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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.55 Belo Horizonte jun. 2008

 

O FEMININO

 

Breve relato das idéias de Lacan sobre a histeria1

 

A short report on Lacan's ideas about hysteria

 

 

Marie-Christine Laznik*

Association Lacanienne Internationale

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora estabelece o percurso de Lacan em torno da Histeria, ao longo de muitos anos de seu ensino. A partir de casos clínicos de Freud, especialmente Dora, com referências a Elisabeth von R. e ao sonho da Bela Açougueira, enfatiza a concepção lacaniana do eu, em oposição àquela defendida pela ego psychology, e estabelece o desenho do jogo das identificações no caso Dora e da dualidade desejo/demanda no sonho da Bela Açougueira. Além disso, trata da questão da mascarada como recurso de acesso à feminilidade e estabelece especial atenção ao conceito de mais-de-gozar.

Palavras-chave: Histeria em Freud e Lacan, Eu ideal, Ideal do eu, Caso Dora, Elisabeth von R., O sonho da Bela Açougueira, Identificação, Desejo, Gozo, Mais-de-gozar, Feminilidade, Histeria masculina, Mascarada.


ABSTRACT

The author has outlined Lacan’studies of hysteria during his many years of teaching. Based upon Freud’s clinical studies of the case of Dora, with additional references to Elisabeth von R and, also, to the Beautiful Butcher’s dream, she has emphasized Lacan’s conception of the I (je) in opposition to that defined by ego psychology. The dynamics of the game of identifications in Dora’s case have been established along with the duality desire/demand in the Beautiful Butcher’s dream. Besides this, she discusses the question of masquerades as a resource to femininity and dedicates special attention to the concept beyond enjoyment.

Keywords: Hysteria in Freud and Lacan, Ideal ego, Ego ideal, The case of Dora, Elisabeth von R., the Beautiful Butcher’s dream, Identification, Wish, Enjoyment (juissance), Beyond enjoyment, Femininity, Masculine hysteria, Masqueraded.


 

 

“Foram as histéricas que ensinaram a Freud
o caminho do inconsciente propriamente freudiano.
É aí que faço entrar o desejo da histérica
2”.
Lacan, Le Séminaire, XI

 

I – Como Lacan aborda a questão da histeria na SPP

O caso Dora abordado por Lacan em 1951 (primeira abordagem)
Os primeiros avanços sobre a questão, de que temos indícios, encontram-se numa intervenção no Congresso de Línguas Românicas de 19513. Lacan sustenta que o paciente é um sujeito mais a ser ouvido do que a serem observados os aspectos mudos de seu comportamento. “Freud incumbe-se de nos mostrar que há doenças que falam e de nos fazer ouvir o que elas dizem... Parece que esta verdade inspira aos analistas um receio crescente”. Ele propõe repensar a obra de Freud para reencontrar o autêntico sentido de sua iniciativa. Baseará sua demonstração no caso Dora.

Para ele, a psicanálise é uma experiência dialética e esse caso apresentado por Freud opera-se por uma série de reversões dialéticas4.

Primeiro desdobramento: depois de assegurar-se de que podia confiar nele, Dora relata a Freud a ligação entre seu pai e a Sra. K, sendo ela, Dora, oferecida como moeda de troca ao Sr. K. Pergunta ela a Freud: E quanto a isso, o que o senhor quer mudar? Como primeira reversão dialética, Freud lhe propõe que verifique a participação que ela toma nos transtornos de que se queixa.

Segundo desdobramento: Dora reconhece que sua cumplicidade permitiu que prosseguisse a relação entre os dois amantes, e ela descreve a troca dos presentes. Quanto à relação edipiana, ela se revela constituída em Dora por uma identificação ao seu pai, da qual Lacan se questiona, desde seu primeiro texto, se não seria favorecida pela sua impotência sexual. Acrescenta até que essa impotência seria experimentada por Dora como idêntica à prevalência de sua posição de riqueza (fortuna) e sublinha uma alusão inconsciente possibilitada pela semântica da palavra fortuna em alemão: Vermögen5. Essa identificação ao pai se traduz pelos sintomas de conversão e sua interpretação desperta o surgimento de um grande número deles. Mas, então, o que significaria o ciúme repentino de Dora em relação a seu pai? Segunda reversão dialética: Freud assinala que esse ciúme mascara um outro, pelo sujeito rival.

Terceiro desdobramento: o apego fascinado de Dora a Sra. K (de quem ela exalta a brancura encantadora do corpo) e suas confidências recíprocas. Então, Freud perceberia um problema: como é possível que Dora não pareça ressentida com a Sra. K que, no entanto, traiu-a, denunciando suas leituras? Terceira reversão dialética: é nesse momento que seria revelado o valor real do “objeto” Sra. K, que, para Dora, encarnaria o mistério da feminilidade corporal. Para sustentar esta hipótese, Lacan faz uma breve alusão ao sonho de Dora.

É a uma lembrança da primeira infância que ele vai atribuir uma significativa importância: Dora suga seu dedo, retirando-o da orelha de seu irmão caçula de 18 meses. Isto significaria que sua imagem especular – proveniente do estágio do espelho, imagem alienante por excelência, mas indispensável como alicerce da imagem do corpo – constitui-se sobre este pequeno outro, que é seu irmão. Desde então, é esta imagem masculina que lhe servirá de eu ideal (moi), ou seja, de eu na acepção lacaniana do eu como imagem alienante6.

Dora terá então uma imagem masculina como eu (moi), o que não quer dizer que o ser de seu sujeito será masculino7. Uma das riquezas da contribuição lacaniana se estabelece nesta distinção – elaborada nos anos imediatamente seguintes a este texto – entre o moi e o je, sujeito do inconsciente8, a verdadeira revolução do pensamento moderno não embasado na substituição da terra pelo sol no centro do sistema planetário, mas na introdução do teorema de Kepler que permite saber que não havia um espaço central, mas dois. Para o sujeito humano também é assim: há o moi e o je, sujeito do inconsciente.

Entretanto, que Dora resgate o sujeito masculino como imagem de seu pai coloca uma questão: como assumir um corpo próprio como mulher? É aí que entraria o valor da Sra. K para ela. Valor ainda maior em razão de não ter um acesso à sua imagem corporal feminina no estágio do espelho, deixando-a exposta à fragmentação funcional, da qual os sintomas de conversão seriam a tradução.

Mas, para ter acesso ao objeto Sra. K, figura do mistério de sua própria feminilidade, Dora deve tomar emprestada uma identificação imaginária: seu moi, sua imagem especular, que é o Sr K. Essa imagem sucede àquela de seu irmão, na primeira infância. Toda a agressividade de Dora contra o Sr. K é típica da relação narcísica com a imagem do pequeno semelhante, relação necessária, mas alienante. Vê-se bem, desde então, como as interpretações normatizantes de Freud concernentes a seu desejo pelo Sr. K não podem encontrar nenhuma ressonância em Dora.

Nesse tratamento, Freud faz a experiência, ainda nova, da transferência; é a primeira na qual ele reconhece que o analista tem aí sua participação. Lacan fala da transferência dita “negativa” de Dora como sendo a operação do analista que interpreta, mas nada mais diz, então, a esse respeito. Nos anos seguintes, desenvolverá a idéia de que a resistência na transferência deve situar-se do lado do analista e denunciará a psicanálise da época que, bem esquecida de Freud, tendia a reduzir-se a uma análise das resistências.

Freud pensou que as manifestações sinceras de desejo do Sr. K por ela poderiam lhe ser benéficas. Seria preciso ainda que Dora pudesse considerar-se no lugar de objeto de desejo para um homem, o que a leva de volta ao lugar de objeto na ordem das trocas (já descrito por Lévi-Strauss em As Estruturas Elementares de Parentesco). Dora pressente algo dessa ordem no acordo tácito entre seu pai e o Sr. K e se rebela.

Para toda mulher, ocupar esse lugar de objeto de desejo não é simples. Como não se sentir um dejeto? Eis um dos segredos da feminilidade que a Sra. K parece possuir. Daí a fascinação que exerce sobre Dora. A Madona da Sixtina, que tanto a atrai, traz consigo a solução preconizada pelo cristianismo para esse impasse subjetivo: fazer da mulher o objeto de um desejo divino ou um objeto que transcende o desejo. Lacan retomará extensivamente este ponto exato... vinte anos mais tarde9. Mas é surpreendente ver que estes reparos ele os faz desde esta primeira intervenção.

Na cena do lago, mesmo vivenciando uma situação estável, o que faz adoecer Dora são as palavras ditas pelo Sr. K: “Minha mulher não é nada para mim.” Mas, a partir daí, o que ele será para ela? É o que pergunta Lacan em 1951. Será preciso esperar alguns anos ainda, e seu trabalho sobre o além do amor, para que ele possa articular que é o próprio lugar de Dora no amor de seu pai que oscila de maneira catastrófica.

