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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.55 Belo Horizonte jun. 2008

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

Cortes e efeitos – a psicanálise é o efeito de um corte

 

Cuts and effects: Psychoanalysis is the effect of a cut

 

 

Messias Eustáquio Chaves*

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto procura demonstrar que a psicanálise é o efeito de um corte. Trata-se de um corte pontual realizado por uma das primeiras pacientes de Freud. A partir dos efeitos desse corte, a escuta e o desejo de Freud conduziram-no à construção científica do corpo teórico da psicanálise. Além disso, o texto mostra que é possível identificar na obra de Freud dez outros momentos de cortes, que produziram efeitos cruciais no movimento psicanalítico e no desenvolvimento da teoria da clínica analítica.

Palavras-chave:Corte, Efeito a posteriori, Saber, Associação livre, Transferência, Linguagem, Inconsciente, Sexualidade, Recalque, Retorno do recalcado, Sintoma, Fantasia, Desejo do analista, Discurso da histérica, Discurso analítico, Ato analítico, Psicanálise.


ABSTRACT

We propose that psychoanalysis is the result of an act made by one of Freud’s first patients that modified Freud’s way of listening and also affected his wish, driving him on to the scientific formulation of psychoanalytic theory. Further more, this article points out different acts reported throughout Freud’s works that have caused crucial effects to psychoanalytic movements and also to the development of clinical theory.

Keywords: Acts, Rretroactive effect, Knowlege, Working through, Ttransference, Language, Unconscious, Sexuality, Repression, Return of repression, Symptom, Fantasy, Psychoanalyt’s wish, Hysterical discourse, Analytic discourse, Analytic act, Psychoanalysis.


 

 

Num estágio ainda pré-psicanalítico, Freud ouvia suas pacientes histéricas e acreditava que havia algo além da medicina, além de um processo puramente biológico. Ele as escutava de uma maneira diferenciada em relação ao padrão médico da época. De seus estágios na clínica de Charcot em Paris, ficou a aprendizagem do método hipnótico como eficaz para fazer as histéricas se recordarem do passado. Um passado que estava recalcado e permanecia vivo no inconsciente. A idéia do inconsciente, como uma realidade que estava além do orgânico, já estava presente em Charcot, em Breuer, em Freud.

Voltando a Viena, Freud continuou usando o método hipnótico, mas criou alguns outros, como o de colocar a mão na testa dos pacientes. Todos tinham um mesmo objetivo: ajudar os pacientes a lembrarem-se do seu passado e trazer de volta os conteúdos recalcados. Fazer o inconsciente vir à tona, apresentando-se a uma leitura e a uma interpretação de Freud. Ele queria saber muito, queria saber tudo e, assim, cutucava, fuçava, escavava, hipnotizava, pesquisava, sugeria, interpretava, explicava, falava. Os relatos da época sugerem que Freud, às vezes, falava muito. Certamente – válido apenas para esta época – deveríamos chamar Freud de um médico psicoterapeuta. A psicanálise iria acontecer, mas ela ainda estava em gestação. Certo dia, ela nasceu pelo efeito de um corte. Como?

Uma de suas primeiras pacientes histéricas lhe teria dito durante a consulta: “Você não devia ficar me perguntando o tempo todo sobre a origem das coisas que evoco. Você devia me deixar falar sem me interromper”1. Nesta época, Freud dizia ter aperfeiçoado o método catártico de Breuer, na medida em que passou a investigar cada sintoma, isoladamente, até chegar a uma conclusão geral do estado da paciente e a um conhecimento do seu quadro neurótico. Ele investigava e escrevia, tentando criar uma “teoria psicológica dos nervos”. Sua paciente Fanny Mozer fez um corte na fala de Freud e produziu efeito. É nesse momento que Freud constrói um saber sobre a “associação livre”, e, no efeito do constante movimento retroativo do “tempo a posteriori”, formaliza a “regra fundamental” da psicanálise. Importância decisiva é conferida à fala do paciente e à escuta do analista.

