreber que, apesar de louco e cioso de "seu" mundo, mostra-se submetido aos critérios extrínsecos (não pulsionais) de um ideal de eu. "De que se trata nesses testemunhos delirantes? Não digamos que o louco é alguém que vive sem o reconhecimento do outro" (Lacan, 2008, p. 96). Além disso, e talvez por isso, Schreber "não nos dá em parte alguma o sentimento de uma experiência original na qual o próprio sujeito está incluído – é um testemunho, pode-se dizê-lo, verdadeiramente objetivado". A inclusão do sujeito consiste clinicamente numa retificação das relações com o real, a qual operaria na análise de Schreber segundo a direção involutiva assinalada. Em contrapartida, "há poesia", diz Lacan,

toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo (Lacan, 2008, p. 96).

San Juan de la Cruz é especialmente lembrado porque se apresenta "numa atitude de recepção e oferenda, e chega mesmo a falar em esponsais da alma com a presença divina". A distinção nos parece decisiva porque indica, no caso do místico, uma involução poética às condições originárias do impulso vital. Segundo Bergson, a vida reside essencialmente no movimento que a transmite. Uma experiência subjetiva pode testemunhar aquela multiplicidade virtual em algum grau, como no sonho ou no delírio; outra coisa ainda é  estar à sua altura. O delírio de Schreber começa e se desenvolve, não na oferenda ou na receptividade, mas no padecimento e na luta para se fazer valer perante Deus, na forma, portanto, do desejo de reconhecimento: sua transformação em mulher responde ao desejo divino. Ele não aporta um novo significante, segundo os termos de Lacan. Daí a necessidade ética de começar antes da ordem significante – pois como esta aportaria um novo significante? –, mas não da linguagem: antes da separação da linguagem e da vida. A língua indígena insiste sob recalque. Mas não é algo de que se padece, e sim que se exerce. Toda a clínica analítica opera uma involução às condições originárias do polimorfismo perverso, ou seja, ao desimpedimento da linguagem. Retorno, portanto, à multiplicidade virtual e sua duração.

O delírio de Schreber apresenta as três propriedades destacadas por Deleuze, na verdade encontráveis em todas as formações do inconsciente. Trata-se, no caso desse "doente dos nervos", de um único processo, um continuum que se caracteriza, no entanto, pela heterogeneidade de seus momentos – as inversões da natureza do afeto, bem como de sua direção ou procedência –, e, sob as condições da duração, a diversidade dos pontos de vista que envolve. A simplicidade consiste em se tratar, todo o tempo, do amor e suas vicissitudes, bem como da implicação subjetiva, isto é, pulsional, no "processo restitutivo de cura" que é o delírio, conforme a profunda definição de Freud. Acontece, porém, que a implicação subjetiva (pulsional) na psicose de Schreber subsiste como uma questão constante – de fato não realizada.

Tomemos ainda um lapso de linguagem. Ao invés de falar da tendência tanática que observava em suas ações, um sujeito em análise deixou escapar "tendência tarática". Existe uma tara misturada ao impulso tanático, um eros mesclado ao vetor mortífero, de tal modo que a tendência se mostra indivisível, conforme o enunciado do lapso. Porém, ao dividi-lo, temos de um lado eros e de outro tanatus. As condições subjetivas mudaram de natureza: estamos agora diante de uma escolha, não sem uma indicação forte quanto à direção a ser tomada, pois o que trouxe o lapso, o que explicitou a mistura, de maneira que ela pudesse ser analisada? Não foi a tendência à morte, que antes se expressaria como tendência ao silêncio, mas uma tendência do vivo, que se manifesta num grito. O lapso é esse grito, subordinando a morte à vida (tanatus ao eros); ao fazê-lo, contudo, alerta para a temível mistura. O lapso é uma clínica. De modo que a pulsão, enquanto vetor essencialmente clínico, também destrói, dissolve, elimina, mas em nome dela própria; assim, dissolve o misto, em favor da linha ativa, anterior, tanto lógica como eticamente. Voltar à tendência e esposá-la – é exatamente isso a simplicidade. Cada estágio da análise compreende um nível de (ou da) duração, uma altura do tempo, segundo a qual as demais – que a antecedem no processo de involução – são medidas e avaliadas, subsumidas e vencidas, dissolvidas ou superadas.

