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Reverso vol.30 no.55 Belo Horizonte June 2008

 

O FEMININO

 

Percursos da feminilidade

 

Femininity’s courses

 

 

Cristina Gaoni Medioli*

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fundamentando sua argumentação na análise de Joel Birman da versão moderna da ópera Carmen de Bizet, a autora traça um percurso do conceito de feminilidade enfocando seu despojamento das conotações negativas impostas pela moral sexual burguesa do século XIX e destacando os novos horizontes e as novas possibilidades que a assunção da feminilidade abre para o relacionamento entre os sexos.

Palavras-chave: Registro fálico, Monossexismo, Registro das diferenças, Feminilidade.


ABSTRACT

Based upon Joel Birman’s analysis of the modern version of the Carmen de Bizet Opera, the author herein discusses the development of the concept feminity, focussing on the renouncement of negative connotations that were imposed by the 19th century’s bourgeous sexual ethics. Special attention has been given to new horizons and possibilities for relationships between sexes that have been brought on by the contemporary assumption of femininity.

Keywords: Phallic register, Mono-sexism, Register of differences, Femininity.


 

 

Introdução

A figura operística da Carmen de Bizet, escrita em 1875, foi inspirada na novela do conterrâneo Prosper Merimée e tornou-se uma das óperas mais representadas no mundo.

Narrativa:

Carmen é uma cigana que mora na Espanha na época em que a terra está povoada de bandidos, ciganos e personagens à margem da sociedade. De beleza selvagem e incomum, Carmen seduz com seu comportamento desregrado e provocativo.

Dom José é um contrabandista que cai nas armadilhas da sedução de Carmen e por causa dela enfrenta até a cadeia. Voltando a gozar da liberdade, ele vai atrás de sua musa e por um certo tempo eles conseguem harmonizar-se. Carmen, porém, é passional e indomável e em breve seu coração já está palpitando por outro homem. É o atraente toureiro Escamillo e Carmen está disposta a usar todas as armas da sua sensualidade e do seu erotismo para seduzi-lo.

Já Dom José é daqueles que acreditam no amor eterno e indestrutível: o golpe para ele é duro demais, não existem mais palavras para fazer Carmen desistir da sua intrépida paixão. O destino de Carmen está para completar-se.

Dom José decide matá-la como única possibilidade de não perdê-la.

No século XXI, a efetivação da emancipação das mulheres faz os homens sentirem-se minados no monopólio das certezas fálicas. Se a posse do pênis é uma certeza biológica, a posse do falo, ao contrário, deslizou do campo restrito do universo masculino, baseado na arrogância e na supremacia do registro do “ter”, para o sempre mais emergente universo feminino. A inclusão no registro do “ter” é ainda desejada por aquelas mulheres que estão em busca de um elemento unificante que garanta a fixação da própria identidade a uma imagem não mais trêmula na opacidade da sua indefinição, mas simbolicamente incluída na rigidez da certeza fálica. O registro do “ter”, com a fixidez limitatória dos seus valores fálicos e fictícios, está sendo, porém, aos poucos, substituído pelo registro mais revelatório e inovativo, na multiplicidade de suas evanescentes manifestações, do “ser”.

É nesse registro que vem a enquadrar-se a personagem operística de Carmen de Bizet. Ela é puro exemplo de feminilidade. Ao recuar frente aos emblemas ilusó-rios do poder, o qual culturalmente estaria ligado às insígnias racionais e uniformizantes do “ter”, ela manifesta-se como sendo o exemplo vivo da substância errática do desejo que, em sua irracionalidade e imprevisibilidade, foge aos esquemas.

O desejo, na sua evanescência de falta, não se contorna.

Carmen reconhece a falta e não quer tamponá-la com ilusões de domínio e de auto-suficiência; ela quer, ao contrário, reconhecer-se na falta, permitindo assim que a fruição livre de seu desejo, subtraído ao destino do esquecimento e do silêncio, a leve ao caminho da feminilidade.

Carmen afirma: “O desejo não conhece lei”, não se estreita no limite da lei fálica, não se dobra à lei do obscurantismo e da fria indiferença.

Carmen não quer “ter” nada e com isso descortina um outro horizonte possível para as figuras da mulher, da feminilidade e do amor. Ela está longe de considerar a feminilidade como um artefato ou uma mascarada, e não aceita substituições mistificantes; ela não quer possuir nada que sirva para camuflar a falta, porque é aqui que ela se reconhece. Essa é a essência do seu “ser”.

Um buraco em volta do qual muito pode ser ineditamente construído, já que o caminho de cada mulher é próprio e singular.

Na lógica fálica, Carmen teria que se reconhecer como castrada, mas para ela o discurso vai além do ter ou não ter.

É justamente por ela não querer ter que se verifica a inversão de valores, ela quer “ser” femininamente mulher.

