SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.26 issue51Lucas. O dar-se a ver e a constituição do sujeito: Primeira partePerversão e infância e adolescência author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.26 no.51 Belo Horizonte Dec. 2004

 

ARTIGOS

Lucas. O dar-se a ver e a constituição do sujeito
Segunda parte

 

 

Juliana Marques Caldeira Borges

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Partindo de um fragmento de sessão da análise de uma criança levanta-se as seguintes questões: constituição do sujeito, estrutura, alienação-separação, função do analista, intervenção do analista na análise de criança. O caso clínico foi apresentado no Grupo de Estudos "Psicanálise com Crianças e Adolescentes" por Selma Gonçalves Mendes, e as reflexões do grupo resultaram neste texto, em que a autora traz a seguinte questão: "O que uma criança encontra, quando encontra um analista?".

Palavras-Chave: Constituição do sujeito, Significante, Alienação-separação, Função do analista, Análise com crianças


ABSTRACT

Starting from a fragment of a session of a child analysis to raise the following questions: subject constitution, structure, alienation-separation, analyst function and analyst intervention in child analysis.The clinic case was presented by Selma Gonçalves Mendes in the Study Group "Children and teenagers psychoanalysis" and the reflexions of the group resulted in the present text where the author brings the following question: what does a child find when it finds an analyst?

Keywords: Subject constitution, Significant, Alienation separation, Analyst function, Child analysis


 

 

O que uma criança encontra, quando encontra um analista?

A partir da discussão do caso clínico apresentado por Selma Gonçalves Mendes, levanto as seguintes questões para pensarmos sobre a constituição do sujeito, estrutura, até onde uma análise pode instaurar uma outra ordenação para a criança em sua constituição, qual a possibilidade de intervenção do analista diante de acontecimentos inesperados que muitas vezes surgem numa sessão de análise de criança e que demandam deste uma resposta que pode ser tamponadora até funcionar como uma interdição, um corte, dependendo de que lugar o analista responde e se sua palavra faz função.

Do caso clínico apresentado partirei da cena do banheiro em que a analista, pega de surpresa pelo inesperado, traz por sua vez uma resposta inesperada à criança e a surpreende, produzindo um intervalo entre seus significantes e introduzindo para ela um não-saber ao se negar a limpá-la como sua mãe. Lucas sempre soube que alguém estaria ali para limpá-lo... a analista vem dizer que essa limpeza, nós sabemos, é uma outra conversa, é em outro lugar, é de uma outra ordem.

O psicanalista, a partir de uma ética, ética do seu desejo de analista, e conduzindo-se dentro de uma estratégia - a da transferência -, coloca em ação uma tática, cabendo aqui seus atos e interpretações. O ato do analista, portanto, só se dirigirá à cura, se for feito a partir da ética do seu desejo, pois o seu ato tem conseqüências1.

No Seminário 11, Lacan trabalha a constituição do sujeito a partir das operações de "Alienação-Separação", "operações da classificação do sujeito em sua dependência significante ao lugar do Outro"2. Ele nos mostra que o sujeito vai buscar no Outro os significantes que o representam. "O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer"3. Para Lacan, a alienação do sujeito se dá pela via do significante. Ao atender a criança, o analista deve saber o que pode vir a encontrar, uma criança em determinada posição, posição essa de assujeitamento ao desejo materno, posição de objeto.

Se tomamos a criança como um significante, uma criança sozinha não significa nada. Ela só pode pôr em significação seu ser ou o que lhe acontece de real em seu corpo, na relação que estabelecer com o Outro, a mãe no caso4.

Voltemos à clínica. A analista recebe em seu consultório uma criança que brinca, "... guarda tudo nos lugares, usa tinta e pincel, mas não se suja e quando sai, a sala está impecável!", o que chama sua atenção para uma ordenação que não deixa restos pela sala, nada cai no chão, nada marca uma possível desordem naquele espaço, nada escapa até que... uma ida ao banheiro, um chamado pelo testemunho da analista, um pedido para que a analista limpe essa criança.

Pensando na maneira como Lucas se comporta nas sessões e na sua história, contada pela analista, faço aqui um exercício de imaginação vislumbrando possíveis significantes surgidos nos ditos da mãe a seu filho:

- "Você é meu filhinho limpo".

- "Você é: meu filhinho limpo".

- "Você é meu: filhinho limpo".

- "Você é meu filhinho. Limpo!".

Ao responder a Lucas, "Não limpo", a analista introduz um intervalo entre os significantes que possibilita ao sujeito se separar da cadeia significante, a partir da operação de "Separação", operação esta que complementa a de "Alienação", segundo nos ensina Lacan.

Aquilo pelo quê o sujeito encontra a via de retorno do vel da alienação é essa operação que chamei, outro dia, separação. Pela separação o sujeito acha, se podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo da articulação significante, no que ela é de essência alienante5.

A analista oferece a Lucas uma outra possibilidade quando não responde do lugar materno e o chama a ser sujeito de seu corpo quando lhe diz para ele mesmo se limpar. "Eu não consigo", dito que traz uma verdade sobre Lucas, faz com que a analista se indague: "O que ele não consegue?". Podemos pensar: "Não ser o filhinho limpo?", "Separar-se do significante materno já que não pode se ver?". A cena se desenrola e a analista leva a criança, através de seu ato, a se posicionar de uma outra maneira, respondendo com a possibilidade no lugar da impotência. Agora Lucas pode se limpar e se sujar em outros momentos na análise, deixando finalmente suas marcas pela sala ao final das sessões.

Na análise com criança, trata-se de levar a criança a separar-se de um lugar de alienação, de um lugar de objeto no fantasma materno e dirigi-la à construção de seu próprio fantasma.

Na clínica, a operação de passagem da alienação à separação já se inicia a partir do momento em que a criança tem que deixar a mãe na sala de espera e dirigir sua demanda ao analista, enquanto Outro6.

Diante da demanda da criança, o analista deve se posicionar em outro lugar que não o esperado. "O que uma criança encontra, quando encontra um analista?", pergunta com a qual inicio meu texto. Eu diria que a criança encontra "um desencontro bem-sucedido", e a partir desse desencontro ela poderá vir a ser sujeito. ?

 

Bibliografia

LACADÉE, Philippe. Duas Referências Essenciais sobre o Sintoma da Criança.

LACAN, Jacques. O seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 272 p.

SIQUEIRA, Beatriz; SARUÉ, Sofia; VINHEIRO, Vera. A interpretação e o ato na psicanálise com crianças. In Rev. Letra Freudiana, ano X, n. 9. s/d.

 

 

1 SIQUEIRA, Beatriz; SARUÉ, Sofia; VINHEIRO, Vera. A interpretação e o ato na psicanálise com crianças. In Rev. Letra Freudiana, ano X, n. 9. Direção da cura - Psicanálise com criança e Adolescente.
2 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 196, 1985.
3 Idem, p. 193-194, 1985.
4 LACADÉE, Philippe. Duas referências essenciais sobre o sintoma da criança.
5 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Idem, p. 207, 1985.
6 SIQUEIRA, Beatriz; SARUÉ, Sofia; VINHEIRO, Vera. A interpretação e o ato na psicanálise com crianças. In Rev. Letra Freudiana, ano X, n. 9. s/d.

Creative Commons License