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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.30 n.56 Belo Horizonte out. 2008

 

CORPO E ANGÚSTIA

 

O corpo do psicanalista: possíveis impactos da clínica no corpo do analista

 

The psychoanalyst’s body: possible impacts of clinical pratice on the psychoanalyst’s body

 

 

Rodrigo Mendes Ferreira

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo reflete sobre um tema pouco explorado: o corpo do analista. O autor discute os possíveis impactos da clínica no corpo do psicanalista. Analisa como o corpo pode ser afetado, a longo prazo, pelo contato com fortes projeções de angústia e hostilidade dos pacientes. Conclui que os restos e pontos cegos da análise do próprio psicanalista, somados à face inconsciente da contratransferência, podem ter um efeito danoso para o seu corpo.

Palavras-chave: Psicanalista, Clínica, Contratransferência, Angústia, Corpo.


ABSTRACT

This article discusses a rarely explored theme: the psychoanalyst’s body. The author considers the possible impacts of  clinical pratice on the psychoanalyst’s body. He analyses how the body can be affected, within a long period of time, by the contact with massive projections of anxiety and hostility coming from the patients. The article concludes that the remains and the blind points from the  psychoanalyst’s own analysis, together with the unconscious face of counter-transference, can bring a harmful effect to his body.

Keywords: Psychoanalyst, Clinical pratice, Counter-transference, Anxiety, Body.


 

 

No ano de 2005, quando participei da X Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, que tinha como tema central as discussões sobre o corpo em psicanálise, constatei, juntamente com minhas colegas psicanalistas1, que, apesar dos diversos e interessantes trabalhos que foram apresentados, nenhum deles falava sobre o corpo do analista. Achei isso no mínimo sintomático e me parece que, ainda hoje, existe certo tabu, por parte de muitos psicanalistas, em tratar de questões que possam refletir os furos, os pontos cegos e as limitações próprias de um profissional que, afinal de contas, chegou ao seu final de análise.

Após cursar a disciplina “O corpo imaginário na literatura, no teatro e na psicanálise” (2007), do programa de pós-graduação em Letras da UFMG, defrontei-me com o desejo de aprofundar o estudo sobre esse tema do corpo do psicanalista. Resolvi então olhar para o espelho e desvelar situações em que o meu corpo poderia ser afetado no trabalho. Lembrei de algumas, dentre elas, uma reação de susto, seguida de preocupação com um paciente, na noite em que recebi um telefonema inesperado às 22 horas, de seu familiar, que me comunicou, desesperadamente, que ele estava desaparecido desde a noite anterior e que seus documentos foram encontrados na rua2. Com certeza isso atrapalhou bastante o meu sono. Penso no impacto que situações dessa natureza poderiam ter no meu corpo, a longo prazo. Vários colegas me relataram que já tiveram o sono prejudicado em função de atendimentos pesados que fizeram durante o dia. Além e a partir disso, outra questão surgiu: será que o corpo do psicanalista clínico3 é afetado pelo confronto com o excesso de conteúdos que carregam dor, sofrimento e angústia dos pacientes, ou seja, pelo contato que ele tem com fortes projeções de pulsões de morte no trabalho?

A hipótese que me veio, inicialmente, é a de que se o corpo é o lugar onde se originam as sensações relacionadas aos sentidos e é atingido pelos afetos, tais como raiva, tristeza, alegria, culpa, dentre outros, então existe alguma probabilidade de que o contato com a raiva, a dor, a angústia de nossos pacientes, durante horas, semanas, meses e anos, pode trazer algum tipo de impacto para o nosso corpo, principalmente a longo prazo.