Em outro momento do tratamento, esta mesma paciente corta novamente a fala de Freud (o que sugere sua inquietude e pertinácia em investigar os sintomas, pois estava ávido de chegar logo ao seu inconsciente (dela e dele?) e, certamente, falava mais do que o necessário, numa posição que Lacan chamaria dos discursos do senhor, da histérica e da universidade, girando pra lá e pra cá, mas sem lugar ainda para o discurso analítico propriamente dito). Não tem como saber se foi antes ou depois do corte anterior. Mas, ela corta Freud ao lhe dizer: “Não se mexa! Não me toque! Não fale comigo!”. Nestas minhas releituras e pesquisas bibliográficas sobre os primór-dios dos tratamentos feitos por Freud e suas descobertas, não tenho como evitar o efeito criativo que as ressignificações do próprio Freud produzem em mim. Estou convicto de que estes e tantos outros cortes simbólicos feitos pelas primeiras pacientes de Freud – no nível do que se chamaria depois de “discurso da histérica” – foram fundamentais nos caminhos da criação da psicanálise.

Desde o atendimento de suas primeiras pacientes histéricas, Freud – movido pela sua aguda inteligência e um desejo enorme de saber –, descobrira rapidamente o funcionamento inconsciente da censura e seus desdobramentos nas resistências das pacientes durante o tratamento. Mas, Freud se perguntava: “O que vem antes, o que move a censura?” Ele descobriu que é o desejo da paciente, e, como substrato desse desejo, a pulsão e sua energia libidinal. Freud descobre, assim, a importância fundamental da sexualidade, tanto quanto de seus efeitos no inconsciente e na estruturação de todo o aparelho psíquico. A sexualidade – principalmente pela via das fantasias inconscientes – move a vida, o amor e a transferência ao analista durante o tratamento analítico. Além de tudo, Freud descobre o vínculo da resistência (censura) com a transferência positiva (amor) e desta com o desejo de Freud. Vejam o que lhe disse Elisabeth von R. (1892) numa das sessões: “Eu podia ter-lhe contado isso logo da primeira vez, mas achei que não era isso o que o senhor desejava”.

Jacques Lacan – médico-psiquiatra-psicanalista, homem culto, perspicaz, de inteligência tão aguda quanto a de Freud – se identificou desde o início de suas atividades analíticas com o campo freudiano e a verdade das descobertas desse campo. Com suas tão ricas leituras e releituras da obra de Freud, produziu dois grandes efeitos, além de tantos outros. Primeiro, sua leitura retroativa no tempo real produziu nele os efeitos de amplitude e clareza da elaboração a posteriori, uma vez que podia ter em mãos todos os volumes da obra de Freud e lê-los em alemão, pois que sabia. Segundo, sua releitura recorrente – que se processava no “tempo lógico” –, e a prática dos Seminários deram-lhe a oportunidade de clarear, formalizar e até matematizar todos os principais fundamentos da psicanálise, fazendo-a caminhar mais e avançar em sua construção teórico-clínica.

Sob a luz de tantos efeitos a posteriori, podemos apreciar hoje a enorme importância das descobertas de Freud, a imensa fecundidade de sua criação e o extraordinário valor epistemológico que Lacan conseguiu imprimir ao corpo teórico da psicanálise. Então, em sua releitura dos primórdios da psicanálise, Lacan consegue perceber e nos demonstrar que o desejo da histérica é o desejo do Outro e de como ele se manifesta na transferência, e de como ele pode ser matematizado no “discurso da histérica”, e de como se dá a resistência do analisante e também a do analista, e de como a “associação livre” foi a descoberta mais importante na criação da psicanálise, sendo através dela que o “saber não sabido” do inconsciente das histéricas se revelarou a Freud. A base estava na palavra, na materialidade da fala, onde o inconsciente se mostrava na cadeia de significantes e permitia uma leitura – para a vida e para a morte.

Aprendermos que o fenômeno da transferência na análise é criado pela dinâmica da “associação livre”, endereçada a um “sujeito suposto saber” sobre os desejos inconscientes de histéricas e obsessivos em análise. O analisante elege o analista no lugar do mestre, do senhor, do pai, endereçando-lhe sua fala livremente articulada, uma espécie de “carta de amor”. A transferência é uma “carta de amor” falada e endereçada ao analista na posição de pai simbólico, um sujeito suposto saber. Este aceita a carta, faz um giro de lugar e escuta-a, lendo-a desde a posição de “objeto a”, de onde aufere o “mais-de-gozar” do saber em construção e, ao mesmo tempo, causa no analisante o desejo de continuar falando sobre o seu desejo e tantas outras coisas mais.

