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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.30 no.56 Belo Horizonte Oct. 2008

 

A ANGÚSTIA

 

Da angústia ao desejo do analista

 

From anxiety to the analyst’s wish

 

 

Zilda Machado

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A angustia é o ponto último diante do real, sendo portanto uma balisa na condução do tratamento. Neste texto a autora aborda a questão da angústia não do lado do analisante, mas do lado do analista, para mostrar como foi através do conceito de contratransferência que Lacan pôde formalizar o conceito de desejo do analista. O que está em jogo então é a análise do analista enquanto propicia na economia do desejo do sujeito o surgimento de um “desejo maior”.
 
Palavras-chave: Angústia, Analista, Contratransferência, Desejo do analista.


ABSTRACT

Anxiety is the last point before the real, being therefore a conductor of treatment. In this article, the author discusses the analyst’s anxiety in order to demonstrate how Lacan used the concept of counter-transference to formalize the concept of anxiety. So being, it is the analyst’s analysis that proportions, in the economy of the individual’s wish, the appearence of the “greater wish”.

Keywords: Anxiety, Analyst, Counter-transference, Analyst’s wish.


 

 

O ensino de Lacan tem um fio condutor e no ano de 1962/63, no Seminário X - A Angústia, ele continua trabalhando a questão do sujeito do Inconsciente, aquele que é constituído no Campo do Outro, no encontro de duas faltas. Ele não sabe o que diz e muito menos sabe o que deseja: o sujeito, portanto, como falta-a-ser. Ou seja, para além do que se inscreve na linguagem, há um resto que pulsa no coração do sujeito e inscreve o lugar de um objeto, um vazio que Lacan pôde demonstrar no seminário anterior, o da Identificação. E Lacan traz uma questão: a este sujeito, que objeto lhe corresponde? Qual é seu estatuto? E ainda mais: o que se produz quando do encontro do sujeito com o objeto? É aí que vem à baila a angústia, o afeto que não mente.

Portanto, trata-se de, no percurso desse seminário, através da angústia, chegar a construir um saber sobre o objeto. No início ele é pensado como objeto do desejo do sujeito, mas ao final, Lacan elabora que não há o objeto do desejo, o que há é o objeto como causa de desejo, semblante, e o denomina “objeto a”.

Ou seja, no seminário da Angústia, Lacan aprofunda a função do objeto na experiência analítica, e o toma pelo viés da angústia, este fenômeno que mostra o ponto mais próximo onde se está diante do real. Ponto onde o resto se apresenta desvelado de toda cobertura. Ponto diante do qual, desamparado diante do real, sem o véu da imagem ou a tradução significante, o encontro com a coisa provoca no sujeito o afeto que não mente.

Para Freud “a angústia é uma reação ao perigo de uma perda de objeto”1, Lacan, porém, aponta outra coisa: a angústia não é sinal de uma falta, ela é sinal de uma falta do apoio da falta. A falta estruturalmente coloca o sujeito a desejar. O que vemos na angústia é que nesse lugar onde deveria estar a falta, um objeto vem tamponá-la. A angústia, portanto, não é perda de objeto, não é a falta de objeto, mas ao contrário, é a sua presença, é a presença de um objeto maciço, um objeto que é o mais íntimo, o mais profundo, o objeto último, a coisa, por isso, ela é o que não engana.

Aprendemos com Freud e com Lacan que diante do vazio, do ponto oco da estrutura, o sujeito utilizará o falo e o objeto a para justamente operar com este ponto. O falo produz a operação pela via simbólica. Já o objeto a, criado por Lacan, permitiu à psicanálise operar com o real, o que insiste, o que repete, o que se mostra por não ter a via da linguagem para se expressar. Portanto, para apreendê-lo, trata-se de, na clínica, verificar onde se mostra o real, o ponto da falta cujo recobrimento não se dará pela via da tradução em palavras. Por isso a angústia serve de baliza, de norteador para a condução do tratamento, pois o que ela presentifica é que ali, naquele ponto preciso onde surgiu, está-se próximo do objeto a, portanto, do real.

Nesse seminário Lacan nos mostra que a angústia, e portanto o objeto a, se presentifica na clínica do lado do analisante, mas também que ela pode aparecer do lado do analista na condução de um tratamento. Interessei-me por tomar justamente este ponto da clínica. Vamos acompanhar com Lacan a angústia do lado do analista. Ele o faz no seminário da Angústia, a partir da lição X, tomando os famosos “textos da Contratransferência” dos pós-freudianos para, através de uma elaboração sobre este conceito, avançar até o ponto onde teorizará o conceito de “desejo do analista”.

