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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.28 no.53 Belo Horizonte Sept. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

A musicalidade da fala – o objeto sonoro em Freud

 

The musicality of speech – Freud's sonorous object

 

 

Cláudio Munayer DavidI

Universidade Federal de Minas Gerais
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No Projeto para uma Psicologia Científica, Freud descreve a estruturação do aparelho psíquico a partir do grito do recém-nascido até a palavra socialmente compartilhada, identificando a representação sonora como elo privilegiado com o objeto de desejo na origem das pulsões. Os sons da fala que escapam à representação de palavra interferem na semântica do discurso e do pensamento, em um constante jogo pela busca da satisfação do desejo. Algumas dessas representações podem ser traduzidas pela lógica própria da linguagem musical.

Palavras-chave: Grito, Pulsão, Desejo, Representação sonora, Sons da fala.


ABSTRACT

In the article A Project for a Scientific Psychology, Freud describes the structure of the psychic apparatus ranging from the newborn's screams to the socially shared words, identifying the sonorous representation as a privileged link to the wish object at the point of origin of drive. The talk sounds that escape from word representation interfere in the semantics of the discourse and thoughts, being part of a constant interplay in the search of wish-fulfillment. Some of these representations can be translated by the very logic of musical language.

Keywords: Scream, Drive, Wish, Sonorous representation, Talk sounds.


 

 

O Projeto sonoro

No Projeto para uma Psicologia Científica (1895), Freud afirma que os investimentos da fala são formados pela associação de neurônios ψ (memória) com as representações sonoras, as quais se encontram diretamente associadas às imagens motoras. O investimento nas imagens sonoras permite ao próprio ego reinvestir a informação de descarga, possibilitando a passagem de quantidades que deixam traços na forma de lembranças (p.420).

A corrente de Q durante o pensamento deve ser pequena, pois o gasto de grandes Qs significa uma perda para o ego que deve ser limitada, evitando o desperdício de energia necessária para a realização das ações específicas. As representações verbais, imagens sonoras extremamente qualificadas, proporcionam um menor gasto energético. Contudo, a qualificação não interrompe o fluxo, pois ela mesma se constitui em informações de descarga. "Quando pensamos com intensidade, não há dúvida de que chegamos a falar em voz alta" (p.422), logo, pensamos em voz baixa.

A diferença entre a descarga reflexa do grito e a projeção de um pensamento está na forma de liberação, súbita ou por somação dos afetos, mas em ambos os casos ocorre um aumento de tensão no aparelho psíquico que tende à descarga sonora. Não se pode eliminar por completo as quantidades, pois os neurônios da consciência (ω) também devem ser concebidos como investidos com Q(η). Por menor que possa ser a força de um pensamento, ainda assim ele é um processo de descarga sonora, o que, no final das contas, o equipara às percepções auditivas (p.421).

Ao encarnar e dinamizar as lembranças, as representações sonoras também reproduzem padrões que escapam aos significantes verbais. Quando pensamos nossas próprias idéias, utilizamos imagens sonoras da nossa própria fala. Podemos representar uma pessoa no pensamento pelas qualidades de sua voz. Se estivermos pensando em uma briga calorosa, podemos chegar a gritar. Da mesma forma, se estivermos escrevendo uma declaração de amor, pensaremos em imagens sonoras suaves e atrativas. "A leitura em voz alta não deve ser considerada como um processo de algum modo diferente da leitura silenciosa, a não ser pelo fato de que ela ajuda a atenção da parte sensorial do processo de leitura" (1915, p.220).

Os lapsos de linguagem (1901) e os chistes (1905) podem exemplificar a força das representações sonoras, entretanto, a musicalidade da fala ainda excede às representações fonéticas. As imagens sonoras, como em um pensamento musical, também representam seu sentido não verbal. O sotaque particular de um pensamento reflete algo das escolhas do pensador, de sua intenção, do seu estado afetivo, de seu contexto sociocultural, deslocando e condensando o sentido de um discurso. Esses padrões sonoros constituem-se em ressonâncias pulsionais que se apresentam como distorções na cadeia de significantes.

Mas é em relação à dor, "o mais imperativo de todos os processos", que o eco da descarga sonora desperta a atenção e origina os primeiros traços de lembranças. A princípio, as ações específicas só podem ser realizadas quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil. A inervação da fala é a primeira via de descarga, ela funciona como uma válvula de escape para regular as oscilações das quantidades somáticas até que se descubra a ação específica. O grito da própria criança qualifica o desprazer numa situação em que a dor impede o recebimento de boas indicações da qualidade do objeto. Quando o trabalho da ação específica é executado no mundo externo pela pessoa que ajuda nos cuidados da criança, esta fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno (1895, p.421-22).

