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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.28 no.53 Belo Horizonte Sept. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

A encenação ficcional da perversão em Machado de Assis: uma leitura do conto "A causa secreta" I

 

Ficcional scene of the Perversion in Assis, Machado: A reading of the story "The private cause"

 

 

Edson Santos de OliveiraII

Universidade Federal de Minas Gerais
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base em estudos de Janine Chasseguet-Smirgel, a qual ressalta que a compulsão do perverso pelo estético é maior do que a sexual, o autor analisa o conto "A causa secreta", de Machado de Assis, e propõe uma possibilidade de leitura da obra do escritor fluminense a partir de traços perversos com relação à ciência e ao comportamento das elites do século XIX.

Palavras-chave: Janine Chasseguet-Smirgel, Perversão, Compulsão, Estético, Ciência, Comportamento.


ABSTRACT

Based on the studies of Janine Chasseguet-Smirgel, who emphasized that the pervert's compulsion for aesthetics was even stronger than the sexual compulsion, the author herein discusses Machado de Assis's short story "The Secret Cause" and proposes the possibility of reading the works of this Fluminense author from the view point of perverse traits in relation to science and behavior in the XIX Century.

Keywords: Janine Chasseguet-Smirgel, Perversion, Compulsion, Aesthetics, Science, Behavior.


 

 

Ao estudar a perversão na cultura, normalmente os pesquisadores relacionam essa estrutura à compulsão sexual. Meu objetivo é fazer algumas reflexões sobre a relação entre a perversão, o poder e a estética e, em seguida, construir um esboço de leitura de um conto de Machado de Assis.

A pesquisadora francesa Janine Chasseguet-Smirgel, em seu livro Ética e Estética da Perversão, faz interessantes reflexões sobre o modo como o perverso lida com o belo. Para ela, o desejo de manter a "ilusão", isto é, de entrar no jogo do fazer de conta, na organização perversa, é superior à compulsão sexual, embora esta não esteja ausente.

Na esteira de Freud, Chasseguet-Smirgel afirma que é a mãe, no começo da existência, que se encarrega de fazer com que o filho projete seu Ideal do Ego. As frustrações e gratificações da criança, bem equilibradas, levam-na a abandonar determinados comportamentos e a adquirir novos. Para a pesquisadora, a mãe pode "desencaminhar" o Ideal do Ego "por sua insuficiência de gratificações narcísicas objetais ou por um excesso de satisfações."1 O desejo de ficar grande, no menino, é um traço do Ideal do Ego "normal". A sedução materna, segundo a pesquisadora, anularia esse desejo, impedindo na criança a admiração pelo pai. Afirma a autora:

"O que parece importante para nosso assunto é que tudo se passou como se a mãe tivesse impelido a criança a se deixar enganar, fazendo-a crer que era, com sua sexualidade infantil, um parceiro perfeito, que nada tinha a invejar de seu pai, interrompendo-o, assim, na sua evolução, seu Ideal do Ego; em lugar de investir no pai genital e em seu pênis, acaba ligando-o a um modelo pré-genital."2

Desse modo, ao invés de escolher o caminho da evolução natural, a via longa, que leva à maturidade, o futuro perverso prefere a via curta, ficando na ilusão, no fazer de conta de que ele já é o par ideal da mãe. Assim, "A libido das pulsões pré-genitais é descarregada diretamente na perversão."3 O ego do pequeno perverso se constrói em "identificações defeituosas", já que ele considera a pré-genitalidade superior à genitalidade, uma vez que tem a ilusão de que seu pequeno pênis seja mais atraente do que o do pai, transvestindo seu ego e mantendo essa "ilusão".

Nasce assim uma "compulsão a idealizar" e, como afirma a autora, "o perverso é freqüentemente um esteta."4 A compulsão à idealização nem sempre leva, no caso do perverso, à criação artística, mas certamente ao esteticismo. A autora explica:

"o processo de idealização do perverso não é acompanhado necessariamente por uma sublimação das pulsões: Muito freqüentemente (...) o processo de sublimação está prejudicado no perverso (mas nem sempre, como mostra a mais importante contribuição dos perversos – de fato, homossexuais – para a edificação de nosso patrimônio artístico)."5

Assim, parece ser complicado afirmar que no perverso a sublimação é inexistente. Esse fenômeno já é suficiente para se pensar numa outra visão do perverso com a arte e repensar também sua relação com a ética. Desse modo, o ato criativo acaba sendo uma forma de buscar a perfeição perdida, possibilitando um encontro do ego com o Ideal do Ego.

