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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.30 no.56 Belo Horizonte Oct. 2008

 

A ANGÚSTIA

 

A angústia nos autismos e nas psicoses da infância

 

Anxiety in infantile autisms and pychoses

 

 

Angela Vorcaro

Universidade Federal de Minas Gerais/ALI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A localização da angústia nos autismos e psicoses da infância implica, primeiramente, explicitar a concepção de constituição subjetiva como tributária de formações defensivas resultantes das precipitações da angústia: são as necessárias respostas ao real tão perturbador quanto inacessível que distinguem o campo simbólico no qual o sujeito se estabiliza a ponto de antecipá-la em sinal. Nesse contexto, a angústia nos autismos e nas psicoses adquire conotações específicas de impasse na constituição subjetiva, posto que figuram a redução da alteridade à sua dimensão real (a) ou à sua dimensão simbólica (A). Alerta-se, então, para a modalidade de tratamento clínico denominada tratamento do Outro.

Palavras-chave: Angústia, Autismos, Psicoses, Psicanálise, Crianças.


ABSTRACT

The localization of anxiety in infantile autisms and psychoses implys, in the first place, on expliciting the concept of the constitution of the individual as a tributary to defensive formations that result form the precipitation of anxiety: these are the necessary responses to the upsetting and unaccessable real that distinguishes the symbolic field from which the individual finds the stability that enables one to anticipate anxiety by a signal. In this context, the anxiety in autisms and psychoses aquires specific impassive connotations in the constitution of the individual, which illustrate the reduction of “alterity” to its real dimension (a) or to its symbolic dimension (A). Special attention to the clinical treatment denominated: the Other’s treatment.

Keywords: Anxiety, Autisms, Psychoses, Psychoanalysis, Children.


 

 

É possível dizer que a constituição do sujeito é a tentativa de conquistar seu próprio corpo que é, antes da subjetivação, território alheio1. Afinal, o sujeito a vir terá que, ao mesmo tempo e ao menos em parte, dominar seu organismo e interpor-se ao agente materno que dele se assenhora. Em poucas palavras, tornar-se sujeito implica tomar corpo, jogando com esses dois poderes vigentes, articulando-os e opondo-os.

Assim, a forma imaginária do corpo oferecida pelo agente de seus cuidados se sobrepõe à superfície do organismo, recobrindo suas fendas. Por isso, a ana-tomia desse corpo não obedece à integração dos aparelhos fisiológicos do organismo mas sim à articulação entre os modos de tratamento das aberturas que fazem corte na superfície corporal, cerzindo as bordas que traçam a cartografia descontínua desse terreno.

O narcisismo primário é feito da identificação ao corpo constituído pelo agente maternante, identificação que permite ao infans assumi-lo como imagem própria. Esta primeira imagem que o “eu” capta é identificação ao corpo virtual que lhe foi atribuído por um outro.

A imagem especular circunscreve a projeção do “eu”, cuja consistência é dada e sancionada pelo agente materno. A consistência de seu corpo é assumida porque o agente alfaiate talha e cose as aberturas, guarnece e adorna o organismo, tornando-o um corpo sensível até que, por meio das imposições do agente materno, a organização biológica é interceptada: sobre ela uma organização sintática foi tatuada.

Pode-se, com Lacan, atribuir a esse primeiro comparecimento do que virá a se constituir como Outro a figuração de uma mancha, que comanda o olhar mais secretamente e que escapa sempre a essa forma de visão que se satisfaz consigo mesma imaginando-se como consciência. Isso de a consciência poder se revirar sobre si mesma, vendo-se ver-se, aponta a complacência do narcisismo baseada num desconhecimento fundamental (Lacan, 1964-1988:75). A pré-existência ao visto de um dado-a-ver está endereçada: a mancha olha fazendo, por isso, empuxo ao olhar:

“...a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê. [...]empuxo daquele que vê – algo de anterior ao seu olho. (...) pré-existência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte” (Lacan, [1964]-1988:73).

O empuxo escópico é também editado por emissão sonora:

“O dito primeiro decreta, legifera, sentencia, é oráculo, confere ao Outro real sua obscura autoridade.
Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse poder todo em potência, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu”
(Lacan, [1960]-1998: 822).

Mas, para constituir-se sujeito, será necessário ainda diferenciar-se disso.

O sujeito se constituirá sob o fundamento da tensão atrativa que liga os orifícios do organismo a essa mancha que habita seu contorno e de onde emanam ritmos: fluxos de pressão de som, de luz, de movimento, de temperaturas, gostos e odores.

