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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.28 no.53 Belo Horizonte Sept. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Violência e criatividade1

 

Joyce McDougallI

Sociedade Psicanalítica de Paris
Associação de Medicina Psicanalítica de Nova York
Sociedade Freudiana de Nova York
Federação Internacional de Ensino da Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


 

 

Violência

Violência e criatividade? O acoplamento dessas duas palavras pode parecer estranho. Meu tema sem dúvida pede uma explicação antes de sua apresentação. Comecemos por considerar a violência: o mundo à nossa volta parece estar cada vez mais violento – relatos de genocídios, perseguições religiosas, purificações étnicas, torturas e terrorismo fazem parte do cotidiano de nossos jornais e de nossas redes de televisão. Mesmo que os instigadores desses atos mortíferos procurem justificá-los com argumentos históricos e religiosos, o horror se apresenta como sem sentido: como se essa violência não precisasse de ser justificada. Será verdade, como se ouve dizer, que a humanidade está se tornando mais violenta, mais assassina, ao longo dos séculos? É preciso talvez reconhecer que os meios de comunicação são hoje mais rápidos, mais visíveis do que antes e que nós estamos diretamente confrontados com a desumanidade do homem para com o homem. Não havia jornalistas para contar as cruéis conquistas de Gengis Khan quando ele procurava dominar as planícies mongólicas, nem havia cineastas para filmar a matança maciça de homens, mulheres e crianças em Bagdá quando essa cidade o desafiava.

 

Criatividade

Isso nos leva àquilo que contém a noção de criatividade e por aí mesmo ao papel da violência nos processos criativos. Já há algum tempo que tento descobrir e compreender as origens misteriosas da criatividade em meus analisandos, qualquer que seja a forma que assuma: escrita, pintura, escultura, música, teatro, pesquisa científica, ou ainda a criatividade que se revela no mundo da política, dos negócios e das inovações industriais. Todas essas formas de criatividade estão ligadas ao que Freud engloba sob a noção de atividades de sublimação – atividades que provêm das pulsões eróticas, mas que foram desviadas em direção a outros objetivos mais valorizados socialmente.

No entanto, fora esses criadores nos quais a violência e a transgressão inerentes a seu processo de criação provocaram sofrimento e depressão, eu levarei igualmente em consideração todos aqueles nos quais a violência se voltou contra o self para dar lugar em seguida a construções sintomáticas. A essas atividades valorizadas socialmente acrescentarei então outras "criações" não reconhecidas como tal, que são os sintomas neuróticos, os desvios sexuais, as manifestações psicóticas e as doenças psicossomáticas. Embora esses fenômenos não sejam considerados como sublimações, eles não deixam de ser criações do self para assegurar a sobrevivência psíquica do indivíduo. Nessa perspectiva, poderíamos propor que os sintomas psicológicos assim como as atividades criativas surgem da mesma fonte: ou seja, uma tentativa de resolver conflitos psíquicos arcaicos e formas primitivas de sofrimento mental. Alguns desses dramas psíquicos arcaicos têm a ver com traumatismos humanos universais tais como a existência da alteridade, a descoberta da diferença entre os sexos e o inelutável da morte. A esses traumatismos universais é preciso acrescentar outros, atípicos, tal como aquele que veicula o inconsciente biparental, quando este possui uma potencialidade traumática, ou ainda os acidentes da vida, tais como a morte de um parente, a psicose de um membro da família porque este foi concebido para substituir uma criança morta ou que nasceu em uma época que em si foi socialmente traumática.

 

O artista

Seguindo mais tarde suas pesquisas sobre o processo criativo, Winnicott propôs uma visão otimista sobre as fantasias, o jogo e a criatividade. Sua exploração nesse campo de experiência humana começa com o que ele chama de "criatividade primária": quando uma mãe se ausenta ou não responde imediatamente aos desejos de seu bebê, este ressente isto inicialmente com surpresas e dor, depois com raiva e medo. Então, assim como Winnicott o sugeriu muito intuitivamente, é o momento em que se instala na pequena criança a primeira suspeita de que ela e sua mãe não são um só. É aí que se origina o início de seu estatuto de indivíduo – aquele que não pode mais ser "dividido" em dois na fusão de si com o Outro. A pequena criança que caminha em direção a sua individuação tenta recriar, de modo alucinatório, a fusão perdida com o universo materno. Winnicott designa esse prazer alucinatório como a primeira atividade criativa da pequena criança. Essa criação se reveste sempre de uma aura de alucinação e de ilusão a fim de preencher o que de outra forma poderia se apresentar como um vazio terrificante.