Para pensar nos impactos da clínica sobre o corpo do analista é preciso refletir, num primeiro momento, sobre a realidade que afeta esse profissional. Freud sempre foi atento à influência da cultura nos indivíduos. Nos dias atuais, tem-se um enfraquecimento das tradições, das referências, da função paterna, o que certamente traz conseqüências para o psiquismo dos indivíduos, os quais recorrem a ‘saídas’ cada vez mais frenéticas e apelam ao hedonismo, ao narcisismo e ao consumismo, em todos os níveis e classes sociais. A violência cresce em escala mundial e influencia analisandos e analistas. A crise ecológica, com um significativo aumento da temperatura global, também está na ordem do dia. Os relacionamentos estão cada vez mais descartáveis. A precariedade dos vínculos afetivos reflete a fragmentação da civilização atual. Paradoxalmente, nessa sociedade do espetáculo tem-se o imperativo da felicidade, onde produtos, gadgets, amores e drogas são consumidos rapidamente. Ao mesmo tempo, a criação de novas tecnologias que mudam a forma de percepção da realidade e melhoram o conforto dos indivíduos não consegue acabar com o mal-estar. No mundo atual, predomina a anomia, o vazio existencial e a solidão.

Em decorrência desse cenário, acredito que temos uma clínica mais complicada. A extensão da psicanálise a novos campos, tais como a análise de psicóticos, casais, famílias e grupos, pode fazer com que as reações inconscientes do analista sejam mais mobilizadas. No casal em crise, por exemplo, o jogo destrutivo, o ressentimento, a agressividade, ou seja, as projeções de pulsões de morte são muito intensas para o psicanalista4. O analista que atende clientes que atuam muito, como nos casos de neuróticos graves, deprimidos crônicos, psicóticos, toxicômanos, recebe uma carga de hostilidade muito forte.

Mesmo com essa situação externa problemática, não podemos esquecer-nos de nosso compromisso ético com a saúde dos pacientes, e é interessante que o psicanalista tenha uma práxis comprometida com a complexidade de seu mundo.

É certamente difícil quantificar o impacto de tudo isso no corpo do analista. Uma pesquisa sobre o perfil e a saúde mental do psicanalista, de Dora Pimentel e Maria Jésia Vieira (2005), entretanto, pode ajudar a esclarecer alguns pontos.

A pesquisa teve o objetivo de identificar condições de trabalho capazes de influenciar a vida mental dos analistas. Para tal, foi utilizado um questionário com 69 perguntas que foi respondido por psicanalistas que atuam em quatro regiões do Brasil: 2% na região Norte, 4% na Centro-Oeste, 12% na Nordeste, 74% na Sudeste. Verificou-se, entre outros dados, predominância de mulheres de 41 a 50 anos, satisfeitas com suas conquistas. Contudo, foram detectados casos de sobrecarga de trabalho, exaustão física, stress, insônia, cefaléias freqüentes e uso regular de medicação (analgésicos, principalmente). Constatou-se que 65% dos psicanalistas são autônomos e trabalham de 8 a 12 horas por dia. Concluiu-se que esses profis-sionais devem estar atentos para os problemas que afetam sua qualidade de vida, uma vez que a condição de psicanalistas não os protege da dor e do sofrimento.

Os indícios de sofrimento físico e psíquico de um profissional que supostamente chegou ao seu final de análise mostram a possibilidade de existir pontos cegos, misturados a outros elementos, representáveis ou não, que podem desencadear certas doenças e abalos no corpo do psicanalista.

Os restos cegos inconscientes e as intensas projeções de angústia e hostilidade em relação ao analista remetem ao polêmico tema da contratransferência. Apesar de não ter desenvolvido muito a noção de contratransferência, Freud, ao falar sobre as perspectivas futuras da psicanálise, diz que ela “surge como resultado da influência do paciente sobre os sentimentos inconscientes do médico” e que “nenhum psicanalista avança além do que os seus próprios complexos e resistências internas lhe permitem” (1910, p.150). Recomenda uma auto-análise profunda para que o psicanalista possa reconhecer e sobrepujar a contratransferência.

Num texto posterior, ele enfatiza a idéia de que o analista “não pode tolerar quaisquer resistências em si próprio que ocultem de sua consciência o que foi percebido pelo inconsciente” (1912, p.129), e insiste em que, para evitar deformações ou pontos cegos em sua percepção, o psicanalista tem que “passar por uma purificação psicanalítica” e ficar “ciente daqueles complexos seus que poderiam interferir na compreensão do que o paciente lhe diz” (1912, p.129).

