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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.26 no.51 Belo Horizonte Dec. 2004

 

ARTIGOS

Lucas. O dar-se a ver e a constituição do sujeito
Primeira parte

 

Selma Gonçalves Mendes*

Círculo psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Uma criança diante do analista apresenta o fundamento estrutural da divisão do sujeito, pelo fato da linguagem e pelo fato da pulsão sexual. A verdadeira natureza do sujeito do inconsciente é a divisão entre o que ele sabe de si e o que ele é. O que o analista faz com isto? Até onde ele pode ir, tendo diante de si um ser que se "dá a ver", sem mesmo perceber, "vendo-se"? Até onde o analista pode ver? Todo este percurso vai no sentido de estudarmos como se constitui um sujeito perverso, segundo a definição de perversão como renegação.

Palavras-Chave: Objeto olhar, Alienação, Separação, Lugar do analista, Ética na análise com criança, Édipo


ABSTRACT

A child in front of the analyst presents the division of the subject's (individual) structural foundation through the fact of language and sexual drive. The true nature of the unconscious self (sujet du inconscient) is the division between his self-knowledge and what he actually is. What does the analyst do with this? How far can the analyst go having in front of him a sight-giving being, without even noticing, "self- seeing"? How far can see the analyst? All this parcours goes in the sense of allowing us to study how is constituted a perverse human being, according to the definition of perversion as re-denial.

Keywords: Object-look, Alienation/separation, Analyst´s place, Children analysis´ethic, Oedipus


 

 

Justificativa para escolha do caso

O grupo de estudos utilizou fragmento de vários casos, que não têm diagnóstico de perversão, mas que permitiram verificar os movimentos de estruturação do sujeito e descobrir onde a síntese constitutiva pôde ser perturbada. Com os dados dos casos, íamos inferindo um "como seria" se aquela criança não estivesse em análise... O caso Lucas mostra as mudanças de posição do sujeito e o aparecimento de novos objetos. Aparece, na sua constituição, o 1o e o 2o tempo do Édipo. Como Freud nos indica que "a perversão só concebível, articulada por, com e no complexo de Édipo", buscamos identificar as possibilidades de constituição do sujeito perverso discutindo este recorte de caso. O olhar ocupa lugar privilegiado na discussão.

 

Dados iniciais

Lucas é uma criança de seis anos incompletos (na época do início do atendimento). É bastante inteligente, argumenta bem e surpreende os adultos com sua lógica. Já está semi-alfabetizado e sua aprendizagem vai bem.

Mora com a mãe (Ana) e com a avó materna (Rosa). As duas brigam muito e surgem muitas divergências na educação da criança. Lucas dorme ora na cama da mãe, ora na cama da avó. Ainda usa mamadeira. Tem controle de esfíncteres, mas ainda pede ajuda para se limpar. Diz que tem nojo; gosta de tudo muito limpo, como a avó e "não aceita pisar em banheiro molhado...". É filho de "mãe-solteira". O pai de Lucas só o viu quando ele tinha três anos. Não registrou o filho. Nesses cinco anos procurou por Ana, mas seu interesse não era pra com o filho, mas para com a mãe, "como mulher". Ele engravidou outra moça na mesma ocasião de Ana e ficou com a outra, com quem já teve outros filhos. Era "irresponsável e usava drogas". O relacionamento durou pouco tempo. Atualmente, Ana tem outro namorado, que é motivo de atrito entre mãe e filha, porque Rosa não o aceita; "ninguém serve para ela...". Rosa também é "mãe-solteira". Não permitiu o encontro da filha com o pai; moveu uma ação na Justiça contra ele e para ganhar a causa teve de comprovar a paternidade através de exame de DNA. Só então Ana foi conhecer o pai, aos 18 anos. Com 20 anos, Ana engravidou de Lucas. Seu pai ajudou-a financeiramente e continuou ajudando de forma significativa. Ela demonstra mágoa de Rosa por ter sido impedida de conhecer o pai, quando menina.