Afetado e sancionado pelo Outro, o organismo toma corpo: em sua ilusão de ter um corpo ensaia a conquista de seu organismo de modo que a imagem capturada pelo “eu” no espelho é, ao mesmo tempo, antecipadora de um sujeito a vir e encobridora do que já tinha sido atribuído à criança.

“...a só vista da forma total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário do seu corpo, prematuro em relação ao domínio real. Essa formação é destacada do processo mesmo da maturação e não se confunde com ele. O sujeito antecipa-se ao acabamento do domínio psicológico, e essa antecipação dará seu estilo a todo exercício posterior do domínio motor efetivo.
É a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia”
(LACAN ([1953-4]-1986: 96).

Interessa notar a báscula que evidencia a instabilidade do eu, constatável nos fenômenos de transitivismo que se seguem ao Estádio do Espelho, em que, para a criança, sua ação e a do semelhante equivalem-se. Afinal, é pela mediação da imagem do outro que a criança assume um domínio do corpo que ela efetivamente não tem, mas pode exercer no estado de forma vazia. Essa forma, invólucro de domínio, é a superfície do corpo refletida nessa forma definida pela superfície. A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito, que só assim se conhece como corpo: diferença no idêntico.

“Na origem, antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado, alienado no outro. A tensão que ele provoca é então desprovida de saída. Quer dizer, não tem outra saída – Hegel no-lo ensina – senão a destruição do outro.
O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade – o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito. (...) A relação que existe entre o sujeito e o seu Urbild, o seu Ideal-Ich, por onde entra na função imaginária e aprende a se conhecer como forma, sempre pode bascular. Cada vez que o sujeito se apreende como forma e como eu, cada vez que se constitui no seu estatuto, na sua estatura, na sua estática, o seu desejo se projeta para fora”
(LACAN, [1953-4]-1986: 197-8).

Nesse movimento de báscula, de troca com o outro, a criança se apreende como forma vazia do corpo. Em seu estado de desejo inconstituído e confuso, limitado a um vagido, ela encontra desejo no outro. O desejo é visto no outro, até que ele possa ser reconhecido pelo sujeito por meio de seu aparelhamento simbólico (LACAN, [1953-4]-1986:198).

A imagem não é tudo o que está em jogo na assunção narcísica da criança. Os resíduos das discordâncias inomináveis não são especularizáveis. Isto porque, nessa representação, o organismo perde uma parte de seu gozo e é esse resíduo que orientará o infans para além do seu corpo cartografado pelo significante, aprisionado ao agente de seus cuidados.

Para não se misturar inteiramente com a função dada a esse corpo pelo agente materno que encarna o Outro, o infans tenta recuperar essa perda do gozo vital indo buscá-lo fora, nos objetos residuais do encontro com o agente materno, conduzindo o gozo para o exterior do corpo, no trajeto pulsional em que a um só tempo se distancia e faz laço entre seu corpo e o que lhe faz alteridade. As trocas operadas entre o agente materno e o infans não se aderem, especialmente porque o saber do agente materno sobre os objetos que satisfariam os apelos do infans é inconsistente, não lhe correspondem sem arestas. A borda pulsional articula o laço ao outro, amarra o outro sem fechar seu corte, pelo Outro, guardando certa distância.

Trata-se, para o infans, de manter certa distância do que seu corpo é para o outro sem perder nem o corpo, nem o outro. O sujeito é esse impedimento, essa mediação, essa defesa entre seu corpo e o Outro, esse exército que protege o corpo da captura do Outro, o que o reduziria a seu corpo, ou seja, a objeto do gozo do Outro2.

A margem de discordância entre si mesmo e o que o Outro constituiu primordialmente é desconhecida para ambos, convocando o sujeito do gozo a funcionar na linguagem, a aparelhar-se com esse meio do Outro para gozar com ele e dele, inscrevendo-se na língua mesmo sem localizar-se plenamente naquilo que fala. A duplicidade de ser sempre insuficiente e submetido à errância de sua discrepância com relação a seu corpo confere-lhe a posição de sujeito e lhe permite buscar, fora do seu corpo, ou seja, em outro corpo, um pouco gozo: o gozo dito fálico e o gozo do sentido.

A angústia pode ser localizada nesse processo de subjetivação.

Primeiramente, o sujeito mítico do gozo tem que se constituir no lugar do Outro, sob a forma do significante. Ele terá que se situar no tesouro do significante que o espera, antes.