 

Anterioridade. Determinação superior. Precisão

Se a consciência arrasta a matéria à organização, retardando, todavia, seu próprio movimento e dividindo-se ao infinito, é por ser logicamente anterior aos organismos que engendra, o que, mais uma vez, a aproxima decisivamente da pulsão, tal como a entendemos. Lembremos que consciência e vida são sinônimos para Bergson2. Assimilação da maior importância, pois localiza na vida uma ciência em grande parte desconhecida, uma espécie de ciência da vida (nos dois sentidos do genitivo latino). É o que reaparece em nossa concepção de um saber pulsional e de seu exercício. Diríamos que é a consciência no plano do inconsciente, ou, simplesmente, o sujeito do inconsciente. Artaud pensava essa consciência atávica e ao mesmo tempo singular a propósito da experiência com o peyote. A consciência, dizia ele,

sabe o que é bom para ela e o que não lhe serve; e,  portanto, os pensamentos e os sentimentos que pode acolher sem perigo e com proveito e os que são nefastos para o exercício de sua liberdade. Sabe, sobretudo, até onde chega seu ser e até onde, todavia, não chegou ou não tem o direito de chegar sem fundir-se na irrealidade, no ilusório, no não-feito, no não preparado" (Artaud, 1977, p. 26).

Ora, a liberdade da pulsão frente ao organismo, sua posição de comando, seu poder de desarticula-lo ou de destacar um órgão histérico, de eleger, reportando-se à visão ou à audição, a arte da pintura ou da música, e o fato de se esclarecer, finalmente, como sublimação, indicam suficientemente o quanto os dois pensamentos, o analítico e o bergsoniano, se nutrem, se não de uma mesma lógica, ao menos de lógicas muito próximas no que se refere ao originário. De onde vem essa proximidade? No caso da psicanálise, vem da clínica especial, minuciosa, singularizada ao extremo, que ela engendrou desde o princípio e pela qual, inversamente, foi engendrada. No caso da filosofia bergsoniana, a proximidade decorre do intento de precisão, associado ao impulso vital e ao método de sua abordagem3:

Quão mais instrutiva seria uma metafisica realmente intuitiva, que seguisse as ondulações do real! Já não abarcaria de um só golpe a totalidade das coisas; mas a cada uma daria uma explicação que a ela se adaptaria exatamente, exclusivamente. É verdade que a filosofia exigirá então um esforço novo para cada novo problema. Nenhuma solução será deduzida geometricamente de outra. Nenhuma verdade importante será obtida pelo prolongamento de uma verdade já adquirida. Será preciso renunciar a fazer com que a ciência universal caiba virtualmente num princípio" (Bergson, P. M., 2006, p. 29).

Assinalamos a aplicação prática, tanto clínica como política, de um pensamento que segue as ondulações do real: pode ser tanto "tratamento" como "estratégia". Com alguns ajustes específicos, poderia ser uma proposição do pensamento analítico, adaptada à sua clínica, pois esta se aplica aos dados singulares insuspeitados e, longe de generalizá-los, convoca-os cada vez mais à palavra, a uma palavra ainda desconhecida, ao seu testemunho indígena. Percebe-se assim o caráter nômade desses dois pensamentos, isto é, sua feição ativa e prática. Que se alcance com a intuição bergsoniana a precisão em filosofia evoca imediatamente nossa concepção de pulsão – pois a pulsão é a precisão em psicanálise, o real em seu exercício imprevisto. Não se trata de pretender que seja assim, mas de constatar que é assim. Ali onde se detecta o vetor pulsional estamos às voltas com algo muito preciso: o singular e o extra pessoal (ou impessoal), o simples e o altamente refinado (a composição por vezes complexa do lapso ou do sonho, enquanto são peças únicas ou inteiriças) e o real e sua prática, todavia abstrata, porque sem imagem ou modelo (concernente, pois, às linhas do tempo e às linhas de força) (Schiavon, 2019, p. 11). A exigência bergsoniana de precisão advém, certamente, de ser uma filosofia da vida, como sucede igualmente com Spinoza, para quem as essências são singulares, segundo o gênero mais avançado de conhecimento, e Nietzsche, cujo perspectivismo introduz diretamente o vivo no pensamento.