Antes, a avó cuidava de Lucas para a mãe trabalhar. Com os conflitos entre as duas, a mãe passou a deixá-lo na escolinha o horário integral (das 8 às 18 horas).

 

Queixa inicial

A indicação para procurar uma psicóloga, partiu da equipe da escola, pois Lucas estava apresentando comportamento agressivo. Sua mãe relata brigas também em festas de aniversário e que ele "até mordeu a dentista...". Lucas faz birras com a mãe e com a avó e desafia a autoridade das duas. "Joga uma contra a outra...". Isso só virou questão após o posicionamento da escola.

 

Informações sobre o atendimento

A escola onde Lucas está matriculado é vizinha da Clínica. Isso determinou o encaminhamento e viabilizou a vinda dele. Quando a mãe vai para o trabalho, deixa-o na Clínica e ao término de sua sessão, é levado pela secretária até o portão da escola. É freqüente e pontual na escola por causa dessa situação.

É atendido uma vez por semana, em sala de ludoterapia, e como é uma clínica, os banheiros ficam fora da sala, em frente à porta.

A mãe atendia a todas as convocações para entrevistas e foi possível um trabalho com ela, paralelo ao atendimento de Lucas. A avó foi convidada para a entrevista, mas não compareceu.

 

As sessões de Lucas

Nas primeiras sessões, Lucas coloca-se em posição defensiva, respondendo com monossílabos e movimentando-se de forma tolhida e cautelosa. Acompanha com o olhar cada gesto da analista e espera ser comandado. Com o tempo, começa a desenvolver um ritual, que é mantido por um bom tempo. Esse ritual comporta três momentos distintos:

1º) Começa a sessão sempre com a pergunta: O que você quer fazer? Pergunta que lhe é devolvida com um E você? Ou: Qual é a sua idéia? Não responde, mas pega dinossauros de borracha e representa uma briga com eles. São "os bichos perigosos". Me dá dois e fica com dois maiores. Os seus sempre vencem! Só depois de muita luta, Lucas consegue passar para outro momento.

2º) Age com mais desenvoltura e representa cenas familiares com os brinquedos de casinha. Dá banho, alimenta, põe para dormir bichos e bebês. Sempre me inclui na brincadeira. Começa a trazer relatos do dia-a-dia com a mãe e a avó.

3º) É o retorno da contenção, com o uso de um jogo de cartas ou quebra-cabeças. Volta a disputar comigo e a sessão é encerrada.

Aceito esse ritual por algumas sessões; depois proponho que ele use cercas, para deixar os "bichos perigosos" cercados. Aceita a proposta, mas coloca entre ele e mim, uma cerca que determina "o lado dele" e o "meu lado". Com essa cerca, o período das brigas foi diminuindo significativamente até desaparecer.

Com seu ritual, as sessões ficam muito semelhantes. Lucas fala corretamente, me corrige se, propositadamente, falo errado. Usa frases interrogativas, mas que funcionam como afirmação. Por exemplo: a janela está aberta? Arruma os objetos, sempre obedecendo a um critério de cor, tamanho ou utilidade. Guarda tudo nos lugares, usa tinta e pincel, mas não se suja e, quando sai, a sala está impecável! Até esse momento, suas sessões constituem um bloco em que predomina a preocupação com o desejo do outro.

Um dia, Lucas pede para ir ao banheiro. Vai sozinho, fica um tempo, mas me chama de lá. Quando chego, ele está sentado no vaso do banheiro feminino, com a porta aberta e me diz "pra limpar o seu bumbum..." Me pega de surpresa. Respondo-lhe que não é este o meu trabalho e que ele consegue se limpar. Para meu espanto, ele, sempre tão seguro, ameaça chorar, se angustia e me diz: Eu não consigo... Eu também me angustio e repondo: Espera! Vou te ajudar... Vou ao banheiro ao lado, pego o papel higiênico e enquanto faço isso, fico me perguntando: ele não consegue o quê? Me remeto à questão do nojo, lembro de sua boa coordenação motora e não encontro resposta. Rapidamente, decido tentar ver o que ele não consegue... Já de volta, vou cortando o papel e lhe entrego dobrado e lhe peço que passe no bumbum. Ele atende. Então, lhe digo: Agora, olhe o papel. Está limpo? Não! Então, jogue fora e vamos usar outro. Ele repete os procedimentos, várias vezes, e eu sempre lhe pedindo que olhe o papel, até que ele fique limpo. Então digo:

- Você não consegue ver o seu bumbum! A gente não consegue mesmo! Mas a gente vê o papel. O papel nos mostra se está sujo ou limpo...

