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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Arte e cura no pensamento freudiano

 

Art and cure in the Freud's mind

 

 

Messias Eustáquio ChavesI

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo levanta algumas questões a respeito de arte e cura no pensamento freudiano. A criação artística – pintura, poesia, escultura, música, dança – é uma manifestação do inconsciente do autor? É uma forma de escritura comparável ao sonho e ao sintoma? O processo da criação artística produz efeitos de sublimação das pulsões e de ressignificação de conteúdos recalcados? Freud e Alain Badiou nos ajudam a encontrar as respostas.

Palavras-Chave: Arte, Cura, Escrita, Poesia, Sublimação, Fantasia, Sintoma, Sexualidade, Recalque, Retorno do recalcado, Transposição, Inconsciente, Perlaboração, Ressignificação, Criação artística.


ABSTRACT

This article raises some questions about the meaning of art and cure in Freud's mind. Is the artistic invention –painting, poetry, sculpture, music, dance – a demonstration of the author's unconscious? Is it a form of inscription comparable to dreams and symptoms? Is the process of artistic invention capable of causing effects such as instinct sublimation and repressed contents re-significations? Freud and Alain Badiou help us find our way to the answers.

Keywords: Art, Cure, Writing, Poetry, Sublimation, Fantasy, Symptom, Sexuality, Repression, Return of repressed, Transposition, Unconscious, Working through, Re-signification, Artistic invention.


 

 

Uma senhora em torno de 60 anos de idade me procura no consultório. Ela está angustiada e se diz deprimida, tendo consultado com uma psiquiatra, que a medicou. Foi aconselhada a fazer psicanálise e me procurou. Durante as primeiras sessões ela compartilha comigo suas angústias e sintomas. Sua vida tem se resumido em ficar deitada, coberta e encolhida, ou sentada à mesa, escrevendo, colocando no papel os seus sentimentos, quase sempre na forma de um poema. De vez em quando, me traz os seus escritos. Diz que escrever lhe faz sentir-se bem, alivia as suas tristezas e impede que fique o dia todo deitada, como se estivesse morta.

Após as sessões, leio com interesse o que ela me traz. Aprecio a qualidade literária e a capacidade de elaborar idéias e sentimentos. Observo, aos poucos, que o exercício da escrita não só lhe faz bem, mas também é um precioso aliado no processo analítico. Ao escrever em casa, ela está prolongando a experiência da sessão de análise, perlaborando. Passei a me perguntar sobre os efeitos da escrita, sobre a sua relação com o inconsciente do autor, sobre o aforismo freudiano de que "o sonho é a via régia para o inconsciente", sobre o aforismo lacaniano de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" e sobre a relação do sonho com a linguagem no inconsciente, e destes com o sintoma. Certo dia, no consultório, pensando nessa analisanda, eu pego folha, lápis, e escrevo o seguinte:

NÃO AGÜENTO MAIS

Dói, dói, dói de doer...
Dói tanto que dá vontade de morrer,
Misturei os comprimidos e me apaguei intoxicada,
Levantei daí uma semana com a cara toda amassada.

Deixei todo mundo preocupado,
"Viva" ou "morta"? Não conseguiam saber,
Disso eu sei que não queria ter pecado,
Apenas não dei conta de segurar o meu sofrer.

Agora tento me aprumar e cuidar de mim,
Vou ao analista e trato dos meus problemas,
O que dói não é saber que nasci em Alfenas,
É conhecer o que há de desconhecido em mim.

Cada dia descubro que sufoquei meus filhos de amor,
Amava tanto que tapava os buracos e nada faltava,
Doloroso é saber que um amor feito assim de tanto ardor,
É mais um amor de mim mesma, do que um amor que deles abundava.

Como é difícil sentir-se só, precisar de alguém,
Adoecer de tanto chorar a falta e a solidão,
Melhor me vacinar logo e carecer de ninguém,
Nem de Lourdes, nem de Ana, nem de Paulo, nem de João.

Não adianta negar, a gente é cara ou coroa,
De um lado o amor brilha, o coração se alegra e a mente voa,
Do outro o ódio escurece, os dentes rangem e o olhar dilacera,
Só resta saber o que fazer com "Isso", antes que a morte acelera.