 

O real. O despertar

"O despertar da consciência, num ser vivo", é "tanto mais completo quanto maior latitude de escolha lhe for deixada e quanto maior a soma de ação a ele permitida..." Ou ainda: "Duas coisas apenas são necessárias (à vida enquanto impulso):  1º, uma acumulação gradual de energia; 2º, uma canalização elástica dessa energia em direções variáveis e indetermináveis, no fim das quais se encontram os atos livres" (Bergson, E. C., 1964, p. 254). De um salto poderíamos passar à pulsão, enquanto a descrevemos em seu circuito em retorno (da existência) e como exercício de uma condição de escolha. Estabelecida de direito, essa condição precisa ser conquistada de fato. A análise é exemplar como prática desta conquista, pois deixa o campo aberto a todo e qualquer comparecimento. Seu campo aberto se mostra assim homólogo ao campo pulsional. Visa convocar a haeresis (escolha) e o ato livre, temas caros a Bergson e à pesquisa analítica que, justamente, coloca em relevo o circuito em retorno da existência.

Mas a consciência – a ser entendida como impulso vital e que em alguns lugares da obra de Bergson receberá a designação de supra-consciência4 – entra em dormência aqui e ali, como a crisálida no invólucro, enquanto desperta, mais e mais, em outros processos vivos. Ressaltamos o tema de um despertar que o sonho, em seu devir próprio, tenderia a fomentar, a despeito de nossas defesas. Lacan, não sem humor, observa em Mais, ainda que quando estávamos a ponto de tocar o real (pulsão) no sonho de angústia, já na iminência, portanto, de um despertar, acordamos, ou seja, continuamos a dormir (Lacan, 1982). Desde Freud, as formações do inconsciente (sua descoberta clínica e, sem exagero, toda a ciência analítica) são vias de acesso à vida, à atividade e à lucidez – o real em psicanálise. Por óbvio que seja, é preciso dizê-lo. A análise é o saber prático deste acesso, e por isso a denominamos de pragmatismo pulsional.

O que se descobre em tal acesso? Não representações, mas atos, atos expressivos. A decifração do inconsciente é pragmática, e constitui o que chamamos também de memória da força. Essa memória, por sua vez, não se distingue de um dizer. "É preciso haver uma força", afirma Freud,

que quer expressar algo, e uma outra que busca impedir essa expressão. O que então se produz, como sonho manifesto, pode reunir todas as decisões em que se condensou esta luta entre as duas tendências. Num local, uma das forças pode ter conseguido impor o que queria dizer; em outros, a instância oposta logrou extinguir inteiramente a comunicação pretendida ou substituí-la por algo que não exibe traço dela. Os casos mais frequentes e mais característicos da formação de sonho são aqueles que o conflito resultou num compromisso, de modo que a instância comunicadora pôde dizer o que queria, mas não como queria, e sim de forma atenuada, distorcida, irreconhecível" (Freud, 2011, p. 136).