Lucas demonstra que entendeu a lógica do gesto e sorriu aliviado (e eu também, porque não precisei tocar em seu corpo). Volta para a sala e encerro a sessão.

Nas próximas sessões, quando introduzo situações de mudanças, Lucas, que antes se assustava, passa a me imitar. Por exemplo, sujar a minha mão de tinta, manchar o papel, rasgar etc., ele se permite fazer o mesmo, e num dia dessas "sujeiras", ele fala, num tom de quem entende o duplo sentido da frase:

- Nós estamos pintando! (querendo dizer: fazendo bagunça com as tintas).

Numa outra sessão, várias semanas depois, Lucas vai outra vez ao banheiro feminino e me chama de lá. Mas, desta vez, quer me mostrar que se limpou sozinho, pois já está pronto na porta e me mostra o "cocozão" que fez! Eu elogio, ele se alegra e não mais pede para ir ao banheiro durantes as sessões.

Este bloco de sessões, em que o objeto fezes está muito presente, vai sendo substituído por outro, no qual o ritual vai sendo abandonado e Lucas começa a trazer questões do dia-a-dia em casa e na escola, dos pequenos conflitos com os colegas. Uma vez, conta que o pai cria "cachorros ferozes", outra vez fala do namorado da mãe que o levou a passear. Um dia, está misturando tintas para "fabricar cores", ou seja, mistura vermelho e amarelo e "fabrica" o laranja; o azul e o amarelo e "fabrica" o verde. Então, novamente me pega de surpresa com a pergunta:

- Se minha mãe casar com Pedro, ele vai ser meu pai? Mostro susto e devolvo:

- Mas, você já não tem pai?

- Pois é... Mas o que ele vai ser? Insiste, quer saber. Pergunto:

- Você conhece a palavra padrasto?

- Não...

Explico literalmente. Ele remete à madrasta da Branca de Neve. A partir daí, a figura do boneco-pai passa a fazer parte das brincadeiras de casinha, onde tem a família: pai-mãe-filhos. Em entrevistas com a mãe, ela relata que o pai tem procurado o filho, e ela tem permitido maior aproximação entre os dois.

Também com a sua própria mãe diminuíram os conflitos. Nas suas entrevistas-sessões, a mãe pôde trazer conteúdos do amor-ódio que permeava as relações entre ela e o pai de Lucas, e entre ela e sua própria mãe. Deixou de morar com a Rosa, passando a morar com Lucas num apartamento. Após quase um ano de meu trabalho com ele, suas mudanças ficam significativas e a mãe decide mudá-lo, repentinamente, de escola, mas o mantém na análise. Essa mudança foi boa para Lucas, em termos pedagógicos. Ele volta a ficar com a avó, pois não passa mais no colégio o tempo integral.

Dá-se, então, um intervalo de férias de 30 dias, com suspensão do atendimento a Lucas. Na primeira sessão de retorno acontece o seguinte:

Lucas chega alegremente perguntando:

- É aqui que liga a luz? Repito como afirmação: é aqui que liga a luz. Mas ele insiste:

- É aqui que liga o ventilador?

- Você já sabe como que liga aqui...

Ele sorri e vai imediatamente para os dinossauros e representa uma luta rápida, usando um em cada mão (eu não participo), pega um de asas e diz:

Esse parece fraco, mas ele voa! Ele ganha de todos! Apenas repito: parece fraco mas...

Larga os dinossauros presos em cerca e vai pegando os brinquedos de casinha, enquanto provoco:

- E aí, como foi de férias?