Assim, eu articulo. Freud descobre a “associação livre” pelo efeito de cortes em sua fala. Portanto, quem lhe ensinou os caminhos da psicanálise foram suas pacientes histéricas. De sua parte, Freud promove um corte em todos os métodos terapêuticos-analíticos que usava anteriormente e funda a “regra fundamental” da psicanálise. Com este método e os seus efeitos, ele descobriu e construiu o corpo teórico da psicanálise propriamente dita, registrando com sua própria letra o nome “psicanálise” pela primeira vez, em 1896. Lacan, pelos efeitos produzidos em sua brilhante leitura e releitura, nos indicou uma riqueza enorme de detalhes preciosos e, verdadeiramente, significantes da teoria construída por Freud, da qual se viu enamorado. Isto, certamente, é verdade com relação à psicanálise e às especificidades de seu campo. Por outro lado, é notório que Lacan não se enamorou dos desvios teóricos que muitos psicanalistas da IPA fizeram.

Foi dito e escrito que Lacan era um analista-didata da Sociedade da IPA em Paris e, como tal, ministrava o seu ensino. Divergências teóricas foram acontecendo, se avolumando e incomodando tanto ao staff da IPA, que resolveram barrar, cortar Lacan de seu ensino. O pessoal da IPA não conseguia engolir a maneira como Lacan trabalhava o manejo da transferência, da resistência, da interpretação, do tempo, do desejo do analista como função de ato, de ato simbolicamente cortante, cujo objetivo clínico era um só: produzir efeitos de cura. Lacan já tinha um desejo bem formulado, mas o ato de corte efetuado pela IPA criou a oportunidade e, ao mesmo tempo, aumentou enormemente o seu desejo de instituir uma outra lógica de formação dos analistas. O efeito estava produzido e, movido pelo seu desejo, Lacan se agigantou em sua produção. Foram quase 50 anos de leituras, releituras, escritos, conferên-cias, seminários e ensinos diversificados, que muito acrescentaram ao corpo teórico e clínico da psicanálise.

Lacan foi “cortado” pela IPA, mas, ao invés de se deixar capturar pela censura, pelo recalque – fazendo, por exemplo, o sintoma neurótico da submissão boba –, ele soube se apropriar dos efeitos que o corte ipiático produziu nele e asfaltou, magistralmente, a sua estrada no campo da psicanálise, no campo de Freud, ao qual sempre se demonstrou fiel, promovendo, por sua vez, uma série de “atos de corte” – na coletividade da IPA, nos tradutores da obra de Freud, nos analisantes, nos analistas de sua Escola, no discurso da ciência, na cultura de sua época, e assim por diante. Há um corte de Lacan que considero especial, pois o vejo como um ato de amor ao significante e a seu saber de letra, de logos-marca-real. Assim, eu digo que, ao longo de todo o seu percurso de transmissão da psicanálise, principalmente nos momentos de crise no seio das Instituições que fundou, dissolveu e refundou, Lacan jamais deixou de dizer-escrever as suas eternas “cartas de amor” à psicanálise e a seu pai, Freud.

Acabei de mostrar um fragmento de três dos vários momentos lógicos de cortes e efeitos produzidos nos caminhos da construção teórico-clínica da psicanálise. Primeiro, o corte da paciente efetuado na fala de Freud. Segundo, o corte efetuado pela IPA no ensino de Lacan. Terceiro, o corte que, por sua vez, Lacan efetuou em vários momentos do seu percurso de transmissão da psicanálise, especialmente aquele que aconteceu durante a Conferência de Caracas, em 1980. Assim Lacan se dirige a seus ouvintes: “fica a seu critério serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim, eu sou freudiano”. Muitos outros cortes e efeitos importantes aconteceram ao longo da história da psicanálise. Vejamos mais dez destes cortes, listados a seguir.