O grito é um marco, um elo dos processos internos com as percepções, é um ponto de referência da consciência. Os sons emitidos e percebidos fazem a primeira ponte entre a realidade interna e externa do bebê, representando a alteração biológica no espaço auditivo que o cerca. As traduções sonoras são precárias, seja pela defasagem na capacidade de processamento e resposta dos aparelhos envolvidos, seja porque a mãe traz consigo um resto não traduzido do seu próprio psiquismo. Todavia, a representação materna garante ao grito a realização da ação específica, apresentando, assim, a experiência de prazer para o recém-nascido.

 

A visão médica

Os avanços tecnológicos da obstetrícia, como o Ultra-Som 4-D, abrem novas janelas para as pesquisas pré-natais. O que antes era concebido exclusivamente por meio do desenvolvimento biológico passa a ter significado psíquico. Nos últimos meses de gestação o feto humano apresenta o mesmo tipo de atividade cerebral de um bebê em seu primeiro ano de vida. Ele dorme e também sonha. Mas sonha com o quê?

Os estímulos auditivos são os primeiros a causar grande impacto no comportamento fetal. Aos seis meses de gestação, o feto já apresenta reações específicas à voz da mãe, à música e à poesia. Sua memória é de longo prazo, o que quer dizer que as mesmas respostas observadas nos experimentos reincidem na criança muitos anos depois do nascimento. As primeiras imagens registradas, ainda na barriga da mãe, marcam definitivamente a estruturação do psiquismo.

Conclui-se que as representações sonoras são as mais arcaicas na ontologia humana. No que nos concerne, elas devem estar diretamente ligadas ao surgimento da pulsão, antes mesmo do nascimento. Ademais, a elaboração de um psiquismo fetal induz os pais a construir suas experiências pré-natais em um outro universo de significação. A visualização em tempo real das expressões faciais e corporais do feto muda drasticamente a forma de os pais se relacionarem com a gravidez.

 

A ciência dos sons

A música abrange fenômenos psíquicos e culturais que ultrapassam as delimitações estéticas. Ela acompanha o homem desde seus primórdios, das apaziguadoras canções de ninar aos rituais fúnebres. Em seus aspectos mais simples e primitivos, a música é considerada uma manifestação folclórica que espelha as particularidades étnicas de um povo. Ela surgiu nas mais remotas culturas para a celebração de acontecimentos festivos e litúrgicos. As antigas civilizações orientais, como a chinesa e a indiana, conheciam e tiravam partido de sua capacidade de produzir êxtase coletivo.

Da Lira de Orfeu e Davi à cítara de Salomão e Confúcio, a música era um assunto que nenhuma corrente filosófica poderia ignorar. Tais conceitos e usos se propagaram no Ocidente até se cristalizarem nas escolas filosóficas gregas. As pesquisas realizadas por Pitágoras (580-496 a.C.) com o Monocórdio1 são as precursoras das ciências modernas. Pitágoras associou os intervalos musicais ao conceito matemático de frações, introduzindo no conhecimento humano as relações entre a aritmética, geometria, astronomia, com base em relações musicais. Suas descobertas selaram o paradigma das ciências, das artes e das correntes filosóficas subseqüentes.

Para as civilizações da Antigüidade, a organização dos sons inteligentemente era considerada a mais importante das ciências, a base de um governo estável e harmonioso e o caminho da iluminação religiosa. Platão e Aristóteles discutiram seus efeitos morais e psicológicos em suas principais obras. A progressão harmônica de Pitágoras, mais conhecida como Proporção Áurea, foi difundida na arquitetura romana por Virtruvius Pólio (85-26), utilizada hermeticamente na construção das catedrais Góticas e popularizada na Renascença por Leonardo da Vinci (1452-1519) e Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573). No século VI, O papa Gregório Magno unificou os cânticos religiosos como recurso para padronizar a Liturgia. A música profana era punida com a fogueira da Inquisição.

Nietzsche (1872, p.98-100) reeditou as idéias de Schopenhauer, para quem "a música não requer palavras, é a linguagem universal, expressão imediata da vontade" (1819, p.109-111). Lacan utilizou a equação de Fibonacci2 como base matemática para o "Objeto a" e para o salto estrutural realizado na entrada do "Nome do Pai" (1969-70, p.148). Em suas palavras: "Seria preciso, alguma vez – não sei se jamais terei tempo –, falar da música, nas margens" (1972-73, p.158). Na ciência contemporânea, Max Planck, o pai da física quântica, balizou o salto quântico nos saltos das notas musicais. Atualmente a música invade os carros, as TVs, os computadores, os esportes e incontáveis outras cenas das atividades humanas.