Um dizer em pleno exercício consiste num ato de domínio e num despertar, enquanto o sonho ou o sintoma exprime um domínio medianamente exercido e um semi-adormecimento – "o que a força queria dizer, mas de forma atenuada". Um poder que mais produz que reprime, que induz e intensifica, conforme as análises de Foucault e outros, e que determina que se goze, nos termos de Lacan, não deixa de operar o que a psicanálise descreveu como recalque, pois suas palavras de ordem, seja qual for o contexto e a modalidade de operação em que se exerce, tem um alvo soberano, o silenciamento da força de que fala Freud, impedindo o retorno às fontes originárias do "impulso vital". Que se produza de tudo, menos um dizer. Que se ouça a tudo, menos a um dizer. Que se goze do que quer que seja, menos do saber pulsional. Que se executem todos os atos, menos os atos livres. A força pulsional está sujeita a muitas vicissitudes. Mas ela é desrecalcável, isto é, decifrável, e sua decifração será necessariamente pragmática. É sempre devido ao fascínio pela forma alcançada – mas também diríamos, mais profundamente, pelas formas – ou pelo arranjo satisfatório que uma forma oferece às instâncias que se enfrentam e degladiam, acomodando temporariamente perspectivas divergentes, senão antagônicas, que se constitui o que se pode chamar de sintoma em psicanálise. É uma espécie de armadilha: mesmo que se queira, depois de certo tempo não se sabe mais desconstruir o arranjo. Este exigiu, muito especialmente, uma tradução não fiel das forças envolvidas, de maneira que não fossem mais evocadas em sua configuração final. Ora, se os afetos originários são avaliações precisas e distribuição de investimentos, a acomodação do sintoma compreende um adormecimento, uma queda na condição de escolha. Reavivar o conflito, a angústia – um dos caminhos usuais da análise – e, através deles, antes e além deles, o exame ético, tem por alvo o despertar e sua palavra herética.

 

Dedicação. Esforço. Exigência

Dedicação, esforço, exigência (com os quais traduzimos Dräng, um dos componentes da pulsão) descrevem, em grande parte, a moção pulsional. É o que constitui sua dobra. Do ponto de vista ético (e, portanto, clínico) é decisivo atribuir esses traços à pulsão, e não propriamente ao eu ou ao super-eu. É também oportuno remetê-los (no recurso a Bergson), ao impulso vital, ou seja, à vida, já situada por Lacan, acertadamente, no plano do real. Trata-se de distinguir a natureza dessa exigência, tendo em vista que não se orienta por um ideal de eu e nem mesmo pela realidade, mas por um critério real-virtual. A exigência em jogo requer, assim, um discernimento propriamente clínico, pulsional, capaz de avaliar a espécie de dedicação ou de esforço que irá corresponder em cada caso a uma vida.

É o que a passagem seguinte, em A evolução criadora, dirá a seu modo. Na evolução da vida

é flagrante a desproporção entre o trabalho e o resultado. De alto a baixo do mundo organizado há sempre um único grande esforço; mas, a maior parte das vezes, este esforço aborta, ora paralisado por forças contrárias, ora distraído daquilo que deve fazer por aquilo que faz, absorto pela forma que está empenhado em tomar, hipnotizado por ela como por um espelho. E mesmo nas suas obras mais perfeitas, quando parece ter acabado de vencer as resistências exteriores assim como a sua própria, está a mercê da materialidade que teve de assumir. É o que cada um pode experimentar em si próprio. A nossa liberdade cria, com os próprios movimentos com que se afirma, os hábitos nascentes que virão a asfixiá-la se não se renovar graças a um esforço constante: o automatismo espreita-a. O mais vivaz dos pensamentos congelar-se-á na fórmula que o exprime... (Bergson, E. C., 1964, pp. 145-147).

Inevitável rever em Bergson uma distinção cara a Freud, que aparece especialmente no texto sobre as pulsões e suas vicissitudes, entre as pulsões sexuais e as pulsões de autoconservação (ou do eu). Enquanto estas visam o organismo individual e sua conservação, aquelas se voltam à continuidade da vida, às expensas dos organismos que a transmitem e perecem, por serem sexuados. Bergson retoma o mesmo argumento de Weismann (Bergson, E. C., 1964, p. 62), relativo a um "plasma germinativo imortal", que servira a Freud para pensar o alvo impessoal das pulsões sexuais. Ora, esse poder que atravessa o mundo orgânico e se projeta além dele, caracteriza o que Bergson chama de impulso vital. Adivinha-se, sob esse aspecto biológico e metafísico, o que entendemos por sublime-ação – o destino originário da pulsão. E por isso dizemos que essa noção psicanalítica fundamental se aplica ao singular e ao extra-pessoal (ou impessoal). Para isolar o singular bastaria o caráter exótico de um objeto fetiche ou de um ato perverso; mas para alcançar o extra-pessoal ou impessoal, sem perder de vista o singular – pelo contrário, acentuando-o ao máximo – será preciso alçar-se à sublime-ação. A pulsão, repetimos, só é devidamente compreendida em seu mais alto grau, ou seja, como um dizer.