Posteriormente, “é ao querer fazer esse gozo entrar no lugar do Outro, como lugar do significante, que o sujeito se precipita, antecipa-se como desejante” (LACAN, [1962-3]-2005:193).

Entre o tempo do sujeito do gozo e o tempo do sujeito do desejo pode-se apreender a incidência da angústia. Nesse tempo de angústia, a irredutibilidade do advento do sujeito no lugar do Outro produz um resto que resiste a qualquer assimilação à função do significante, “o gozo não conhece o Outro senão através desse resto, a” (LACAN, [1962-3]-2005:192). Esse dejeto, a, perdido à significantização, não pode, por isso, assumir a função de metáfora do sujeito mítico do gozo.

Afinal, a angústia, intermediária entre gozo e desejo, está presente nesse percurso em que se trata de não estar reduzido ao corpo, do gozo do Outro. Mesmo que seu tempo seja elidido ou não seja identificável: “só depois de superada a angústia, e fundamentado no tempo da angústia, que o desejo se constitui” (LACAN, [1962-3]-2005:193).

Sempre há, no corpo, em virtude dessa dialética de engajamento no significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne (LACAN, [1962-3]2005:242). Esse resto, que sobrevive à prova do encontro com o significante puro, sustenta e move o desejo, sempre ilusório porque se dirige a um outro lugar, a um resto constituído pela relação do sujeito com o Outro que vem substituí-lo (LACAN, [1962-3] 2005:262). Sua não-coincidência com a falta constitutiva da satisfação é a angústia: a única a alvejar a verdade dessa falta (LACAN, [1962-3]-2005:253)3.

A constatação da alteridade é promovida pela distinção de que das manifestações do agente materno e das trocas estabelecidas com ele depreende-se um lugar reconhecível que convoca a criança. Esse lugar pode ser localizado pela criança porque encarnado em alguém que pede: a criança constata que falta algo ao agente e que, portanto, ele deseja.

Identificar sua própria falta a essa falta constatada no Outro é a primeira rota da constituição de um lugar desde o qual possa responder. Subjetivar-se implicará defender-se do querer do Outro, contando com a melhor arma, supondo um instrumento de defesa – a interdição, e, ainda, operando com ela.

O sujeito resulta dessa perda da possibilidade de identificar-se plenamente ao objeto da falta do Outro. Mas é ao dar-se conta do risco de ser situado como objeto do Outro e mesmo de oferecer-se como objeto que falta ao Outro que ele poderá reconhecer-se numa outra posição de onde poderá defender-se, recorrendo ao saber da organização significante.

Para ficar ao abrigo do agente materno, o sujeito constitui um Outro, ou seja, serve-se da linguagem para cifrar seu gozo, usa os significantes da demanda do outro para recuperar sua parte perdida. Inscrevendo-se no simbólico, considera o enigmático, o desejante e o inconsistente que caracterizam o Outro.

Enfim, inscreve-se no simbólico porque se submete ao princípio da identificação diferencial significante, pelo qual só da articulação com um outro significante pode surgir a significação.

A submissão do sujeito ao princípio da articulação significante só é possível sob a condição de que exista um parceiro que encarne o Outro e que troque significantes com o sujeito (NOMINÉ, 2001:13). Enquanto os significantes antecedem o sujeito, o Outro tem que ser constituído pelo laço do agente materno ao infans.

O Outro nasce do desaparecimento do agente materno e da lógica subseqüente pela qual esse agente reaparece trazendo a satisfação que adquire assim o valor simbólico de um dom de amor. Entretanto, o sujeito não se confunde com a imagem e a função que tem para o Outro porque um resíduo fora da linguagem impede a mera aderência ao Outro estabelecendo com ele um laço (NOMINÉ, 2001:14-15).

Essa condição de sujeito não se verifica na psicose ou no autismo. Nas graves psicopatologias a linguagem não pôde conduzir a diferenciação de um sujeito. Por isso, o que faz defeito nestas é o fato de não haver essa discrepância entre o desejo do Outro e a condição subjetiva4. Essa discrepância é que permite buscar fora do seu corpo os objetos residuais que escapam ao funcionamento simbólico e que, ao mesmo tempo, conduzem o sujeito a submeter-se à linguagem.

Nessa condição, o atravessamento do organismo pela linguagem pode remeter a criança de encontro a uma figuração absoluta de Outro, por uma aderência em que se confunde com o Outro, como faz o psicótico, ou por uma neutralização tal que se exclui do Outro, como faz o autista.

