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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.30 no.56 Belo Horizonte Oct. 2008

 

FOBIA E ANGÚSTIA

 

A dama da lagartixa: um caso de fobia

 

The lizard lady: a case of phobia

 

 

Vanessa Campos Santoro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A clínica da fobia se apresenta como um desafio à direção do tratamento, fazendo-nos rever as noções de falo como operador estrutural, de angústia, gozo, fantasma e objeto, chegando ao ponto mais irredutível da estrutura do sujeito freudiano que é o objeto a. Indaga-se se tais particularidades fariam da fobia uma terceira neurose. Um caso clínico vem ilustrar e aquecer as discussões.

Palavras-chave: Falo, Angústia de castração, Fobia, Sintoma, Placa giratória, Fantasma, Objeto a.


ABSTRACT

Clinical work with phobias is a challenge to the direction of treatment which has brought us to reconsider several concepts such as: phallus (as a structural operator), anxiety, joy (juoissance), and even more, the most resistant structure known in the Freudian subject: the object a. We ask if these particularities might lead us to understand phobia as a third neurosis. A clinical case study is herein presented to illustrate our point of view and, also, to heat up our discussion.

Keywords: Phallus, Castration anxiety, Phobia, Symptom, Revolving, Phantom, Object a.


 

 

Recebo em meu consultório uma adolescente de 14 anos que chamarei de Lúcia. Vem trazida pela mãe em função do fracasso escolar, duas bombas na 5ª série. Filha meã entre a idolatrada Patrícia e o esperado João, não foi uma filha desejada. Seu nascimento coincidiu com o primeiro dos vários processos criminais contra o pai. A história de Lúcia oscilou entre as perdas e danos desses processos até a separação litigiosa dos pais, no meio de inúmeras brigas e agressões.

O circuito de Lúcia na vida é restrito: colégio pela manhã, depois em casa com a empregada. “A nossa casa já é um clube”, diz a mãe, mas Lúcia prefere o quarto onde desenha e escuta música. Ela desenha nas sessões, caladinha. “São coisas que vejo dentro da minha cabeça. Não tem nada a ver”. Confusão... cores vivas, formas duvidosas, muitos olhos que olham, vigiam, choram, figuras de perfil, caramujos, raios. Lembranças de Lúcia: “adorava o sítio, era lindo, não podia durar; o pai vende tudo, não fica com nada”. “Andava de bicicleta na rua da avó com papai me empurrando. De repente ele me soltou, quase caí, mas aí aprendi a andar”. Começa a aparecer um pai diferente daquele falado pela mãe.

As fantasias de Lúcia: “vontade de pôr caco de vidro no chão para na hora que ela (mãe) passar, ela machucar os pés e aí ela vai ter que ficar em casa comigo”. “Ele (o namorado da mãe) estava lavando louça e tive vontade de ligar a centrífuga para pegar a mão dele e acabar com ele”. “Esvaziei os pneus do irmão, ele só me chama de branquela”.

Foi o “branquela” que nos conduziu ao outro lado do parafuso. – Branca como o quê? – (Ri). Como lagartixa. Sabia que tenho pavor disto? O tratamento já acontecia há quase um ano e só agora a branquela apareceu, associada a fantasias sádicas e agressivas. “Faço meus preparativos para ela não aparecer. Não abro a janela do quarto, desenho de luz apagada. Quando vou sair, Patrícia vai na frente abrindo caminho”. “Quando começou? Nem lembro, era pequena, acho que na segunda casa da avó. Na primeira casa elas andavam nas paredes e eu não tinha medo”.

Surpresa com o desenrolar dos significantes nessa análise, escuto Lúcia. Ela passa a desenhar mulheres com cigarro, peitos pontudos, sempre de perfil. Depois figuras ambíguas, com bigode e cabelos longos e cacheados, ombros largos e peitos já de frente. Muitas caras e bocas que se beijam quase num devoramento. “Gosto do meu cabelo e dos olhos. Do queixo e do nariz não.” E da boca?

Aos poucos Lúcia articula palavra e desenho e fala dos namoros da irmã, da transa da mãe com o namorado, da raiva de sobrar. “Fico sozinha escutando os barulhos, a mãe no quarto, a irmã na sala”. O irmão? “Cai fora, não tem medo de nada”.

– O que pode acontecer se você sair? Esta pergunta provoca uma angústia enorme em Lúcia. Quer ir embora e o pânico aumenta quando não vê a irmã na sala de espera. Telefona para o pai e pede para lhe buscar. Ele veio, tivemos uma sessão a três. Carinhosamente pergunta à filha como ela está, se tem namorado, se já perdeu seus medos de lagartixa. O pai me pergunta se fobia tem cura e diz que para ele o problema da filha é o medo que faz “cerca” à sua volta. Lúcia pede ao pai a sua versão dos fatos, das perdas. Iniciam uma longa e desejada conversa.