Que a arte sempre esteve relacionada à perversão, isso não é novidade. A originalidade do trabalho de Janine Chasseguet está em demonstrar como o impulso ao estético está presente desde o início da evolução psíquica do perverso, deixando marcas na maturidade.

Na literatura universal, podem-se encontrar vários exemplos de recriação ficcional da organização perversa. Para ficar na França, ela está presente em Proust, em grau menor, e em Sade, de modo intenso. Na Literatura brasileira, é possível destacar também alguns exemplos. Não conheço trabalho nessa linha e poder-se-ia pensar em mapear, em alguns escritores brasileiros, exemplos de encenações ficcionais da perversão. Na leitura que vou fazer, não pretendo diagnosticar a personagem, mas estudar de que modo o escritor traduziu, isto é, transcriou, no plano literário, alguns traços perversos.

O conto de Machado – "A causa secreta" – que está no livro Várias Histórias,6 descreve a amizade entre Garcia, jovem médico, e Fortunato, capitalista. O primeiro encontro entre eles se dá "à porta da Santa Casa" e o segundo, num teatro. Fortunato tinha como distração assistir a peças. Em uma delas, a que os dois assistiam, o médico notou que o colega acompanhava atentamente o espetáculo. Nas cenas violentas, o interesse de Fortunato se redobrava. Além do teatro, amava cuidar de pessoas enfermas. Um dia, um vizinho de Garcia, Gouveia, chegou ensangüentado na rua onde morava o médico. O ferido tinha sido atacado por um grupo de baderneiros. Uma das pessoas que trouxeram Gouveia era exatamente Fortunato. Seus cuidados para com o doente foram extremos. Garcia ficou espantado com a frieza de Fortunato ao fazer os curativos, mas ao mesmo tempo sensibilizado com a sua generosidade. Voltou vários dias para acompanhar o enfermo, mas este melhorou rapidamente. Fortunato desapareceu. Gouveia conseguiu seu endereço e o visitou, agradecendo-lhe pela dedicação. O "enfermeiro" recebeu com indiferença o gesto de gratidão. O médico encontrou-se algumas vezes com Fortunato, que havia se casado, e em um desses encontros, convidou-o a visitá-lo para conhecer sua esposa, Maria Luísa. A amizade entre eles cresceu. Montaram uma clínica. Fortunato era quem a dirigia. Fazia curativos, atendia a todos a qualquer hora do dia ou da noite. Garcia passou a freqüentar a casa do sócio e acabou se apaixonando por Maria Luísa, sem lhe declarar seu amor. Fortunato passou a estudar anatomia e fisiologia, chegando a rasgar e a envenenar cães e gatos, primeiro na clínica, depois em sua própria casa. Maria Luísa pediu a Garcia para conversar com o marido, solicitando-lhe que cessasse com aquelas experiências. Um dia, ao chegar à casa do sócio, encontrou-o no laboratório torturando um rato, cortando lentamente, com uma tesoura, as patas do animal e descendo-o até a um fogo rápido para não matá-lo de uma vez. O sorriso de Fortunato era de prazer e "traduzia a delícia íntima das sensações supremas", "alguma coisa parecida com a pura sensação estética". Fortunato torturava o rato sem perceber que estava sendo observado por Garcia. Ao sentir que o amigo o olhava, "mostrou-se enraivecido contra o animal (...), mas a cólera evidentemente era fingida".

Maria Luísa contraiu tuberculose e faleceu. A sua agonia foi lenta e Fortunato saboreou o sofrimento da companheira. No velório, à noite, apenas os dois amigos acompanhavam o cadáver. Fortunato foi dormir e Garcia, caminhando lentamente, olhou para o féretro e beijou a esposa do colega. O recém-viúvo, que havia acordado, viu, em silêncio, o beijo adúltero do companheiro na testa de Maria Luísa. Não sentia ciúmes. O médico inclinou-se para beijar novamente o cadáver, mas começou a chorar, deixando aflorar aquele amor reprimido. Fortunato, de longe, às escondidas, saboreava aquela "explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa."