Freud sabia que o sucesso do processo analítico também dependia do domínio da contratransferência: “Em minha opinião, portanto, não devemos abandonar a neutralidade para com a paciente, que adquirimos por manter controlada a contratransferência” (1915, p.182). Assim, dever-se-iam reduzir os efeitos negativos da contratransferência pela análise pessoal, o que beneficiaria as análises dos pacientes.

Do ponto de vista da delimitação do conceito, Laplanche e Pontalis pontuam que “certos autores entendem por contratransferência tudo o que, da personalidade do analista, pode intervir no tratamento, e outros limitam a contratransferência aos processos inconscientes que a transferência do analisando provoca no analista”5. Nesse mesmo sentido, Roudinesco e Plon definem a contratransferência como o “conjunto das manifestações do inconsciente do analista relacionadas com as da transferência de seu paciente” (1998, p.334).

Em seu Diário Clínico (1932), Ferenczi também se interessou pelos processos psíquicos que ocorrem no psicanalista ao longo das sessões, sobretudo pelas dificuldades e resistências, o que nomeou de “metapsicologia do analista”. Ele analisou o modo como era afetado por seus pacientes durante e após as sessões, criticou a hipocrisia por parte de analistas que se recusam a tratar dos afetos de amor e de ódio suscitados nas análises.

Conforme Kupermann, para Ferenczi, “a libido do psicanalista está efetivamente implicada no processo analítico, sem álibis” (2003, p.48). Ele afirma que, em Ferenczi,

“a contratransferência abrangeria tanto a expressão dos afetos oriundos dos próprios investimentos transferenciais do psicanalista, quanto as resistências e os pontos cegos nele suscitados pelo impacto dos afetos a ele endereçados; mas além disso, abrangeria também a expressão de afetos inéditos suscitados no encontro analítco”6.

Também nesse sentido, Veiderman fala sobre a mancha cega da contratransferência e o forte investimento narcísico da ‘situação analítica’ pelo psicanalista. Para ele

“Não existe contratransferência que não seja governada também por alguma mancha cega. É por causa da contratransferência que as coisas nos escapam; é graças à contratransferência que percebemos todas as outras. O forte investimento narcísico da situação pelo analista (e igualmente pelo analisado) torna possível a análise”7.

Ao mesmo tempo, é impossível controlar todos os pontos cegos da contratransferência, ou seja, sua face inconsciente.

O diálogo de inconscientes que supostamente ocorre durante o processo psicanalítico, e que está na base da contratransferência, foi identificado por Freud: “todos possuem no seu próprio inconsciente um instrumento com que podem interpretar as expressões do inconsciente dos outros” (1913, p. 337).

Ele afirma que, para identificar o material inconsciente oculto dos analisandos, o analista

“deve ajustar-se ao paciente como um receptor telefônico se ajusta ao microfone transmissor. Assim como o receptor transforma de novo em ondas sonoras as oscilações elétricas na linha telefônica, que foram criadas por ondas sonoras, da mesma maneira o inconsciente do psicanalista é capaz, a partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente, que determinou as associações livres do paciente”8.

Freud reconhecia e enfatizava a autenticidade da comunicação de inconsciente para inconsciente, que ocorre durante o processo psicanalítico.

Lacan defende outra concepção de inconsciente. Para ele, o analista entra como objeto na cena analítica e não é exterior ao inconsciente do analisando. Miller9 endossa essa tese lacaniana de que o analista é uma formação do inconsciente.

De acordo com essa teoria, o corpo do analista entra em cena como objeto, alvo das pulsões dos analisandos. Isso pressupõe que o corpo do analista é imprescindível para que o processo analítico aconteça e que não pode existir uma ‘análise virtual’. O analista também trabalha com seu corpo, com sua presença10. Ele empresta seu próprio corpo na direção da cura.

