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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Nos limites da linguagem. A holófrase e sua incidência na clínica da primeira infância

 

At the limits of language. The holophrasis and its incidences in the clinic of first infancy

 

 

Isabela Santoro CampanárioI; Jeferson Machado PintoII

Universidade Federal de Minas Gerais
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os autores relatam dois casos de atendimento psicanalítico mãe-bebê. O objetivo do tratamento é de (r) estabelecer um vínculo mãe/ bebê através do brincar. Trata-se de um caso de risco de autismo e outro de psicose não decidida da infância, abordados neste trabalho como incidências holofrásicas na clínica da primeira infância.

Palavras-chave: Psicanálise, Bebês, Holófrase, Risco de autismo, Psicoses não-decididas da infância.


ABSTRACT

The authors relate two clinical cases of mother-baby psychoanalytical intervention. The objective of the treatment is to (r)establish a mother/ baby bond through playing. One of the cases is of a child at risk of becoming autistic and the other one refers to a child of undecided psychosis in infancy, both cases are seen as holophrasics incidences in the clinics of the first infancy.

Keywords: Psychoanalysis, Babies, Holophrasis, Risk of autism, Undecided psychosis in infancy.


 

 

"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra."
Carlos Drummond de Andrade.
1

 

A lingüística histórica buscou, no século XIX, classificar as línguas. Von Humboldt (apud Vorcaro, 1999) estabeleceu uma tripartição fundada na estrutura predominante da palavra em línguas isolantes (chinês e conexas), línguas flexionais (indo-européias e semíticas) e línguas aglutinantes (todas as outras). A holófrase aparece nestas últimas, em que as palavras-frases se formam por aglutinação de morfemas. Lacan faz uma torção do conceito de holófrase da lingüística, em vários momentos de sua obra.2

Segundo Ana Lydia Santiago (2005), o trabalho de Maud Mannoni (1985) despertou grande interesse em Lacan. A tese principal de Mannoni é de que a debilidade resulta da "fusão de corpos", ou seja, um tipo de relação dual que a mãe da criança dita débil estabelece com seu filho na qual este fica aprisionado à fantasia fundamental da mãe.

Lacan, no Seminário, Livro11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, introduz algo inteiramente inédito para pensar a debilidade, a saber, substitui a "fusão de corpos" pela "fusão de significantes", ou seja, a holófrase do par primordial de significantes (S1-S2) que, quando solidificado, impede o advento de um sujeito capaz de fazer uso da fala em nome próprio. Ele situa a criança débil no lugar de objeto do desejo da mãe, "psicotizada", na medida em que o S1 adquire uma maior potência pela identificação da criança ao significante imaginário da falta no Outro. Pela fusão do par de significantes torna-se impossível o advento da metáfora paterna, ficando a criança impossibilitada de interpretar o que ela significa no campo do desejo do Outro (Santiago, 2005: 161-166).

Iremos direto ao ponto que interessa ao nosso trabalho, na referência que Lacan (1985) faz à holófrase em O Seminário, Livro11.

"...quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar" (LACAN, 1985: 225).

Esta série de casos a que ele se refere são casos de psicose, debilidade e fenômenos psicossomáticos. Após a Conferência de Genebra sobre o Sintoma, Lacan (1998) nos autoriza a acrescentar o autismo a esta série, ao aproximá-lo da esquizofrenia.

Apesar das inúmeras diferenças entre estas patologias, há um ponto em comum. O princípio mínimo de estrutura significante da linguagem, em que um sujeito é representado no intervalo entre dois significantes (S1—>$—>S2), não existe nestes casos, pois a holófrase não permite que o sujeito dividido pelo significante advenha. O significante S2, que permitiria sua representação a partir de Sl, comparece de modo singular (Stevens, 1987).

A holófrase como uma ausência desse intervalo é uma solução elegante. Ela mostra a causa – solidificação, ausência de intervalo – e ao mesmo tempo anuncia o efeito, o caráter não dialetizável do significante. A holófrase é um outro nome da Foraclusão do Nome do Pai (Stevens, 1987).