Posteriormente Winnicott chegou ao conceito que nomeou de "espaço transicional", do qual participam ao mesmo tempo o mundo interno e o mundo externo. Ele enfatiza esse espaço potencial "aberto ao brincar, à criatividade artística, ao sentimento religioso e ao sonho". Assim, entre os numerosos fatores que contribuem para a criatividade, podemos dizer que qualquer que seja o seu campo, o criador brinca. Sobre esse ponto, apesar de suas divergências, Freud e Winnicott estão de acordo. (Lembremos que Winnicott considerava a prática da psicanálise ela mesma como uma criação. Ele proclamava que era essencial que o psicanalista pudesse soltar livremente a sua imaginação e a sua vida fantasmática durante as sessões. E acrescenta: "um analista que não tem a capacidade de brincar não escolheu a profissão certa e deve mudar de campo para um campo de trabalho mais de acordo com seus talentos".)

Gostaria de acrescentar aqui que a dimensão lúdica da criatividade não significa que ela seja sem preocupações: ao contrário, os meus analisandos me ensinaram que eles realizam sua atividade com um espírito de ódio, desespero e/ou depressão. Mas aqui, também, a metáfora do criador – uma criança que brinca – é muito pertinente. As crianças não limitam suas brincadeiras somente a encenar o desejo de serem mágicos ou de se beneficiarem de algum privilégio de seus pais; elas se servem de suas brincadeiras igualmente para superar experiências traumáticas. A menininha que acaba de voltar do dentista irá brutalizar os dentes de sua boneca ou pedirá aos seus amigos para encenarem o papel de paciente enquanto ela brincará de ser dentista. Dessa maneira, a experiência da dor e do medo será evacuada através da brincadeira na qual a vítima se torna o carrasco. Aliás, Freud, em sua observação da criança pequena, comentou que essa experiência era uma parte vital da experiência humana. Ele teve como ponto de partida a observação de um de seus netos cuja mãe havia se ausentado e que brincava com um carretel: a criança não parava de jogar o carretel em cima de sua caminha e de pegá-lo falando, animada, "fort-da". Em outras palavras, ele não era mais a vítima pela ausência de sua mãe uma vez que ele se tornou mestre do desaparecimento e do reaparecimento do objeto.

Isso nos sugere que, no decorrer da análise de pessoas criativas, o mesmo processo ocorre. Os numerosos anos durante os quais trabalhei com crianças em psicoterapia me ajudaram a compreender em meus pacientes adultos os fatores que sustentam sua necessidade de criar, assim como me trouxeram alguns esclarecimentos sobre os elementos que inibem a criatividade.

Os analisandos criativos com freqüência procuram a psicanálise quando sua criatividade está bloqueada por razões que não entendem. Eles me ensinaram muito sobre sua atividade inovadora; quero dizer que, se esta gera excitação e satisfação, há o risco também de provocar sentimentos agudos de transgressão, angústia e culpabilidade. Uma forte resistência em continuar sua obra é uma experiência que ocorre a vários criativos (mais particularmente no que concerne às artes plásticas e aos escritos literários e científicos). E mais, já observei que esses criativos sentem essa resistência de uma maneira mais profunda quando estão particularmente inspirados por uma visão, invenção ou idéia que clamam por ser liberadas.

 

A violência, base da estrutura psíquica?

Em meu livro Eros aux Mille et um visages, proponho que podemos comparar o universo interno do artista a um vulcão, um espaço subterrâneo borbulhando de energia, que lança faíscas, pedras e chamas, mas que tem também necessidade de ejetar periodicamente os elementos que fazem parte integral de sua substância. Se essa dispersão violenta for bloqueada, provocará eventualmente uma explosão perigosa e mesmo mortífera. Nessa perspectiva, a criatividade parece com uma fonte de energia que somos obrigados a liberar, e nesse sentido, é pertinente assinalar que a maioria dos criadores, qualquer que seja sua área, é surpreendentemente produtiva. A pressão fervorosa à qual estão submetidos – a compulsão a criar – é um elemento essencial para poder compreender aqueles que nos procuram quando ocorre um bloqueio de sua criatividade. Podemos então compreender sua tensão extrema e nos identificarmos com o sentimento de angústia e depressão que acompanham essa paralisia criativa.