Pode-se observar, desde então, a reviravolta que sua leitura opera sobre o texto de Freud. Este último interrogava-se sobre o objeto de desejo de Dora. Estaria enganado? De início, deveria interpretar seu desejo homossexual pela Sra. K?10 Lacan se questiona sobre qual é o valor estrutural da Sra. K para Dora, em função das diversas identificações nas quais ela se inclui. Seus sintomas são, sobretudo, tentativas de trazer uma resposta aos impasses nos quais ela se encontra. Ele aposta que, se Freud tivesse apresentado as coisas dessa maneira a Dora, teria sido prestigiado por ela e já garantido uma transferência positiva11.

A posteriori, tem-se, às vezes, o sentimento de que, na ocasião da primeira entrevista visando uma psicanálise, o sujeito expôs todos os elementos essenciais em torno dos quais vai operar seu trabalho analítico durante os anos seguintes. Assim também encontramos, em estado germinal, nesta intervenção, um grande número de pontos que Lacan desenvolverá ao longo dos anos: o da divisão inerente ao ser humano entre o moi e o sujeito do inconsciente (je), o do desejo histérico e do desejo em geral, o da diferença entre os registros das identificações imaginárias e da identificação a um traço do pai, suporte do Ideal do eu, e tempo lógico anterior ao acesso de uma menina à sua feminilidade. Encontramos aí até aquele ponto, da difícil divisão para uma mulher, entre sua identificação ao pai como Ideal e o fato de ter de prestar-se ao papel de objeto, causa de desejo para um homem. Vemos, de início, que as questões do desejo, das identificações de uma mulher, de sua feminilidade vão tornar-se indissociáveis da clínica da histeria e do caso Dora. É lá que estão os esboços de futuras reflexões que engendrarão novos conceitos de que Lacan não dispunha ainda. Entretanto, poderíamos dizer que – contrariamente à idéia admitida que dá a seu estudo sobre a psicose um papel mais importante – é a clínica da histeria que guia suas interrogações, seus remanejamentos, suas releituras da obra de Freud e suas próprias invenções nos anos seguintes12. É o que vamos tentar demonstrar.

 

II – A questão da histeria para Lacan durante os dez anos da SFP

1953-1954: seu seminário sobre os escritos técnicos de Freud
Lacan só faz breves alusões à questão que nos interessa. O debate central desse seminário é impedir que toda a psicanálise não se reduza a uma análise das resistências. Ele assinala que não há em Freud, nos seus Estudos sobre a Histeria, onde se possa afirmar que a resistência vem do eu. Sustenta, sobretudo, a idéia de que o centro de gravidade do sujeito13 “é essa síntese presente do passado que se chama história”14. O que se passa quando Freud repete a uma paciente histérica uma história contada por sua mãe? A paciente responde com uma pequena crise de histeria, é uma resposta pelo sintoma. Freud (em seus Estudos sobre a Histeria) afirma que o que é buscado é o núcleo patogênico, e que esse último rejeita o discurso. O que é então a resistência? É esta inflexão que impede o discurso de se aproximar do núcleo; seu sentido é histórico. Na hipnose, também, o sujeito porta esse discurso histórico, ainda que, ao sair do transe, não se lembre mais.

É ai, diz Lacan, que começa a técnica analítica porque a rememoração do trauma se mostra terapêutica. E, já para começar, toma partido: “É ambíguo falar do caráter vivido, revivido do traumatismo no estado secundário histérico. Não é porque o discurso seja dramatizado, representado sob um aspecto patético que a palavra revivida pode nos satisfazer”.

E de se insurgir: “O que isso quer dizer: a assunção pelo sujeito de sua própria experiência de vida?”15.

Para ele, a questão é saber quem é o sujeito do discurso. Exatamente sobre isso é que ele se deterá, dois anos depois, afirmando que, na neurose, o elemento determinante é o Outro da linguagem, no qual o sujeito se reconhece e se faz reconhecer.

1955-1956: a questão da histeria no seminário sobre as psicoses
Lacan abre um parêntese em seu estudo sobre a psicose para compará-la à questão da histeria, dedicando a isso duas lições.

Um caso de histeria masculina
Vai discutir longamente uma observação de histeria traumática descrita por J. Eisler em 1921. Pelo que sabemos, trata-se de um dos casos raros de histeria masculina comentado por ele16. Vale a pena deter-se aí, ainda que para isso abandone-se, por enquanto, o fio que ele segue de modo permanente a propósito da histeria: “Reler Freud”.

Trata-se de um homem de 33 anos, condutor de trem, cuja doença começa depois de um acidente que provocou sua queda do veículo. É levado ao hospital, nada é constatado. Só mais tarde é que vão começar as crises de dor na primeira costela e as perdas de consciência. Nada encontrando, fala-se de histeria traumática e enviam-no a Eisler. Lacan assinala que, já em 1921, Eisler interessa-se muito pela análise das resistências e pelo moi de seu paciente; procura traços de analidade e interpreta suas tendências homossexuais, mas nada se modifica. Para Eisler, o desencadeamento da neurose é devido ao trauma, mas Lacan observa que, na infância de todo sujeito, há grande ocorrência de traumas. O que provocou a descompensação da neurose não foi o acidente, mas as radiografias realizadas depois. Pelo seu modo, sua periodicidade, as crises fazem pensar em uma fantasia de gravidez. A questão que impõe este sujeito é então a seguinte: “Sou ou não alguém capaz de procriar?” Esta questão situa-se ao nível do Outro, de modo que a integração da sexualidade esteja ligada ao reconhecimento simbólico.

Já vemos aí destacar-se o “pequeno outro imaginário” (o pequeno semelhante, sobre o qual repousa minha imagem especular e ao qual meu eu pode vir a identificar-se) do “grande Outro”, lugar simbólico, lugar ao qual se endereça todo discurso. Este Outro é o lugar onde os vagidos do bebê foram traduzidos em palavras, e reconhecidos como demanda de um sujeito. Nesse sentido, Lacan toma uma posição radical: “Se o reconhecimento da posição sexual do sujeito não está ligado ao aparelho simbólico, à análise, só resta desaparecer.” E acrescenta que o sujeito encontra seu lugar num aparelho simbólico preexistente que instaura a lei da sexualidade. Esta lei não permite mais ao sujeito realizar sua sexualidade, a não ser sobre esse plano simbólico.

O médico que seguia este paciente de Eisler disse à sua mulher: “Eu não consigo atinar para o que ele tem. Parece que, se ele fosse uma mulher, eu compreenderia melhor”. Na sua infância, esse paciente tinha sido testemunha de uma cena de parto aterradora. Uma vizinha, depois de longos períodos de contorções, de pernas atiradas para o alto e de gemidos, tinha dado à luz uma criança que tiveram de seccionar em partes. Lacan observa nele, não somente uma fantasia de gravidez, mas também uma fantasia de fragmentação anatômica. Insiste na questão da fantasia, para distinguir a questão da neurose daquela da psicose, particularmente com o caso Schreber (o que é extensivamente questionado neste seminário).

No caso desse outro paciente, trata-se de um fenômeno histérico; a anatomia fantasmática, imaginária, aí é estrutural; as paralisias ou anestesias não seguem os trajetos nervosos17. A questão desse sujeito situa-se no nível do ser; ele se pergunta quem ele é, homem ou mulher? Aliás, seus interesses, pelas galinhas ou pela botânica, giram em torno da questão da germinação. Quando cai do trem, ele desaba, é parido. É o que as radiografias do interior de seu corpo irão confirmar. Ainda aí, não se trata de um problema de escolha do objeto, mas de uma dificuldade de identificação simbólica. Se o simbólico dá uma forma na qual se insere o sujeito no nível do seu ser, há algo que escapa à sua trama, é a procriação. Quando se considera a questão do histérico masculino, trata-se, de fato, da posição feminina. Então, convém compará-la à histeria feminina, retomando o caso Dora.

O caso Dora (segunda abordagem)
Também para ela, a questão é: O que é ser uma mulher?18 O que é um órgão feminino? Lacan diz que os dois sonhos de Dora serão esclarecedores neste sentido.

Lembra então a dissimetria no complexo de Édipo, sempre marcado por Freud. Para a mulher, a realização de seu sexo não se faz por identificação à mãe, mas por identificação ao objeto paterno, o que lhe confere um viés suplementar. Mas, acrescenta: “As desvantagem em que se encontra a mulher quanto ao acesso à identidade de seu próprio sexo convertem-se na histérica em uma vantagem, graças à sua identificação imaginária ao pai, que lhe é perfeitamente acessível em razão, especialmente, de seu lugar na composição do Édipo”.

O erro de Freud a respeito de Dora foi o de começar pela questão do objeto; ele não considerou a duplicidade subjetiva inata aí implicada. E de não acrescentar: “Ele se pergunta o que Dora deseja antes de se perguntar quem deseja em Dora”19.

Há como que uma dança a quatro (Dora, o pai, o Sr. K, a Sra. K), na qual Freud acabaria percebendo que é a Sra. K o objeto que interessa verdadeiramente a Dora, de tal modo está ela identificada ao Sr K.

Isto lhe permite situar uma terceira forma de identificação, diferente das anteriores. Não uma identificação ao pai através do sintoma histérico, mas a um pequeno outro, pequeno semelhante, através da ligação imaginária especular, identificação esta que especifica a ligação de Dora ao Sr. K (já havia sido uma questão em 1951, no primeiro texto sobre Dora).