Holófrase é, enfim, o nome que Lacan dá à ausência da dimensão metafórica. A solidificação de Sl e S2 impede a vinda de outros significantes, já que eles ocupam o mesmo lugar. Se há holófrase, o aparecimento de a, como causa de desejo, está impossibilitado (Stevens, 1987).

Vamos nos aprofundar nestas outras manifestações holofrásicas usando casos clínicos, visando melhor sistematizar as graves psicopatologias do infans.

A exemplo do que nos sugere Vorcaro (1999), a condição infans permite sairmos da posição de espera para a posição de intervenção, isto porque o bebê ou pequena criança apresenta diferenças em relação à estrutura cristalizada do adulto. Concluímos que nossa intervenção pode mudar o modo de gestão do gozo nessas crianças.

 

"É novo ver aparecer um sujeito"

Em certo momento de seu texto, Stevens (1987: 68) afirma que a holófrase é o sujeito. Que sujeito seria este? Não o sujeito do inconsciente, dividido, só possível de aparecer no intervalo entre os dois significantes primordiais, só possível após a separação. Poderíamos pensar aqui, no momento da holófrase, em um outro sujeito, anterior ao sujeito dividido?

Freud (1915, apud Laznik, 2004) emprega o termo subjekt por oito vezes em seu texto "As Pulsões e Suas Vicissitudes", sendo esse um termo que ele usa pouquíssimo ao longo de sua obra. Aponta, como já mencionado neste texto, que a pulsão possui três tempos: um primeiro ativo, um segundo reflexivo e um terceiro passivo. Um novo sujeito (Ein neues subjekt) apareceria após completo o terceiro tempo do circuito pulsional.

Lacan (1985), retomando esta passagem em Freud, fala do aparecimento de um "novo sujeito" no momento do remate da pulsão através do terceiro tempo pulsional, quando o bebê "se faz", se aliena, provocando gozo no Outro.

A explicitação de que sujeito é este tem trazido uma série de controvérsias entre os psicanalistas. É o que permite a Laznik (1993) afirmar que este "novo sujeito" tem sido relegado a segundo plano na psicanálise. Soler (1997), porém, nos lembra que o "novo sujeito" nada mais é do que o sujeito da parte inferior do grafo do desejo, sobre o qual não há nada de novo, pois Lacan já vinha escrevendo sobre ele há mais de dez anos. No entanto, este conceito nos ajuda clinicamente, por isto continuamos ressaltando-o aqui.

É possível considerar que o sujeito que não vai além desse terceiro tempo pulsional, fixando-se aí, manter-se-á objeto da subjetividade da mãe, o que localiza a psicose, a debilidade e os fenômenos psicossomáticos. Segundo Lacan (2003b), a criança nesta posição seria correlata do objeto a no fantasma materno.

De nosso ponto de vista, para que o autista chegue a ser este "novo sujeito", ou seja, para que ele "se faça" para o Outro, fazem-se necessárias muitas intervenções.

Laznik (1997) nos diz que um dos problemas das crianças autistas é que freqüentemente não há nenhuma separação entre as palavras, mesmo na chamada linguagem dita "pós-autística". Trata-se, nestes fenômenos holofrásicos, da dimensão do equívoco estar banida. Por não funcionarem como significantes que se remetem a outro em cadeia, não há o aparecimento do sujeito do inconsciente, dividido. No entanto, podemos nos questionar se estas manifestações holofrásicas denunciam o aparecimento do novo modo de ver o sujeito.

 

O Caso John ou sobre um "colo" que não consegue sustentar uma singularidade em instalação

John chega a atendimento com um ano e três meses de idade, em julho de 2003 – (PBH)3. É atendido há pouco mais de dois anos com bons resultados, apresentando atualmente pouca sintomatologia autística. Tem atualmente cerca de três anos e meio. John foi encaminhado por sua pediatra, que percebeu os sinais de risco de autismo. Com esta idade, já apresentava balanceio de tronco e um brincar estereotipado com os dedos da mão, parecendo "ausente", o que foi notado primeiramente na creche.

A gravidez não foi planejada, o casal não tinha boa convivência, pensando em se separar, pois o pai saía do trabalho e ia para o bar ficar com os amigos, dando pouca assistência à esposa e ao filho mais velho, de quatro anos. Marta, a mãe, engravidou contra sua vontade, tomando injeção de anticoncepcional.

