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Reverso v.27 n.52 Belo Horizonte set. 2005

 

AUTORES SELECIONADOS

 

O Poderoso Chefão - ou da paternidade como fundamento da lei em “Totem e tabu”, de Freud

 

 

Bernardo Costa Couto de A. MaranhãoI

Faculdades Milton Campos - MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Descreve uma apreciação do texto Totem e Tabu, com vistas a reiterar a importância histórica da obra como marco de abertura da investigação psicanalítica sobre o campo do social, bem como a evidenciar o modo como a função paterna vem a se constituir como fundamento de toda a ordem social e, mais especificamente, do fenômeno jurídico.

Palavras-chave: Lei, Escravidão social, Édipo, Função paterna, Totem e Tabu, Parricida


ABSTRACT

This article brings an overview of Freud’s Totem and Taboo, with the purpose of underlining the historical importance of such book as the beginner of psychoanalytic research on the social field. We also intend to make clearer the process through which the father function appears in this book as the fundament of law and of society as a whole.

Keywords: Law, Social bondage, Oedipus, Father function, Totem and Taboo, Parricide


 

 

I - Introdução

Pretendemos, neste breve artigo, realizar uma apreciação sucinta do texto Totem e Tabu, de Freud, retendo, de preferência, aqueles elementos mais capazes de elucidar as conexões existentes entre a noção de paternidade e os fundamentos do fenômeno jurídico.

Ao mesmo tempo em que marca a abertura da reflexão freudiana para o campo da cultura, Totem e Tabu, de 1913, estabelece as bases de uma virada significativa a ser operada doravante no curso da démarche psicanalítica, com profundas e vastas conseqüências teóricas. Com relação a esse último aspecto, destacamos o surgimento de uma concepção radicalmente pessimista do sujeito e do processo civilizador, que faz coincidir o nascimento da humanidade com a realização de um assassinato em conjunto.

 

II - Conspiração parricida, Banquete totêmico

Recorrendo ao que ele mesmo chamou de “uma ficção antropológica”, Freud narra o que teria sido a aurora da humanidade. Nos primórdios, os homens, reunidos em bandos, obedecem pela força a “um pai violento, ciumento, que guarda para si todas as fêmeas e expulsa seus filhos à medida que crescem.”1 O que temos aqui é o estado de natureza, no qual impera a lei do mais forte, não havendo laço social, norma ou vínculo afetivo de nenhuma espécie. “Certo dia, os irmãos, que tinham sido expulsos, retornam juntos, matam e devoram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal”2.

Podemos reconhecer nessa narrativa de Freud três tempos distintos. Inicial-mente, dá-se o complô entre os irmãos da horda, que, unidos afetivamente pelo ódio comum contra o dominador, têm como objetivo compartilhado a libertação frente ao jugo tirânico desse chefe onipotente, que exerce sobre seus dominados um misto mortífero de terror e fascínio, de medo e admiração. Nesse primeiro tempo, ainda não se produz o laço social, pois o pacto formado deixa cada um só diante do fato: o crime inicial é aquele de cada um, não o de todos. Os golpes fatais são desferidos por alguém, por alguns, por muitos, não se sabe. Ainda prevalece, portanto, a horda.

O segundo tempo se inaugura com a perplexidade dos conjurados. Como conseqüência do ato parricida, surge imediatamente o estranhamento diante do vazio deixado pela ordem deposta, na ausência de uma nova. O assassinato do pai onipotente contém em sua gênese um erro de cálculo, na medida em que tal ato é incapaz, por si só, de solucionar o problema que o ensejou. Agora que o chefe está morto, qualquer membro da horda pode se arvorar a ocupar o posto vago. Por isso, a fim de evitar que se alastre uma guerra fratricida, os conjurados decidem renunciar ao poder ilimitado outrora encarnado pelo morto.