Lacan a retoma com tanto mais interesse que ela lhe permite abordar detidamente sua concepção do eu. Resume aí o que desenvolveu em seu seminário durante o ano anterior, sobre o caráter imaginário do eu. Baseando-se em texto de Freud de 1922 a 1925, afirma que a teoria do eu autônomo não é freudiana. A ego psychologie é um perigo para a psicanálise e é preciso denunciá-la. O caso Dora lhe seve maravilhosamente bem: se o eu de Dora é o Sr. K, que análise pode-se construir sobre isto? Para Lacan, o eu é uma miragem, o que Freud chama Eu Ideal. Sua função não é de objetividade, mas de ilusão. Vai mostrar que é porque o eu de Dora é o Sr. K que se podem reconhecer seus sintomas.

Sua afonia se produz durante as ausências do Sr. K. Freud admite que talvez seja porque ela não tenha mais necessidade de lhe falar e que basta escrever-lhe. Lacan responde que a afonia surge porque ela é deixada só, diante da Sra. K. Tudo o que ela pode perceber das relações de seu pai com a Sra. K gira em torna da felação, o que parece bem mais significativo para compreender a intervenção dos sintomas orais. A identificação de Dora ao Sr. K mantém esta situação até o momento da descompensação neurótica.

Coloca-se a questão da histérica: interrogar o que é a mulher. Partindo de Algumas Conseqüências Psíquicas a Respeito da Diferença Anatômica entre os Sexos, Lacan faz um extenso desenvolvimento a respeito da dissimetria do Édipo, que lhe parece bem mais prevalente que a mudança do objeto de amor ao qual a menina está forçada. Esta dissimetria, ele vai situá-la no nível simbólico. Não há simbolização do sexo da mulher. Em relação ao sexo do homem, o imaginário só fornece uma ausência. É uma Gestalt fálica e não a prevalência do objeto materno que força a menina a seguir durante certo tempo o mesmo caminho que o menino.

Vemos aí surgir o início de sua teoria do falo. Por esta prevalência do falo ele estabelece uma identificação imaginária ao pai, na menina e no menino. Este falo é colocado aí no seu valor significante, simbólico. No nível da experiência vivida, da simpatia dos ego (iguais?), a menina deveria ter um acesso direto à sua feminilidade. O caso não é assim. Para Dora, é sua identificação ao homem portador de pênis que lhe serve de instrumento imaginário para apreender o que ela não chega a simbolizar, o que seria uma mulher.

Esta lição do seminário leva a diversas observações. Primeiramente, a mais simples: Lacan diz que Freud sempre assinalou a dissimetria entre menino e menina no Édipo; o que é falso. Em seu capítulo sobre a Identificação, em Psicologia das Massas (1921), depois de ter descrito a primeira identificação ao pai, concomitante ao primeiro investimento de objeto libidinal sobre a mãe, Freud escreve: “A mesma coisa vale para as substituições correspondentes para a menina”20. Nessas substituições correspondentes é necessário colocar a mãe no lugar do pai e vice-versa. Sabemos que só a partir de seu texto Algumas Conseqüências Psíquicas das Diferenças Anatômicas entre os Sexos (1925) é que esta dissimetria é estudada. Lacan salva então o pai, operação que ele qualificará, mais tarde, de histérica e à qual estamos submetidos, diante de um autor que é o pai fundador de um campo do saber. Seguramente, não estamos isentos em relação a Lacan.

Aliás, em seu texto sobre a diferença anatômica, Freud precisa que o pai não é o primeiro objeto de investimento libidinal da menina; também como para o menino, é sua mãe. Quanto a esta primeira identificação ao pai, ele não volta a mencionar. Lacan, em seu seminário sobre a identificação (1961-1962), dirá que ela é válida para todo sujeito, menino ou menina. É verdade que só num segundo tempo, no momento da descoberta de sua castração e a de sua mãe, que a menina muda de objeto. Freud, aí toma partido contra uma concepção mais naturalista da identificação, tal como Jones vai defender e que preconiza um conhecimento inato da vagina pela menina e, então, sua primeira identificação à mãe. Freud afirma a superioridade do falo para os dois sexos e Lacan também. Não é menos verdade que esta primeira identificação, mítica, ao pai não seja evidente e não deva se confundir com a identificação imaginária, ao pai, na histeria, que Lacan insiste em assinalar21. A este ponto de sua elaboração a questão das identificações permanece ainda obscura. O que é evidente, é que há todo interesse em abordar este caso pelo viés, mesmo complexo, das identificações que o de tomá-lo pelo viés da relação de objeto. Viés completamente enganador e é a isso que será direcionado o seminário seguinte, onde ele retoma ainda o caso Dora.

1956-1957: Dora no seminário da relação de objeto (terceira abordagem)
Assinalando já ter feito uma primeira avaliação desta observação, cinco anos antes22, ele então sublinha ter indicado que:

A histérica ama por procuração; ela é alguém cujo objeto é homossexual; ela aborda este objeto homossexual, por identificação a alguém do outro sexo. Trabalhando sobre a relação narcísica como fundadora do eu, Urbild da constituição dessa função imaginária que se chama moi, Lacan tinha mostrado que havia vestígios nessa observação: o eu (moi) de Dora fez uma identificação a um personagem viril, Sr. K, e os homens são para ela outras tantas cristalizações possíveis de seu eu (moi). Por que a Sra. K é tão importante? Não somente porque é objeto de uma escolha dentre outros objetos, não somente porque ela está investida da função narcísica, base de todo enamoramento (Verliebtheit), mas como os sonhos o indicam: a Sra. K é a questão de Dora23.

Como Dora situa-se em relação ao Édipo? Toda a observação repousa sobre a noção central da impotência do pai, e é o que teria feito com que Dora não pudesse ultrapassar o Édipo. Segundo Lacan, a frustração primitiva na qual a menina se encontra em relação à sua mãe provém do objeto do qual a menina é frustrada; porém o desejo desse objeto subsiste nela e vai tornar-se signo de amor. A menina vai demandá-lo ao pai, que pode lhe dar simbolicamente. Mas, a Dora, ele não doa porque ele não o tem.

A doação de amor
Pergunta-se Lacan, o que é doar? No grau simbólico da relação de objeto, este pode ou não ser doado. Dora permanece muito presa a este pai de quem não pode receber o dom viril. Tão presa, lembra Lacan, que sua história começa por uma série de episódios histéricos na idade de saída do Édipo24, ligados a manifestações de amor a esse pai combalido, doente, acometido em suas potências vitais. “O amor que ela tem por esse pai é correlativo e proporcional à depreciação dele”25. Então, o que é demandado na relação de amor, o que vale como sinal de amor e que só vale como sinal, é o que não se tem. “Não existe maior doação possível do que daquilo que não se tem.”

A doação implica a lei, e Lacan retoma a questão no plano sociológico: o dom é algo que circula, o dom que se dá é o dom que se recebeu. Então, ao nível do sujeito o ciclo da doação vem de outra parte. A relação de amor se estabelece porque o dom é doado em troca de nada. Por trás do que o sujeito doa, há tudo aquilo que lhe falta; ele sacrifica além do que tem. Se um sujeito é cumulado de bens, um dom proveniente dele não é sinal de amor. Só se pode amar o outro por aquilo que lhe falta. Mesmo o Outro, o grande Deus, só pode ser amado pela única coisa que lhe falta: a existência. “O que é amado em um ser está para além daquilo que ele é, do que lhe falta”.

Como Dora se crê amada por seu pai
Dora ama seu pai, e ela o ama por aquilo que ele não lhe dá. Diante de Dora, o pai se empenha em algo de que ela não está isenta de haver induzido: sua relação com a Sra. K que viria então constituir um “além” de Dora, que seria justamente o que faltaria a ela e pelo qual ela seria amada por seu pai. A Sra. K encarna a função feminina, e Dora situa-se então entre seu pai e a Sra. K. Como seu pai ama a Sra. K, Dora sente-se satisfeita. Esta posição é simbolizada de mil maneiras: o pai impotente que supre por todos os meios possíveis de doação simbólica – inclusive por doações materiais – aquilo que não efetua como presença viril. Ele consegue, aliás, beneficiar Dora com generosidades, igualmente repartidas entre a filha e a amante, o que a faz participar de certa posição simbólica.

Como se tudo isso não bastasse, Dora tenta restabelecer esta mesma relação, mas num sentido inverso. É diante da Sra. K que ela estabelece uma situação triangular com o Sr. K. A Sra. K, como a Madona de Dresden, seria objeto de adoração e, além da adorada Sra. K, haveria Dora. A Sra. K ocuparia assim, nesse novo triângulo, o lugar que Dora ocupa naquele formado com seu pai.

Representa-se, então, a catástrofe para Dora quando ela ouve o Sr. K lhe dizer que sua mulher nada é para ele (Ich habe nichts an meiner Frau). Isso queria dizer que ela, Dora, nada é para seu pai.

O que Lacan teoriza assim sobre a doação de amor lhe permitirá, mais tarde, estabelecer a importância fundamental da noção de falta no Outro, que pode permitir que apenas o Outro parental, o Outro real esteja à altura de investir libidinalmente o bebê, de “falicizá-lo”. Quando não há esta falta o resultado pode ser catastrófico para a criança26. Mas, logo Lacan é levado a avançar sobre suas primeiras hipóteses a respeito do que vai denominar objeto fálico.