 

A dobra. A diferença interna. Fechado e aberto. A tendência

Bergson descreve duas maneiras diferentes de despertar: uma atenção da vida (ou da consciência) sobre o seu próprio movimento (a dobra intuitiva) ou uma atenção sobre a matéria que ela atravessa (o desdobramento da inteligência). A volta do impulso a si, eis o que chamaríamos de pulsão. A pulsão por excelência se exerce mediante uma dobra. Não é pulsão de morte como quis Lacan a certa altura. Dobrar-se sobre si e exercer-se constituem a mesma operação: subjetivação pulsional, ou o que Freud denominava de alvo invariável da pulsão.

Bergson acrescenta: "à primeira vista, a intuição parece de muito preferível à inteligência, visto que a vida e a consciência, nela, se conservam interiores a si próprias". Ser preferível, porém, não compreende de modo algum menor esforço. Detectamos aqui o elemento ético. A diferença interna não é dada, é conquistada. Pois o "invólucro" que limita a intuição é a forma atingida, e o instinto é a repetição do mesmo no que concerne aos atos, aos objetos e aos alvos; expressa ainda uma porção de vida, porém abarcada "na sombra". Não é de importância secundária a revisão feita por Lacan da tradução de Trieb,repisando que não se trata do instinto. Que na definição freudiana de pulsão o objeto, um de seus quatro componentes se caracterizasse como absolutamente variável, já fornecia o essencial para se conceber a abertura da experiência humana. No bergsonismo, reabrir o que se fechou num estado ou numa forma significa retomar o movimento da intuição, involuir às condições originárias do impulso vital. Reabrir em psicanálise, por sua vez, significa retomar o movimento da sublimação, da qual as demais formações do inconsciente constituem ensaios em diferentes graus de resolução. Conforme ensinamento lacaniano, a ênfase analítica recai na tendência, e não no objeto. Desrecalcar, decifrar, conhecer e exercer a tendência são aspectos do mesmo alvo analítico.

O movimento da consciência (enquanto impulso vital) de se exteriorizar em relação a si mesma constitui o que chamamos de realidade. Concebida assim, a realidade só se esclarece inteiramente ao ser remetida à tendência5, e na medida em que esta se inteirar de si mesma, voltando-se sobre si (a dobra ou o domínio de si). "Toda realidade é, portanto, tendência..." (Bergson, P. M., 2006, p. 219). Uma das asserções mais profundas de Lacan diz a mesma coisa com outras palavras: "o desejo é a essência da realidade". O movimento em direção à tendência lembra de perto o conceito clínico e ético de pulsão, na medida em que este compreende uma de-subjetivação ao nível das instâncias não pulsionais em nome de uma subjetivação pulsional ainda pouco conhecida.

As virtualidades nas quais vemos se inserir a intuição, tornando-as internas a si mesmas, são graus de vitalidade e alturas do tempo. Embora o homem mesmo seja uma linha de diferenciação da vida, a margem de presença ou de subsistência do virtual nessa linha de atualização específica parece não ter limites.

Dir-se-ia que no homem, e somente no homem, o atual torna-se adequado ao virtual. Dir-se-ia que o homem é capaz de reencontrar todos os níveis, todos os graus de distensão e de contração que coexistem no Todo virtual... E as durações que lhe são inferiores ou superiores são ainda interiores a ele. Portanto, o homem cria uma diferenciação que vale para o Todo e só ele traça uma direção aberta, capaz de exprimir um todo aberto" (Deleuze, 1999, p. 87).