1. Corte feito por Fliess no escrever-dizer-falar de Freud. As cartas de Freud a Fliess vão de 1887 a 1904, período que cobre o nascimento e desenvolvimento da psicanálise. São 17 anos de correspondência. A amizade começou a declinar em 1900, embora Freud não o percebesse. Ele escrevia-lhe freqüentemente e muito, mas Fliess respondia escassamente ou não respondia. O silêncio de Fliess, que já acontecia desde o começo e só foi aumentando, acabou funcionando como um “corte simbólico” sem que ele próprio o soubesse? Que efeitos tal posição de Fliess teria produzido em Freud? Efeitos próprios da análise? Podemos afirmar que, ao invés de uma auto-análise, Freud teria feito uma análise pessoal com Fliess?

2. Corte feito por Freud na medicina. Seria o desdobramento de vários cortes? Estudar com Charcot em Paris já é um corte? Trabalhar com Breuer, praticando Hipnose, sugestão, investigação focada em cada sintoma, também? Abrir mão da cooperação do resistente Breuer, descobrir a “associação livre”, fundar a regra fundamental e cunhar o termo “psicanálise”, idem? Instaurar, definitivamente, o lugar do “inconsciente” e nele o lugar da “sexualidade”, idem? Reconhecer a descoberta do inconsciente freudiano como um corte epistemológico no pensamento biologicista da ciência médica, idem?

3. Corte feito por Freud com a publicação da Interpretação dos Sonhos. Após construir um saber sobre o sonho, sobre o inconsciente, a regra fundamental, a resistência, o sintoma psíquico, a transferência, a interpretação, o desejo e a estrutura histérica (principalmente pelos efeitos de sua “análise com Fliess”), Freud passa a enfatizar, aos que lhe seguem, que a experiência clínico-analítica + o saber que daí advém é que são formadores para o analista. E, assim, Freud diz aos discípulos que eles devem submeter-se à disciplina da análise pessoal e passar pela experiência analítica. Teria funcionado como um corte no narcisismo deles?

4. Corte feito por Freud na solidão do analista (principalmente dele mesmo), instituindo o lugar da palavra num contexto coletivo. “Uma noite por semana, às quartas-feiras, os participantes da Sociedade de Freud se reuniam em torno do trabalho de um deles e discutiam. Podia ser um estudo de caso, o estudo de uma obra literária, de um texto psiquiátrico, o estudo de um mito ou de um ritual religioso. Freud tentou instituir nesse coletivo a disciplina da regra analítica. Assim, até 1908, cada um dos presentes era obrigado a tomar a palavra”.

5. Corte feito por Freud em sua Associação Psicanalítica Internacional (IPA), em 1912, quando “lembra que os participantes devem falar sem barreiras, nem pudor, dos temas em estudo. Freud sustenta um laço social que contesta as posições de mestre e de aluno, sobre os quais se baseiam as concepções mais comuns da formação. Ele explica em 1914 que ele se conteve para não exercer uma autoridade de mestre. Esta autoridade teria talvez evitado os erros e desvios, mas ele disse que preferia a autonomia dos trabalhadores intelectuais e sua rápida independência em relação a um mestre. Esta escolha é arriscada e só resiste se for sustentada pela longa e severa disciplina da análise”. “A regra que Freud institui, tomar a palavra, levava em conta o fato de que o inconsciente determina uma relação particular ao saber, uma relação onde podem estar em jogo várias maneiras de não querer saber. Era instituir um modo de transmissão baseado numa relação de sujeito a sujeito, de sujeitos trabalhando juntos” (Annie Tardits, p. 113-114).

6. Corte feito por Freud em 1920 na própria construção teórica da psicanálise. Freud registra definitivamente a descoberta do real da “pulsão de morte” em seu artigo “Além do Princípio do Prazer” e formaliza o conceito, acrescentando-o à sua teoria pulsional. Inscreve-se na teoria uma segunda tópica e a psicanálise passa a trabalhar com a idéia de duas pulsões – sexual e destrutiva – de vida e de morte. Lacan, com suas releituras e acréscimos teóricos, vai identificar na pulsão de morte o real do gozo, introduzindo este conceito e formalizando-o teoricamente.