O objeto fálico e o desejo
O sujeito feminino só entra na dialética da ordem simbólica pelo dom do falo. Quanto à necessidade do órgão feminino como tal à fisiologia da mulher, Freud não a negou, mas jamais situou isso na posição de desejo. Para Lacan, o desejo aponta de tal modo o falo que este deve ser recebido como doação, e é como objeto doado que ele faz o sujeito entrar na dialética da troca. É no interior desta que a necessidade real – de que Freud nunca pretendeu negar a existência –, ligada ao órgão feminino, encontrará seu lugar e poderá satisfazer-se de quebra. Mas ele jamais é posicionado simbolicamente como algo que tenha um sentido, permanece sempre problemático27. Está aí introduzida, a propósito da histérica, a questão do desejo.

1957-1958: o desejo e a histérica no seminário das formações do inconsciente
Lacan escuta o sintoma histérico: Elisabeth von R.
28
Elisabeth von R. foi a primeira análise completa de um caso de histeria, nos lembra Lacan. O que interessa é a maneira como Freud considera aí o sintoma como uma máscara: “Essa pequena máscara que faz prever um sentido oculto29”. O sintoma apresenta-se sob uma máscara, sob uma forma paradoxal e Lacan decide chamar sintoma tudo aquilo que é analisável. Esta noção de máscara representa a forma ambígua sob a qual se apresenta o desejo na histérica, que não permite poder orientá-la em relação a esse ou àquele objeto. Assim, Freud engana-se, não somente com Dora, mas também com a jovem homossexual.

Em Elisabeth, de início, a dor apresenta-se de modo reservado, mas aos poucos, Freud pode fazer com que seja associada ao relato de sua presença prolongada junto ao pai doente. Em uma espécie de nevoeiro, Freud entrevê o desejo que podia ligá-la a um de seus amigos de infância com quem ela esperava se casar. Em seguida, há suas relações com seus cunhados. Parece que o sintoma precipitou-se em torno de sua relação com um deles, aquele que havia formado, com a irmã de Elisabeth, um casal particularmente feliz. Estamos então no início da psicanálise, o que justifica a instabilidade de Freud em querer interpretar para Elisabeth o seu sintoma (especialmente a dor na perna) como um desejo reprimido por esse cunhado. Lacan considera que, em uma histérica, esse tipo de interpretação é uma intromissão forçada, tal como dizer a Dora que ela estava apaixonada pelo Sr. K.

Porém, no material colhido por Freud, há todos os elementos que permitem ler, de outro modo, e de maneira mais convincente, sua observação. Principalmente, a devoção longa e penosa de Elisabeth junto ao pai doente. Esse papel de enfermeira, junto a uma pessoa próxima, parece ser, em si mesmo, uma situação histerógena, à medida que obriga o sujeito a estar em posição de ter, constantemente, de satisfazer a demanda. Em seguida, se estabelece um clima de desejo pelo qual o sujeito passa a se interessar. Lacan adverte contra o perigo de querer implicar o sujeito nessa situação, de modo muito rápido. Sabendo que se trata de uma histérica, é arriscado afirmar que ela se interessa pelo cunhado do ponto de vista da irmã ou, por sua irmã, do ponto de vista do cunhado. “A identificação da histérica pode, perfeitamente, subsistir de um modo correlato em diversas direções”30.

Para Lacan, a histérica está implicada numa situação de desejo inconsciente e é isso que o sintoma mascara. Freud diz que o sintoma fala na sessão (isso fala); as dores, os borborigmos fazem parte do discurso do sujeito e são os indicadores da carga que o sujeito está liberando na sessão. O sintoma histérico é, então, a máscara desse desejo inconsciente. Aliás, ao fim de sua observação, Freud descreve na paciente uma verdadeira salva de sintomas psíquicos, que ele vai tomar, ao pé da letra, como enunciados. Sua dor de garganta é a tradução do que ela não pôde engolir da ofensa que lhe foi feita, sua dor no rosto é a bofetada na imagem pelo ferimento moral experimentado, enquanto que a cabeça lhe pesa sob a carga dos pensamentos inconscientes. Sente náuseas? Então é preciso procurar o acontecimento que as provoca.

Monique David-Ménard, em seu livro sobre a histeria, lembra que, a partir de 1908, Freud é levado a desinteressar-se do sintoma em sua especificidade. Ou seja, em sua escuta de pacientes, passa a não levar em conta a diferença entre um sintoma histérico e um outro. Segundo ela, isto inaugura uma linha de separação entre duas correntes. De um lado, os analistas atraídos pela psicossomática: Felix Deutsch, Franz Alexander, que continuariam a se interessar pelo corpo na histeria. De outro, Freud, Melanie Klein e Lacan que “interessam-se pela estrutura do fantasma histérico sem mais ceder à fascinação que esse corpo da histérica mostra (dá-se a ver) e que o analista não mais considera, pois ele o escuta”.

O sonho da Bela Açougueira: o desejo do sujeito é o desejo do Outro
É a propósito deste sonho que, pela primeira vez, Freud fala de desejo.

“Quero dar um jantar, mas tudo que tenho é um pouco de salmão defumado. Queria sair às compras, mas lembrei-me de que é tarde de domingo e todo o comércio está fechado. Quero telefonar a alguns fornecedores, mas o telefone está com defeito. Devo então renunciar ao desejo de dar um jantar.”

Esta paciente desejaria comer sanduíche de caviar todas as manhãs, o que seu marido lhe ofereceria de bom grado, mas ela lhe implora para não fazê-lo. Freud fala então de desejo insatisfeito e se pergunta qual é a função de tal desejo. Ela associa a partir de um pedido de convite para jantar, que lhe faz uma amiga que até agrada a seu marido, mas essa amiga é um pouco magra e seu marido prefere as mais cheias de corpo. Freud interpreta seu sonho como desejo de não ajudar engordar a amiga que poderia, então, agradar ainda mais a seu marido. Mas ele, Freud, está sempre intrigado: “A que se refere salmão defumado nesse sonho? Ela responde que é o prato predileto da amiga.” Por acaso, Freud conhecia essa amiga e sabia que, pelo salmão defumado, ela tinha o mesmo apreço que a paciente pelo caviar.

A primeira interpretação de Freud visa à identificação: é porque se identifica a esta amiga que ela se permite um desejo não realizado; ele distingue então a identificação histérica de um simples contágio, de uma imitação. Lacan sublinha, a esse propósito, que o desejo, desde sua primeira aparição, surge como desejo insatisfeito. Qual é sua função?

Distinguir a demanda do desejo
Continuando, Lacan vai nos dizer que a histeria é a estrada real pela qual se pode compreender algo de fundamental para o homem em geral. Trata-se da distinção a se fazer entre a questão do desejo e a da demanda. Essa distinção, capital para o prosseguimento da teoria lacaniana, será introduzida pelo viés da clínica da Bela Açougueira. O que ela queria? Queria o amor de seu marido. O que ela deseja? Caviar. E o que ela quer? Que não se dê a ela caviar. Para que uma histérica possa suportar uma relação amorosa, é necessário que possa desejar outra coisa que não aquela que lhe é oferecida pelo Outro. O desejo, para Lacan, é o que resta da demanda, após a satisfação da necessidade. Se um objeto capaz de satisfazer uma necessidade alimentar viesse responder à demanda, não ficaria além da satisfação dessa necessidade. Assim, o desejo da histérica se constitui quase totalmente a partir do desejo do Outro. Mais tarde, Lacan estende essa referência ao desejo em geral, a estrutura própria do desejo, guardando certa afinidade com o desejo histérico.

Mas há uma outra pista: em uma mulher histérica um desejo insatisfeito lhe permitiria imitar um Outro incompleto, não provido de tudo, em suma, incapaz de satisfazê-la. Um Outro não barrado seria terrível para ela, pois devido à sua sugestionabilidade ela desapareceria diante dele como sujeito. Assim, é abordada a questão da necessidade da castração, da falta no Outro. Logo, Lacan vai perceber que essa incompletude do Outro real é sempre necessária para que um objeto possa constituir-se, e é na condição de faltante que o Outro poderá ser desejante de algo. Esta incompletude do Outro, ele escreve .

A Bela Açougueira nos Escritos31: o desejo e a linguagem
Em julho desse mesmo ano, 1958, Lacan retomará o essencial de suas considerações sobre a histeria num texto sobre a direção da cura32, onde faz notar que o sonho da histérica resume o que Freud, na Interpretação de Sonhos, explica sobre os mecanismos inconscientes de condensação e de deslocamento, comprovando a relação do desejo à linguagem. O sonho da Bela Açougueira lhe permite exemplificar o que ele compreende por metáfora e metonímia, ou seja, o automatismo das leis que regem a cadeia significante.