Sobre a contratransferência, inicialmente Lacan articula esse conceito com as críticas que faz à psicologia do ego. Ele diz: “a contratransferência nada mais é do que a função do ego do analista, o que chamei a soma dos preconceitos do analista” (1983, p.33). Num momento posterior, concebe a contratransferência como um fenômeno da situação de transferência:

“Segue-se que aquilo que se nos apresenta nessa ocasião como contratransferência, normal ou não, não tem, realmente, qualquer razão de ser especialmente qualificada como tal. Trata-se aí apenas de um efeito irredutível da situação de transferência, simplesmente, por si mesma”11.

Mais adiante reitera a impropriedade do termo contratransferência:

“Entendo por contratransferência a implicação necessária do analista na situação de transferência, e é isso, precisamente, que faz com que devamos desconfiar deste termo impróprio. Trata-se, na verdade, pura e simplesmente, de conse-qüências necessárias do próprio fenômeno da transferência, se o analisarmos corretamente”12.

Também afirma que é possível o analista desviar-se da contratransferência e não ser afetado pelas projeções dos pacientes13. Entretanto, a questão persiste: como não ser afetado pela face inconsciente da contratransferência, por suas sobras, até porque são imperceptíveis, invisíveis e silenciosas.

Quando Lacan menciona o desejo do analista, diz que

“A transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista. Dividi-la em termos de transferência e contratransferência, qualquer que seja a sagacidade, a desenvoltura das proposições que a gente se permita sobre este tema, nunca é mais que um modo de eludir o de que se trata”14.

Critica a simetria que se estabelece entre o analista e seu cliente, uma vez que ambos não estão engajados no processo como pessoas. O analista não é um sujeito no tratamento, mas, antes, uma função. Ele tem, em princípio, a função de objeto a, ou seja, de ser causa do desejo do analisante. Lacan busca afastar-se da problemática da contratransferência, na medida em que “a questão não é saber o que, como sujeito, ele sente, mas situar aquilo que, como analista, pode – ou deve – desejar: questão ética, pode-se ver, antes do que psicológica” (CHEMAMA, 1995, p. 37).

Contudo, tendo em vista essas diferenças entre as concepções freudianas e lacanianas no que se refere à contratransferência, mesmo que o analista não opere como sujeito no processo analítico, mesmo que se comporte como um morto15 no processo, acredito que fica difícil negar a existência de algum tipo de impacto invisível, não representável e silencioso, suscitado nos analistas, em seus contatos com os pacientes, ou seja, o que chamo de resto e ou ponto cego da contratransferência.

Posta a questão em termos da sublimação que ocorre durante as sessões psicanalíticas, do ponto de vista do analista, pode-se pensar que, ao entrar em contato com os textos de seus pacientes, é possível que essa escuta tenha algum impacto ou efeito inconsciente. Dentro do campo da literatura e psicanálise, Carvalho pesquisou os limites da sublimação na criação literária e procurou enfatizar o papel da pulsão de morte no processo criativo: “para alguns, a criatividade constitui uma via de transformação e prazer onde antes havia sofrimento, enquanto para outros essa mesma via não só liquida o sofrimento como também parece alimentá-lo” (CARVALHO, 2006, p. 15-16).

Ela nos lembra que Freud (1923), no texto O Ego e o Id, já dizia que a sublimação pode ter um efeito diferente do de apaziguamento do sofrimento psíquico, ou seja, um destino mais destrutivo e devastador para algumas pessoas. De acordo com suas formulações, nos casos dos suicídios de Sylvia Plath e Virgínia Woolf a ‘escrita de contenção’ não funcionou e deu lugar à ‘escrita do excesso’, caracterizada por um “transbordamento dos elementos destrutivos que agem em silêncio, no sentido do desligamento e da não representação” (CARVALHO, 2006, p.19).

Será que podemos pensar em elementos destrutivos, silenciosos, que agem no corpo do analista, ao longo do tempo, como resto do contato com seus pacientes?