As durações são alturas do tempo, graus da pulsão ou da existência. Escolhe-se o nível, segundo Bergson: "A mesma vida psicológica seria, pois, repetida um número indefinido de vezes, nos estágios sucessivos da memória, e o mesmo ato do espírito poderia ser realizado em diferentes alturas" (Bergson, 1990, p. 115).  Para isso serve a análise, para operar a melhor escolha, decidir o grau, a sublime-ação. No sonho da Injeção de Irma, onde se trama, na altura do tempo em que ele se engendra, a criação da psicanálise e sua sustentação em ato, outros níveis são convocados, bem como diferentes graus e diferentes modalidades de subjetivação: um Freud inseguro, sob suspeita desde suas experiências malogradas com a cocaína; um Freud sedutor, buscando aliados; em guerra contra aqueles que não reconhecem suas descobertas; tendencioso em argumentar a seu favor, a ponto de ser cínico e malévolo; um Freud impiedoso não só com os seus pares e demais contemporâneos, mas sobretudo consigo mesmo, sempre em nome da psicanálise e seu futuro.

 

De direito e de fato

Abordamos assim o que parece ser o alvo do bergsonismo, igualando-se ao alvo do impulso vital: se a consciência é identificada à vida enquanto motor da evolução, e nesta o homem assume um lugar privilegiado, isso se deve à abertura excepcional ou à indeterminação que caracteriza essencialmente a evolução criadora. A abertura ou indeterminação exprime todo o tempo uma diferença que não é mais de grau, mas de natureza. Essa diferença de natureza, contudo, exige um aprofundamento: ela não é ainda uma diferença interna. Com efeito, Bergson descreve a constituição da sociedade humana como sendo, em princípio, a de uma sociedade fechada. Não haveria nesse sentido diferença de natureza em relação a outras sociedades animais inteligentemente organizadas. A diferença seria apenas de grau de complexidade, de flexibilidade e amplitude. É preciso algo mais para que seja uma sociedade aberta. A diferença de natureza aparece incialmente como diferença de direito. É o que Deleuze formulou em Bergsonismo: a Duração, a Vida, é de direito memória, consciência, liberdade, entendido que de direito significa virtualmente.

A questão de fato (quid facti?) está em saber em que condições a duração torna-se de fato consciência de si, como a vida tem acesso atualmente a uma memória e a uma liberdade de fato. [...] É somente na linha do Homem que o impulso vital 'passa' com sucesso... (Deleuze, 1999, p. 86).

Embora as condições pareçam dadas com o Homem, elas serão de fato exercidas ou efetuadas singularmente (a diferença interna): o impulso vital "passa" a cada vez com sucesso, nesses e naqueles casos, mediante uma prática que pode ou não se verificar. Pareceria algo trivial se não observássemos, ao mesmo tempo, alguns aspectos nodais do problema de como esse impulso passa: primeiro, que não se trata de um problema colocado à cultura, mas antes à vida como tal, embora a cultura lhe seja coextensiva e constitua, em grande medida, uma solução que se encaminha – o que o situa imediatamente num plano ético e clínico originário; segundo, que esse plano, pelo seu caráter originário, ressoa em todas as formações do inconsciente, de tal modo que o inconsciente mesmo é esse plano; terceiro, que seu caráter ético e clínico implica que ele é construído mediante uma prática – o que chamamos de exercício da pulsão –, e que essa prática pode ou não se verificar (o que exprime, mais que qualquer outro traço, a condição humana e seu destino incerto); quarto, que essa construção é ao mesmo tempo uma conquista essencial à vida, se ela quer ser vitoriosa; quinto, que essa vitória recebeu em psicanálise o nome de sublime-ação; sexto, que se tratando de uma força constante (a konstante Kraft freudiana), a vitória em questão se sustenta como prática constante; e sétimo, que essa prática, não servindo a nada, pois a nada se sujeita, serve de medida e orientação a todas as demais práticas.

Percebe-se, assim, – desde que se adote, ao menos provisoriamente, nossa proposição e nossa aposta de pensar a psicanálise a partir da pulsão – o quanto a noção de pulsão de fato se faz necessária, o quanto merece a extensão que lhe damos e o quanto pode se beneficiar das interações conceituais assinaladas. Beneficiar-se, aqui, não significa não subsistir sem essas interações. Lançar, porém, uma luz a mais sobre um assunto tão obscuro, por tênue que seja, parece-nos não só legítimo como urgente, se é verdade que o menor passo nesse terreno terá implicações éticas e clínicas. A prática que não serve a nada à qual aludimos iguala-se, nesse sentido, à intuição bergsoniana. Como disse Deleuze, "a intuição é o gozo da diferença. Mas ela não é somente o gozo do resultado do método, ela é o próprio método" (Deleuze, 1999, p. 96). Daí a similitude com a nossa concepção de pulsão, cuja satisfação (gozo) é o seu próprio exercício.