Com um ano e dois meses, caiu da cama, tendo tido um traumatismo crânioencefálico (TCE). A mãe achou a queda pouco importante e o levou à creche, onde chorou o dia todo. As professoras da creche avisaram a mãe, que então se lembrou da queda. No dia seguinte, como não parava de chorar, a mãe procurou atendimento neurológico, que detectou fratura. Felizmente não houve repercussões neurológicas dessa queda, mas chama a atenção a dificuldade da mãe em perceber que algo tão objetivo não ia bem com seu filho.

Foi avaliado inicialmente pela equipe, tendo iniciado atendimento com a fonoaudióloga semanalmente, que se tornou sua técnica de referência. Após cinco meses do início do tratamento, começa a falar: "ma", se referindo à mãe e "a", ao pedir água. A terapeuta antecipa um sujeito, dando sentido aos enunciados fragmentados proferidos por John, o que ainda era impossível para a mãe. A criança passa a locomover-se bem e pára o balanceio de tronco.

Em ambientes fora de casa, passa a ficar "grudado com a mãe" (antes não notava sua falta, entrando inclusive sozinho na sala de atendimento). A alternância presença-ausência começa a se inscrever, na medida em que John passa a sentir falta da mãe, que melhora bastante a interação com o filho.

Porém, mesmo sem muito estímulo por parte da mãe, com dois anos e três meses apareceram várias palavras sem significado, como uma língua estrangeira, que John dirigia ao interlocutor aparentemente com intenção de se comunicar. Há grande melhora na interação social.

Aos dois anos e meio, fomos ao Centro de Saúde e observamos algumas sessões, em que John mantinha o mesmo brincar ritualizado, de costas para os adultos presentes na sala. A mãe passa a ser incluída nos atendimentos do filho. Observamos que John olha quando o interlocutor acentua os picos prosódicos da fala, como bem observou Laznik.

A mãe passa a funcionar com o filho não tão colada apenas às necessidades, transformando-as, aos poucos, em demandas. Porém, ela ainda não se empenha muito para a evolução do tratamento, dificultando trazê-lo em certos horários propostos pela equipe.

O brincar tem apresentado boa evolução: as brincadeiras de faz-de-conta e imitação têm surgido, mostrando o advento do uso simbólico do brincar, entendido como linguagem.

 

Algumas considerações acerca do risco de autismo

Fábio Landa in Laznik (1991), em Unheimliche e autismo, nos traz um caso em que atuou como observador (anotando as sessões). O caso era atendido por Laznik. Na história, a mãe da criança que se tornou autista conta que se sentia tão cansada quando esta nasceu, que adormecia ao dar de mamar. Este episódio ocorreu várias vezes. Neste caso, é a repetição que chama a atenção. Quando acordava, a criança estava com o rosto encoberto pelos seios, quase se sufocando.

Na história clínica de algumas crianças autistas algumas vezes observarmos quedas, inclusive durante a amamentação, não percebidas ou pouco valorizadas pela mãe. O deixar cair visto nestes casos é bem concreto, a criança é algo que se deixa cair, que cai como resto, como um dejeto. Esse deixar cair, correlato da passagem ao ato, é visto do lado do sujeito embaraçado, no momento em que ele aparece apagado ao máximo, se precipitando para fora da cena (Lacan, 2005).

Todas as crianças costumam cair. No entanto, chamam a atenção certas características das quedas observadas em pacientes autistas, como a repetição e a não percepção da mãe, não as valorizando, como no caso John.

O fato de a criança autista "não se adaptar ao colo" talvez seja justamente o contrário, ela está adaptada ao colo que solta, larga, não pega, não sustenta e a criança se solta, fica um objeto que caiu sem a voz e o olhar, e mais, está sendo sufocada. Não se trata aqui da queda do objeto a, necessária à subjetivação, e sim de outra queda, concreta, que fala por si da problemática relacionada ao desejo da mãe no autismo.

Porém, não localizaremos a questão apenas na mãe. Aventamos também a hipótese de a criança, por uma maior sensibilidade4 às relações humanas, ou por ser, como nos diz Laznik, precocemente capaz de perceber as armadilhas e a ambivalência do amor, furtar-se a este, não se adaptando ao colo, "fazendo-se cair".