Se a psicanálise surge através da relação que Freud descobre entre as palavras e o corpo, façamos uma inversão e pensemos qual seria o impacto da palavra do paciente no corpo do psicanalista, uma vez que este aparece como leitor da narração do texto do analisando, recheado de afetos, principalmente os de dor, angústia e raiva.

É bem provável que o contato com o Real dos pacientes, via escuta do excesso de conteúdos dolorosos, desagradáveis e angustiantes que carregam, possa ter um efeito traumático, inconsciente, com impactos no corpo do analista.

Como o encontro com a língua é um ponto central para todo ser humano16, conforme Mandil (2007), a hipótese lacaniana a partir de Freud é a de que o encontro com a língua tem efeito traumático, uma vez que é um encontro com o outro, com o diferente, com o distinto, e por isso reflete uma ruptura.

Nesse sentido, a escuta dos textos dos pacientes pode ter um efeito traumático para o analista, pois o encontro inconsciente com o Real de cada um deles pode operar diferentes impressões no corpo do psicanalista.

O contato com esse excesso de conteúdos recheados de pulsão de morte remete ao desagradável, ao estranho17.

Se o encontro com nossa própria imagem pode ter um efeito estranho sobre o eu18, o que se pode pensar do contato do analista com conteúdos estranhos de seus pacientes, durante anos seguidos?

O encontro com o Real, com algo da ordem do irrepresentável por meio de uma imagem pode levar ao horror. No sonho da injeção de Irma, Lacan fala que, para Freud, ver os cornetos nasais recobertos de pus foi um espetáculo medonho. “Eis aí uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até mesmo o íntimo do mistério, a carne, dado que é sofredora, informe, que sua própria forma é algo que provoca angústia. Visão de angústia, identificação de angústia...”19.

Freud se assustou com a imagem que viu porque algo da ordem do Real emergiu. Nessa linha de raciocínio, a visão do estranho, do horrível, da carne disforme, ou seja, do Real provoca angústia e pode levar ao horror.

No texto A cabeça da medusa (1940), Freud fala também da angústia ligada à visão de alguma coisa. Ver a cabeça da medusa causa um efeito de petrificação. Muitas vezes o sujeito responde ao Real com a petrificação de seu corpo.

Em Um distúrbio de memória na acrópole, Freud menciona fenômenos de falhas do funcionamento mental que ocorrem em pessoas sadias, principalmente em momentos em que algo da ordem do excessivo, do Real, emerge. Nessas situações, tanto o excesso de prazer quanto de desprazer podem fazer com que a pessoa sinta “que uma parte da realidade, ou que uma parte de seu próprio eu, lhe é estranha” (1936/1996, p.299). Ele diz que o fenômeno do estranho pode ser experimentado no nível do corpo e que isso pode levar a uma despersonalização. Outra resposta para o insuportável pode ser a experiência de desintegração, de dissolução, de despedaçamento corporal. Freud conclui que os excessos devem ser retirados do campo da realidade para que ela seja experimentada como algo estável, e que as defesas do eu constituem um “método normal de afastar o que é aflitivo ou insuportável” (1936/1996, p.301).

O encontro com o Real dos pacientes, a escuta desses excessos estranhos que carregam mazelas e angústias podem gerar algum tipo de efeito traumático inconsciente para o analista, com implicações no seu corpo.

Por ser de certa forma ‘familiar’, esse efeito patológico que sobra do contato com o estranho de nossos pacientes talvez não seja levado muito em conta, principalmente em termos de pesquisas sobre doenças, suicídios e mortes de psicanalistas.

Penso que Real da contratransferência é um nome adequado para esses restos, na maioria não representáveis, oriundos da escuta e das imagens de conteúdos angustiantes e dolorosos em nossa práxis psicanalítica.