Os irmãos realizam um banquete ritual, festim antropofágico através do qual, ingerindo a carne e o sangue do pai divinizado, incorporam suas virtudes e se reconhecem uns aos outros em pé de igualdade, cúmplices do mesmo crime, filhos de uma mesma origem ideal, detentores de uma fração do poder outrora unitário e ilimitado. Temos, desde logo, o terceiro tempo do mito freudia-no, aquele no qual se efetiva o vínculo social. O pai morto é, então, revestido de um caráter sagrado, passando a ser venerado como o Deus-Pai, fundador da coletividade, como instância suprema da qual emana a legitimidade das normas de convívio doravante formuladas pelo grupo. Apenas o pai divinizado, fruto do assassinato que inspira culpa e veneração, é capaz de infundir ao mesmo tempo os sentimentos de reverência, amor e temor, tornando-se o depositário das proibições. A referência paterna – emblema de um imperativo de renúncia à satisfação desmedida, proferido em benefício da coletividade – constitui o fundamento sobre o qual assenta toda realização cultural.

Guy Rosolato, mencionando os estudos de F. Héritier-Augé, relata como a antropologia contemporânea mostrou que “(...) todas as sociedades, sem exceção, estruturam seus sistemas de parentesco segundo os eixos reconhecidos pela psicanálise: a diferença dos sexos, a diferença das gerações (bem como as substituições que se fazem pelas diferenças de idade) e a dominação masculina, através da qual se pode designar a função simbólica do pai.”3

Retomando a remissão ao mito freudiano de Totem e Tabu, verificamos que o conceito de pai é algo que se dá em retrospecto, uma vez que só depois de morto o chefe da horda é que este ressurge divinizado como pai. A paternidade é, portanto, um “conceito a posteriori, um lugar après-coup, não um lugar, mas sim uma operação re-significante de todos os outros lugares que vai trazer como conseqüência uma re-significação de todas as lembranças, da história.”4 Os mitos de origem formulados pelas diversas comunidades humanas na Antigüidade sempre narram a epopéia de um Pai-Herói que, na noite dos tempos, faz suas marcas no corpo da Terra-Mãe, dando origem a um povo e ao mundo que lhe corresponde, seu território desde então demarcado. Se o princípio materno corresponde a um lugar, a um espaço, o conceito de pai se faz presente como ponto de ordenação temporal que dá início à História, engendrando o movimento de domínio do homem sobre a natureza, demarcando fronteiras, nomeando, ordenando. O logos separador. A História e a Lei. Segundo Elisabeth Roudinesco, “a dupla temática do pai separador, dotado de cultura e de cogito, fonte de liberdade e de alimentação espiritual, e da mãe, natureza exuberante feita de fluidos e substâncias, foi um dos grandes componentes da representação judaico-cristã da família. Ela será retomada como herança, depois de sofrer sérias revisões, pela filosofia das Luzes e pela psicanálise”.5

 

III - O tabu do incesto

Movidos pela culpa ante a morte do pai, os irmãos instituem, sob a forma de tabu, as duas normas que regem a sociedade primitiva: a proibição do homicídio e a interdição do incesto. Nas palavras de Freud, eles “Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses tabus tornava-se culpado dos únicos dois crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava.”6

A figura do Édipo, homem marcado por um destino trágico, fustigado pelo sentimento de culpa, dilacerado pelo confronto de seus ímpetos incestuosos e homicidas com as leis da coletividade, dividido entre a alienação e o conhecimento de sua própria condição, diante do enigma da existência, ocupa um lugar central no pensamento freudiano. “Só a descoberta do complexo de Édipo bastaria para colocar a psicanálise entre as preciosas aquisições do gênero humano”, afirma Freud.7 O complexo de Édipo é, segundo seu criador, “um fundamento da sociedade na medida em que assegurava uma escolha de amor normal.” O drama edipiano, revivido na relação triangular pai-mãe-filho, põe em jogo a intervenção da autoridade externa, representada pelo pai, a fim de barrar o estado primitivo de fusão entre a mãe e o filho, permitindo que este se constitua como sujeito desejante, atravessado pela linguagem, delimitado em sua individualidade e capaz de direcionar ao mundo exterior sua busca de satisfação. Isto se dá através do necessário enlaçamento do desejo com a lei.