Para voltar ao nosso tema da violência na criação artística, gostaria de citar um trecho curto de uma carta de uma de minhas ex-analisandas que veio fazer análise porque não autorizava a si mesma pintar, coisa com a qual ela sempre sonhara. Alguns anos após o fim de sua análise (graças à qual ela se tornou uma pintora de renome), ela me escreveu essas linhas que resumem o que tinha aprendido em sua análise:

"As pulsões primordiais profundas que me atravessam podem se tornar poderosas o suficiente para me incomodar; é preciso que eu coloque para fora de mim mesma, no mundo exterior, essa tensão constante para que eu encontre um sentimento de harmonia. Isto faz parte da criatividade, mas esta é também atacada por fortes sentimentos de destruição. Quando eu não consigo pintar, eu fico à mercê de minha própria agressão violenta.

Eu consigo compreender a frustração de meu querido amigo Jacques que diz que odéia suas pinturas porque elas não correspondem nunca ao que ele queria mostrar. É a mesma coisa com Pierre que destrói periodicamente todas a suas obras: é isso o que Freud chamava de instinto de morte?"

Como sabemos, Freud derivou sua teoria da pulsão de morte da própria libido. Penso às vezes que o nome ‘ instinto de morte' que ele deu ao conceito poderia ser mais bem traduzido com o vocábulo de ‘força antivida'. Ainda assim, Freud chocou o mundo intelectual de Viena quando bradou que a humanidade – longe de ter como único desejo aquele de gozar da vida procurando o amor, o prazer e as satisfações narcísicas – tem igualmente uma forte tendência à autodestruição e a fazer tudo para destruir a possibilidade de uma vida agradável que valeria a pena ser vivida.

Minha experiência clínica me conduziu a considerar que essa pulsão de autodestruição se revela no substrato de toda atividade criadora. Encontramos com freqüência em nossos analisandos criativos sentimentos de depressão, ódio de si mesmo, raiva e frustração que os levam a destruir o trabalho que estão fazendo. Cheguei então à noção de que, entre seus outros objetivos, toda atividade criativa ou inovadora serve inconscientemente para se contrapor contra a pulsão de destruição (de si próprio e dos outros) ajudando assim a superar os sentimentos de fragmentação e de desorientação. Os indivíduos criativos, sem terem consciência disso, estão freqüentemente lidando com partes fragmentadas de si próprios – daí sua necessidade de encontrar um sentimento de individualidade e de coesão através de sua obra ou de suas invenções.

Esta reflexão me lembra das minhas impressões quando visitei uma importante exibição das obras de Francia Bacon e Lucien Freud, dois pintores fantásticos, mas cuja violência explode através de suas telas. Bacon (isso foi citado no catálogo) dizia se sentir incapaz de pintar um modelo vivo e que ele preferia partir de fotografias ou de desenhos: "A violência que ressinto diante de um modelo vivo é tão forte e tão cheia de ódio que eu não consigo continuar a pintar na sua presença".

Por outro lado, Lucien Freud dizia que ele tinha uma constante necessidade de um modelo a fim de poder captar a essência intrínseca do indivíduo diante dele.

 

Origens erógenas do ato criador

Segundo o conceito winnicottiano de criatividade primária, cheguei a algumas noções pessoais sobre a importância do erotismo pré-genital nos processos criativos. É evidente que a sexualidade pré-genital tira sua importância e sua riqueza do fato de que ela implica os cinco sentidos, da mesma forma que todas as funções corporais. No entanto, como sabemos, alguns sentidos, zonas erógenas e funções corporais são com freqüência considerados inconscientemente como fontes de prazer proibido ou como atividades potencialmente perigosas e violentas.

A viagem analítica com meus analisandos mostra que a criação é muito ligada ao corpo erógeno da infância cuja força e cuja fragilidade provêm da maneira como ele foi investido, libidinal e narcisicamente, na época das primeiras relações da criança com seus pais. Embora essas pulsões libidinais e narcísicas estejam na base da necessidade do artista de criar, os afetos de emoção, raiva e ódio contribuem aí também de maneira vital.

Para concluir, avanço a hipótese de que os mesmos traumatismos profundos que afetaram a nossa organização psicossexual, com os afetos e fantasias violentos que engendraram, fazem a base não somente de sintomas neuróticos, de inibições, surtos psicóticos e psicossomáticos, mas também são a base da própria criatividade.

 

 

Endereço para correspondência
60 Rue Quincampoix
Paris 75004 France
E-mail: joyce.mcdougall@wanadoo.fr

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris. Membro honorário da Associação de Medicina Psicanalítica de Nova York. Membro da Sociedade Freudiana de Nova York. Membro da Federação Internacional de Ensino da Psicanálise.
1 Este texto é a tradução da transcrição da conferência que Dra. Joyce McDougall proferiu no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG no dia 09/08/2005. Transcrição feita por Paulo Roberto Ceccarelli e tradução do francês feita por Sandra Seara Kruel.

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