Não centraremos a questão, como Laznik, nem na mãe nem na criança, e sim na relação mãe-criança, visto não se estabelecer um "colo que seja capaz de sustentar" uma singularidade em instalação.

Lacan, no Seminário, Livro 10, A Angústia, nos aponta que existe uma relação estrutural entre a passagem ao ato e o objeto causa de desejo, porque tanto um quanto outro se manifestam, fenomenologicamente, na forma de niederkommen, na forma do "deixar cair". Consultando o termo niederkommen em alemão, ele quer dizer não somente jogar para baixo, como também parir, dar à luz, porém com certa depreciação.

Devemos nos lembrar que a falta é constitutiva do psiquismo humano e é ela que nos faz desejar. Assim, é necessário que o vazio permaneça para que o ser humano deseje, esteja sempre atrás de um objeto que preencha este vazio, esse é o movimento de Eros. A incompletude aqui é constitutiva. Se esse vazio é preenchido, ou seja, se algum objeto se apresenta no local em que o objeto a está subtraído, o resultado é a aparição da angústia. Segundo Lacan (2005), a falta da falta é, portanto, angustiante, prenunciando Tânatos.

Lacan, em Nota sobre a Criança, nos coloca duas possibilidades. Na primeira, a criança é sintoma do par parental, estando, portanto, mais aberta às intervenções do analista. Na segunda, a criança vem situar-se como correlato do objeto a no fantasma materno, o que dificulta o trabalho analítico. Trata-se dos casos de psicose e fenômenos psicossomáticos. Como para Lacan (1998) o autismo se aproxima da esquizofrenia, encontrando-se, portanto, dentro da estrutura psicótica, incluímos o mesmo aqui nesta posição para fim desta argumentação5.

Podemos pensar então a hipótese de a criança autista vir a ocupar na subjetividade da mãe o lugar do objeto a, objeto estranho, não especularizável, gerando angústia, já que este local deveria se encontrar vazio?

 

O caso Lúcio ou o que fazer quando se apresenta uma "simbiose"?

Lúcio, outra criança de dois anos recebida em outubro de 2004, é atendida há cerca de um ano. Apresentava-se, a princípio, "enroscado no colo da mãe", que não podia nem fechar a porta ao ir ao banheiro. Não tinha brincar espontâneo, não falava e não dormia. Apesar disto, não havia sinais de risco de autismo. Foi uma gravidez desejada pela mãe Nancy e contra a vontade do pai e da família. Logo que nasceu, a mãe entrou em um quadro de agitação extrema, gritando sem parar, não conseguindo tocar no filho ou falar com ele, porém não deixava que o retirassem de perto, por medo de ser roubado ou trocado. Esse quadro durou três meses, durante os quais mãe e criança gritavam, em desamparo extremo, só podendo contar com o auxílio da medicação da mãe e da ajuda claudicante da avó materna, cansada e doente, com quem Lúcio foi deixado a partir dos três meses.

Vemos que este mesmo grito se tornou a única comunicação possível entre Lúcio e sua mãe. Até dezoito meses o bebê se desenvolveu normalmente, não apresentando sintomatologia psíquica, porém nesta idade começou um "uivo desesperado", tendo sido sedado pelo neurologista. Há seis meses os pais reataram o relacionamento e buscaram Lúcio, que passara a chorar muito à noite, incomodando a avó.

O paciente participa do Espaço Pais-Bebês, espaço multidisciplinar, onde os bebês comparecem acompanhados de seus cuidadores. As intervenções são feitas através do brincar, tentando (r) estabelecer um laço do bebê ou pequena criança com seus cuidadores.

Agora Lúcio já apresenta um brincar espontâneo, porém ainda repetitivo, variando um pouco os objetos escolhidos. Desce do colo da mãe, iniciando uma atividade de esvaziar e encher uma caixa de brinquedos ou escondendo objetos e se pondo a procurá-los.

