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Reverso vol.30 no.55 Belo Horizonte June 2008

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

Freud, um duplo de Goethe

 

Freud, Goehte’s double

 

 

Marcos Eduardo Nogueira*

Academia de Polícia Civil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud recebeu o Prêmio Goethe ainda em vida. Reconhecida a preeminência de pensador alemão em vários campos da vida prática e cultural da Europa de sua época, importância que até hoje não pode ser diminuída, Freud mostrou que Goethe já ostentava, tanto na sua vida quanto nos seus escritos, fundas intuições claramente psicanalíticas – um psicanalista avant la lettre. O sentimento do criador da psicanálise com respeito ao mestre era, também, fundamente afetuoso, inclusive nos sonhos com Goethe que nos contou.

Palavras-chave:Cultura alemã, Goethe, Psicanálise, Freud.


ABSTRACT

During his life, Freud was awarded for Goethe Prize. One has recognized the german thinker’s pre-eminence on practical and cultural life of Europe of his time, which importance cannot be reduced until today, Freud showed that Goethe already had announced, so much in his life, as in their writings, clearly psychoanalytic deep intuitions – a forestalled psychoanalyst. Also, the psychoanalysis’ creator feelings with regard to the master were affectionate including your recorded Goethe’s dreams.

Keywords: German culture, Goethe, Psychoanalysis, Freud.


 

 

“Freud, no início do terceiro milênio, continua a ser o último verdadeiro crítico
da nossa cultura e, como tal, tem uma utilidade sublime. Pouco importa que desejasse
ser Darwin e acabasse por se tornar Goethe”
(George Steiner).

 

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) é um dos maiores intelectuais do Ocidente, havendo dominado a literatura germânica de seu tempo, principalmente dois de seus movimentos: Aufklärung (= Ilu-minismo) e Sturm und Drang (= Tempestade e Ímpeto), ou seja, tanto o classicismo quanto o romantismo da ocasião. Freud, contadamente, cita-o duzentas vezes. Contemporaneamente, Bloom reconhece que “Freud é tão metafórico quanto Goethe ou Montaigne, e, como eles, é antes de tudo um escritor. (...) Freud se junta a [Samuel] Johnson [1709-1784], [James] Boswell [1740-1795] e Goethe, na qualidade de autobiógrafo original e vital, bem como de dramaturgo do eu” (Bloom, 2006, p.1).

Freud, em 1930 (Ansprache im Frankfurter Goethe-Haus), assinala-lhe o espírito científico (Obras de Freud, v. XXI). Um “Hino à Natureza”, a princípio visto como escrito pelo polímata (mais tarde, na verdade, de autoria de certo Tobler, um pietista suíço), foi o texto que marcou, em definitivo, a vida de Freud, pois sua leitura convenceu-lhe a cursar medicina. Nele, a Natureza é vista como uma mulher e os estudos naturais concebidos como um “caso romântico, de paixão, entre o estudante e uma mulher magnânima, quem revela generosamente os seus segredos aos seus favoritos” (Webster, 2002, p. 53). Uma das fases pelas quais passou a intelectualidade de língua germânica, entre 1790 e 1830, foi caracterizada pelo predomínio da Naturphilosophie (= filosofia natural), durante a qual a reflexão filosófica e literária se associava à ciência empírica (Webster, 1996, p. 45). Houve alguém que encarou a psicanálise freudiana como um tipo de Lebensphilosophie. Segundo Ludwig Binswanger, Freud persistiu discípulo de Goethe ao longo da vida, permanecendo fiel à sua “essência mística”. Goethe assim escreveu: “tendes as partes nas mãos – mas, ai! Falta o laço espiritual” (Larroyo, 1968, p. 40). A interpretação seria: os cientistas têm nas mãos todo o material empírico de cada uma das suas ciências, mas... de modo descontínuo. Goethe teria fornecido, antecipadamente, a Freud o “conceito cósmico” (Larroyo, 1968, p. 40) necessário para conceber a idéia totalizadora da realidade.