O resumo foi deliberadamente extenso para que se pudesse acompanhar traços perversos de Fortunato. Destaco alguns: o gosto do protagonista pelas cenas sangrentas no teatro, retirando-se nas farsas e representações leves. Duas outras marcações: tinha prazer em dar bengalada em cães que dormiam na calçada, quando vinha dos espetáculos, além da frustração que sentia quando algum doente sobrevivia, como aconteceu com o Gouveia. A cena do rato sintetiza a performance do protagonista. Ao descobrir que estava sendo observado por Garcia, Fortunato finge, isto é, entra no jogo do faz-de-conta, simulando ódio pelo animal, que lhe roubara um papel importante. Esse fingimento está perfeitamente sintonizado com as peças a que assistia. Ao ver as cenas violentas, projetava nelas o comportamento perverso que tinha com os doentes. O mesmo acontece com o caso do rato. O ódio fingido que sente pelo roedor corresponde à indiferença que demonstrou a Gouveia, quando este foi lhe agradecer pela "dedicação". Interessante observar duas cenas invertidas. Ao sacrificar o rato, Fortunato é observado e, para não passar por perverso diante do amigo, finge ter raiva do animal. Na cena em que Garcia beija Maria Luísa, ele já é o observador ativo, à distância, saboreando o quadro, sem sentir ciúme. Assim, o rato torturado da experiência acaba sendo um espelho da esposa morta que, na sua agonia lenta, lhe trouxe intenso prazer. Uma passagem sugestiva do texto parece confirmar a hipótese de Janine Chasseguet. Segundo ela, o perverso tem uma preocupação excessiva com a perfeição estética. Ora, perfeição estética e gozo ilimitado estão ligados. E o narrador, descrevendo as reações de Fortunato, afirma: "Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma cousa parecida com a pura sensação estética." (Grifo meu)

Desse modo, a fim de gozar infinitamente, Fortunato, na posição perversa, entra no jogo do faz-de-conta (seus fingimentos) ou frui através do olhar numa posição semelhante à do esteta.

Interessante ainda observar o final do conto, quando Fortunado contempla deliciosamente o beijo dado por Garcia em sua mulher. Percebe-se aqui uma retomada do teatro. Da mesma forma que se deleitava com cenas violentas nas peças a que assistia, aqui ele sente prazer ao ver o outro (a esposa e Garcia) a seus pés, aos desígnios de seu gozo infinito. Maria Luísa e Garcia funcionam, para Fortunato, como o outro, na condição de corpo para ser gozado em seu palco sexual. O outro se reduz a um objeto de gozo puro, submetido ao seu domínio total. A individualidade do perverso Fortunato é obtida graças ao uso e abuso que faz desses dois personagens, a esposa morta e o amigo. O outro fica assim nivelado ao objeto ou ao animal, sempre descartado na busca do gozo total. Convém assinalar que Fortunato dissecava animais em sua clínica. A esposa e o amigo, animalizados por ele, são assim o clímax desse descartar infinito de corpos quando dissecava cães e gatos em seu laboratório.

No mundo machadiano, todos representam. Viver em sociedade supõe fazer um papel. O amigo Garcia acaba traindo, imaginariamente, Fortunato e este, por trás de sua bondade, esconde traços perversos. Ele é metáfora da burguesia narcísica do século XIX (e de hoje também) que vê o outro como mero reflexo de seu gozo e auto-imagem. Maria Luísa também representa. Sente que está atraída por Garcia, mas nada conta ao marido. Desse modo, a vida em família se torna uma espécie de pequeno palco da sociedade do século XIX, constituído de elites que se deleitavam em impor seus caprichos a seus subordinados. Outras vezes essa mesma elite tomava atitudes, às vezes, perversas para se equilibrar politicamente, bajulando quem estivesse no poder, independentemente do partido político e das crenças morais. E o crítico José Guilherme Merquior, analisando o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, confirma esse traço perverso: "O ambiente de Brás Cubas é o das elites escravocratas de Oitocentos. Ambiente em que ócio e sadismo prevalecem."7 (Grifo meu). Como se vê, perversão e poder andam juntos.

