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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.28 no.53 Belo Horizonte Sept. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Mais que nunca, é preciso criar

 

Plus que jamais, c'est nécessaire créer

 

 

Carlos Antônio Andrade MelloI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho do psicanalista aproxima-se daquele do artista sob o ponto de vista da criação de que ambos se valem. A técnica, se tomada em sua vertente technè poiésis, confere ao analista possibilidades infinitas diante dos desafios da clínica, sobretudo na contemporaneidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Técnica, Criação, Arte, Clínica contemporânea.


SOMMAIRE

Le travail du psychanalyste se rapproche de celui-là de l'artiste sous le point de vue de la création que 1'un et l'autre utilisent. La technique, si elle est pris au sens technè poiésis, donne au analyste des infinies possibilités en face aux défis de la clinique, surtout dans la contemporanéité.

Mots-clés: Psychanalyse, Technique, Création, Art, Clinique contemporaine.


 

 

Não se aprende, Senhor, na fantasia
Sonhando, imaginando, ou estudando
Senão vendo, tratando e pelejando.
1

 

Entre 1911 e 1915, Freud escreveu uma série de artigos que, na Edição Standard Brasileira, recebeu a denominação de "Artigos sobre a Técnica". Além desses textos, Freud sempre se preocupou com a técnica, como verificamos ao longo de toda a sua obra, desde os "Estudos sobre a Histeria" (1893) com o método catártico de Breuer e Freud, até "Análise Terminável e Interminável" de 1937 – só para citar algumas referências pontuais.

Uma palavra em defesa da técnica: É muito comum em Psicanálise encontrarmos esse conceito depreciado, principalmente se contraposto ao de ética, assumindo a técnica uma condição de conceito menor, quase palavra maldita, como aprisionante, redutor das coisas a um estado de ordem preestabelecido, algo do mundo das normas.

Freud porém, no texto "Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise", com o rigor com que revestia sua criação, já estabelecia com clareza as condições em que conduzia este trabalho:

"As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência no decurso de muitos anos, após resultados pouco afortunados me haverem levado a abandonar outros métodos... Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade: não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhes apresenta..."2

Assim também afirma Lacan: "Certamente a psicanálise como ciência é sempre uma ciência do particular, mesmo que esses casos singulares se prestem, não obstante, a alguma generalidade, desde que há mais de um analista."3

Portanto, jamais haveria uma técnica de caráter universal, capaz de conciliar e direcionar a individualidade de um analista, segundo a citação de Freud, e a singularidade de cada sujeito em trabalho de análise.

Entretanto, na concepção heideggeriana, a técnica é libertada da habitual rigidez conceitual para uma extrema maleabilidade que a vê como uma constelação onde se produz, ao mesmo tempo, o desnudamento e a ocultação de uma verdade.

A etimologia nos diz tratar-se de uma maneira ou habilidade especial de executar ou fazer algo. Lembra Heidegger que, até Platão, a palavra technè está sempre associada a epistemè, sendo os estóicos os responsáveis pela ligação de technè a poiésis, deslocando a noção de técnica como referida a um conhecimento ou a um trabalho qualquer para a de técnica como um trabalho criador.

Parece ser esta a vertente da técnica de que tanto se ocupou Freud, desde que partiu da hipótese do inconsciente e sua verificação na prática, num trabalho que muito aproxima do artista o psicanalista, ao tomar a pedra bruta da singularidade do ser falante, guiado pelas pulsações errantes daquilo que, como o trabalho do sonho, não pensa, não calcula e nem julga.4

Yara Tupinambá, em conferência, falou da magia que revestiu o primeiro ato de criação artística da humanidade, quando o homem primitivo tomou um objeto tridimensional e delineou-o na superfície plana de uma caverna. Pura criação que implicou, ao mesmo tempo, numa perda inegável da realidade e uma nova representação daquele objeto faltante.

O processo psicanalítico também parece operar com uma certa contabilidade, ao permitir ao sujeito desfazer-se de um quantum possível de gozo, como preço pelo acesso ao desejo que, indestrutível, habita o saber inconsciente e insiste em ser desvendado em seu eterno perambular pelas ruas do significante.5

Não será deste recurso à arte, enquanto pura criação, que se vale o analista, em seu ofício, perante os impasses da clínica?

Recentemente, na leitura e discussão de trabalhos voltados para o estudo da perversão, foi unânime a impressão despertada de que esta constitui algo como um ponto duro na clínica, o que nos faz lembrar também dos chamados novos sintomas, cuja formalização teórica e manejo clínico têm constituído um grande desafio.