Responde em tom de relatório:

- Passei 12 dias na casa da tia fulana... e três dias com... (muda de tom). Você sabia que eu passei três dias com meu pai?

- Eu não sabia! Que legal! Três dias dão pra fazer muitas coisas...

- Ah!...A gente só comia, dormia e via TV...

- Só isso? Não teve brincadeira de bola, nem de nada?

- Só de luta, né?! Não tinha brinquedo... Andei de carro com meu pai lá na roça...

Enquanto falava ia pegando os objetos. De repente, pega um fogãozinho e diz:

- Hoje vai ter peru! Aqui, oh! Tá assando! Mostra o desenho no forno, que é, nitidamente, um leitão.

Falo em tom pensativo:

- Peru... Tem gente que diz que peru é aquele negócio de fazer xixi...

- É mesmo! É peru! Ou pinto! Pode fazer xixi no mato!

- Pode fazer no mato?

- Pode! Pode fazer na árvore, no pneu do carro...

Até aí, ele foi colocando objetos na mesa, aleatoriamente, tendo toda atenção voltada para o nosso diálogo. Então pega dois carrinhos, um grande e um pequeno e diz:

- Qual vai ser o seu?

- Você escolhe...

Me dá o maior. "Assusto": Esse é o meu?

- Não! Corrige rapidamente pegando o maior e eu digo:

- O seu é bem grande!

Ele ri, dizendo: Você é engraçada! Brinca com o carrinho no chão e fala:

- Você sabia que minha mãe falou que "nunca mais" vai me deixar na casa da minha avó?

- "Nunca mais" parece conversa de quem está brigando... "Aquelas duas" estão brigando de novo?

- É por causa do controle... controle da TV...

Vou especulando: Controle da TV... Controle do Lucas... (falo mudando de voz) "Lucas vai tomar banho!... Lucas vai dormir... Lucas vai comer...". Ele dá risada e continua:

- Sabe que lá com meu pai eu comi até tomate! Comi cenoura, comi beterraba...

- Quer dizer, que, com o controle do seu pai, você come de tudo! Mas com sua avó e sua mãe...

- Não como! Nem tomate, nem cenoura...

- E as duas brigam para ter o controle do Lucas...

- É!!!

- E o Lucas só atende o pai.

Ele ri achando graça no que falo. Termino a sessão e ele sai deixando a sala toda desarrumada. Vai ao banheiro masculino, e fica, de costas para a porta aberta, de pé fazendo xixi... Passo e apenas comento:

- De porta aberta, né? Ele sorri e continua...

 

Abordagem teórica

Chama a atenção, desde o primeiro momento, o lugar que essa criança ocupa, nesse universo de mulheres, onde o homem é ausente, ou rejeitado, ou menosprezado. A mãe de Lucas repete com ele o que sua mãe lhe fez, mas Lucas faz birra, enfrenta, briga... Ele se angustia e produz sintomas. A agressividade surge e vem tamponar o mal-estar de um mau-encontro com a falta, buscando aliviar ou negar a angústia de castração.

O complexo de Édipo é o momento em que a criança toma consciência de si, do mundo, dos outros. É o drama inconsciente de um ser que deve tornar-se sujeito; deve resolver o problema da diferença sexual, da assunção do próprio sexo e dos seus impulsos inconscientes. Mas, a angústia de castração é como um fio que perfura todas as etapas dessa constituição do sujeito, orientando ou cristalizando cada momento. Ela está presente, determinando o aparecimento de sintomas e de atuações, ao longo do caso.

Podemos verificar, com esse recorte, alguns momentos constitutivos de Lucas. O primeiro, o reconhecimento de si no espelho, a captação do ser pela imagem, remete à relação dual mãe-filho, do l° tempo do Édipo. A criança, identificando-se como o objeto de desejo do outro, submetida passivamente, assujeitada, cria uma unidade mãe-filho, que só é rompida com a descoberta da castração materna. Ser o objeto fálico, para preencher o desejo da mãe, é a angústia mesma de ser engolido por ela.