Joel Birman afirma que "o exercício concreto do poder implica maneiras sutis e ostensivas de economia perversa."8 Assim, o perverso, na esteira ainda de Birman, é um capitalista no mercado do gozo, pois "o apetite pelo capital deve sempre se multiplicar em uma voragem infinita..."9

Voltando a Machado, podemos dizer que Fortunato, que no conto é capitalista, se encaixa perfeitamente nessa situação. Sendo representante da burguesia da época, sua sede de gozo está sintonizada com a busca ilimitada de poder e de capital dessa classe que fazia, e ainda faz, das tripas coração para conseguir maquiavelicamente seus objetivos. Também a ciência não fica fora dessa busca de poder e de capital nos tempos pós-modernos.

A atividade científica, forma de sublimação, quando não é praticada de acordo com padrões éticos, pode trazer sérias conseqüências. Convém ainda salientar que, no tempo de Machado, decisões do mundo científico, normalmente ligadas aos interesses do capital, continham ligeiros traços perversos. Basta ver, por exemplo, a preocupação excessiva com a higienização da sociedade da época, o que acabou gerando comportamentos exóticos. Fortunato é a metáfora caricata do cientista-capitalista voltado para suas "pesquisas, ignorando o mundo à sua volta. Ele faz lembrar Simão Bacamarte, do livro O Alienista, que vivia mergulhado em suas experiências, alheio ao que se passava ao seu redor prendendo indiscriminadamente as pessoas de Itaguaí. É essa atitude científica perversa, mascarada de neutralidade, que o escritor fluminense ironiza. No século XIX, a biologia, com seu discurso medicalizante e racional, era o paradigma do saber. Não estaria havendo, hoje, uma repetição desse paradigma, com a imposição narcísica do saber psiquiátrico sobre o psicanalítico, descaracterizando-o? Nesse sentido, Machado de Assis continua atual. Cito ainda as experiências atuais com a engenharia genética, que são bem semelhantes às do sinistro Fortunato ou do Dr. Simão Bacamarte. Por trás de qualquer pesquisa, se não houver ética, podem nascer atitudes e interesses que têm algum toque de perversão. Paulo Becker, em seu artigo "Psicanálise e ética do Bios", afirma:

"Nós sabemos que uma sociedade pode adoecer, e que uma das possibilidades de isto acontecer é quando a vontade de gozar do outro destrói a estrutura simbólica sobre a qual ela se ampara, impossibilitando o desejo."10

Para finalizar, levanto uma hipótese no campo da literatura: não teria a escrita machadiana também um toque perverso, na medida em que o autor, na busca da perfeição estética, faz uma reelaboração constante de seus textos, sempre desafiando o leitor a entrar num gozo estético infinito? Nesse caso, o próprio leitor, entrando nesse jogo ficcional, pode muito bem inverter os papéis e, perversamente, criar sentidos inesperados, traçando o romancista.

 

Bibliografia

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Várias histórias. Rio de Janeiro: Garnier, 1989.        [ Links ]

BECKER, Paulo. "Psicanálise e ética do Bios". In: RIOS, André Rangel (et alii). A bioética no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999.        [ Links ]

BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.        [ Links ]

CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.        [ Links ]

MERQUIOR, José Guilherme. "O romance carnavalesco de Machado". (Prefácio). In: ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Hum, 15/201 - Nova Pampulha
31370-690 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3496-8318
E-mail: edson.so@uol.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Texto, com ligeiras reformulações, apresentado ao Congresso Internacional sobre Perversão, promovido pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, em 2004.
II Graduado em Letras pela UFJF. Mestre em Literatura Brasileira pela UFMG. Professor da UFMG. Participante de Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
1 CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão, p. 112.
2 CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão, p. 113.
3 CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão, p. 144.
4 CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão, p. 127.
5 CHASSEGUET-SMIRGEL. Ética e estética da perversão, p. 143.
6 ASSIS, Machado de. Várias histórias, p.65.
7 MERQUIOR, José Guilherme. "O romance carnavlesco de Machado" (Prefácio). In: ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas, p.II.
8 BIRMAN. Mal-estar na atualidade, p.262.
9 BIRMAN. Mal-estar na atualidade, p.263.
10 BECKER. "Psicanálise e ética do Bios". In: RIOS, André Rangel (et alii). A bioética no Brasil, p.20.

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