O efeito de metáfora: a substituição de um termo por outro
O salmão defumado, objeto de desejo de sua amiga, é tudo o que ela tem para oferecer; o salmão defumado vem substituir o caviar que Freud toma como significante do desejo da paciente: o sonho seria, então, uma metáfora do desejo da paciente. Há como que um efeito de sentido positivo. Mas, aqui, o desejo se apresenta em seu registro pré-consciente. Esse desejo, seu marido está pronto para satisfazê-lo. Mas, isso ela não quer. Se Freud articula então seu desejo como desejo de ter um desejo insatisfeito, Lacan acrescenta que ela não quer ser satisfeita em suas únicas necessidades. Ela quer outras, gratuitas e, para estar bem certa de que elas o são, não quer satisfazê-las33.

O efeito da metonímia: a combinação de um termo a outro
A metonímia é esse efeito possibilitado pelo fato de que uma significação envia a uma outra significação. No caso da Bela Açougueira, se o desejo é expresso como insatisfeito, ele o é pelo significante caviar. É preciso ainda “que o significante o simbolize como inacessível, mas a partir do momento em que ele desliza como desejo no caviar, o desejo de caviar é sua metonímia”34.

Vê-se aí que essas significações, que se reenviam umas às outras, têm como denominador comum o pouco de sentido que está na base do desejo e lhe confere certo acento de perversão; isto é devido ao fato de que o desejo é a metonímia da falta-a-ser. E eis reintroduzida a questão da falta que desempenhará um papel importante em sua teoria.

Retorno ao seminário das formações do inconsciente
O sonho da “água que dorme”: o significante falo, o sujeito pode ter ou pode ser
Para continuar interrogando a questão do desejo da histérica, Lacan vai tomar um outro exemplo na Traumdeutung. Refere-se ainda a uma paciente histérica. Freud compara essa jovem inteligente, fina e reservada em seu comportamento à “água que dorme35. (NT: em português, são usuais, nesse caso, as denominações “água morna” e “mosca morta”). Seu primeiro sonho é muito curto: “Sonhei que chegava muito tarde ao mercado e não encontrava mais nada no açougueiro nem no vendedor de legumes.”

Suas associações conduzem Freud em direção ao que Lacan chama de significante do falo. Sobretudo, o açougue fechado levou Freud a associar a uma gíria, comum em Viena, onde a expressão açougue aberto significava a braguilha aberta, deixando entrever algo. O elemento fálico oculto no sonho é claramente analisado por Freud, a propósito dos legumes oferecidos à sonhadora: um molhe de rabanetes negros e de aspargos, cuja característica sexual é reforçada. Mas o açougueiro do sonho usa uma expressão alemã que remete à ausência de algo, como “isto não há mais”: “Das ist nicht mehr zu haben.” Este enunciado, Freud reconhece como algo que ele mesmo disse à paciente. Se Freud tenta compreender aí a origem das frases ouvidas nos sonhos, Lacan vai interessar-se por esta frase como a constatação de uma falta de objeto. E acrescenta que não se trata de uma experiência frustrante, mas de uma significação como tal36. O que ele quer destacar é o falo como significante daquilo que o Outro não tem. É justamente porque falta ao Outro que pode ser significante do desejo deste Outro37.

Um segundo sonho da mesma paciente: “Seu marido lhe pergunta se não é preciso afinar o piano. Ela responde que não vale a pena. (Es lhont nicht).” Esta frase, ela disse na véspera, durante a visita a uma amiga. Pediam-lhe para tirar seu casaco e ela respondia que não valia mesmo a pena, ela já estava de saída. Freud pensa então que, nesse mesmo dia, durante a sessão, ela havia levado a mão bruscamente até o casaco, onde um botão acabava de abrir-se. “É como se ela dissesse: Eu lhe peço para não olhar desse lado, não vale a pena.” Houve substituição no sonho entre a caixa do piano Kasten e a caixa torácica, Brustkasten; Freud observa aí o vestígio das dificuldades experimentadas pela paciente no momento da constituição de seu corpo de moça. Lacan não recusa este aspecto da leitura, mas vai mais além.

Se o falo é o significante do desejo, e do desejo do Outro, então outra vertente do problema vai colocar-se para o sujeito: ser ou não ser esse falo. Mas o sujeito mulher não pode reduzir-se a ser o falo. Então, vai rejeitar o que ela é na aparência. Lacan disse em 1958 que esta é exatamente a posição da mulher na histeria. Na condição de mulher ela se mascara. “Ela se mascara para ser, por trás desta máscara, o falo.”: todo o comportamento da histérica manifesta-se pelo gesto dessa mão levada ao botão, acompanhada da frase “Não vale a pena.” Não vale a pena, pois não importa que se olhe por trás, o que importa é que o falo aí esteja. Mas, afinal, não vale a pena ir até lá olhar porque, justamente, aí é que não o encontrará. Há uma provocação histérica: algo que é apresentado ao desejo, apresentado por trás de um véu, mas que, por outro lado, não poderia ser encontrado aí. Lacan resume essa provocação assim: “Não vale a pena você abrir meu corpete, porque não encontrará aí o falo, mas se eu levo a mão ao corpete, é para lhe apontar, por trás dela, o falo, isto é, o significante do desejo”38.

O corpete da histérica torna-se a condição fundamental da mulher em relação ao homem, referente ao desejo. “Por trás da combinação, aí você nada vai ver, justamente porque não há nada, nada além do significante”. Nada além do significante do desejo39.

Depois de ter lembrado que era assim o desvelamento do falo nos Ritos antigos, Lacan faz associação a propósito do pudor. Se no homem é o falo que deve estar coberto, na mulher é a totalidade de seu corpo que deve permanecer velado, condição para que possa estar, inteiramente, no lugar do falo. O desvelamento, que nada mostrava a não ser a ausência, é o que Freud denominou de pavor: l’Abscheu, o horror que responde à ausência como tal, a cabeça de medusa: “Acedendo ao lugar do desejo, o outro não se torna, de modo algum, o objeto total, mas ao contrário, ele se torna totalmente objeto, na condição de instrumento do desejo”.

Pretendo fazer aqui algumas observações a respeito desse lugar da mulher como objeto do desejo. Vimos, desde as primeiras intervenções sobre Dora, que esse era o lugar mais problemático. Nossa clínica psicanalítica quotidiana não ouviu o discurso feminista para saber como este lugar pode ser totalmente intolerável para alguns sujeitos femininos. Essa possibilidade de divisão do sujeito feminino, que se refugiaria na mascarada para portar, por trás, um lugar fálico, é certamente, não apenas uma solução elegante, mas talvez a única possível para lhe permitir ter acesso à feminilidade. A feminilidade como mascarada é o sujeito de um texto de Joan Rivière40 que Lacan cita no início desse seminário e muito trabalhado nas lições seguintes, ainda que não o faça explicitamente. J. Rivière descreve, em certas mulheres, uma aparente fragilidade feminina e a correlativa capacidade de seduzir. Seria uma mascarada que ocultaria uma posição fálica, viril, com êxitos socioprofissionais que ela só pode interpretar em termos de inveja do pênis e inquietudes referentes a represálias que, segundo a teoria a que ela se refere, só poderiam ser decorrentes disso41. Para ela, trata-se aí de uma situação de clivagem, necessariamente patológica. Entretanto, ela designa esta mascarada pelo nome de feminilidade.

Não pudemos trabalhar aqui a maneira pela qual Lacan, em seu seminário, chega a considerar que toda menina deve fazer uma identificação a um traço do pai. Trata-se de identificação ao objeto de amor, descrito por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu, que ele denomina de regressiva, por desapontamento amoroso. Não é pelo fato de que a menina possa apoiar-se nessa identificação às insígnias de seu pai, base do seu Ideal do eu, que ela poderá, em seguida, arvorar-se em mascarada da feminilidade sem temer, com essa semelhança, a perda de seu ser, “ao fazer-se objeto do desejo de um Outro”. Vemos aí que essa Spalltung, essa clivagem, longe de ser um elemento patológico, torna-se então a estrutura própria de acesso de uma mulher à feminilidade. Lacan faz da Ich Spalltung de Freud uma condição estrutural do sujeito neurótico, ou seja, daquele não psicótico.

Mas o sujeito só pode sustentar-se como dividido porque terá passado pela experiência da falta no Outro primordial, de sua divisão, marca de sua incompletude. Como o falo aí está barrado, ele pode inscrever-se . Já se deparou com a Spalltung: é estruturado por ela porque já sofreu seus efeito42.

Dora, quarta abordagem: é a histérica quem sustenta o desejo do Outro
Nos seminários anteriores, Lacan considerava a Sra. K encarnando a questão da feminilidade para Dora. Agora, ele dispõe o conceito de desejo como desejo do Outro... A Sra. K será o desejo de Dora, na medida em que ela é o desejo do pai e, por outro lado, desejo barrado. Dora nunca ignorou a impotência de seu pai, o que permite a Sra. K ocupar esse lugar de objeto de desejo insatisfeito43.