Quando acordo me dá tristeza de levantar,
Dá vontade de ficar quieta e voltar a dormir,
Não sei se é fuga da realidade ou medo de vomitar,
Mas pode ser uma vontade enorme de daqui sumir.

Sei que o inferno está cheio e eles não me querem lá,
No céu pode haver um lugar pra mim e um anjo a esperar,
Só resta reparar os meus erros do lado de cá,
Para que, enfim, meus filhos possam me adorar!...

Os nomes próprios "Alfenas, Lourdes, Ana, Paulo e João" são meus disfarces encobridores, posição ética, mas tudo o mais tem a ver com a analisanda. Entreguei-me à criação poética e percebi que havia condensado várias sessões de análise neste poema. Se tem algum valor, deixo ao julgamento do leitor. Continuei pensando na clínica e nos efeitos da escrita, da produção literária, e reli "Escritores Criativos e Devaneio", "Romances familiares" e "Fantasias histéricas" – todos textos de Freud, de uma mesma época, entre 1907 e 1909. Algum tempo depois, releio "Moisés de Michelangelo", Freud, 1914, e "Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen", Freud, 1907. Tais releituras me levaram a muitas reflexões, que reputo ricas e produtivas para a minha prática clínica. Ocorreram-me muitas questões concernentes à fantasia-criação do autor e aos efeitos da produção artística em si mesma:

Primeira, em sua análise de alguns textos literários – Gradiva de Jensen, Leonardo da Vinci, Presidente Schreber, Moisés de Michelangelo – todos no período entre 1906 e 1915, Freud parece estar nos dizendo que o processo da criação artística tem o mesmo valor de uma formação do inconsciente, pois é comparável à elaboração onírica, à elaboração do sintoma, à elaboração de uma fantasia, ao processo de sublimação. Pergunto-me: uma criação artística – literatura, escultura, pintura, poesia, dança, música – reflete o inconsciente do autor? Um saber não-sabido sobre os conteúdos do seu inconsciente?

Segunda, toda obra é, em si mesma, a expressão do retorno do recalcado do autor?

Terceira, alguma obra artística – como produto da elaboração simbólica e da expressão possível de alguma fantasia inconsciente fundamental do autor –, poderia ser vista como um processo comparável ao do tratamento psicanalítico?

Quarta e última, a psicanálise é uma ciência ou é uma arte?

Para responder a estas questões, inventei o tema-referência "Arte e Cura no Pensamento Freudiano", buscando um momento de reflexão com o leitor, um diálogo interativo, uma conversa produtiva. Para mim, a releitura dos textos mencionados constituiu enorme prazer, principalmente a "Gradiva de Jensen". Tentarei – no limite do que for possível – responder às questões levantadas e, quando não for possível, procurarei, pelo menos, aproximar algumas especulações a respeito do que ocupava o pensamento de Freud naquele momento da sua trajetória.

Em "Gradiva de Jensen", o que desde o início me chama a atenção é a impressão de que o tempo todo Freud parece estar demonstrando ao leitor que este conto literário, produzido pela imaginação criadora do autor, é comparável à produção de um texto sobre "um caso clínico em psiquiatria". Temos a nítida impressão de que Freud teria desejado escrever "em psicanálise" e não o fez. Certamente, teve os seus motivos e podemos apenas nos perguntar se reside, em sua atitude, uma estratégia para lidar com as resistências à psicanálise, ainda tão fortes na época, levando em consideração que se tratava da análise da "criação imaginativa" do autor, isto é, de sua "fantasia pompeana". Percebemos o cuidado de Freud em tecer comentários sobre o texto, evitando qualquer tentativa de análise da pessoa do autor. Ao contrário, Freud parece buscar meios de valorizar a produção artística do autor aproximando-a de uma escritura psiquiátrica, ou, podemos também especular que, ao fazer isso, buscava, ao mesmo tempo, valorizar as suas descobertas sobre o inconsciente, através desta linda criação artística de Wilhelm Jensen.

