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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.27 no.52 Belo Horizonte Sept. 2005

 

AUTORES SELECIONADOS

 

A fantasia nazista do Príncipe Harry - um breve olhar psicanalítico

 

 

Antônio Luiz Pereira de CastilhoI

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A indignação pública ao uso de fantasia nazista pelo príncipe britânico Harry convida-nos a uma abordagem psicanalítica, através dos conceitos de identificação, psicologia das massas, civilização e pulsão de morte.

Palavras-chave: Nazismo, Identificação, Psicologia das massas, Civilização, Pulsão de morte.


ABSTRACT

The public indignation over Prince Harry’s decision to wear a nazi uniform at a party leads the author to a psychoanalytical approach using the concepts of identification, group psychology, civilization and death instinct.

Keywords: Nazism, Identification, Group psychology, Civilization, Death instinct.


 

 

Jacques Lacan, em 1956, referir-se-ia à obra de Freud Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921) como “descoberta sensacional”1 antecipatória das organizações fascistas que a evidenciaram. É notável que a Psicanálise tenha proporcionado um referencial teórico instigan-te na reflexão do totalitarismo, revelando-nos um reverso insupeitado pela Ciência Política e saberes afins.

O ano de 2005 marca os sessenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, e os quarenta anos da morte de Winston Churchill. Esses marcos recentemente receberam curiosa reverberação: o episódio do uniforme nazista usado pelo Príncipe Harry em uma festa.

O fato tornou-se escândalo não apenas pelo motivo óbvio: a ofensa à Humanidade perpetrada pelo nazismo, que jamais deverá fugir de nossa memória. Ao lado disso, uma outra face revela-se pela cruel ironia que cristaliza. Grã-Bretanha e nazismo parecem ser simbolicamente incompatíveis. A razão disso é que por ocasião da Segunda Guerra Mundial, com seu declínio imperial já em curso, o país reinventa sua identidade nacional justamente através da oposição, resistência e vitória final sobre o nazismo. Redesenha sua auto-imagem substituindo a de império onde o sol nunca se põe pela de ilha heróica, último reduto da liberdade européia durante a guerra. Mesmo isolado, o Reino Unido não se rendeu, contribuindo decisivamente para a salvação do mundo ao verter seu sangue, suor e lágrimas. O país sai do conflito rebaixado à posição de potência secundária e coadjuvante, mas totalmente restaurado em termos identificatórios como nação fiel depositária do conceito de civilização. Essa “nova” Grã-Bretanha angariou internacionalmente profundo respeito, sincera gratidão e imensa simpatia, num arco histórico que vai de Churchill aos Beatles, e que de certa forma perdura até hoje. Ainda que recentemente tenha surgido uma mancha: o apoio de Blair a Bush e a cumplicidade de ambos na mentira sobre as armas de destruição em massa no Iraque.

Por isso é espantoso que toda essa extraordinária herança histórico-cultural, objeto de justo orgulho para seu povo, não se faça presente como background nos atos de Harry. Educado em Eton, seu problema não foi desinformação. O jornalista Marcos Guterman2 fala da simpatia nazista de Eduardo VIII, tio-bisavô de Harry, e de uma suposta declaração de Churchill de que preferia o nazismo ao comunismo. Tudo isso para identificar uma trilha nazistóide histórica no seio da realeza e na elite política inglesa, o que deveria esvaziar a surpresa quanto à fantasia de Harry. Já o historiador John Lukacs registra justamente o contrário (!) quanto a Churchill. No Parlamento, em 1937, Churchill diria: “Não fingirei que, se tivesse de escolher entre o comunismo e o nazismo, escolheria o comunismo.”3 E em 1941, acrescentaria que, se Hitler invadisse o inferno, ele faria uma moção de apoio ao diabo na Câmara dos Comuns...4 Se é certo que nazifilia e “indiferença” existiam nos círculos de poder britânicos da época (embora, para muitos, principalmente como subprodutos do anticomunismo vigente), Guterman erra ao transformar isso – mais de 60 anos depois – em chave de entendimento do caso Harry. Afinal, a História só se repete como farsa...

Mais esclarecedor será voltar o nosso olhar e a nossa escuta às crises, tragédia, expectativas, cobranças e falta de privacidade que marcam a vida de Harry e que restam inassimiladas por ele. Órfão de mãe em trágicas circunstâncias, inferiorizado pela primogenitura do irmão, vítima de insinuações de bastardia por sua semelhança com o amante de Diana, tudo isso deve conduzir Harry a dúvidas dilacerantes sobre o seu lugar na família, na sociedade e na vida. Tudo isso sugere um quadro que poderíamos chamar de atopia do príncipe caçula.