Lucas, nesse momento do Che vuoi? (Que queres?), e na falta do anteparo do Édipo, cria artifícios para se defender da mordida da mãe, da avó e da analista! É preciso até pôr uma cerca! Assim não é engolido, invadido, não corre o risco de desaparecer como um nada. É preciso uma proteção ante o perigo de ser engolido pelo desejo insaciável do Outro. Lucas repete nas sessões, já numa posição transferencial, o que acontece na relação com a mãe-avó. Uma relação imaginária, especular, onde os dois personagens estão presos na mesma ilusão e cada um deles possibilita que o outro se mantenha na mesma. Que a mãe faça do filho o falo, determina que ela possa ser mãe-fálica. O poder que a mãe detém é o poder de saber dele a partir de fora, por ver nele o que ele não vê, desejar nele o que ele não sabe o que é. O olhar da mãe lhe diz: Você é este! Eu te quero assim! E a criança se aliena no desejo da mãe.

Lucas me chama para vê-lo e me diz: Eu não consigo... O que ele não consegue? Lucas não consegue... ver-se! E um ato analítico é que vai possibilitar a introdução de um corte aí, quando me recuso a limpá-lo. Ao introduzir o papel, a concretude do papel faz-se um suporte, um suporte no real, que possibilita a mediação significante. Quando ele diz: Eu não consigo..., falta o complemento significante: ver. O papel foi o suporte, foi a letra do significante: ver.

Ao dar-lhe este significante, a analista pôde ficar de fora, em suspensão, para que a cadeia pudesse deslizar. O papel entrou como algo do discurso, e não como matéria, como coisa. Entre o sujeito e o outro a distância pôde ser mediada por um significante e o verbo olhar pôde aparecer na forma reflexiva: olhar-se. É pelo viés da palavra, é a partir dela que Lucas pôde ver-se. Pode ver sua masculinidade, pôde ver a diferença ter/não ter... E as fezes foram substituídas pelo objeto fálico, que passou a ser alvo de atenção e ostentação.

Depois do instante de ver, surge o tempo de compreender, mas, infelizmente, a análise de Lucas é interrompida. A mãe troca a criança de escola repentinamente, insatisfeita com a escola anterior. Ela também muda: passa no vestibular, mas não dá conta de continuar a mandar Lucas, e ele não retorna mais depois dessa sessão descrita acima.

É possível que a entrada do pai real tenha produzido a passagem para o 3o tempo do Édipo, quando o falo e a lei se tornam as instâncias acima de qualquer personagem. Lucas, identificando-se com as insígnias do pai, teria construído o Ideal do Ego, passando a integrar a classe dos homens. A necessidade dessa construção evidencia a primeira e fundamental oportunidade de individuação. O Ideal do Ego implica a idéia de projeto, de adiamento, de uma inscrição temporal, característica de um modo de funcionamento, regido pelo princípio de realidade. É o advento do período de latência. Mas é preciso que o pai também se reconheça carente, para que a criança aceda à castração simbólica. O pai onipotente substitui a mãe fálica, sem permitir que a criança simbolize a castração.

A lembrança de Lucas fazendo xixi de porta aberta, garboso e sorridente, me deixa dúvidas... Será que ele continuou um supermacho, exibindo seu peru poderoso, que faz xixi em todos os lugares, numa satisfação narcisista, de se sentir perfeito: a imagem do Ego Ideal, completo?

O exibicionista também dá-a-ver, para ver o Outro surpreendido. É outra forma de dar-a-ver, se devotando ao gozo do Outro, para que o Outro exista não-barrado, não descompletado. Segundo Lacan, "o perverso é aquele que se dedica a tapar o furo no outro, que se faz objeto a serviço do gozo do Outro". O exibicionista visa fazer aparecer no Outro o olhar, como sinal de possível cumplicidade de gozo.

Não podemos esquecer que nossa vida psíquica depende do inconsciente das pessoas que cuidam de nós. Lucas continua à mercê de sua mãe e de sua avó.

