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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.26 no.51 Belo Horizonte Dec. 2004

 

ARTIGOS

E se já for hora do deserto reverdejar?1

 

 

Edelyn Schweidson

Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle

 

 

Resenha do livro Bem-Vindo ao Deserto do Real! Autor: Slavoj Zizek; 192 p. Boitempo Editorial, SP, 2003, trad. De Paulo Cezar Castanheira, Welcome to the Desert of the Real! Five Essays on September, 11 and Related Dates. Verso, Londres, Nova Iorque, 2002.

Slavoj Zizek é um renomado filósofo e psicanalista esloveno que analisa a cultura através de um Lacan lido à luz de Hegel e propõe ações políticas de inspiração leninista para enfrentar os impasses políticos da atualidade, renovando assim a análise crítica de tradição frankfurtiana. Do autor, acaba de ser lançado no Brasil o livro Bem-vindo ao deserto do Real!, coleção de ensaios em que examina o significado do ataque terrorista de 11/9, entre outros, e a que ele se antecipa na atual conjuntura mundial.

Seu livro parte da "paixão pelo real", que Alain Badiou identificou como a principal característica do século XX, para explicar tanto os atos revolucionários do século vinte quanto o terrorismo, censurando-lhe as ações que, ao invés de aproximarem o real que em aparência buscam, se perdem na paixão pelo semblant e pelo espetáculo do horror, e o gozo pulsional que isto acarreta. Zizek associa o terrorismo ao aspecto transgressor da busca pelo real, na sua vertente batalliana, enquanto que na concepção lacaniana o real seria apenas acessível através da fantasia que o transfusiona, a qual, ao nível social, seria representada pela ideologia. Esta impede a percepção de uma inconsistência constitutiva ("antagonismo") em nosso edifício simbólico, do mesmo modo que a fantasia o faz no plano da articulação do sujeito com os seus objetos de gozo, evitando o confronto com a inadequação subjacente. Zizek usa o exemplo da ideologia nazista que evocou o judeu como o espectro do seu Real, a fim de esconder o real do antagonismo social, que a revelaria como não representando uma totalidade orgânica. O nome do livro, "Bem-vindo ao deserto do Real!", faz referência ao momento em que, no filme "Matrix" dos irmãos Wachowski, um personagem acorda da realidade virtual controlada pela Matrix e se depara com um deserto: o real despido de quaisquer ideologias. Esta cena revela o poder de fascínio da ideologia e das criações imaginárias de mundos virtuais; muitos dos atos que visam atingir o real permanecem no âmbito do espetáculo e o fortalecem, como quando da explosão de violência que obedece à injunção de gozar de um supereu perverso, e que constitui os atos terroristas.

O terrorismo fazia parte das fantasias desejosas do universo psicossocial do Ocidente já antes do ataque de 11 de setembro, o que revela sua ligação profunda com o capitalismo global, também evidente no projeto de Bush anterior àquela data de construir uma força defensiva contra futuros ataques "previsíveis", eliminando assim qualquer possibilidade de futuro, ao reduzi-lo paranoicamente ao presente. O ataque de 11 de setembro apenas confirmou as "previsões" de Bush e do aparelho de estado representado pela indústria hollywoodiana, canal privilegiado da ideologia do capitalismo moderno. Zizek adverte que devemos ser contra o terrorismo mas, ao mesmo tempo, perceber que Bush e Bin Laden, por exemplo, estão juntos no propagá-lo, e que temos que ser um nós a lutar contra eles. Este eles, constituído pelos dois aparentes antagonistas citados, realiza a dessublimação repressiva, referência de Adorno a um pacto perverso entre Supereu (autoridade social) e Id (impulsos agressivos ilícitos) em prejuízo do Ego. No palco mundial, estes pólos são representados respectivamente pelo capitalismo pós-moderno e pelas sociedades pré-modernas, em prejuízo da modernidade propriamente dita. A ação terrorista cegaria pelo fascínio do espetáculo a impedir que se percebam as reais semelhanças entre Bin Laden e Bush, aliados que visam obstruir a percepção dos antagonismos de classe comuns às várias culturas.

Na trajetória do livro, Zizek discute o mundo atual por intermédio de filmes e de autores como Giorgio Agamben, descrevendo o estado de exceção em que se encontra uma crescente parte da população mundial, tratada como Homo Sacer, sem quaisquer direitos jurídicos, através do controle cada vez maior exercido pelo capitalismo pós-moderno. Um mundo em que circulam bens mas onde se torna cada vez mais difícil a locomoção das pessoas, pois o Primeiro Mundo, para manter-se protegido do Terceiro, reforça as barreiras que impedem a entrada dos que ameaçariam seu controle sobre as riquezas. O autor inspira-se em Lenin para propor um ato revolucionário que mudaria as próprias coordenadas definidoras dos conflitos, ao contrário do ato terrorista que apenas aciona maiores violências. Ao escrever sobre este ato genuinamente político, Zizek cita a leitura feita por Santner de Walter Benjamin, em que são as ações que deixamos de realizar no passado que nos interpelam agora e nos chamam a redimi-las, por meio de atos presentes. Quando irredimidas, essas omissões passadas se manifestam como sintomas geradores de violências contra alvos inocentes.