Seria já um brincar indicador da inscrição da alternância presença-ausência e, portanto, simbólico? Aceita melhor quando nos dirigimos a ele. Em casa, passou a brincar mais e já sai de casa com os tios e a avó. Foi encaminhado a uma creche, onde fica sem a mãe. A alternância presença-ausência física é mais bem tolerada, abrindo caminho para que psiquicamente possa se inscrever.

Nancy recebeu da neurologista um prognóstico reservado na última consulta: talvez seu filho não fosse nunca ser "normal" como as outras crianças. Chega à sessão indignada, pedindo que a encaminhemos a outra profissional. "Antes eu não acreditava em Lúcio, agora, após o nosso tratamento, sei que ele vai melhorar, vejo a cada dia que ele é inteligente e esperto". Aparece aqui a suposição de sujeito.

Em outros casos de risco de evolução psicótica, no entanto, já observei precocemente a suposição de sujeito, porém de um sujeito não dividido, não marcado pela falta, delirante. Assim, algumas mães me disseram que já durante a gestação percebiam que o filho seria muito especial, "um anjo que mudaria o mundo", nos dizeres de outra mãe. Sabemos como esta suposição é essencial para que algum dia Lúcio se torne sujeito, capaz de desejar, de brincar, de falar.

Outra mudança: antes não podia faltar nada ao filho, especialmente no nível da necessidade. Quando começava o chorar angustiado, Nancy o "entupia de comida", como a avó antes fazia. Agora, conversa com ele e brinca, surgindo a demanda, onde tudo era apenas do registro da necessidade."Ainda sou sem jeito de brincar; é porque nunca também minha mãe brincou comigo", nos diz. Vemos também neste caso como a relação ruim com a própria mãe era reatualizada na relação de Nancy com Lúcio.

Porém algo ainda faz um obstáculo. A referência a um terceiro, ou alterização. O pai, segundo a mãe, "não sabe lidar com o filho". Foi dormir em outro cômodo, pois o choro e a insônia de Lúcio o incomodam à noite, enquanto a pequena criança dorme ao lado da cama da mãe, apesar de nossas intervenções.

Nancy diz: "Mas não faz falta, agora eu sei lidar com Lúcio", fala esta que nos preocupou. Mas parece que o tratamento e a creche começam a funcionar como o terceiro elemento, propiciando já algum esboço de referência paterna.

Nos três primeiros meses, Lúcio não teve acesso ao manhês, devido ao quadro de psicose pós-parto de Nancy. Depois, houve uma troca abrupta de agente maternante, ficando aos cuidados da avó materna, também com poucos recursos físicos e psíquicos para exercer a "sonata materna". O grito se tornou a única comunicação possível entre Lúcio e sua mãe nos três primeiros meses de vida.

E o interessante é que mesmo esse grito produziu alguma ligação, pois Lúcio nunca apresentou sintomatologia de risco de autismo. Mesmo através do grito foi possível a alienação. O exposto levou-nos a pensar que a simples massa sonora inarticulada pôde investir libidinalmente a criança, alienando-a.

O problema é que aqui só há presença. Falta a falta. Passamos a hipotetizar que é através do manhês que se faz possível a primeira abertura para a inscrição dos nomes-do-pai, a que Lúcio até então não tinha tido acesso.

 

As psicoses não-decididas da infância

Ao darmos precocemente um diagnóstico de psicose infantil, a criança passa a ser tratada diferentemente pela família, pela escola e, muitas vezes, pela própria equipe de tratamento. Considerando que a estrutura do infans ainda possui certa permeabilidade a novas inscrições, aqui, no caso, da função paterna, um diagnóstico precoce de psicose pode mais atrapalhar do que ajudar na condução do tratamento, constituindo um entrave para que a criança possa ter outra "escolha forçada" de estrutura.

Aqui, mais uma vez, o mais importante não é o diagnóstico precoce e sim o atendimento precoce.

Segundo Leda Bernardino (2004: 30), os psicanalistas lacanianos se dividem em dois grupos: no primeiro, encontram-se os que consideram um tempo lógico de subjetivação, fundando o Inconsciente, e que, uma vez definida a estrutura, seria impossível que esta sofresse mudanças, seja no adulto, seja na criança; já no segundo grupo, há os psicanalistas que, embora concebendo o Inconsciente referido a uma lógica e a um tempo próprio, apontam uma diferença ao considerar o tempo do desenvolvimento refletindo no tempo lógico, avaliando diferenças essenciais na estruturação do sujeito na infância. Seguindo Bernardino (2004), no primeiro grupo encontram-se teóricos que se opõem radicalmente a qualquer especificidade do sujeito enquanto criança.