Lacan possui agora outros instrumentos de leitura; reconhece vários tipos de identificações: aquela a um traço do pai, constituinte do Ideal do Eu e, também, a identificação histérica. Enfim, há uma terceira44, propriamente especular; a identificação ao pequeno semelhante, base da constituição do eu, bem próxima de sua noção de Eu Ideal. Para Dora, é o Sr. K quem desempenha esse papel, razão de seu interesse por ele – o que Freud considerou como amor. Identificando-se a ele, Dora deseja a Sra. K; desejo que nada tem de impotente porque o Sr. K porta as insígnias de virilidade e potência. Sob esse aspecto, há sentido em se dizer que Dora é homossexual, mas histérica como outra qualquer. Como seu pequeno arranjo mantém Dora nessa posição, pode supor que, assim, sustenta o desejo enfraquecido do Outro: no caso, seu pai45. É ela o seu apoio46. Mas para manter esse pequeno arranjo, é indispensável que o Sr. K deseje a Sra. K. Quando ele diz a Dora que sua mulher nada é para ele, desperta em Dora, sem saber, questões sobre sua própria existência: o fato de que ela vive para sustentar o desejo enfraquecido do pai. A bofetada mostra a dimensão da violência desencadeada pela queda de sua construção.

Lacan também diferenciou a demanda do desejo. A Sra. K é o desejo de Dora, mas o que Dora demanda é o amor de seu pai. Como ela não pode mais sustentar o desejo do Outro, só pode recorrer à demanda pura e simples: a reivindicação do amor do pai.

1958-1959: o seminário sobre o desejo e sua interpretação
Na fantasia, a histérica faz o papel de obstáculo

Lacan apresenta uma primeira elaboração de seu conceito de objeto “a”, objeto da fantasia do sujeito47. Este objeto da fantasia, objeto de desejo, leva ao desejo do Outro. Como o desejo do sujeito pode sustentar-se diante do desejo do Outro? Não se aproximando demais dele. Para isso, podem-se considerar algumas soluções. A histérica, por exemplo, apóia-se no desejo insatisfeito. A Bela Açougueira deseja comer caviar, mas não quer que seu marido lhe compre, é preciso que esse desejo permaneça insatisfeito. A histérica atribui a ela mesma a função de ser obstáculo, aquela que não quer. Nas situações tramadas por ela, seu gozo consiste em impedir a realização do desejo. Na relação do sujeito ao objeto da fantasia – que Lacan escreve: – a histérica vem ocupar esse lugar mediano, terceiro, que impede o encontro entre o sujeito () e o objeto (a). Nesta relação desdobrada, a histérica institui-se como o motor da máquina que os manteria suspensos, um ao outro, como espécie de marionetes; é ela quem está como aposta, em jogo48.

1969-1961: o seminário sobre a transferência (quinta abordagem do caso Dora)
Como Lacan é levado a modificar sua concepção de objeto “a” da fantasia

Para Dora, o semelhante, o pequeno outro da identificação especular havia sido o irmãozinho, objeto de desejo da mãe, tendo um valor libidinal, fálico para ela. Sendo assim, esse irmão havia ocupado o lugar de Eu Ideal, objeto de identificação imaginário para Dora, lugar depois herdado pelo Sr. K.

O conceito de objeto a – surgido pela primeira vez no seminário sobre o desejo – designaria então o objeto do eu, o pequeno outro. O Sr. K seria o objeto pequeno a da fantasia de Dora. Assim, a fantasia se encontraria tributária deste pequeno outro.

Dora não quer contentar-se com uma fantasia que visaria o pequeno outro, quer algo muito melhor; ela visa o grande Outro, o Outro absoluto. De início, Lacan pensa que pelo fato de ser histérica Dora não terá a mesma relação, na fantasia, ao pequeno a... Depois, num segundo tempo (num procedimento que lhe é habitual), são os conceitos de objeto pequeno a e de fantasia que ele será levado a remanejar, após testar seus limites.

A histérica pretende ser dotada do falo imaginário; aceder ao Outro
Para Dora, a Sra. K é a encarnação da questão: o que é uma mulher? Este “quem sou eu?” tem pra ela um sentido pleno e absoluto. E, a cada vez, responde de modo restrito e velado à questão do falo simbólico. É por isso que ela tenta “escamotear” a situação, aliás, como toda e qualquer histérica, deslizando para aí a questão do falo imaginário. Vejamos como.

Dora se vê no grande Outro. Seu pai é impotente com a Sra. K? O que importa? É ela quem fará a cópula, quem sustentará essa relação, pagando com sua própria pessoa, fazendo intervir a imagem, substituída a ela, do Sr. K. É ele “que ela atira ao abismo, que ela lança às trevas exteriores, no momento em que esse animal lhe dirá a única coisa que não deveria dizer: minha mulher nada é para mim. Ou seja, não me excita. Se ela não te excita, para que então tu serves?”49. Trata-se então, para Dora, como para toda histérica, de ser dotada do falo imaginário. Se, nos dramas sentimentais, ela está sempre lá, devotada, sustentando nos bastidores tudo que se apresenta de apaixonante e que, entretanto, não é de seu interesse, é que há algo que prefere em lugar de seu desejo: que o Outro guarde a chave de seu mistério. E, para isso, ela se esforça para “reanimá-lo, garanti-lo, completá-lo, repará-lo”50.

Lacan vai então retomar a fórmula da fantasia para integrar aí a relação ao grande Outro enquanto marcado pela castração () e o falo imaginário, oculto em sua dimensão faltante (-). Em seguida, esses elementos serão integrados na nova conceituação do objeto pequeno a que, desde então, suportará a falta-a-ser do sujeito do desejo, bem como a falta no Outro e implicará a questão do falo em sua forma negativa. No ano seguinte, o formulará assim: “O objeto pequeno a, nós o vemos surgir no ponto de enfraquecimento do Outro.” O que o fará associar ao membro jamais reencontrado do deus Hórus e, certamente, à impotência do pai de Dora51. Esse objeto a vai tornar-se, então, o objeto causa de desejo.

 

III – Lacan fala da histeria na escola freudiana de Paris

Uma vez consumada a ruptura definitiva com a IPA, Lacan imprime uma aceleração importante às suas conceituações. Se ele permanece um leitor assíduo de Freud, torna-se ainda mais inovador e, com isso, mais difícil de ser seguido por aqueles que não realizaram todo o trajeto anterior. Alguns psicanalistas lacanianos chegarão até a detectar aí uma ruptura epistemológica com a obra de Freud52, mas tal opinião está longe de um consenso e, certamente, não é a nossa.

1969-1970: a histeria no seminário XVII – o avesso da psicanálise
O impossível do gozo fálico: a reivindicação peniana

Aqui, Lacan começa colocando a impossibilidade do gozo fálico como um fato geral. Segundo Freud, se nada pode se aproximar do gozo mais perfeitamente que o órgão masculino, o problema é que só o órgão pode ser favorecido, não o seu portador. E quando, em desespero de causa, esse portador vem oferecê-lo à sua parceira, ele deve se empenhar para fazê-la aceitá-lo. Aceitá-lo do parceiro masculino é reconhecer que ela não o possui e aí as coisas se complicam. O parceiro masculino, apesar de seus esforços de amor, seus cuidados e sua ternura, só faz reviver a chaga da privação. “Essa ferida, da qual não pode ser compensada pela satisfação que poderia apaziguá-la é, pelo contrário, reavivada pela sua presença, pela presença daquilo cuja nostalgia causa a ferida.”

Lacan vai demonstrar através de qual subterfúgio a histérica escapa à reivindicação peniana; como ela tem êxito em simbolizar essa primeira insatisfação.

A Bela Açougueira desconhece o mais-de-gozar
A Bela Açougueira mostra a seu ardente marido “que ela não necessita de que ele venha cumulá-la de mimos, o que significa que isso nada vai acrescentar ao essencial”53, ao que ele já lhe oferece. A Bela Açougueira não vê, apesar das indicações contidas em seu sonho, que seria deixando esse “essencial” de seu marido a uma outra é que ela poderia esperar pelo mais-de-gozar. Quanto a Dora, ela consegue ver dessa maneira. Está feliz de deixar esse “essencial” a Sra. K – Madona de Dresden, que ela adora. Temos aí a solução à reivindicação peniana, ainda que seja a mais escandalosa.

Um gozo fálico proveniente da ligação edipiana não iria afrontar a reivindicação peniana54. Mas esse gozo é interditado pela norma social.

Quando o prazer cede ao desprazer, é o gozo
A investigação psicanalítica descobre uma suplência para esse gozo fálico interditado, de origem completamente diversa: o mais-de-gozar. Para abordar essa outra origem, é preciso, de início, levar em conta que o desejo provém de Eros, a presentificação da falta. A seguir, é bom distinguir entre gozo e princípio do prazer; este último tomado como princípio de menor desprazer... Esse gozo é próprio do homem, um animal que irá se movimentar para obter, sobretudo, o mínimo de gozo. Como ele pode começar nas cócegas e terminar na fogueira, ninguém quer experimentá-lo demais, mesmo se for grande a tentação55. Em 1920, Freud descobre o Além do Princípio do Prazer, que ele denomina repetição. Essa repetição é uma denotação precisa de um traço56, à medida que promove uma irrupção de gozo. O caçador da pré-história, quando escava mais um traço em sua arma, seguramente inscreve o gozo de um acontecimento. A repetição do sintoma histérico também comemora um gozo. Assim, as dores na perna de Elisabeth von R. eram ainda mais intensas, da mesma forma que as cenas rememoradas foram motivo de irrupções de gozo.