Nos desenhos, Lúcia faz a série “In Love” com casais heterossexuais dançando e beijando. “Vou aceitar o Gustavo para namorado”. Passa a dispensar a proteção da irmã, mas cai na do namorado. “Sabe, minha mãe parece me ignorar. Chego a hora que quero. Quem cola em mim é Patrícia, agora, antes era eu. Não sei se era eu ou ela que grudava uma na outra para dormir”.

Volta-se para a mãe, exige uma sessão conjunta. A mãe adota uma postura de defesa. Fala de si, de seu cansaço, de seus amores e da melhora da filha. “Quando eu era pequena, mãe...” “Não me lembro, você chorava muito. O medo de lagartixa? Acho que foi depois de uma briga, você tinha 4 ou 5 anos, Patrícia entrou no meio. Você agarrou nela e gritou tanto que paramos de brigar. Logo depois você gritava demais quando aparecia a lagartixa e só Patrícia lhe acalmava”.

Lúcia traça circuitos maiores para sair do cerco da fobia: casa da avó paterna, do namorado, shopping, vir à análise de ônibus, sem acompanhante, trabalho em grupo em casa de colegas.

Um dia, no ônibus, vindo para a análise, tem uma crise de angústia. “É pior que o medo de lagartixa. O motorista parou o ônibus, disse-me que eu já era moça, que respirasse fundo, fechasse os olhos que já ia passar”. Chega ao consultório e conta um sonho. “Era uma subida, dirigia um carro que não agüentava subir e aí despenco rua abaixo, sem controlar o carro”. Associações: medo de ser esquecida na feira, ficar perdida, medo que o pai se perdesse. Ele bem que podia ter ficado mais comigo. “Ticha tinha tanto medo como eu, só que eu gritava mais. Tinha vontade de descobrir quem é essa largatixa branquela”.

– Larga, ticha. Lúcia dá um grito! “O que você está falando? Não é possível, como não pensei nisso todo esse tempo! Ticha é o apelido de Patrícia! É ela a branquela, loura, aguada. A minha mãezinha possível tão fraca quanto eu”.

Relembra uma briga na qual o pai e a mãe puxavam Patrícia de um lado para outro; a mãe vence, arranca um tufo de cabelos louros da filha, o pai chora e sai de casa pela primeira vez. Lúcia passa a noite embaixo da cama, toda mijada, ninguém dá falta dela até a hora do almoço, quando a irmã volta da aula, procura-a e a encontra tremendo de febre.

 

Considerações teóricas

A fobia é uma das mais freqüentes e a mais organizada das perturbações psíquicas da infância.

Freud a considera como “sintoma”, relacionando-a com a neurose histérica e obsessiva. Propõe a denominação de histeria de angústia que indica ao mesmo tempo a semelhança entre a fobia e a histeria e a principal – ou a única – diferença, que seria a ausência de conversão na histeria de angústia e a forte presença da angústia.

Essa denominação, histeria de angústia, sugere uma passagem da posição histérica – que num certo sentido é fundadora do sujeito enquanto modo privilegiado de entrada no discurso – à angústia enquanto esta assinala que o sujeito está ameaçado de exclusão da cena onde circulam os discursos. A fobia surge como uma produção sintomática que protege o sujeito da angústia.

A evolução das idéias na obra freudiana, no que diz respeito ao sintoma fóbico, é inseparável das modificações feitas à teoria da angústia, ou seja, é a partir da fobia que Freud faz modificações na teoria da angústia. Num primeiro momento, o das neuroses atuais, o recalcamento cria a angústia. Em seguida, com a introdução da segunda tópica e da elaboração de “Inibição, Sintoma e Angústia”, há uma inversão da posição precedente: não é mais o recalcamento que cria a angústia, mas é a angústia de castração que vem primeiro e impõe o recalcamento gerador do sintoma.

De que maneira podemos recolocar esta questão com o auxílio dos conceitos lacanianos? A fobia seria uma estrutura específica?

Lacan, no Seminário IV, nos assinala que o sentido da fobia consiste em introduzir “no mundo da criança uma estrutura, ela põe, precisamente, em primeiro plano, a função de um interior e de um exterior. Até então, a criança estava, em suma, no interior de sua mãe, e acaba de ser rejeitada dali, ou de se imaginar rejeitada, ela está na angústia, e ei-la que, com a ajuda da fobia, instaura uma nova ordem do interior e do exterior, uma série de limiares que se põem a estruturar o mundo”1.

A fobia é a doença do imaginário, lugar onde o fóbico paga o tributo à sexualidade, com precariedade do simbólico.