Esta heroína da emancipação, porém, se articula em um mundo ainda esterilmente machista e não despertado pelos ideais revolucionários do movimento feminista. Neste mundo tão pouco criativo na frieza dos seus pressupostos e tão fechado nos limites da inflexibilidade de suas leis, a resposta à arrogância masculina, com sua fé na grandiloqüência do falo, encontrava-se quase que exclusivamente na sedução vingativa atuada do lado das excluídas.

É criação dessa época a figura da femme fatale, aquela que domina e abusa da arte da sedução, a única que lhe é permitida exercer, já que, apesar de ser uma estratégia do ter e da conquista, apresenta-se disfarçada sob a máscara de uma feminilidade fictícia, que esconde a rivalidade fálica.

Antigamente, mas lembrando que ainda hoje existem traços desta realidade, as mulheres eram confinadas dentro das paredes do lar, ocupando-se exclusivamente dos afazeres domésticos. Socialmente, essas mulheres só tinham valor como mãe e como esposas, pois o imperativo assimilado pela cultura era aquele de abrir mão das potencialidades da sensualidade e do próprio corpo. Em caso contrário, elas eram consideradas prostitutas e deixadas à margem da sociedade, que era discriminatória no que dizia respeito aos princípios e valores que não dava conta de assimilar.

O silêncio do corpo porém tinha seu preço e as histéricas, com seus ataques pontuais, denunciavam como os desajustes na sociedade eram freqüentes.

Algumas mulheres mais ousadas e emancipadas encontravam uma forma diferente de ser reconhecidas, mas ainda não era o verdadeiro caminho rumo à feminilidade. Para superar o sentimento de inferioridade a que a cultura dominante as condenava, elas tinham que se revestir de armaduras fálicas impenetráveis e inabaláveis. Não lhes sendo permitido o sentimento, elas contavam o número das frias conquistas. Os homens, iludidos com a onipotência do próprio poder fálico, caíam ingenuamente nas armadilhas dessas tão bem disfarçadas rivais fálicas, vindo a ser “mais um” na contagem dos troféus.

Assim era apresentada pela moral sexual burguesa do século XIX a Carmen de Bizet, sedutora e vingativa; na arena ela era a toureira e os amantes desadvertidos, os intrépidos touros, prontos a morrer de paixão.

Disfarçado no pano vermelho também provocativo e sedutor do toureiro, esconde-se o véu sutil da sedução que convida para a armadilha das suas espadas mortais.

Diferente desta é a Carmen da versão dos anos 80, que de nariz empinado pronuncia a enigmática frase “se eu te amo, cuide-se”, segundo a leitura feita por Birman no livro Cartografias do Feminino. É um aviso nas entrelinhas de que “a tourada está aberta”, significando com isto que “não pretende abrir mão de seu desejo”.

Carmen sabia, com a sabedoria instintiva de quem deixa a vida acontecer, que o encontro dos sexos na sua diferença radical é algo da ordem do impossível.

As figuras de homem e mulher ficam inevitavelmente presas na ordem do espelho e da confortadora identidade das imagens, o que leva ao unissexismo, ou seja, ao apagamento das diferenças sexuais. O encontro sexual que tem origem no valor imaginário da possível troca entre os sexos e da reciprocidade, realiza-se então como “desencontro”, pois na impossibilidade das diferenças as relações tornam-se homossexuais.

Carmen sabe que no mundo dos homens o encontro sexual no seu acontecer não é sempre algo da ordem natural e nem vivenciado com a mesma intensidade pelos parceiros. O gozo do corpo não se encaixa todo nas tentativas de simbolização das leis fálicas. E sabe que existe um gozo a mais, o gozo da mulher, e que o homem, aprisionado no falicismo, não consegue vivenciá-lo e nutre por isso sentimentos de desconfiança, quando não de vingança, como no caso do amante de nossa heroína. Talvez seja esta a explicação do assassinato de Carmen. A causa seria o ciúme impotente do amante perante uma parceira que desvenda novos horizontes de gozo, para ele impossíveis de alcançar.

Cada movimento sinuoso, mas enérgico, do corpo de Carmen é, na sua força sensual, um grito de rebelião ao mundo enaltecido das leis fálicas. A presença dela angustia porque se apresenta como Outro, não como semelhante, mas um Outro que se faz presente, em toda sua desconcertante outricidade. Como nos salienta Antonio Teixeira no livro A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura: “Pensamos na realidade como um encadeamento do Mesmo, encaixando-se nessa categoria os fatos que, obedecendo à nossa expectativa, incluem-se na unidade do nosso universo discursivo regido pelas leis fálicas. Conseqüentemente a perda da realidade seria toda situação caprichosa, porque imprevisível – a vida não dá avisos, acontece –, onde este encadeamento necessário se desfaz, traduzindo-se para o sujeito em sentimento de angústia, acompanhado pelo afastamento da realidade. Ao trazer consigo a brecha de alteridade no universo do Todo, a mulher rompe justamente com a seqüência que obedeceria à expectativa do Mesmo em todo exercício social de controle.” (TEIXEIRA, 2007).