Para exemplificar o ato político genuíno, Zizek conta de uma bailarina judia que, chamada por oficiais nazis para - vil humilhação - dançar para eles, simula aceitar fazê-lo e, apoderando-se de um fuzil, elimina a todos e, por fim, se mata. Este exemplo - como muitos outros - se contrapõe à crítica feita por um ícone do movimento antiglobalização, que dias antes da vinda de Zizek fora convidado a falar no II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, Tariq Ali, de que os judeus não teriam oferecido nenhuma resistência aos nazistas. Zizek critica Tariq Ali em vários momentos de seu livro, por representar um nacionalismo árabe que ele, de acordo com Fukuyama, chama de islamofascismo e cuja proposta impossível se resumiria, segundo a entende, a um capitalismo purificado do capitalismo (e purificações corolárias). Zizek também critica a violência advogada por Tariq Ali, a dos perpetradores dos ataques terroristas, levados pela atração ao horror dos seus atos, advindos de uma mórbida cultura de morte (p.164), e seduzidos pela jouissance do ato perverso de fazer de si mesmos os instrumentos da jouissance do Outro. Ao mesmo tempo critica os seus opositores que, "racionais", ao prometerem uma guerra sem baixas do seu lado, cada vez mais se assemelham aos que dizem combater, pois em nome de uma liberdade democrática e liberal, e contra os fanáticos que não a respeitam, tolhem todas as liberdades jurídicas de seus cidadãos como medida "defensiva".

Como exemplo de ato ético, Zizek cita os refuseniks, soldados israelenses que se recusam a participar do exército de ocupação em Israel. Porém, ao mencionar os refuseniks do lado israelense, fica faltando a menção aos que do lado palestino também se recusam a atos terroristas, e a acontecimentos posteriores à publicação deste livro e que merecem referência por serem extraordinárias concretizações do ato ético que Zizek propõe, como a assinatura do acordo de Genebra entre palestinos e israelenses comprometidos com a paz. Este acontecimento, genuíno ato político revolucionário, que redefine as coordenadas da situação e permite a percepção dos antagonismos reais subjacentes comuns aos dois lados, continua a escrita do livro de Zizek, subtraindo ao Real do trauma, através da simbolização, parte do deserto que este instaura. Amos Oz (2003), que participou do Acordo, refere-se a ele como representando um novo nós, do qual participam israelenses e palestinos em interlocução, em oposição aos extremistas dos dois lados que, unidos, lutam contra a paz. O compromisso de Genebra envolve ambos os lados na busca de uma solução pacífica que respeite os direitos dos dois povos.

O acordo de Genebra é o pensamento de Zizek em ação, como se inspirado nele, e nos faz torcer por uma nova edição do livro que o inclua e lhe dê o relevo e divulgação merecidos, por ser o autor um ícone do pensamento de esquerda na psicanálise, alguém que faz pontes entre diferentes disciplinas e permite à psicanálise, a partir do seu instrumental aliado aos de outras ciências, pensar a modernidade e sua inserção ativa e revolucionária nela. Quando mais de 600 psicanalistas procedentes de vários países e instituições, reunidos no Rio de Janeiro para o II Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise, são em sua maioria levados a ovacionar um orador que prega o terrorismo semantizando-o como coragem, martírio, resistência e consciência, quando este mesmo orador, ícone do movimento antiglobalizante, incita a violência contra países e seus representantes sem nada propor como horizonte para tal violência, salvo, para falar com Zizek, um capitalismo purificado do capital, percebe-se que a busca louvável dos psicanalistas de uma inserção no social é prejudicada pela falta (ainda) de uma reflexão suficiente. Sem ela, não apenas eles se mostram indefesos contra porta-vozes carismáticos, como comprometem a própria abordagem psicanalítica que procurariam ampliar. Mesmo que só por isso, o livro de Zizek deverá merecer a atenção de nossos colegas.

 

 

1 Referência ao poema de Celan: "Já é tempo da pedra reflorir", que evoca o tempo depois do choque traumático, quando foi tocado o núcleo duro do Real, e se buscam modos de metaforizar o impossível de tanta dor. Deste modo age-se contra o avanço das forças mortíferas que propagam os desertos através da compulsão à repetição.

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