Sua fantasia nazista questiona sua condição de filho e denuncia uma configuração desviante de sua identidade em face de notória precariedade simbólica parental. É curioso lembrar que Harry, na festa, vestia um uniforme do Africa Korps, divisão alemã comandada pelo lendário Rommel. O Africa Korps sofreria derrota decisiva em El Alamein (Egito, 1942) frente aos aliados liderados por Montgomery, que daí se tornaria um dos grandes ícones da História Militar Britânica. O excêntrico “Monty”, que usava roupas largas e uma famosa boina, bem que poderia ter inspirado uma fantasia para Harry, que quer seguir carreira militar. Ou quem sabe o próprio Churchill, com seu chapéu, charuto, bengala e algo em comum com Harry: o gosto pela bebida. Mas Harry preferiu o inimigo aos heróis nacionais, o invasor alemão aos salvadores compatriotas. O que sua fantasia revela, assim, é sua identificação com o agressor. Por trás da gafe, algo mais profundo e intenso torna-se vislumbrável: a vingança de Harry, através de sua fantasia de ser como aqueles que tentaram destruir seu país. Se a união de Charles e Diana fracassou de maneira fortemente traumática, um dos (des)caminhos que se insinuam a Harry parece ser o de reconstruir seu fundamento existencial de modo reativo. Em vez do Nome-do-pai, a suástica, com seu enlace rubro-negro de sangue e escuridão. No lugar do significante, o mito.

Hitler de alguma forma soube que para conquistar os corações e mentes dos alemães deveria reconstruir-lhes miti-camente as origens, acenando-lhes com a sedutora fantasia de reintegração numa unidade perdida, mas recuperável. Hitler dizia que não poderia se casar, pois já era casado com a Alemanha. Só se casaria com Eva Braun horas antes de morrer. Nesse esquema pervertido, o Führer se convertia em Pai, a Alemanha era desposada como Mãe e os cidadãos tornavam-se Filhos, restaurando-se imaginariamente um quadro unitário de gozo incestuoso, a partir do qual seria possível concretizar um destino de poder e glória, desde que destruído o Inimigo. É nesse integralismo familiar megalomaníaco – que recria delirantemente a história das próprias origens, recusando, assim, a ordem da Cultura e afirmando-se, pela Natureza e para sempre, como superior e onipotente – que povos ou indivíduos fragilizados vão buscar consolo, guarida e... fantasia. É nesse ovo que se engendra a serpente do caos.

Civilização ou Trevas? Eros ou Tanatos? Churchill soube genialmente antever – e esse foi talvez seu maior legado – que com o nazismo não há termo de conciliação possível. Daí sua oposição feroz a Chamberlain e ao apaziguamento. Daí seu repúdio aos acenos nazistas de negociação no primeiro ano de guerra. Por isso Hitler lhe depositou ódio até o final. Churchill sabia que muito além de domínios territoriais era o próprio destino da Razão e da Liberdade que estava em jogo. “A Inglaterra luta por si só mas não para si só.”5 “Se Hitler vencer e nós sucumbirmos, então o mundo inteiro, inclusive os Estados Unidos, inclusive tudo o que conhecemos e apreciamos, submergirá no abismo de uma Nova Idade das Trevas, ainda mais sinistra, e talvez mais prolongada, devido à deturpação das luzes da ciência.”6

Com o nazismo não se brinca e não se fantasia. Pois, para além das condições socioeconômicas que o favoreceram, ele sempre será a quintessência da psicopa-tologia ambicionando coletivizar-se e tornar-se poder absoluto. Se fantasiar, num certo sentido, significa colocar as identidades, a ordem e a realidade entre parênteses, de modo temporário e lúdico, para, no retorno a elas, se poder celebrar ainda mais vigorosamente a vida, fantasiar-se de nazista ou embriagar-se com o nazismo será sempre o flerte sombrio com a pulsão de morte. E se essa fantasia ocorre justamente numa figura de acentuada dimensão simbólica, que é a de um príncipe de um país marcado pelas palavras de Churchill – “jamais nos renderemos”7 –, só podemos pedir extrema atenção de todos: há algo de podre na família real britânica.

 

Bibliografia

GUTERMAN, Marcos. De novo a indiferença. Folha de S. Paulo. São Paulo, 14 de janeiro de 2005, Caderno A, p. 9.        [ Links ]

LACAN, Jacques. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, p.461-495. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

LUCKACS, John. Churchill: visionário, estadista, historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Carangola, 152/501- Santo Antônio
30160-012 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3344-7467

Enviado em maio de 2005
Aceito em agosto de 2005

 

 

I Bacharel em Direito. Pós-graduando em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
1 LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. Escritos, 1998, p. 478.
2 GUTERMAN, M. De novo a indiferença. Folha de S. Paulo, 14 de janeiro de 2005, Caderno A, p. 9.
3 LUKACS, J. Churchill: visionário, estadista, historiador,, 2003, p. 125.
4 Idem, p. 21.
5 LUKACS, J. Idem. p. 91.
6 LUKACS, J. Idem, p.20.
7 “We shall never surrender”. Essas palavras constam do discurso radiofônico de Churchill pela BBC em 4 de junho de 1940: uma pungente conclamação à resistência que se tornaria mundialmente famosa.

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