Nas relações sexuais, a característica de singularidade da mulher, enquanto não totalmente submissa á lei fálica, a apresenta como um ser mutável e caprichoso. Vítima de uma falta de conceito, a mulher é olhada às vezes com a desconfiança que se tem diante do desconhecido.

Esta falta, porém, não é estrutural, como afirma Cintya Palonsky no livro Estruturas Clínicas na Clínica: Histeria: “Cada estrutura é em si mesma completa, o que conta não é a quantidade de elementos, mas a relação entre si.” O conceito de falta é então só o contraponto do conceito “fictício” de completude, e viria instaurar-se só na comparação e esta é aliada da rivalidade. Não podemos então, para tentar definir a mulher, nos apegar ao conceito de falta, mas falar sim que existe uma falta de conceito para definir a mulher.

A emergência da alteridade e do real, com sua angústia desconcertante, é capaz de nos desconectar das leis simbólicas e humanizantes, entregando-nos à irracionalidade e à instintividade onde – é nessa linha que o amante recusado de Carmen se enquadra – a resposta à dor às vezes está no revidar e na imposição de uma pena maior ainda – paga-se com a morte. Carmen pressentia isto, mas de certo modo ela não ficou intimidada diante das ameaças do amante. Ela bate os pés e de nariz empinado mostra não querer desistir da pretensão da livre fruição das emoções corporais. Isto restaura o ser da mulher no registro do desejo, e disto Carmen não quer abrir mão.

Para quem já renunciara às insígnias fictícias e precárias do poder, fica, não como sobra, mas, ao contrário, com a autenticidade e determinação de uma escolha primordial, o registro do “ser”.

A nossa heroína sabe que é só na manifestação do desejo que ela existe (ser); ficar sem ele implica em uma inexistência, onde então o real da morte não mais pode assustar, e por isso ela deixa-se levar nesse caminho mortal. Por fim, Carmen é retida no seu percurso pelos meandros do erotismo, fecha-se o circuito sexual, sendo seu assassinato a única maneira de silenciar suas pulsões vitais.

Na sociedade pós-moderna, depois de esfriado o fervor do movimento feminista, aposta-se em definir a figura da mulher em posturas menos radicais.

As novas Carmen não têm mais os tons de vingança da femme fatale. As mulheres podem livremente confessar o próprio desejo, mas decepcionam-se ao ver que para os homens, que sempre tiveram o conforto da garantia da lei fálica, é difícil descolar de suas insígnias. O temor dos homens diante do terremoto dos ideais fálicos os deixa sempre mais desancorados, pois os valores de referências estão se perdendo e por isso eles se angustiam.

A feminilidade como essência do ser presente nos dois sexos assusta os homens e não é menos enigmática do lado da mulher, que está sempre corajosamente apontando novos caminhos de revelação da feminilidade.

A maternidade com seu consolo fálico e a sedução como caminho alternativo não são as únicas figurações do ser da mulher.

A Carmen contemporânea sabe que as feridas da carne machucada impedem a mobilidade do corpo, obstaculizando o fluxo do desejo, mas esta nova mulher quer dar livre curso às próprias vontades, por isso, liberta do sentimento de vingança, ela pode até brincar com a sedução. É tirando a máscara que as mulheres mais emancipadas seduzem, pela sua coragem, pela sua liberdade e pela sua ousadia, que é um convite a viver mais intensamente, despojando-se dos excessos das convenções.

Estas mulheres não desconhecem a precariedade do registro do ter e sabem que não precisam se igualar ao homem, por isso fogem do monossexismo.

O que cativa na nova mulher é a leveza que vem do seu lado humorístico, não precisando mais ser representado. Na guerra não negociável dos sexos, o homem não é mais um parceiro agonístico, combativo, mas sim um companheiro de brincadeiras. O encontro sexual sempre imaginado é na realidade um desencontro; entretanto, o que existe de trágico no erotismo é permeado pela leveza do inevitável e do irrefutável da entrega amorosa. Na impossibilidade de completude dos encontros eróticos o trágico pode ser evitado com a sabedoria de desistir para sempre do drama. Enfim, a mulher contemporânea, no seu percurso emancipatório, despoja das conotações negativas o conceito de feminilidade e deslumbra novos horizontes e novas e instigantes possibilidades de relacionamento entre os sexos.

 

Bibliografia

BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino, cap. 3: Se eu te amo, cuide-se, p. 67-109. São Paulo: Ed. 34, 1999.        [ Links ]

PALONSKY, Cíntia M.; SILVA, Mário Lúcio Vieira da. Estruturas clínicas na clínica: a histeria. Belo Horizonte: PUC Minas, 1997.        [ Links ]

TEIXEIRA, Antonio. A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura. São Paulo: Anna Blume, 2007.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Pisa, 499 – Bandeirantes
31340-690 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3492-4142
E-mail: crimedioli@terra.com.br

Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008

 

 

*Advogada. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

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