Dando um passo além em sua concepção do desejo incestuoso, até então apresentado como elemento essencial do sujeito por ele estudado, Freud postula, a partir de Totem e Tabu, a presença desse desejo em todas as sociedades. Mais do que um recurso necessário à constituição das famílias ou um fator de reconhecimento das diferenças sexuais e intergeracionais – indispensáveis à estruturação psíquica do indivíduo –, a interdição do incesto é o eixo central que ordena toda a estrutura social. A lei da exogamia, que “proíbe aos membros do mesmo clã totêmico de casar-se ou de ter relações sexuais uns com os outros”8, é o que propicia as trocas simbólicas e econômicas entre os diferentes clãs, através da circulação de mulheres, como bem demonstrou o antropólogo Claude Lévi-Strauss.9 É interessante notar que esse mesmo autor designa o tabu do incesto como a linha demar-catória entre natureza e cultura.

Além de possibilitar as trocas e de ordenar linhagens e alianças, o tabu do incesto tem, para Freud, outra função primordial no processo civilizador, que é a de barrar a satisfação pulsional imediata, impondo dessa forma o enlaçamento entre o desejo e a lei. Assim, a questão colocada pelo complexo de Édipo se faz presente no seio da vida coletiva, evidenciando a necessidade de uma instância interditora, de um sistema coletivo de repressão, para que a sociedade possa se estruturar em relações estáveis e mediadas pela linguagem, para que possa haver instituições e realizações culturais. Em outras palavras, a lei deve se fazer presente, para que se possa passar da indiferenciação e da permis-sividade total à ordem, ainda que frágil e instável; para que se passe do gozo desmedido à atividade desejante.

 

IV - Considerações finais

A possibilidade de comprovação histórica do mito freudiano da horda primeva, além de ser nula, não vem ao caso. À semelhança das antigas narrativas, o mito inventado por Freud não nos interessa por sua capacidade de apresentar o que ocorreu no passado, mas por seu potencial de representar as paixões humanas, de expressar algo que conhecemos sem o saber, de dar forma e ordem ao que é caótico ou arrebatador.

Tendo em vista as possíveis contribuições, para a Teoria do Direito, da leitura que propusemos do texto freudiano, destacamos duas questões principais. A primeira delas diz respeito aos fundamentos do fenômeno jurídico. A segunda nos leva a refletir sobre a posição do Direito diante do mal, aqui entendido como o uso que um ser humano faz compulsoriamente de outro, tomando-o como objeto de seus ímpetos destrutivos.

No que se refere à primeira questão, pouco teríamos a acrescentar, já que a tomamos como fio condutor de nosso texto e dela tratamos, dentro do possível, ao longo das seções precedentes. Em nosso entender, Freud aponta a referência paterna, condensada na figura do Deus-Pai, como o fundamento de toda lei, em dois sentidos: como ponto de aparição – já que a primeira lei surge no momento que sucede o parricídio – e como fundamento de validade – uma vez que a justificativa última de todas as leis é o respeito a essa referência. Algumas correlações poderiam ser ensaiadas, algumas afinidades procuradas entre a Psicanálise e a Filosofia do Direito, considerando determinadas proposições freudianas em face, por exemplo, de Hans Kelsen10, com sua “norma fundamental”, ou dos teóricos contratualistas do Estado.

Quanto ao problema do mal, gostaríamos de reiterar que este é, para Freud, irremediável. Encontramos, na origem da sociedade, um assassinato perpetrado coletivamente e, na vida cotidiana, estamos sob efeito constante dos ecos desse primeiro crime. Não há redenção possível, não há como sustentar a crença numa linha ascendente de progresso, de bem-estar, uma vez que o gênero humano traz consigo uma força auto-destrutiva que não cessa de se fazer ouvir.