7. Corte feito por Freud em 1926 com seu artigo sobre “a questão da análise leiga”. Mais um corte feito na medicina e no corporativismo médico. Freud defende que a psicanálise é leiga, que ela é uma “ciência” do inconsciente e, como tal, o exercício de sua função depende, não do diploma médico e do conhecimento da medicina, mas sim de uma formação analítica que implica em passar pela experiência da análise pessoal (“a experiência do inconsciente na própria pele”), ao mesmo tempo em que se aprende a teoria e a técnica dentro da comunidade de analistas. Ele acredita, radicalmente, que a prática da psicanálise depende de aprender o ofício de psicanalista através de um saber construído no entrelaçamento de três momentos: o saber construído na análise pessoal, o saber construído no estudo teórico, o saber construído na supervisão clínica. Lacan, com suas construções, não só concorda inteiramente com Freud, mas lança mais luz ao que Freud disse e propôs à comunidade de analistas. Lacan chama a atenção para a “posição do inconsciente”, para a “ética da psicanálise”, para as “estruturas clínicas”, para o “desejo do analista e o ato analítico”, para a “direção do tratamento”, os “três registros: real, simbólico, imaginário”, os “quatro (ou cinco) discursos”, a “matemática dos nós borromeanos”, a lógica do “final de análise” e as proposições para a “transmissão da psicanálise e a formação do psicanalista”.

8. Corte feito por Freud em 1930 com o Mal-Estar na Civilização. Trata-se de um novo corte na ilusão, na religião como substituto da racionalidade, no narcisismo humano exacerbado, o conflito do homem com a civilização, de novo a questão da pulsão de morte, da destrutividade, das guerras e do sofrimento humano sem saída. Lacan vai retirar daí os principais subsídios para o seu “seminário da ética da psicanálise”, quando vai apontar para o real do gozo e, numa releitura posterior, vai dizer que a “ética da psicanálise é a ética do real”.

9. Corte feito por Freud em 1934-38 com o Moisés e o Monoteísmo. Trata-se de uma releitura de Freud de Totem e Tabu e de Psicologia de Grupo, sem contradizer ou mudar o que já havia escrito, mas lança mais luz ao seu pensamento que segue as mesmas linhas de Futuro de uma Ilusão (1927) e de Mal-Estar na Civilização (1930). Freud passa quatro anos envolvido com as questões da origem da humanidade, com as questões do que seria a verdade de Moisés e da fundação da religião judaica, as questões da transformação do politeísmo em monoteísmo, a construção da ordem simbólica (cultura) ao longo dos milênios. Lacan ilumina o trabalho de Freud com a abordagem do significante e, com ele, dos conceitos de Outro, de Nome-do-Pai, de objeto a, de gozo, de desejo, de sujeito do inconsciente, de nó borromeano, de saber e verdade, de ciência e ficção. Nada que Freud de alguma forma não soubesse em seus rudimentos, mas Lacan ilumina com lâmpadas fortíssimas, amparadas pelo conhecimento do significante e pela demonstração topológica.

10. Corte feito por Freud em 1937 com a Análise Terminável e Interminável. Freud busca estabelecer um tempo para o final de análise. Tem pressa, está decepcionado com o seu ideal de cura. Topa com o que chama de “rochedo da castração”. Algo emperra os caminhos da análise e da cura total, perfeita, nos moldes do que ele concebe na época. Chama a atenção para os fatores fisiológicos e biológicos, pensando que os impedimentos vêm daí, pois eles não seriam susceptíveis às influências psicológicas. Não é por acaso que o texto de Freud “Construções em Análise” é da mesma época, 1937, e aponta para o desejo de Freud, sempre recorrente: escavar, chegar ao inconsciente, trazer à luz o que está oculto e reconstruir uma história de sintomas através do saber analítico. Lacan nos mostra que a questão não está no biológico e sim no registro do psíquico mesmo (esta era, também, a aposta de Freud), do inconsciente estruturado como uma linguagem, portanto, no nível do significante, mas apontando para um real irredutível, inominável, impossível. Lacan vai tratar este assunto como a “clínica do real” e vai apontar, como saída de “cura”, a construção (durante o processo de análise pessoal) de um saber sobre a verdade do inconsciente do analisante e de sua estrutura psíquica, ou seja, um “savoir y faire” sobre o seu sintoma, transformando-o numa espécie de “sinthome” (santo homem), numa alusão precisa ao que se pode obter como efeito de sublimação. Certamente, é movido por estas descobertas que Lacan conseguiu, ao longo de seu percurso, aperfeiçoar e formalizar uma lógica da formação do psicanalista numa coletividade. Assim, segundo Annie Tardits, ele elabora uma passagem da perspectiva técnica à perspectiva ética, criando dois dispositivos principais para a formação: o Cartel e o Passe. Além destes – funcionando como confronto com o real –, deve implicar-se na experiência da Análise Pessoal e do Seminário no processo da transmissão e da formação do analista.