O psicótico confunde-se com o real do seu ser – que lhe vem do Outro e a ele retorna plenamente absorvido, como signo, numa simetria em que se rebate. Sua alienação é maciça e exclusiva. Maciça porque se banha no conjunto sincrônico da linguagem; exclusiva porque o que é excluído é a parte fora do significante pela qual o lugar do sujeito se demarca (LEFORT e LEFORT, 1988:617). Se nada há em exterioridade que ofereça um lugar ao sujeito na sua relação ao Outro, seu único lugar é o de equivalência ao significante. Assim, o psicótico está esmagado pela lógica significante sem a diacronia na qual poderia constatar não coincidir com ela. A ausência de resíduos perdidos no laço que o ata ao Outro faz da linguagem uma toda-presença – um real dos significantes que encarna o sujeito psicótico num campo não descompletável, mas contínuo: nada é separável. A insuficiência da inscrição do sujeito no significante não permite separar o sujeito do significante da substância do objeto a. Assim, no lugar de S1, é o S2 do Outro, encarnado na criança, que faz gozo; o S2 põe a criança no lugar do furo do Outro, como objeto do Outro (LEFORT e LEFORT, 1988: 622-30).

Fazendo-se imanente à cadeia significante, a criança fica colada ao mandato em que ela é o que falta no Outro. Encarnando essa falta, ela preenche o intervalo entre significantes, tornando sólida a cadeia: o significante representa outro significante num deslizamento infinito. A criança está catapultada à alterização absoluta do campo da linguagem, fora da função da fala (JERUSALINSKY, 1993:62-73). A defesa em relação à falta mantém seu saber sem sujeito suposto, sem unidade de medida, já que é sustentado com sua pessoa, saber errante e metonímico (CALLIGARIS, 1989:22-30).

No autismo, a criança destaca-se da alienação significante, sem entretanto fazer uma interpenetração entre os campos do ser e do Outro. Ela é, sem interpolação, ou puro ser vivo, organismo, ou pura máquina significante. Suas aquisições são reflexas, na medida em que, na maquinação significante do ventríloquo, nada diz respeito ao funcionamento do corpo tomado pelo significante e em suas funções orgânicas, nada diz respeito ao funcionamento significante. Há um funcionamento paralelo e exclusivo do ser e do significante, demonstrado por sua exclusão ativa.

A criança autista opõe-se, com o ser, ao Outro real que ela duplica; é um espelho no real (LEFORT e LEFORT, 1997). Realizando a demanda negativa direta, sem inversão da exclusão que lhe é proposta (JERUSALINSKY, 1993:93-99), ela opera uma retração que mostra a falha desejante do Outro, em um não sendo que responde à indeterminação do desejo do Outro, fazendo-se morto ao isso quer minha perda (CALLIGARIS, 1986:27-28).

Podemos então afirmar que mesmo que sem estrutura definida de gestão do desejo, tanto o autista quanto o psicótico defendem-se, a despeito de suas defesas não produzirem um sujeito. O autista e o psicótico, como os sujeitos estruturados na neurose, defendem-se ativamente de ser reduzidos a seus corpos.

Trata-se dos desastres do encontro com a figura do Absoluto que remetem a criança a dissolver-se nele ou a apagá-lo.

A psicose defende-se produzindo simetria ao Outro. Sem o princípio organizador sintático da linguagem, ou seja, a relação de representação entre significantes, atira-se ao Outro dissolvendo-se por meio da construção de relações sígnicas que o esmagam.

O autismo defende-se da figura do absoluto sendo o absoluto. Realizando a exclusão, recusa os signos da presença do outro, exercendo continuamente a assepsia da alteridade, que pode lhe contaminar: nada de relações diretas. Fazendo-se ativamente de inerte ou de máquina significante, não acolhe demandas nem apela para anular o Outro (SOLER, 1999:229).

Isso quer dizer que essas crianças estabelecem os meios de se defender: na psicose, o uso descarrilado do significante que estabelece um princípio sígnico de organização significante realizado no delírio; no autismo, a construção da indiferença ao que lhe faz exterioridade, que a assepsia ao princípio da representação significante realiza.

Cabe então perguntar: Se a angústia é sinal inequívoco de uma presença voraz que constrange a ceder o corpo, o que convocaria esse sinal no autista e no psicótico?