Como se opera em Bergson a abertura extraordinária de que falamos? Como ela é exercida? É por uma espécie de distração em relação à vida, de dilação com respeito às atividades úteis, que algo, a princípio inominável, se insere na experiência humana: a emoção criadora. Não poderíamos desenvolver passo a passo este tema, que é a pedra de toque e o ponto de chegada do pensamento bergsoniano. Registramos apenas o seguinte: a emoção criadora, que remetemos de nossa parte aos afetos originários, é primeira em relação a qualquer representação, e constitui, espantosamente, uma espécie de retorno à percepção pura. Deparamo-nos aqui com visões e audições, como se finalmente os olhos e os ouvidos se abrissem. Bergson critica aos filósofos antigos – começando pelo discípulo de Parmênides, Zenão de Eléia –, e a toda a tradição metafísica que se segue, o abandono da percepção, do sensível e, portanto, do movimento e do tempo, em favor do inteligível, sem observarem mais detidamente que a percepção já se encontrava reduzida às conveniências da inteligência em sua aplicação (dir-se-ia) natural à matéria. Só iriam encontrar na percepção aquilo que a inteligência ali projetara, o sensível não sendo mais que mera sombra. Ora, tratava-se, ao contrário, de ingressar de novo na percepção, ampliar suas dimensões, explorá-la mais profundamente, o que só poderia ser alcançado de um modo desprendido, isto é, não submetido às exigências práticas da vida material. Seria preciso ir contra a tendência natural da inteligência e das necessidades vitais. Essa reversão no pensamento, contudo, corresponde ao retorno do pensamento à vida e da vida ao pensamento, segundo uma fórmula do exercício pulsional.

Tal reversão nos é dada, por exemplo, na experiência onírica, na medida em que, virtualmente, ela integra a decifração analítica. Como a distração em relação à vida pode propiciar uma descoberta perceptual e prática de um plano de vida ainda desconhecido? Como a vida poderá inundar o pensamento que, então, e só então, lhe fará justiça? Ora, diz Bergson, "há séculos surgem homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas". E acrescenta: "É pelo fato de o artista não pensar tanto em utilizar sua percepção que ele percebe um maior número de coisas" (Bergson, 2006, p. 159). É o gozo da percepção, enquanto ela não serve a nada. Não utilizá-la significa aqui não sujeitá-la a nenhum fim.

Mas é preciso ajustar o entendimento relativo à distração poética. Os artistas têm os sentidos menos aderentes à vida, diz Bergson. Que seja um juízo inevitável, lógico, e na verdade de senso comum, não exclui a necessidade de um reajuste. Pois é preciso ver no savoir-faire da arte o que Nietzsche chamava de atividade metafísica da vida. É em relação à vida prática, voltada para as necessidades e regulada pela inteligência, tanto ao nível da percepção como dos afetos, que o artista se distrai, se desprende. Desprender-se da terra, como queria Paul Klee, tal é o anseio do pintor, do músico e do poeta. Mas isso não é senão ajustar-se à vida em seu alto tempo, à vida enquanto memória cósmica, quando "a duração torna-se de fato consciência de si" e esclarece todos os seus demais graus. Daí procede a emoção criadora.

E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica, que atualiza ao mesmo tempo todos os níveis, que libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo o movimento da criação? (Deleuze, 1999, p. 91).