Lacan faz uma crítica muito particular a estes textos, em nenhum momento ele os critica negativamente. Aliás, parece-me que ele toma estes autores com o respeito de quem está perante um analista que, diante dos impasses de sua clínica, buscava uma elaboração que lhe permitisse ultrapassar o impasse a que a experiência clínica o levou. O problema é que eles buscavam a resposta a esta questão em seu próprio inconsciente. É justamente daí que Lacan parte, verificando que se é essa a resposta do analista, ela entranha equívocos e enganos. Mas, ele demonstra nessas lições que foi a partir do conceito de contratransferência que se pôde indicar o lugar topológico do desejo do analista.

E o que é a contratransferência? Na lição XIII do Seminário VIII – A Transferência, Lacan, elaborando sobre este assunto, nos dá uma conceituação: “A contra-transferência (...) é feita de sentimentos experimentados pelo analista na análise, e que são determinados a cada instante por suas relações com o analisando”2, ou seja, trata-se justamente da incidência da presença do analista, como sujeito, em sua prática.

Ao introduzir a questão da contratransferência, o que Lacan introduz é: “toda vez que se leva suficientemente longe um discurso sobre a relação que mantemos, como Outro, com aquele que temos em análise, coloca-se a questão do que deve ser nossa relação com esse a”3. Ou seja, a relação com o objeto a é relação com a falta, e portanto, com o desejo, ou então, como vimos, com a angústia. Por isso, se não for o desejo do analista o que sustenta o analista em sua prática, será, por uma questão lógica, o desejo inconsciente do sujeito-analista que advirá.

É por isso que Lacan introduz a questão da contratransferência, um conceito por demais frouxo, para, através da crítica a ele, construir o conceito de desejo do analista. Embora difícil de definir, o desejo do analista é preciso: ele é uma função! O que é articulado a partir de um rigor lógico que leva em conta um saber sobre a causa, sobre a verdade da estrutura, que é o vazio do real, e que concerne ao final da análise.

Também no seminário da Transferência, Lacan coloca uma questão que me pareceu bastante pertinente: ele se pergunta sobre um ideal de impassividade que se faz da análise. “Diz-se que o analista tem de ser impassível”, neutro, e ele indaga: “Para que o analista não esteja sujeito ao fenômeno da contratransferência é necessário então uma completa redução da temática do próprio inconsciente do analista?” Mas ele logo a seguir acrescenta: “Não temos como formular que seja isso que coloca o analista fora do alcance das paixões”. Ou seja, sabemos que a análise levada até muito longe é absolutamente necessária àquele que deseja ocupar este lugar para um outro, e aí trata-se de buscarmos demonstrar por que isso é insuficiente para fazer dele um analista.

Dito de outro modo, então, se não é só a decifração de seu próprio inconsciente que vai levar o analista a não misturar as coisas, o que mais está aí em jogo? E Lacan coloca: “deve mesmo haver, ainda assim, algo de justificado na exigência da apatia analítica, deverá ser realmente necessário que esta se enraíze em outra parte” (grifos meus). Ou seja, trata-se de verificarmos em que ela se enraíza. A neutralidade é desejada, poderíamos dizer, ela é necessária, mas ela se enraíza não na decifração do Inconsciente, mas em outra coisa. Em quê? E Lacan responde que é somente na medida em que ele, o analista, for possuído por um “desejo mais forte que os desejos que poderiam estar em causa, a saber, de chegar às vias de fato com seu paciente, de tomá-lo nos braços ou atirá-lo pela janela”. E ele continua: “isso acontece. Eu teria mesmo maus augú-rios, ouso dizê-lo, para alguém que jamais houvesse sentido isso. Mas, enfim, ... isso não deve acontecer de maneira comum”4.

Mas, por que isso não deve acontecer, sem que seja um imperativo? Lacan nos mostra por quê: É em razão do seguinte: é porque o analista pôde e pode dizer: “Sou possuído por um desejo mais forte. Ele está autorizado para dizê-lo enquanto analista, enquanto produziu-se, para ele, uma mutação na economia de seu desejo”5 (grifos meus).

Todos os autores da contratransferência, aponta Lacan, embora façam uma exposição profunda sobre sua experiência, nenhum deles pôde evitar de colocar as coisas sobre o plano do desejo. Por isso Lacan nos diz que não basta definirmos o que é a contratransferência, pois esta não é verdadeiramente a questão. A verdadeira questão é justamente o desejo do analista. “Pois ao final das contas, ao menos isso não pode escapar aos ouvidos mais duros: que na dificuldade de abordagem desses autores, todos, a respeito da contratransferência, é o problema do desejo do analista que faz obstáculo”.

Ou seja, para Lacan, tomar a noção de contratransferência é somente uma maneira de fazer avançar o seu ensino e de retirar a psicanálise da posição imaginária, intersubjetiva, que lhe deram com a noção de “two body psychology”, que supunha o inconsciente como intercomunicável. Ele consegue extrair que à noção de contratransferência subentendia-se a questão do desejo, e isso é o que verdadeiramente interessa. O analista era tomado ali, na cena analítica, em sua posição de sujeito do inconsciente, de sujeito desejante, e aí o analisante, conseqüentemente, era tomado por ele como objeto causa de desejo, ou então, de angústia. Vemos, portanto, que o conceito de contratransferência entranha a resistência por parte do analista.