Sabemos que a atitude de sedução (da mãe/avó) pode anular o desejo da criança de tornar-se grande, pode impedi-la de experimentar admiração pelo pai e de tê-lo como modelo de identificação, portador do Ideal do Ego. A sedução materna é a promessa de refazer o narcisismo perdido. Uma mãe sedutora constitui o perverso, mentindo a si mesma, e sobre si, que ao seu lado não existe castração. Promove a angústia de castração, mostrando-se duas vezes poderosa: pelo mistério e pela auto-suficiência, mas, ao mesmo tempo, se oferece como possibilidade de renegação de toda a castração. E as correntes contrárias fundam o núcleo da perversão, ou seja, a que sabe e que não quer saber da castração.

Freud sinaliza a entrada em latência com a primazia do falo. No texto: "A Organização Genital Infantil", o período de latência seria o de declínio da sexualidade, o aparecimento do pudor e da repugnância. Entretanto, no texto: "Moisés e o monoteísmo,' Freud traz o conceito de latência como "o período de incubação". Segundo ele, só raramente uma neurose infantil prossegue, sem interrupção, numa neurose adulta. Haveria um intervalo entre o trauma primitivo e o desencadeamento da doença, entre um fato inteiramente ininteligível, totalmente novo e aparecimento de seus efeitos. A latência é um fenômeno típico no desencadeamento de uma neurose.

Fico pensando que a espécie humana se assemelha às lagartas, que se transformam em borboletas: passam por uma metamorfose, e sua vida tem duas fases distintas (de lagarta e de borboleta). Assim, como a lagarta desenvolve em torno de si um casulo, para o ser humano, o período de latência seria também a época do casulo; época em que a criança vai desenvolver um invólucro para sua sexualidade, que continua em ebulição, mas cujas transformações só poderão surgir, de forma radical e definitiva, depois de um longo processo.

Se pensarmos que o período de latência corresponde à época em que a criança está sendo invadida por milhares de novos conhecimentos e relacionamentos, é impossível pensar a sexualidade em declínio. Ela está presente, mas mudando de qualidade, e como tal, não pode se manifestar ainda, nem como sexualidade infantil, nem como adulta, enquanto o processo não se complete. Nesse período, sobressai o brincar e é comum ouvirmos a queixa de mães dizendo: meu filho só quer saber de brincar!

As mudanças ocorrem no enquadre do tempo, mas não graças a ele. No encontro do sujeito com o sexo, há algo de estrutural, mas não podemos determinar o momento nem a forma em que esse encontro se dará.

A oposição de Lacan aos conceitos desenvolvimentistas decorre de sua perspectiva do tempo com as três modulações: instante de olhar, tempo de compreender, momento de concluir.

O sujeito perverso vai apresentar alteração nessas modulações. Para ele não há o tempo de compreender; não há adiamento na medida em que não há castração, não há falta.

Não tenho mais notícias de Lucas; as últimas foram de que estava bem... A mãe tinha formado uma família: ela, o namorado e Lucas na mesma casa. Fica a minha esperança, de que ele tenha percebido a castração como condição humana, entendendo que o falo é uma conquista relativa, que não pertence nem à mãe, nem ao pai, nem a ele mesmo. Mas, não há garantias... Como Freud disse, em "Escritores Criativos e Devaneio":

"... nada é mais difícil para o homem, do que a renúncia a um gozo experimentado... No domínio da libido, o homem se torna incapaz de renunciar à satisfação da qual desfrutou uma vez... se não conseguiu conservá-la, procurará recuperá-la sobre nova forma..."

Assim, só mais tarde, pelo modo de gozo que um sujeito vai apresentar é que poderemos ter a confirmação de que os traços perversos, inseridos no psiquismo por ocasião do complexo de Édipo, vão determinar o aparecimento de uma perversão.

 

Bibliografia

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_____. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade (1923). Idem. v. XIX.

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REVISTA MARRAIO - Latência. Rio de Janeiro, Formações Clínicas do Campo Lacaniano.

 

 

*Psicóloga.

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