Mais do que os desatinos da histérica e o ruminar do obsessivo, agora parece ser a vez das inibições aterradoras, dos quadros voltados ao corpo como os distúrbios alimentares e os fenômenos psicossomáticos, do consumo excessivo de drogas aditivas e bens supérfluos e da virtualização dos relacionamentos pessoais, trazendo, como seus congêneres, um texto desafiante, em que sobressai a letra da angústia carregada de matizes do Real.

Diante dessas novas formas do adoecer psíquico, o psicanalista se vê impelido a buscar novos recursos. Parece chegada ao fim a era de ouro das interpretações que chamaríamos de notariais – como um tabelião de cartório que escreve: Faço saber a todos que aos vinte dias do mês de julho do ano 2005 do nascimento de Nosso Senhor.... – ou seja, dizendo o que o sujeito já sabe e sabe que sabe, diferentemente daquilo que ele sabe mas desconhece que sabe, uma das maneiras de se falar do saber inconsciente.

Mais do que nunca, urge lidar com a transferência naquilo que ela tem de mais essencial que é a colocação em ato (mise en acte)6 da realidade do inconsciente.

Parece que os analisantes de outrora tinham mais paciência com seus analistas. Foi o que permitiu a construção de tudo isto que aí está, a partir mesmo do seu criador. Apesar de, em 1933, Freud ter afirmado nunca ter sido um terapeuta entusiasta7, foi um grande analista, o que, mesmo assim, não impediu que alguns de seus pacientes se impacientassem com o rumo de suas análises.

Nossos analisantes, hoje, têm muito mais pressa, o que os leva a buscar soluções anunciadas como mais rápidas e eficientes.

Entretanto, a psicanálise não há por que se curvar à concorrência dessas práticas "contemporâneas", tendo a seu favor a regência de uma ética direcionada ao que há de mais caro ao sujeito – o desejo.

Sobretudo, se exercida como um processo não estandardizado, pode valer-se de possibilidades infinitas de criatividade, resguardando sempre a marca da singularidade com a qual foi concebida.

 

Bibliografia

BADIOU, A. Por uma estética da cura analítica (Trad. Analúcia Teixeira Ribeiro) Rio de Janeiro, Escola Letra Freudiana: A psicanálise & os discursos, n. 34/35, ano XXIII, (2004).        [ Links ]

CAMÕES, L. Os lusíadas – Canto X Estrofe CLIII. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (1989), Lisboa.        [ Links ]

FREUD, S. Sobre o mecanismo psíquico do fenômenos histéricos: Comunicação preliminar (1893) Breuer e Freud. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.II.        [ Links ]

FREUD, S. Interpretação de sonhos (1900), ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.V.        [ Links ]

FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XII.        [ Links ]

FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933) Cf. 34 Explicações, Aplicações e Orientações. ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XXII.        [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1969, v.XXIII.        [ Links ]

HEIDEGGER, M. La question de la technique (1954) – Extraits de essais et conférences, Paris: Gallimard, 1958, p.9-48.        [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud ( 1953/1954). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.        [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por J.A. Miller.Versão. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.        [ Links ]

LACAN, J. Le Séminaire Livre 11 – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (Texte établi par J.A.Miller) Paris: Seuil, 1973.        [ Links ]

MELLO, C.A.A.; COIMBRA, M.L.S.; LISBOA, M.L.A.; VILELA, M.L.; ANCHIETA, S.M. Perversão-Pulsão, objeto e gozo. Reverso. Belo Horizonte, n.51, set.2004.        [ Links ]

TUPINAMBÁ,Y. Participação em mesa-redonda na 4ª Jornada Centro-Sul do Círculo Brasileiro de Psicanálise, XXIII Jornada do Fórum de Psicanálise do CPMG e I Jornada de Psicanálise e Arte do CBP-RJ, em set/2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Brasil, 283/1502 - São Lucas 30140-000 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3241-4647
E-mail: andrademello@terra.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Médico. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG
1 Camões, L.. Os lusíadas – Canto X, Estrofe CLIII - Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. 1. ed. (1989), Lisboa.
2 FREUD, S. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), v. XII , p. 147.
3 LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954).
4 FREUD. S. Interpretação de sonhos (1900). v. V, p. 541, 1969.
5 MELLO, A. A.; COIMBRA, M.L.S.; LISBOA, M.L.A.; VILELA, M.L.; ANCHIETA, S.M. Perversão- Pulsão, objeto e gozo. Revista Reverso, n.51, set.2004.
6 Embora a tradução disponível em português refira-se a "atualização da realidade do inconsciente" preferimos a forma que nos parece mais fiel ao original e ao que se passa no processo transferencial.
7 FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933) Conf. XXXIV Explicações, aplicações e orientações, v. XXII, p. 185, 1969.

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