 

Considerações finais

Assim eu penso, a psicanálise é o efeito de um corte primordial, inaugural e, ao longo do tempo, o efeito de vários cortes recorrentes, produzindo os seus efeitos a posteriori, impulsionando dialeticamente a sua construção permanente. No aspecto individual, todos parecem concordar, unanimemente, com o princípio de que o verdadeiro desejo do analista (como função) só é possível tendo passado pela experiência da análise pessoal. No aspecto coletivo, todos parecem, também, concordar que é preciso a troca entre os analistas num processo permanente de estudos teóricos e clínicos no campo da psicanálise, tanto em intensão quanto em extensão. Ao longo da história da psicanálise, muitos autores analistas trouxeram uma contribuição importante, sobre um ou outro ângulo, ao campo da teoria freudiana e da prática clínica. Gostaria de citar Melanie Klein, D. W. Winnicott, Didier Anzieu, e tantos outros que seria impossível escrevê-los aqui. Dentre todos, porém, ninguém soube ler Freud, captar a sua transmissão e contribuir decisivamente para o avanço da psicanálise freudiana, de uma maneira tão rica e tão fiel às especificidades das suas descobertas quanto Jacques Lacan.

Freud e Lacan tinham ambos uma grande preocupação e uma grande ambição. Desejaram, o tempo todo, dar um cunho científico à psicanálise dentro de um rigor epistemológico a toda prova. Desejaram, também, alcançar o máximo da eficácia terapêutica com o método psicanalítico. Freud se decepcionou ao topar com o “rochedo da castração”. Lacan trabalhou, incansavelmente, para dar à psicanálise a matemática de um “discurso sem palavras”. As diversas construções topológicas desenvolvidas por ele fizeram avançar o campo da psicanálise e angariar a simpatia de agentes das ciências humanas, de matemáticos, intelectuais e críticos. No entanto, não o satisfez plenamente, pois topou com seus próprios furos, com o real de suas próprias invenções. Mesmo assim, e na verdade por esse motivo, penso que ambos podem ser considerados, juntos, os dois grandes baluartes da psicanálise. Depois deles, nada aconteceu de novo no campo do inconsciente.

Como analistas, o que podemos e devemos fazer no contexto da nossa coletividade, para fazer avançar a transmissão da psicanálise e a formação de novos analistas? Que novos cortes estão sendo necessários, para que novos efeitos se produzam no campo da análise pessoal, no campo da construção do saber teórico-clínico e no campo da supervisão ou da elaboração da clínica de cada um? Como reconstruir um saber sobre o RSI de cada um destes três campos mencionados? Como elaborar uma compreensão sobre o enlaçamento dos três na prática da transmissão e da coletividade dos analistas numa sociedade com objetivos comuns? O que fazer?

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Domingos Vieira, 348/803 – Santa Efigênia
30150-240 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31)3241-6837
E-mail: mesquio@uai.com.br

Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008

 

 

*Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Professor dos cursos de formação do CPMG.
1Viver – Mente & Cérebro, Revista n.1, Coleção memória da psicanálise. Freud e o despertar do inconsciente. Publicação da Ediouro, segmento Dueto Editorial Ltda (edição especial Freud, 2003), S. Paulo, com conteúdo internacional fornecido pela Gehirn & Geist – Spektrum der Wissenschaft – Heidelberg, Alemanha. Foi nesta revista, na p. 38, que a famosa frase do corte que a paciente produz em Freud – “você não devia ficar me perguntando o tempo todo sobre a origem das coisas que evoco. Você devia me deixar falar sem me interromper” – é atribuída a Fanny Mozer.

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