Neste mesmo texto, Freud faz uma aproximação entre a "fantasia pompeana" de Jensen e as "descobertas da psicanálise". Para o meu propósito com este trabalho, destaco o seguinte trecho: "Provavelmente, bebemos na mesma fonte e trabalhamos com o mesmo objeto, embora cada um com seu próprio método. A concordância entre nossos resultados parece garantir que ambos trabalhamos corretamente. Nosso processo consiste na observação consciente de processos mentais anormais em outras pessoas, com o objetivo de poder deduzir e mostrar suas leis. Sem dúvida, o autor procede de forma diversa. Dirige sua atenção para o inconsciente de sua própria mente, auscultando suas possíveis manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de outros: as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não precisa expor essas leis, nem dar claramente conta delas; como resultado da tolerância de sua inteligência, elas se incorporam à sua criação".

Com base na minha experiência clínica e nas palavras de Freud, acredito que a criação artística reflete o inconsciente do seu autor. Por respeito a Wilhelm Jensen, Freud deixa encoberto, nas entrelinhas da análise que faz de Gradiva, que a produção literária é a expressão consciente da criação artística do autor e, ao mesmo tempo, é a expressão dos conteúdos de seu inconsciente. A sua obra, em si mesma, pode ser considerada como a formação de sintomas e a elaboração de fantasias do próprio autor. Freud deixa isto claro no seu pós-escrito de 1912, da Standard Edition.

Em "Leonardo da Vinci" e "Moisés de Michelangelo", encontramos os mesmos pressupostos teóricos detectados na "Gradiva de Jensen", como o recalque e o retorno do recalcado, a formação dos sintomas, o Édipo, a criação imaginativa, a elaboração de fantasias, a sexualidade e o interesse pelas pesquisas sexuais infantis, os ideais do eu, a estrutura do sujeito. Contudo, na Gradiva, 1907, Freud não menciona, em momento algum, a palavra "sublimação", o que vem fazê-lo em 1910, ao falar de Leonardo da Vinci.

É interessante notar que a estatueta de Moisés, atribuída a Nicloas de Verdum, é completamente diferente da estátua de Moisés feita por Michelangelo. Seria uma prova apenas da concepção artística do autor, de suas intenções conscientes, de seu plano de execução da obra, ou, ao mesmo tempo, seria uma prova de suas implicações inconscientes, ou seja, uma expressão artística, comparável à formação de um sintoma, de traços do inconsciente do autor da obra, isto é, da pessoa do artista?...

Em seu artigo "No Passo da Gradiva", diz Eliana Rodrigues: "O texto da Gradiva é também sobre técnica psicanalítica, porque o trabalho de Zoé com Hanold é um tratado sobre a interpretação psicanalítica. Cada interpretação dela com toda a sua equivocidade significante, com toda a ambigüidade e precisão pode desfazer o delírio de seu amado. Ela ‘banca' o analista para conquistar o amor dele. Com o analista acontece o contrário: ele ‘banca' o amado para se fazer analista". (...) "Os dois conversam e ele lhe conta tudo. Conta do sonho, do canário, do baixo relevo, pede que ela caminhe e vê que ela o faz igual ao relevo. Ela começa então a entrar completamente na fantasia dele, no lugar de ‘semblant' desse ‘objeto Gradiva' que ele inventou". (...) "Passa-se da insatisfação para a satisfação. É o caminho da cura".

Numa conferência proferida no Rio de Janeiro, em 29 de novembro de 2002, com o título Para uma estética da cura analítica, assim inicia Alain Badiou, em notas pessoais de Leila Mariné, membro do Aleph, BH – gentilmente cedidas através de cópia de Margarida Maria Coelho Chaves. Faço, aqui, a minha síntese de suas anotações: "Pretendo mostrar que algumas operações poéticas são formalmente idênticas à operação da cura psicanalítica. Então, podemos falar de uma estética da cura. Meu modelo será a poética de Mallarmé, e o conceito central desta poética é a transposição. A transposição de Mallarmé é semelhante ao destino de um tratamento (cura), uma análise. Lacan define a cura de uma forma precisa: como cura, ela deve elevar a impotência ao impossível. Passagem de um estado de impotência à experiência do real, ou seja, à experiência do impossível. A transposição poética é também uma passagem, na língua, da impotência ao impossível: passar de uma impotência da língua ao impossível na língua (ao indizível). Para Lacan, essa passagem é uma formalização. A transposição poética também é. (...) A idéia de Mallarmé é que todo pensamento é uma vitória sobre a morte. O mesmo acontece com uma cura em psicanálise. Uma análise não é um consolo, é uma vitória sobre o desaparecimento".