Vemos aí que o prazer é “violado em sua regra e seu princípio, porque ele cede ao desprazer – não à dor, seguramente”57. Isto nada mais é do que o gozo.

Elisabeth von R. e o mais-de-gozar
A dimensão do mais-de-gozar está bem presente neste material clínico. Elisabeth von R. diz como a visão da cena em que seu cunhado cuidava da felicidade de sua irmã tinha o dom de emocioná-la. Sabemos como Freud preocupava-se em saber qual podia ser então o objeto de seu desejo e acreditava que ela se encontrava identificada a essa irmã de quem queria ocupar o lugar. Por conseguinte, ele interpretava o sintoma doloroso como efeito da culpa. Mas, inverter as identificações e crer que ela visa o irmão como objeto de desejo, não parece mais judicioso a Lacan. O que deve ser marcado é seu interesse pela cena de desejo como tal. Nessa cena, tal como o capitalista que tira proveito da mais-valia obtida por seus trabalhadores, ela, como boa histérica que é, extrai daí o mais-de-gozar58.

Lacan sustenta seu conceito de mais-de-gozar fazendo uma analogia ao de mais-valia de Marx. É certo que estamos um ano depois de 68, mas, sobretudo, ele está afetado por suas reflexões sobre o lugar do gozo na dialética do senhor e do escravo de Hegel59. A histérica, sacrificando o gozo fálico a outros, pode ter a ilusão de estar numa relação particular com o mestre. É o caso de Dora.

Dora e o pai castrado
Esse pai, pivô de sua história, é um homem castrado quanto à sua potência sexual, um homem doente, sem expectativas. Mas, mesmo um doente ou um moribundo como ele tem, como um ex-combatente, uma atribuição simbólica; é um antigo reprodutor. Pai ele é até o fim de sua vida. Há sempre algo da ordem da potência na palavra pai. É no campo simbólico que o pai, desempenhando o papel de mestre, pode – no discurso histérico – “sustentar sua posição em relação à mulher, mesmo estando incapacitado”60. É o pai idealizado.

Em que sentido o Sr. K é conveniente para Dora? É porque ele possui o órgão e isto ela sabe desde o primeiro embate amoroso deles, aos 14 anos, quando ele comprimiu seu corpo ao dela, num vão da janela. É o órgão que tem o valor desse terceiro personagem; não para que Dora desfrute dele, mas para que uma outra mulher dele se veja privada.

Análise dos sonhos de Dora
Há dezenove anos que Lacan comenta sobre este caso e, se acaso fez uma ou outra alusão, para mim61, esta é a primeira vez que analisa os dois sonhos de Dora.

A respeito do primeiro, repara que não é a jóia que interessa a Dora, mas o estojo, presente do Sr. K. É da caixa, do envoltório do órgão precioso que ela desfruta. “Ela sabe muito bem se fazer gozar, como o comprova a importância decisiva para ela da masturbação infantil (...) é provável que isso tivesse alguma relação com o ritmo fluido, escorrente, cujo modelo é a enurese”62. Em sua história, é mencionado que a enurese foi relacionada, tardiamente, na identificação com a do irmão, um ano e meio mais velho. Ele sofreu enurese até os oito anos, depois, foi ela quem iniciou. A enurese seria o estigma do fato de que Dora, quando criança, colocava-se imaginariamente no lugar do pai, mas do pai impotente63.

A Sra. K, que Dora contempla na figura da Madona de Dresden, é aquela que é capaz de sustentar o desejo de seu pai e também de acolher o desejo do Sr. K. Desses gozos, Dora é duplamente excluída. Se ela o suporta tão bem, provavelmente é em identificação a um outro tipo de gozo, próprio do mestre: o mais-de-gozar. Lacan lembra então a ligação entre enurese e ambição. Do Sr. K. ela só quer receber o estojo, porque sua jóia, importuna para ele, que vá amoitá-la em outro lugar. Por conseguinte, como poderia ela tirar vantagem na oferta feita no enunciado: “Minha mulher nada é para mim”? Dora não quer o gozo que se oferece aí; vai preferir “o saber como meio de gozo para fazê-lo servir à verdade do mestre que ela, Dora, encarna”64. E a verdade é que o mestre é castrado. Lacan lembra então que, se quer dominar o escravo, o mestre deve excluir o gozo fálico para si mesmo. É a condição para obter disso o benefício do mais-de-gozar.

Freud diz que é preciso não esquecer de que, para que se constitua um sonho, não basta que ele represente um desejo vivo do sujeito em relação ao presente; é necessário que um desejo da infância lhe forneça suas bases. “E aí, toma a referência – habitualmente considerado um recurso elegante – do empresário em sua relação com o capitalista cujos recursos acumulados, o capital da libido, permitirão a decisão de passar ao ato”65. Simples metáfora? Seja como for, ela agradou a Lacan que trabalhou as relações entre o capitalismo e a função do mestre e extrai seu conceito de mais-de-gozar do conceito de mais-valia. O desejo da criança ganharia sua força no mais-de-gozar; ou seja, aquilo que se acumula como capital de libido, a partir do fato de que a criança é excluída do gozo da cópula dos adultos.

O segundo sonho assinala que o pai simbólico é o pai morto; que só se alcança a partir de um lugar vazio e sem comunicação. Sua mãe lhe diz: “Venha se quiser, seu pai morreu e está sendo enterrado.” Esse venha se quiser faz ressonância à frase da Sra. K, convidando-a à casa do lago. Dora vai encontrar-se então no vazio do apartamento deixado pelos que foram ao cemitério. Aí, ela encontra facilmente um substituto do pai: o dicionário, esse grosso livro, onde se ensinam coisas relacionadas ao sexo. O que lhe importa – até mais que a morte do pai – é o que ele produz de saber. Não um saber qualquer, é um saber sobre a verdade, essa verdade com a qual Freud a ajuda na experiência analítica. Quando ela obtiver a satisfação de fazer com que todo mundo saiba da verdade das relações entre seu pai e a Sra. K e das suas com o Sr. K, poderá então concluir sua análise, mesmo que Freud não pareça satisfeito com a solução quanto a seu destino de mulher.

Freud constatou que tudo o que pôde fazer pelas histéricas, só conduziu-o até o Penisneid, ou seja, à censura da menina à sua mãe por não tê-la criado menino. O que é relatado sobre a mãe, sob forma de frustração, poderia, no discurso da histérica, desdobrar-se assim: de um lado, a castração do pai idealizado e, de outro, a assunção ou não, pelo sujeito feminino, do gozo de ser privado disso66.

Como de costume, Lacan vai generalizar o que acaba de enunciar a respeito de Dora. Terminará sua lição dizendo que o fato de o pai ser castrado é o que se trata de dissimular. E fará crítica a Freud por não ter escutado bem o discurso das histéricas. De fato, é nesse seminário que Lacan introduz os quatro discursos: do universitário, do mestre, do analista e, também, o da histérica. Seria interessante tratar aqui do discurso da histérica, mas como esses quatro discursos remetem uns aos outros, nenhum pode ser tomado separadamente67. Seria necessário dedicar-lhes um outro texto, que ultrapassaria a questão da histeria.

 

 

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Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008

 

 