Portanto, segundo Lacan, “a única significação de contratransferência, à qual nenhum autor pode escapar, justamente na medida em que é isso o que lhe interessa, é: o desejo do analista”.

Trata de entendermos que contratransferência é um efeito legítimo da transferência. Trata-se de um efeito irredutível da situação de transferência, que aponta justamente onde se localiza para cada sujeito o seu objeto a. Não há intercomunicação de inconscientes, o que há é somente o inconsciente de um sujeito que só se comunica com o objeto a que se encontra no campo do Outro. Mas diz Lacan, “basta supor que o analista, mesmo à sua revelia, coloque por um instante seu próprio objeto parcial, seu ágalma, no paciente com quem está lidando. Aí, com efeito, se pode falar de uma contra-indicação”6 (grifos meus).

Justamente, Lacan pontua: “O que faz de uma psicanálise uma aventura singular é essa busca do ágalma no campo do Outro. Interroguei-os diversas vezes sobre o que convém que seja o desejo do analista, a fim de que seja possível o trabalho ali onde tentamos elevar as coisas além do limite da angústia. Certamente convém que o analista seja aquele que, minimamente, não importa por qual vertente, por qual borda, tenha feito seu desejo entrar suficientemente nesse a irredutível para oferecer à questão do conceito da angústia uma garantia real”7. Ou seja, é a questão da causa que está em jogo.

Vemos então que Lacan introduz por este viés a questão do desejo do analista, um conceito crucial, um conceito lógico, articulável a partir da própria experiência de análise. É preciso ter ido longe o suficiente na própria análise para que este desejo se lhe advenha, mas não necessariamente isso acontece. E é este “a mais” que concerne ao analista: um desejo inédito, um desejo que leva em conta o saber sobre o real.

É porque lhe adveio um “desejo maior” que ele pode abdicar de seu ser na análise. O que Lacan aponta aqui é que o analista é um sujeito desejante, que teve na economia de seu desejo o advento de um desejo inédito; esta é a condição necessária para que ele possa se oferecer como semblante de objeto a para um outro e sustentar as análises que tomar a seu cargo.

Tomando Lacan na “Nota aos Italianos”, para trilhar a via da função do analista, o que deve ser levado em conta é o Real. Se o final de análise puder levar o sujeito do horror de saber a consentir com o saber sobre a castração, este saber que a humanidade não deseja, é isso o que pode levar o analisante à posição de analista e a partir daí pode levá-lo a conduzir outros a este mesmo ponto. Pois a verdade do Real é a verdade da castração, “não há relação sexual”, e Lacan aponta: Se isso não o levou ao entusiasmo, pode ter havido final de análise, mas nenhuma chance de haver analista8.

É a partir daí que o analista poderá contribuir para o saber, sem o quê, não há chance de a psicanálise continuar sobrevivendo. É preciso, ao chegar a este ponto, ao ter acesso ao Real, por um compromisso ético com a causa analítica, teorizar, construir um saber, “determinar o real”, como diz Lacan, pois esse saber não se encontra pronto, é preciso inventá-lo. O sujeito, ao passar de analisante a analista, por ter tangenciado o indizível da verdade da castração, terá a partir daí um combustível para a construção do saber. A verdade, ela é para sempre não-toda dita, e é o que nos colocará sempre a trabalho, causados por esta hiância que nos especifica como seres falantes, e que, na análise, se tornou causa!

“Não quero a terrível limitação
de quem vive apenas do que é possível de fazer sentido.
Eu não: eu quero é uma verdade
inventada”.

C. Lispector

 

Bibliografia

FREUD. S. (1926[1925]) Inibições, Sintomas e Ansiedade. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XX.        [ Links ]

LACAN, J. (1960/61) O seminário – livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.        [ Links ]

LACAN.J. Nota Italiana. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.        [ Links ]

LACAN. J. (1962/63) O seminário – livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Santa Rita Durão, 321/911 - Funcionários
30140-110 - Belo Horizonte/MG
Tel.: (31) 3227-5331
E-mail: zildamachado@terra.com.br

Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre a Autora

Zilda Machado
Psicóloga. Psicanalista. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.

1 FREUD, S. Inibição, sintomas e ansiedade, p.194.
2 LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência, p.190.
3 LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia, p.154.
4 LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência, p.187.
5 LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência, p.187.
6 LACAN, J. O seminário, livro 8: a transferência, p.195.
7 LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia, p.366.
8 LACAN, J. Nota Italiana. In Outros escritos, p. 311.

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