Jacques Lacan dedicou um seminário ao tema do gozo, que – apenas para satisfazer nossos propósitos e abdicando do rigor conceitual – poderíamos definir como a injunção paradoxal do prazer na dor – sintetizada à perfeição no verbo “sufruir”, lavrado por João Guimarães Rosa – ou como o mortífero, o irrefreado, o desmedido. “O gozo é o tonel das Danaides11, e que uma vez que ali se entra, não se sabe aonde isso vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina.”12

O Direito é, por excelência, a construção humana destinada à interdição ou ao enquadramento do uso destrutivo do outro, tomado como objeto inumano. Sua essência está, nas palavras de Lacan, em “repartir, distribuir, retribuir o que diz respeito ao gozo.”13

Sem dúvida, muitos desdobramentos podem ser retirados, a partir do que expusemos até aqui, com o apoio de outras referências, dentro e fora do campo da Psicanálise. Este texto nada mais é do que um talho quase imperceptível, sinalizando, a quem puder melhor rastrear, ou tiver o facão mais ligeiro, um ponto ou outro por onde abrir uma picada que, no ir e vir, pode se tornar trilha.

 

Bibliografia

CHAUMONT, Franck. “La double face du crime”, s.n. Lausanne, 2001(mimeo).        [ Links ]

ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.        [ Links ]

FREUD, S. Totem e tabu. ESB, v. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977.        [ Links ]

GIOVANETTI, Márcio F. “O sujeito e a lei: um percurso acidentado” in GROENINGA, PEREIRA (orgs.), Direito de família e psicanálise. Riode Janeiro: Imago, 2003.        [ Links ]

QUINET, Antonio. “O gozo, a lei e as versões do pai” in GROENINGA, PEREIRA (orgs.), Direito de família e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.        [ Links ]

ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.        [ Links ]

ROSOLATO, Guy. “La filiation: ses implica-tions psycahanalytiques et ses ruptures”, in ROSOLATO: Pour une psychanalyse exploratrice dans la culture. Paris: PUF, 1993        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Adolfo Pereira, 303/302
Belo Horizonte - MG
Tel.: (31)3227-2356
E-mail: costamara@yahoo.com.br

Recebido em junho de 2005
Aceito em agosto de 2005

 

 

IPsicólogo. Estudante de Direito pelas Faculdades Milton Campos – MG
1FREUD. Totem e Tabu, SEB v. XIII, p. 169.
2Idem, p. 170.
3ROSOLATO, Guy. “La filiation: ses implications psychanalytiques et ses ruptures”, 1993, p. 274 (grifos do autor). A tradução do trecho citado é de nossa responsabilidade.
4GIANETTI, M. “O sujeito e a lei: um percurso acidentado”, in GROENINGA, PEREIRA (orgs.) Direito de família e psicanálise, 2003, p. 47.
5 ROUDINESCO, E. A família em desordem, 2003, p. 24-25.
6 FREUD. Totem e tabu, v. XIII, 172.
7 FREUD. L’Abrégé de psychanalyse, p. 65, apud ROUDINESCO, idem, p.47.
8 FREUD. Idem, v. XIII, p. 131.
9 A esse respeito, cf. LÉVI-STRAUSS, As estruturas elementares do parentesco (1949). Petrópolis: Vozes, 1984.
10 A esse respeito, cf. KELSEN, Hans: Teoria pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, s.d.
11 Da mitologia: cinqüenta irmãs condenadas a encher um tonel sem fundo.
12 LACAN. O seminário, livro XVII: o avesso da psicanálise, p. 68, apud QUINET, Antonio: “O gozo, a lei e as versões do pai” in GROENINGA, PEREIRA (orgs.): Direito de família e psicanálise.
13 LACAN. O seminário, livro XX: mais, ainda, p.11, apud QUINET, idem.

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