Goethe escreveu acerca de certo sonho que viveu, o qual, mais tarde, ficou conhecido como o da “cabeça de carneiro”. Freud comenta que Goethe antecipou-se a Charles Darwin, quando as elucubrações oníricas de Goethe tematizavam acerca do osso intermaxilar daquele animal: “é bem sabido que foi a descoberta do crânio fendido de uma ovelha no Lido de Veneza que deu a Goethe a idéia da chamada teoria ‘vertebral’ do crânio” (Obras de Freud, v. XVII).

Além disso, Freud implementou muitas vezes o Fausto, que falava pela boca do diabo e oculto sob a máscara duma feiticeira (aquela “metapsicológica”). Ele aludiu às seguintes expressões goethianas:

1. “morre e transforma-te”,

2. “no princípio era a ação”, como nestas citações:
Es irrt der Mensch, so lang er strebt (= enquanto o homem aspira, ele falha) (Fausto) (Collins Gem, 1974, p. 214),

Die Tat ist alles, nicht der Ruhm (= o ato é tudo, a reputação nada) (Fausto) (Collins Gem, 1974, p. 214).

Além destas iniciais, as seguintes expressões de Goethe podem ser perspectivas de vários aspectos definidos da psicanálise, a saber:

1. “o amor e o desejo são as asas do espírito das grandes façanhas”,

2. “quem tem bastante no seu interior, pouco precisa de fora”,

3. “a mais nobre alegria dos homens que pensam é haverem explorado o concebível e reverenciarem em paz o incognoscível”,

4. “nada descreve melhor o caráter dos homens do que aquilo que eles acham ridículo”,

5. “o homem deseja tantas coisas, e, no entanto, precisa de tão pouco”,

6. “estou de uma vez por todas perdido para estas cerimônias religiosas: todos estes esforços para tornar verdadeira uma mentira parecem-me por demais insípidos. Não há nada maior que a verdade e a menor verdade já é grande”,

7. “o que não se compreende, não se possui”,

8. “feliz aquele que reconhece em tempo que os seus desejos não estão de acordo com as suas faculdades”,

9. “cada um possui na sua natureza alguma coisa que, se a manifestasse em público, suscitaria reprovação”,

10. “sou velho demais para censurar, mas suficientemente jovem para agir”,

11. “quem supera, vence”,

12. “o homem não é só o inato, mas também o adquirido”,

13. “não basta saber, é preciso também aplicar; não basta querer, é preciso também fazer”,

14. “só a arte permite a realização de tudo o que na realidade a vida recusa ao homem. Idéias ousadas são como as peças de xadrez que se movimentam para a frente; podem ser comidas, mas podem começar um jogo vitorioso”,

15. “quando um homem não se encontra a si mesmo, não encontra nada”,

16. “toda a palavra pronunciada suscita o seu sentido contrário”,

17. “autoridade: sem ela o homem não pode existir e, no entanto, ela traz consigo tanto o erro como a verdade”,

18. “é fácil pensar, é difícil agir, mas agir segundo o próprio pensamento é o mais difícil”,

19. “o ser humano tem muito mais desejos que necessidades”,

20. “quem não conhece línguas estrangeiras, não sabe nada da própria” (JC on line, s.d., 1-27),

21. Die Mütter Die Mütter! – ‘s klingt so wunderlich (“As mães! As mães! Como soa estranho”) (Noll, 1996, p.177), conforme se lê no Fausto.

Em Goethe, a palavra Trieb é entendida como instinto, necessidade, propulsão ou impulsos psíquicos. Por sua vez, Bildungstrieb é a força secreta que anima as criaturas e as espécies vivas. Enfim, Urphänomem são as formas do originário psíquico, como na citação: “conhecer um proto-fenômeno em sua elevada significação exige um espírito produtivo que possa abarcar muitas coisas com sua mirada”(Larroyo, 1968, p. 453).