 

Conclusões

Ouvir a voz da clínica, mas também fora dela, é ouvir toda a gama de variações de timbre, tonalidade, ritmo, intensidade, acentuação, enfim, um universo de padrões acústicos que compõem a fala. Vários desses objetos possuem uma representação gráfica que lhes atribui um valor lingüístico, mas nem todos possuem um reflexo visual, o que lhes priva de uma tradução gramatical. Essas expressões sonoras podem distorcer, e até mesmo inverter o significado de um discurso sem que haja, para tal, qualquer alteração do conteúdo semântico do mesmo.

Melodias pobres, cadência lenta, intensidade e tons baixos podem ser reflexos de uma estrutura depressiva na fala. Características opostas são prováveis de ser encontradas no discurso maníaco. A formalidade das imagens acústicas serve à estrutura obsessiva, enquanto a fala do histérico se liberta do rigor, com variações sonoras mais ricas. A força pulsional pode silenciar o aparelho fonador na afasia motora em quadros histéricos, ou criar padrões indesejáveis na fala, como na gagueira. Alguns casos de dissonância radical entre as representações sonoras podem indicar uma falha estrutural grave no psiquismo. No artigo Análise de um caso de paranóia crônica (1896), Freud afirma que um detalhe característico do delírio paranóico é que o tom do discurso pode suprimir por completo o conteúdo semântico do mesmo (p.178).

Determinadas características rela-cionadas às percepções auditivas as apro-ximam das pulsões mais do que outros estímulos externos, que podem ser facilmente evitados. As vibrações sonoras são capazes de transpor e contornar praticamente todos os tipos de materiais, deslocando-se por todo o ambiente com facilidade. A percepção auditiva desperta precocemente a atenção, originando uma imagem sonora capaz de lembrar o desprazer e, simultaneamente, reativar a experiência de prazer. O grito, que tem a sua fonte numa excitação corporal, acaba por suprimir a tensão interna ao exigir da mãe a realização da ação específica, traduzindo pela primeira vez a energia somática em psíquica. O investimento nas imagens sonoras tece uma rede de representações associadas ao grito que serão reativadas no estado de desejo.

Através dos sons, a criança pode recriar o objeto de desejo no mundo interior e invocá-lo no mundo externo. Da mesma forma, o caçador primitivo projetava sua voz sobre os sons emitidos pelos animais, identificando-se com eles e, posteriormente, o elemento concreto era separado de sua representação sonora, passando a ser o objeto da fantasia que podia substituir o objeto real. A reação do ambiente perante o objeto sonoro fortificava a crença na sua capacidade mágica.

Os significantes musicais também se qualificam como representações sonoras. A voz é considerada o primeiro instrumento melódico e as mãos e os pés os primeiros instrumentos de percussão. O homem primitivo buscava harmonizar seu próprio ritmo com o dos seus semelhantes. A dança e o canto se acompanhavam do bater das palmas e dos pés. Ao associar a melodia cantada a uma representação de tempo, ele podia colocar-se em uníssono com os demais, representando simultaneamente sua unidade e sua separação com um objeto.

A linguagem verbal e musical são códigos de comunicação originados da mesma forma de qualificação dos afetos. Dar forma aos sons na música tem o mesmo significado tranqüilizador que encontrar a palavra adequada para expressar um afeto ou uma impressão. A música se constitui em algo que pode ser descrito como uma modalidade de pensamento, uma idéia com uma lógica que lhe é própria. Os sons compartilhados dentro de uma cultura se transformam, em grande parte, nas representações de palavras, outros, em representações musicais, alguns ainda permanecem diretamente ligados à satisfação do afeto pela descarga pura. A música remete ao próprio instante de compreensão e ao prazer da descarga, através das variações entre o grito e a fala. A linguagem verbal se solidifica tardiamente em um jogo de relações sonoras muito limitadas e codificadas.

Assim como nas representações musicais, os múltiplos sentidos do objeto sonoro interferem na fala e no pensamento. A palavra evolui até alcançar maior riqueza expressiva, mas não pode anular os efeitos do seu próprio funcionamento. A representação verbal pode abstrair-se do objeto representado, mas não pode abstrair-se da imagem sonora, e, conseqüentemente, dos seus diversos sentidos. Os sons estão em constante jogo pulsional, desde o primeiro grito até a mais sublime canção espiritual.

 

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Endereço para correspondência
Rua: Dr. Juvenal dos Santos, 33/303
30380-530 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3296-4107
E-mail: claudio@eletrika.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

I Psicólogo e Pós-graduado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Membro do Grupo de Estudos A Pulsão Invocante do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Músico, compositor e produtor musical da New Records.
1 Instrumento feito a partir de uma tábua quantificada e uma única corda. Associa seqüências matemáticas às freqüências harmônicas dos sons.
2 Leonardo da Pisa Fibonacci (1200) equacionou a série de números ordinários que levam seu nome; valioso esclarecimento para a Proporção Áurea.

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