O cósmico, não esqueçamos, não é o distante; sob o aspecto do vivo, é o mais íntimo. O ajuste consiste então no seguinte: desprender-se, no bergsonismo, significa retomar o fio ascendente do impulso vital. Também é uma prática, aquela pela qual "a vida e a consciência se tornam interiores a si mesmas". Tal prática constitui a abertura excepcional de que falamos, e a garante na medida de sua constância. É quando, em termos freudianos, a konstante Kraft é exercida. Essa abertura e sua continuidade compreendem, portanto, um exercício ético originário: a dobra da pulsão. Por óbvia que pareça a esta altura, a postulação de uma ética imanente às formações do inconsciente precisa ser formulada e sustentada. E se sustenta clinicamente como argumento em curso (a prática), o que já não é tão óbvio e nem se encontra à mão. Que a questão da abertura excepcional repercuta como questão ética em todas aquelas formações, que suas implicações extra pessoais sejam de fundo, isto é, originárias, nos mostra como é insuficiente a noção de sinthoma, quando é reportada exclusivamente ao sujeito implicado, não interessando a nenhuma comunidade, como fez crer Lacan, apesar dele mesmo e de Joyce (Lacan, 2007, p. 161).

Estabelecer que a noção de pulsão se aplica ao mesmo tempo ao singular e ao extra-pessoal (ou impessoal) significa: 1º, dissocia-la da perversão, que parecia caracterizá-la essencialmente, e agora figura apenas como uma das modalidades de seu exercício – e não certamente a menos desimpedida, ou, o que é o mesmo, a mais esclarecida; e, 2º, remetê-la às condições de vida ainda insuspeitadas e aos atos singulares que podem atualizá-las em certas circunstâncias.

A determinação ética dos processos inconscientes, embora identificável em numerosos casos, ainda precisa ser estabelecida. Dir-se-ia uma constatação surpreendente, se não fosse clínica. Porque não se trata apenas de reafirmar o estatuto ético do inconsciente, ao modo de Lacan. Não há dúvida de que a atenção ao inconsciente, a análise propriamente dita, ao ser situada num plano ético, determinará o modo de se conceber os conceitos metapsicológicos e a direção clínica. Não é uma ontologia, mas uma prática que ascende assim ao primeiro plano. Mas isso não implica ainda em conceber a pulsão, ela mesma, como ética. É o que procuramos pensar, essa ética e sua inquietante presença em todas as formações do inconsciente. Existem indícios, sugestões nesta direção, já em Freud assim como em Lacan, e mesmo em outros autores, mas não como investigação decidida e como critério clínico. Não pretendemos que as interações conceituais com Bergson se convertam em alguma finalidade. A envergadura dessas interações será modesta, em contraste com a ambição maior que orienta nossa investigação, e que certamente não poderá realizar-se inteiramente com ela.

 

 

Referências

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Endereço para correspondência
João Perci Schiavon
E-mail: jpschiavon@hotmail.com
Suely Rolnik
E-mail: suelyrolnik@gmail.com

 

 

*Professor no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, Núcleo de Estudos da Subjetividade, na PUC-SP. Doutor e pós-doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP, autor de Pragmatismo Pulsional - Clínica Psicanalítica (N-1, 2019). Psicanalista desde 1980.
**Professora Titular da PUC-SP, psicanalista e, às vezes, curadora. Doutora em Psicologia Social (PUC-SP), Doutora e Mestra em Ciências Humanas Clínicas (Université Paris-8, Sorbonne), Graduada em Sociologia e em Filosofia (Université Paris 8-Sorbonne). Seus livros mais recentes são Antropofagia Zumbi (N-1, 2021) e Esferas da insurreição. Notas para uma vida não cafetinada (N-1, 2018). Coautora com Félix Guattari de Micropolítica. Cartografias do desejo (Vozes, 1986).
1Do poema de San Juan de La Cruz Cantar de la alma que se hulega de conoscer a Dios por fe, em Poesia completa, p. 62, Madrid: Magistério Español, 1977.
2Deleuze chega a uma concepção muito próxima à de Bergson com seu último escrito, A imanência, uma vida. "Uma vida" é inseparável de uma "consciência transcendental", antes e além de todas as vicissitudes.
3"O que mais faltou à filosofia foi a precisão" (Bergson, P. M., 2006, p. 3).
4"Se as nossas análises são exatas, é a consciência, ou melhor, a supra-consciência que se acha na origem da vida" (Bergson, E. C., 1964, p. 258).
5Daí uma proposição concisa do bergsonismo: inverter o movimento e interrompê-lo são uma mesma operação.

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