Freud também teve sonhos com Goethe, nos quais ele aparece como um personagem familiar da casa dos Freud. Todavia, Freud disse que era um leigo em termos de arte, não sendo dela conhecedor. Entretanto, a literatura, a escultura e, menos comumente, a pintura foram alvos de seu escrutínio, atividade na qual gastava muitas horas. O psicanalista identifica-se com o seu gênio criador e, tal como o escritor, é mui investido na infância pela mãe, ainda que enlutado pela reiteração das mortes familiares. Além disso, encarando a figura de seu pai (eventualmente, subvalorizado), Freud tratou de erguer a figura de seu avô Schlomo, a qual pode ser vista como a imagem idealizada do sábio alemão. Leia-se da autobiografia de Goethe: “Fui um filho de sorte; o destino conservou-me com vida, não obstante ter eu nascido aparentemente morto. Mas eliminou a meu irmão de modo que não precisei repartir com ele o amor da mãe. (...) A raiz da minha força foi a minha posição privilegiada em relação à mãe” (Sá, s.d., p. 2).

Marie Bonaparte, após adquirir as cartas de Freud a Fliess e comprometer-se estritamente a não vendê-las, direta ou indiretamente, à família de Freud, teria assim se expressado: “Talvez o senhor mesmo (...) não tenha a percepção de sua grandeza. O senhor pertence à história do pensamento, como, digamos, Platão e Goethe” (Webster, 2002, p. 196).

Enfim e explicitamente, Freud considerou Goethe seu predecessor, pois, durante o discurso proferido em agradecimento ao Prêmio Goethe que recebera, viu a importância que Goethe concedera a Eros. Goethe, em meio a muitas disputas dinásticas em território alemão à sua época, dominava as “paixões nacionais e os passageiros rancores do patriotismo” (Loliée, 1945, p. 240) e a significância dos sonhos para a vida psíquica. O nome “psicanálise” seria inspirado no livro Afinidades eletivas. Destarte, Goethe, em seu texto nominado “Ifigênia em Táuride”, descreve o tratamento e a cura à base da palavra de seu personagem Orestes.

 

Bibliografia

BLOOM, H. A origem das espécies. Disponível em: http://www.origemdasespecies.blogspot.com
Acesso em 05 dez./2007.

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CUTHBERTSON, D. Die Natur by Christof Tobler. Disponível em: http://www.davidc.f9.co.uk/greensci/natur.htm Acesso em 23 fev./2008. 7 p.         [ Links ]

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JC on line. Johann Wolfgang Goethe. Disponível em: http://www.pensador.info/autor/Johann_Goethe Acesso em: 08 dez./2007. 27 p.         [ Links ]

LARROYO, F. Sistema y historia de las doctrinas filosóficas. México (D.F.): Editorial Porrua, 1968.        [ Links ]

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MIJOLLA, A. (Dir. Geral). Dicionário internacional da psicanálise: conceitos, noções, biografias, obras, eventos, instituições. Trad. Á. Cabral. Rio de Janeiro, 2005. Tradução de Dictionnaire international de la psychanalyse: concepts, notions, biographies, oeuvres, événements, institutions.        [ Links ]

NOLL, R. O culto de Jung. Origens de um movimento carismático. Trad. M. Vilela. São Paulo: Ática, 1996. Tradução de The Jung cult.        [ Links ]

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WEBSTER, R. Freud estava errado. Por quê? Pecado, ciência e psicanálise. Trad. J. A. Falcato. Porto: Campo das Letras, 2002. Tradução de Why Freud was wrong – sin, science and psychoanalysis.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. José Gomes Domingues, 2200/404
Bloco 20 - Jaqueline
31785-740 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31) 9819-6349
E-mail: marlyn@ufmg.br

Recebido em 02/05/2008
Aprovado em 07/05/2008

 

 

*Advogado. Psiquiatra. Filósofo. Mestrando em filosofia. Professor da Academia de Polícia Civil.

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