Ao falar de Schreber, Lacan ([1955-6]-1988:309) afirma que há um outro singularmente acentuado, cuja alteridade o torna estranho às coisas vivas e desprovido de compreensão, que não estabelece relação de reciprocidade: “há um Outro” completamente radical e “isso é decisivo, estruturancial”. Na ausência do organizador da lei simbólica, o Nome-do-Pai, não há normatividade da Lei e sim o imperativo insensato do supereu que se impõe à revelia do sujeito e que goza dele, de modo aberrante. O que está perdido na psicose não é o objeto, mas o regulador do gozo, Nome-do-Pai. É o que faz da ordem do Real o Outro do qual o psicótico é o resto lançado à mercê. A angústia que aprisiona o psicótico sinaliza essa invasão do Real – presença inequívoca do Outro – que só pode ser amortecida numa formação delirante que encobre a face nua do gozo do Outro.

Na perspectiva de Nominé (2001:11-23), a posição autística é uma defesa contra a mortificação simbólica: no autismo não há Outro. Ele é seu próprio objeto sem ser objeto de mais ninguém. Entretanto, o autista se protege de uma presença insuportável, não do Outro, mas “da intrusão de um (...) tirano absoluto (...) duplo de si mesmo com o qual faz Um (...) e o reino do Um é o que se opõe à própria noção de Outro”(NOMINÉ, 2001:13).

A recusa radical do autista não é ao Outro, mas à posição de objeto do gozo de uma potência totalitária e inflexível. Ao retrair-se, declinando seu corpo da posse dessa potência, intercepta o laço pulsional que o ligaria ao Outro, neutraliza a procura de satisfação no Outro, obstaculizando a erogeneidade pulsional com a qual faria laço, mas, mantendo-se à deriva, livra-se de ser reduzido a seu corpo, como objeto do gozo do Outro.

“Uma vez que se trata de um corpo/organismo aberto, sem as marcas significantes postas em circuito e inscritas, podemos pensar que atitudes estereotipadas, movimentos ritmados e repetitivos com o corpo resguardam essa criança de uma invasão feroz” (FARIA, 2006:135).

Localizando a organização defensiva como “trabalho para fazer frente ao Outro” e identificando defesa a tratamento, na medida em que fazer frente é o modo como essas crianças buscam tratar (d)esse Outro, Faria (2006:135) propõe uma prática clínica na qual o analista se coloque como parceiro da criança: tratando, com ela, o Outro. Refere-se para isso aos esforços de Baio (2003), Di Ciacca e Zenoni (1991) especialmente, nas instituições belgas Antenne 110 e Le Courtil e no Lugar de vida, em São Paulo.

Assim, nas incidências preliminares, o propósito do analista seria, para Zenoni (apud Faria, 2006:152), tratar o gozo que invade o sujeito, com intervenções que domestiquem o gozo do Outro. O sujeito seria tratado indiretamente, por meio do anteparo, feito pelo analista, ao Outro Real. A modulação do Outro se daria pelo fato de o analista dirigir-se ao objeto ameaçador, delimitando, com sua fala, o espaço desse objeto.

Interromper a expressão incessante do Outro com afirmações assertivas distancia a criança e a pacifica, segundo Baio (apud Faria, 2006:152), a partir da localização da barra do Outro perturbador. Assegurando sua presença regular, o analista, como parceiro, sustentaria o sujeito na criação de defesas próprias capazes de lhe permitir dar um próximo passo.

Na prática institucional, denominada “pratique à plusiers” por Di Ciacca, a equipe se propõe a sustentar um saber comum: o gozo deve ser barrado pela presentificação de um outro regulado (DI CIACCA apud FARIA, 2006:153).

 

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Endereço para correspondência
Rua Sagarana, 77/602
30330-210 - Belo Horizonte/MG
E-mail: angelavorcaro@uol.com.br

Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre a Autora

Angela Vorcaro
UFMG/ALI.

1 Tratei desse tema também no texto: O corpo na psicose, em: Corpolinguagem: gestos e afetos, Nina Leite (org.), Campinas: Mercado das Letras, 2003.
2 Em outro trabalho, Linguagem maternante e língua materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala, in: O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas, 2002, detalhei esse processo primordial, em que não poderei me deter aqui.
3 Por isso, Lacan dirá em 1974 que temos medo de nosso corpo: a angústia é algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de que nos reduzimos a nosso corpo.
4 Tratei pormenorizadamente desse tema em: Crianças na psicanálise: clínica, instituição, laço social, cap. 1: Da holófrase e seus destinos, Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1999.

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