Eis o que Alain Badiou nos oferece para compreender o conceito de transposição:

1. Contra a impotência, o pensamento exige um encontro ou um acaso.
2. O encontro ou acaso também desaparece. Tratar o desaparecimento com outro desaparecimento. Algo semelhante à posição do analista, que deve desaparecer onde algo desapareceu. O poema está no lugar desse desaparecimento segundo, assim como a análise é o teatro de um desaparecimento segundo. O analista é o poeta, no sentido em que ele é o organizador desse desaparecimento.
3. Essa operação não tem nenhuma possibilidade natural, espontânea; é preciso uma situação artificial, como uma análise ou um poema. A análise é a idéia de que é necessária a construção de uma situação artificial, uma forma para tratar a perda.
4. A transposição é uma lógica. Essa lógica elimina qualquer idéia de indizível. Podemos chamar terapia à idéia de que o tormento é indizível, e que é preciso encontrar o impossível de ser dito. Para Mallarmé, o poema pode dizer o que há a ser dito; o que ele não pode dizer é o real do dizer. A verdade é o real do dizer que a lógica do poema pode produzir. Tanto para Mallarmé quanto para Lacan, a lógica da análise, como a do poema, constitui a possibilidade do encontro do real do dizer.
5. Para Mallarmé, a poética é anônima, implica o desaparecimento do poeta. O que desaparece ao final do poema é o sujeito da impotência, não o sujeito do real. O que Mallarmé propõe é que o poema faz advir um sujeito que não é o eu imaginário do poeta; é o sujeito puro do poema, tal como o poema o faz advir. A análise, se ela se assemelha ao poema, é no que ela faz advir o sujeito.
6. Em Mallarmé, a vitória sobre a perda é criação subjetiva, anulação do sujeito da impotência. A construção poética é assunção do sujeito. O que a torna possível é que todo desaparecimento deixa um traço. Há sempre um vestígio do que desapareceu. O trabalho poético é um trabalho sobre essas marcas.
7. O esquema do poema é – desespero / perda / traço / organização do desaparecimento / noção pura; ou seja, fazer desaparecer o vestígio. Não se tem nada mais que o vestígio e o sintoma. A transposição define uma poesia do vestígio, criando, no pensamento, um equivalente do desaparecimento. O objeto não volta, mas o desaparecimento do objeto volta sob a forma do desaparecimento desses vestígios.
8. Essa lógica de Mallarmé é aparentada da lógica da análise num ponto essencial: não se trata de uma interpretação, mas de uma organização formal que repete o próprio desaparecimento. Então, vocês não terão seu objeto, mas terão seu real.
9. O poema e a análise criam um sujeito do pensamento. O poema pode fracassar; a análise, também. A análise toca, no sujeito, algo de eterno, sua eterna contingência, como no poema. Seria, pois, uma estética da criação. Uma análise bem-sucedida seria uma obra de arte subjetiva.

Para encerrar, Alain Badiou diz à platéia: "a esperança de que vocês sejam grandes artistas".

 

Bibliografia

BADIOU, Alain. Para uma estética da cura analítica – Conferência. Rio de Janeiro, 29 de novembro de 2002. Anotações de Leila Mariné. Membro do Aleph Escola de Psicanálise – BH-MG.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907). Edição Standard Brasileira de Obras Psicológicas Completas. (ESB), v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios (1907). ESB, v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Romances familiares (1909). ESB, v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade (1908). ESB, v.IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância (1910). ESB, v.XI. Rio de Janeiro: Imago, 1970.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Moisés de Michelangelo (1914). ESB, v.XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia – Caso Schreber (1911). ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

MENDES, Eliana Rodrigues Pereira. No Passo da Gradiva – Revista Estudos de Psicanálise, n.28. Rio de Janeiro, CBP, set.2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Domingos Vieira, 348/803
30150-240 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3241-6837
E-mail: mesquio@uai.com.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

I Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

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