Posicionamo-nos no segundo grupo descrito pela autora, sustentando uma especificidade do sujeito enquanto infante.

Este posicionamento, no entanto, vem sendo questionado por alguns teóricos como Jacques-Alain Miller (1992) apud Bernardino, (2004: 31):

"Esta vocação de dissolver a criança é a dificuldade que introduz esta perspectiva lacaniana. Do ponto de vista do Inconsciente, se tomarmos a fórmula freudiana de que este não conhece o tempo, pode-se pensar que o Inconsciente não conhece a criança tampouco. Assim, a criança seria uma denominação cronológica e quando se é partidário da perspectiva estruturalista, não se pode sustentar que a criança existe [...]" (MILLER apud Bernardino, 2004: 31).

Soler (apud Bernardino, 2004: 32) se refere a dois campos de atuação na psicanálise de crianças. O primeiro, ela denomina "psicanálise invertida" (p.10), pois vai do real ao simbólico, ao contrário da psicanálise habitual. O analista tem que lidar com a criança em posição de objeto e produzir um "efeito-sujeito" que seria uma defesa contra o real.

No segundo campo, Soler situa a criança já sujeito, onde uma das questões a serem trabalhadas são as diferenças entre ela e um sujeito adulto.

Soler tanto quanto Miller, apesar de compartilharem da posição estruturalista, deixam depreender de seus textos que há uma interferência do desenvolvimento em relação à palavra da criança e a seu modo de gestão de gozo.

Para Jerusalinky (1993a: 23, apud Bernardino, 2004: 34), pode-se dizer que as psicoses infantis precocíssimas devem ser consideradas como não decididas, porque ainda pode estar por vir uma metaforização possível às inscrições. Este autor (1993b, apud Bernardino, 2004: 35) propõe o termo "psicoses não decididas", justificando que a infância reconhece a possibilidade de estados provisórios que podem se decidir mais tardiamente quanto à estrutura.

Bernardino (2004: 84) nos diz que um diagnóstico fechado nesse momento poderia funcionar como uma nomeação, como um S1, com todo o peso do "discurso científico" aí embutido, podendo, por isso, adquirir um valor de imperativo, fixando um destino.

Esse diagnóstico, de psicoses não decididas da infância, é um operador clínico importante na infância, permitindo-nos intervenções que não fixem o sujeito em uma patologia, "rotulando-o" e fechando portas para a construção de saídas que ainda são possíveis.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Isabela Santoro Campanário

Rua Levindo Lopes, 333/1406 - Funcionários
30140-170 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3281-0602
E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

Jeferson Machado Pinto
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E-mail: jefpinto@uai.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Psiquiatra da Infância e Adolescência. Psicanalista. Mestre em Psicologia na Área de Concentração em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
II Psicanalista. Doutor em Psicologia. Orientador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.
1 ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Moriconi, I. (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
2 Alexandre Stevens (1987) nos apresenta um excelente trabalho sobre este tema.
3 Agradeço a Adriana Ataíde (fonoaudióloga), Cristiana Guimarães (terapeuta ocupacional), Maria de Fátima Pissolato (psiquiatra infantil) e Najma Hamizs (psicóloga), profissionais que atendem a este caso. Aqui atuei apenas como observadora em algumas sessões, tentando ajudar nas diretrizes da condução clínica.
4 Laznik, em comunicação oral feita em curso no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, em agosto de 2005, remete-nos à história infantil A princesa e a ervilha, outro conto de Hans Christian Andersen. Neste, um príncipe escolhe sua princesa quando ela não consegue dormir à noite devido a uma ervilha colocada debaixo de vinte colchões. Laznik utiliza esta história como metáfora para mostrar a "hipersensibilidade" destas crianças às mais variadas situações da vida.
5 Apesar de não concordarmos com a identidade de estrutura entre autismo e psicose, podemos fazer algumas aproximações.

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