Em outra perspectiva, Aulagnier nos lembra da dimensão do prazer em nosso trabalho. Ela considera que o sucesso do projeto analítico está relacionado com a possibilidade de o analista criar pensamentos novos, pensar o inesperado, o imprevisto e a possibilidade de sentir prazer com isso. Fala que o analista tem que estar investido na sua função e no processo para que possa atravessar os momentos difíceis de sua práxis, sessões mais duras ou, ao contrário, particularmente gratificantes. Ela aponta a “necessidade, para o analista, de aceitar esta parte de desprazer que sua função vai lhe impor, mas também de poder encontrar as fontes de prazer” (1995, p.28). Diz também que o surgimento de situações conflitivas pode colocar em perigo o equilíbrio prazer-desprazer, o qual o analista tem a obrigação de preservar, se quiser proteger e manter a presença de sua escuta.

É interessante e importante que o psicanalista exerça sua profissão sem contaminar ou deixar-se contaminar por seus analisandos. Entretanto existem os pontos cegos, o impossível de ser representado, os restos inconscientes, o Real da contratransferência.

Freud, ao falar da transferência, diz que “o psicanalista sabe que está lidando com forças altamente explosivas” (1915, p.187) e, por isso, deve avançar com a cautela de um químico. O mesmo vale para a contratransferência. O analista tem que ficar atento para que o remédio20 para seus clientes não vire veneno para ele mesmo.

Nosso trabalho é aquele que, a todo o momento, nos convida a pensar nos furos, no inconcluso, no instável, nas entrelinhas, no estranho, no desagradável, na angústia, no invisível, na doença, no sintoma, no intangível, no irrepresentável, no sem-sentido...

Fica difícil negar que afetos e sensações psíquico-corporais são suscitados nos analistas em seus contatos com os pacientes, mesmo que inconscientemente.

Sem querer esgotar todos os possíveis comentários e interpretações a respeito desse tema tão complexo, e apesar das dificuldades que o seu estudo apresenta, certamente pode-se pensar que no contexto pós-moderno atual, com os problemas, imprevistos e peculiaridades da clínica psicanalítica, por mais satisfatório que tenha sido o final da análise, por melhor que tenha sido a formação psicanalítica, existe uma boa probabilidade de que seja fértil essa hipótese de que sempre fica alguma coisa desse encontro com a ‘overdose’ de angústias, sofrimentos, dores, desequilí-brios e patologias de nossos clientes. Essa espécie de resto ou ponto cego inconsciente que sobra de nossa práxis.

Freud pontuou que a auto-análise se mantém pelo resto da vida e o processo de análise também pode ser considerado interminável21, uma vez que continuamos nossa análise através da análise de nossos pacientes e de nossa produção teórica. O analista deve ficar atento à conjunção desses fatores que podem afetar seu corpo de forma patológica: conjunturas sociais e ambientais estressantes, somadas a restos e pontos cegos de sua própria análise, unidas à escuta e às imagens do Real de seus clientes, que misturadas à face inconsciente da contratransferência, podem ter um efeito danoso, principalmente a longo prazo.

A suposta “boa análise” do analista não é garantia de saúde eterna. Certa ‘blindagem’, tal como Ulisses fez no encontro com as sereias, pode ser benéfica. Isto inclui estar muito atento a sua clínica de um modo geral, à dimensão cômica da vida, ao prazer e ao constante investimento no cuidado consigo22.

O analista deve estar sempre alerta ao Real da contratransferência, o que não é uma tarefa fácil, pois estamos lidando com forças invisíveis e irrepresentáveis, dentro do nosso psiquismo e do nosso corpo.

Mais pesquisas sobre a saúde física e psíquica dos psicanalistas podem ajudar a esclarecer certos pontos obscuros, a diminuir doenças e até mesmo evitar possíveis casos de suicídio23 em nossa profissão.

 

Bibliografia

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Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre o Autor

Rodrigo Mendes Ferreira
Psicólogo. Psicanalista. Mestre em Filosofia e autor dos livros Individuação e socialização em Jürgen Habermas (SP: Annablume, 2000) e O casal no divã (BH: Ophicina Arte & Prosa, 2005).