*Membro da Association Lacanienne Internationale (ALI). Professora da Universidade Paris 13.Doutora em Psicanálise.
1 Petite histoire des idées de Lacan sur l’hystérie (Trad. Carlos Antônio Andrade Mello, membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG).
2 LACAN, J. Le Séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris: Le Seuil, 1973, p.17.
3 Intervenção no relato de Lagache sobre a transferência (1951). Revue Française de Psychanalyse, t.XVI, n.1-2, jan/jun. 1952, p.154-163, republicada em J. Lacan, Les Écrits. Paris: Le Seuil, 1966, p.215-225.
4 Isto não seria um artifício de Freud, e sim uma escansão das estruturas onde se transmite para o sujeito sua posição como sujeito, do qual seus “objetos” seriam funções.
5 Vermögen significa, em princípio, “capacidade, poder” e pode ser empregado em uma forma negativa como “Es ist nicht in meine Vermögen”, não está em meu poder. A mesma palavra significa também fortuna, bens, riqueza. Mas, quanto a isso, a observação de Lacan não nos parece clara.
6 É preciso não esquecer a situação do debate psicanalítico da época: a ascensão da psicologia do ego, contra a qual Lacan vai insurgir-se. É nesse propósito que, três anos depois, vai consagrar todo seu seminário à questão do eu na teoria de Freud.
7 Lacan só voltará a essa identificação ao irmão dezoito anos mais tarde. Enquanto isso, ela será substituída por uma identificação às insígnias do pai, anteriores à sua própria feminilidade. A divisão então será mantida.
8 Para clareza de propósito, adiantamos aqui conceitos que serão expostos somente dois anos depois.
9 Em seu Séminaire, livre XX: Encore (1972-1973). Paris: Le Seuil, 1975.
10 Da mesma forma que estamos numa tomada retroativa da obra de Lacan, ele também assim procedeu em relação a Freud. Conhece todas suas descobertas a respeito do lugar da mãe como objeto de amor da menina no período pré-edipiano e as mudanças, não somente de objeto, mas, ainda, de identificação.
11 Transferência positiva que Lacan não deixava de suscitar em seus analisantes, o que lhe fazia, às vezes, ser tomado como sedutor. Ele iria teorizar essa questão, anos depois, em seu seminário sobre a transferência.
12 Infelizmente, não dispomos de anotações do seminário do ano 1952-1953, o último que ele realizou na SPP, antes da cisão que resultou na sua saída. Porém, pelas alusões que fez mais tarde, pensamos que tratou do caso Dora.
13 Não nos esqueçamos de que ele opõe o sujeito ao moi.
14 LACAN, J. Le Séminaire, livre I: Les écrits techniques de Freud (1953-1954). Paris: Le Seuil, 1975, p.46.
15 LACAN, J. Idem, p.47.
16 LACAN, J. Le Séminaire, livre III: Les Psychoses (1955-1956). Paris: Le Seuil, 1981, p.189 e seg.
17 LACAN, J. Idem, p.201.
18 LACAN, J. Idem, p.193.
19 LACAN, J. Idem, p.197.
20 FREUD, S. Oeuvres Complètes, v. XVI, p.43.
21 Como veremos no seminário sobre as formações do inconsciente, dois anos depois, ele falará de uma identificação a um traço do pai. Esta identificação será, para Lacan, fundadora do Ideal do eu (moi), identificação simbólica e permanente.
22 Essa indicação faz alusão a um seminário na SPP, de que não temos registro, ou trata-se, simplesmente, de sua intervenção no Congresso de língua românica em 1951?
23 LACAN, J. Le Séminaire, livre IV: La relation d’objet (1956-1957). Paris: Le Seuil, 1994, p.138 e seg.
24 Não é a primeira vez neste seminário, e isto se repetirá no início do seguinte, que Lacan fala de travessia, de saída do Édipo pela menina. Apesar de já ter citado distintamente os três trabalhos de Freud sobre a questão do Édipo na menina – O Declínio do Complexo de Édipo (1924), Algumas Conseqüências Psíquicas das Diferenças Anatômicas (1925) e A Sexualidade Feminina (1931), parece não ter observado uma mudança de nomenclatura em Freud. De fato, se Freud fala de saída do complexo de Édipo pela menina no primeiro de seus textos, não fala mais assim a partir do segundo. Para a menina, trata-se, então, de entrar no Édipo e, não mais, de sair. Não é fácil reparar um mestre, às voltas com suas tergiversações, suas contradições, seus recuos, que originam todos os avanços. Entretanto, mesmo a Lacan que tentou fazê-lo com Freud, isso pode escapar. Para um leitor de Lacan a tarefa é difícil: fazer o mesmo com sua obra, quer dizer, fixar-se ao espírito de Lacan e não ao seu texto.
25 LACAN, J. Idem, p.140.
26 A esse respeito, ver M.C. Lasnik-Penot, Vers la parole, trois enfants autistes en psychanalyse. Paris: Denoël, 1995, p.68-69, 113-114, 155-156.
27 Vamos nos permitir aqui um pequeno aparte clínico sobre o que foi dito. Pode-se perguntar se o tabu, o temor mesmo, que envolve a questão do desejo feminino depois da menopausa não poderia ser atribuído a essa impossibilidade de reparar simbolicamente o desejo sexual da mulher quando ele não é mais tomado como uma promessa de troca simbólica, quer dizer, quando ele não pode mais ser contemplado pelo dom do falo, sendo a criança uma representação inteiramente concreta. Mesmo que essa promessa possa não se cumprir durante anos, ela permite atribuir esse caráter de troca simbólica potencial ao ato sexual.
28 LACAN, J. Le Séminaire, livre V: Les formations de l’inconscient (1957-1958). Paris: Le Seuil, 1998, p.324 e seg.
29 Freud, S. Études sur l’hystérie, 1895.
30 LACAN, J. Idem, p.326.
31 LACAN, J. La direction de la cure et les principes de son pouvoir. Inicialmente publicado em La Psychanalyse, vol. 6, PUF, 1961; republicado depois nos Écrits. Paris: Le Seuil, 1966, p.620 et s.
32 Suas considerações sobre a histeria lhe servem também para criticar, com vigor, as proposições feitas em um livro recém-publicado: La Psychanalyse d’aujourd’hui, obra coletiva de membros da SPP.
33 Em 1964, em seu seminário sobre os quatro conceitos fundamentais, Lacan retomará essa questão, a propósito da pulsão que distinguirá, de maneira radical, da satisfação da necessidade.
34 LACAN, J. La direction de la cure et les principes de son pouvoir, idem, p. 622. FREUD, S. L’interprétation des rêves, Paris: PUF, 1967, p.164 et s.
35 FREUD, S. L’interprétation des rêves. Paris: PUF, 1967, p.164 et s.
36 Neste seminário, Lacan articula o que elabora sobre a histeria com o que tenta abordar sobre a sexualidade feminina, temas sempre intricados em sua obra. Discute, particularmente, conceitos de Jones a respeito das relações da moça com o falo.
37 LACAN, J. Le Séminaire, livre V: Les formations de l’inconscient (1957-1958). Paris: Le Seuil, 1988, p.379.
38 LACAN, J. Idem, p.380.
39 LACAN, J. Idem, p.383-384.
40 RIVIÈRE, Joan. La femininité en tant que mascarade, Int. Jour. of Psycho-analysis, X, p.303-313, 1929; tradução francesa do original inglês realizada em 1964 por Victor Smirnoff para a revista La Psychanalyse, vol. VII. Paris: PUF.
41 É uma aluna de Jones para quem a inveja do pênis não é um elemento de toda feminilidade, mas uma regressão patológica acompanhada de um ódio destrutivo dirigido ao portador. A coloração pejorativa que a inveja do pênis carrega ainda em nosso meio vem, provavelmente, das influências da escola inglesa, porque, para Freud, em seu texto sobre a feminilidade, trata-se de um fenômeno de estrutura, sem o qual nenhuma mulher pode se constituir.
42 LACAN, J. Idem, p.394. Essa falta fálica será, três anos depois, o objeto a, objeto causa de desejo.
43 LACAN, J. Idem, p.368 e seg.
44 Essas três identificações são secundárias. Não considerei, nesta enumeração, a identificação primária ao pai, por incorporação.
45 LACAN, J. Idem, p.397.
46 Esta idéia de que o papel da histérica é o de sustentar o desejo enfraquecido do Outro permanecerá presente até o fim da obra de Lacan.
47 Nesta primeira elaboração, o objeto a representa ainda o pequeno outro.
48 LACAN, J. Seminário Le désir et son interprétation, seminário inédito, lição de 10 de junho de 1959.
49 LACAN, J. Le Séminaire, livre VIII: Le Transfert (1960-1961). Paris: Le Seuil, 1991, p.289.
50 Lacan aproveita para chamar a atenção sobre o perigo desta mesma inclinação histérica reparadora no analista, em seus anseios terapêuticos.
51 Seminário L’Identification, inédito, lição de 27 de junho de 1962.
52 Esta posição foi defendida pela revista Littoral.
53 LACAN, J. Idem, p.85.
54 Parece que Lacan engloba aqui, em suas alusões ao “penisneid”, o que Freud chamava de rochedo do feminino.
55 Exceto as místicas, mas isso Lacan desenvolverá três anos depois. A esse respeito, ver M.C. Lasnik-Penot, La mise en place du concept de jouissance chez Lacan, in Revue Française de Psychanalyse, 1990-1. Na época, tínhamos deixado de lado, de propósito, a noção de mais-de-gozar, que Lacan introduz a partir da histeria.
56 Lacan relembra que extraiu esse traço da obra de Freud, como traço unário. Ele o fez, a partir de sua leitura do capítulo sobre “Identificação e estado amoroso”, na Psicologia das Massas.
57 LACAN, J. Le Séminaire, livre XVII: L’envers de la psychanalyse (1969-1970). Paris: Le Seuil, 1991, p.87 e seg.
58 Se as conversões histéricas atualmente são mais raras, é ocorrência comum na clínica encontrar-se alguns analisantes literalmente apegados a determinada cena que os faz sofrer tanto. Tomar essas cenas como produtoras de mais-de-gozar, muitas vezes, permite retirá-los desse estado.
59 É deste seminário que Lacan extrai os quatro discursos: do mestre, do universitário, do analista e da histérica.
60 LACAN, J. Idem, p.108.
61 Teria tratado disso em seu último seminário na SPP, em 1952?
62 LACAN, J. Idem, p.109.
63 Lacan pensa que, geralmente, esse é o caso das meninas portadoras de enurese.
64 LACAN, J. Idem, p.110.
65 LACAN, J. Idem, p.111.
66 Registramos aí a referência de Jacqueline Schaeffer em seu livro Le refus du féminin. Paris: PUF, 1997.
67 É em relação ao discurso do mestre que o pai aparece como castrado. Essa questão é muito atual porque se encontram, cada vez mais, pequenos mestres prontos a se abrigarem na falência da questão paterna e as histéricas não hesitam em acreditar que devem promover esses novos pais para ocultar suas faltas. Até a psicanálise conhece essas fãs.

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