1 Eliana Rodrigues Pereira Mendes, Marisa de Lima Rodrigues, Nina Rosa Artuzo Sanches, Olímpia Helena Costa Couto, Rosa Maria Gouvêa Abras e Sílvia Regina Gomes Foscarini.
2 Esse paciente estava passando por um momento muito delicado de sua vida. Felizmente, no dia seguinte, por volta das 12 horas, fiquei sabendo que ele foi encontrado e passava bem.
3 Penso no psicanalista clínico ou naquele que tem uma clínica intensa.
4 CF. FERREIRA, Rodrigo M. O Casal no Divã. Belo Horizonte: Ophicina Arte & Prosa, 2005.
5 LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J-B. Dicionário da psicanálise, 1992, p.102. Grifos meus.
6 KUPERMANN, D. A libido e o álibi do psicanalista, 2003, p. 50. Grifos meus.
7 VEIDERMAN, S. A construção do espaço analítico, 1990, p.48.
8 FREUD, S. Recomendações aos medicos, 1996, p.129.
9 MILLER, J.A. Percurso de Lacan: uma introdução, 2002, p.61.
10 CF. LACAN, J. O seminário, livro 11, 1998, p.119-129.
11 LACAN, J. O seminário, livro 8,1992, p.194.
12 LACAN, J. O seminário, livro 8, 1992, p.197.
13 Cf. LACAN, J. O seminário, livro 8, 1992, p.192-93.
14 LACAN, J. O seminário, livro 11, 1998, p.219.
15 Cf. LACAN, J. O seminário, livro 8, 1992, p.189.
16 Cf. MILLER, J.A. Lacan com Joyce. 1997, p.18.
17 É interessante lembrar que a psicanálise considera fundamental a vivência do estranhamento na constituição do psiquismo. De acordo com o pensamento lacaniano, na chamada fase do espelho, num primeiro momento, ao olhar-se no espelho, a criança não percebe que é ela que está diante de si. Num segundo momento, percebe que algo ou alguém se mexe diante dela e começa a procurar esse outro atrás do espelho. Ela só vê esse outro; não percebe que é ela mesma quem está ali. Num momento posterior, após certo estranhamento com a imagem que vê, passa a perceber que se trata dela mesma. Esse estranhamento e essa descoberta do próprio corpo diante do espelho levam ao aprimoramento dos contornos entre o interno e o externo, entre o eu e o outro, e ao uso dos pronomes possessivos meu e minha para se referir ao próprio corpo.
Nesse sentido, sabemos que temos um corpo, sobretudo a partir da imagem desse corpo. O eu é uma instância imaginária, sendo a imagem especular e a imagem do outro fundamentais para a construção da imagem corporal e do psiquismo do sujeito. Entretanto podemos pensar que nunca nossa identidade vai estar totalmente harmonizada com o nosso corpo. O ego é sempre instável, estranho, de certa forma. Todos nós temos uma relação desarmônica com o corpo, em maior ou em menor grau. É com essa estranheza que se vive: acoplar o corpo com o eu.
18 Freud (1919, p.265) relata o efeito estranho de defrontar-se com a própria imagem, espontânea e inesperadamente. Após um solavanco no trem em que viajava, a porta do toalete se abriu e refletiu a imagem de “um senhor de idade, de roupão e boné de viagem”. Nesse primeiro momento, ele não reconheceu como sendo sua a imagem vista. Posteriormente compreendeu com espanto e assustado que o intruso visto no reflexo do espelho da porta aberta era ele mesmo. Ele confessou que achou estranha a sua aparência duplicada no espelho. Por um instante, ficou em dúvida sobre quem ele era, entre o seu eu e o outro.
19 LACAN, J. O seminário, livro 2, 1998, p.197-198.
20 Pharmacon em grego pode significar tanto o remédio quanto o veneno.
21 Cf. FREUD, S. Análise terminável e interminável, 1937/1996.
22 Espera-se que isso possa ser um efeito da própria análise do analista.
23 Cabe lembrar do suicídio da importante psicanalista argentina, Arminda Aberastury, aos 62 anos.

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