Lacan situa o aparecimento da fobia nesta passagem do jogo imaginário da criança, da mãe e do falo, à relação com o pai através da castração. Isto é, num momento de definição de uma provável estrutura neurótica ou psicótica, nesse momento de hesitação entre o gozo do Outro (do lado materno na identificação ao falo) e o gozo fálico como ganho da castração.

A angústia sobreviria então quando se tenta escapar do espaço materno em direção ao que seria a ordem fálica.

A fobia surge sempre com o nascimento do desejo, no momento em que o sujeito, enquanto sexuado, deve se engajar numa formulação fálica da falta.

A fobia então se manifesta num tempo de estruturação do sujeito como resposta à angústia de castração que emerge nesse momento da estrutura (fase fálica). Ela pode aparecer ou não. O que é fundamental nesse momento é a angústia. “Convém separar corretamente a angústia da fobia. Se existem aí duas coisas que se sucedem, não é sem razão: uma vem em socorro da outra, o objeto fóbico vem preencher sua função sobre o fundo da angústia”2.

A fobia seria, segundo Lacan, como um tempo de espera por uma operação simbólica que chega sempre depois em relação ao real pulsional, que se antecipa e se presentifica como angústia.

O jogo do semelhante neste momento é o do duplo e do mesmo. No encontro amoroso com um homem surge um real, o pênis do parceiro, que não pode ser reordenado senão numa nova configuração simbólica, o que recoloca a questão da introdução deste sexual num novo espaço de gozo. Esta passagem necessita da intervenção do significante paterno na medida em que ela opera esta vetorização fálica e social do objeto a, do objeto do fantasma, e autentica nesta significação fálica a imagem como tal.

Esta referência ao semelhante como outro e rival é recusada pelo sujeito na fobia, revelando esse ponto de angústia do sujeito na borda do desejo – precisamente aí, onde surge a falha maciça totalizante, pesada, da desaparição da mãe.

O sintoma fóbico surge quando o fantasma da mãe e o lugar que a criança ocupa nele não são tão eficazes em seu papel pacificador da angústia.

“A angústia não é o medo de um objeto. A angústia é o confronto do sujeito com a ausência de objeto onde ele é apanhado, onde se perde, e a que tudo é preferível, inclusive forjar o mais estranho e o menos objetal dos objetos, o de uma fobia”3.

Ou seja, a fobia não consiste no temor de um objeto ou de uma situação, mas no evitamento de um objeto susceptível de desencadear o temor.

Assim, o objeto fóbico se articula com a significação fálica, toma um valor significante; é a linguagem que o fornece e, portanto, apresenta esta função do significante enquanto logro, capaz de se permutar metaforicamente de acordo com a contingência (às vezes, é o que está mais à mão).

A fobia é o que separa e distingue imagem, imaginário e olhar. Ela é o que opõe cena e fora de cena, colocando fora de cena um “automaton” estranho, animal móvel, corpo enigmático que causa horror e pânico sem ser monstruoso. Assim, a fobia coloca em jogo os limites do espaço e do corpo e do vínculo íntimo que os une, o olhar. O olhar, este objeto a definido por Lacan. O olhar do fóbico percebe o objeto e não se reconhece no outro, o seu semelhante. O olhar do fóbico percebe a hiância do Outro que o objeto vem recobrir.

Se as coordenadas imaginárias do eu (moi) desmoronam por não poder reconhecer semelhante que venha sustentá-las, só resta o corpo propriamente dito para ser investido libidinalmente pelo sujeito.

O que se passa quando emerge assim no espaço um objeto a? Uma dissolução do fantasma, “que só se mantém, com efeito, graças ao fato de que o objeto a não está ali, que não se sabe onde ele está, que não se sabe de onde se é olhado”4. O que se produz, pois, é uma dissolução do fantasma com seu corolário inevitável, a afânise do sujeito. A partir do momento em que o objeto a emerge, não há mais sujeito: ele é soprado. Produz-se assim, segundo Melman, uma queda da dimensão do imaginário, uma vez que esta dimensão só se sustenta na medida em que a janela do imaginário permanecer firme. A queda da dimensão imaginária produz uma queda do eu. Manifesta-se o estado de paralisia, tão comumente encontrado nessas fobias do tipo agorafobia.

Estamos diante de alguém que não se coloca no espaço a partir de uma imagem de si próprio, de um status tanto imaginário como simbólico, garantindo sua circulação com carteira de identidade. Quem sou eu?

Charles Melman trabalha a partir daí com a questão do duplo, que para ele é crucial na fobia.

“Para se precaver contra esse risco (a queda do imaginário), o sujeito procura um semelhante, para servir-se dele como um Eu, este sim estável, com a ajuda do qual ele poderá se deslocar. Colocando-se em espelho em relação a esse acompanhante, ele pode sustentar este eixo imaginário do esquema L”5.

Na fobia o imaginário “é soprado”, como no jogo de damas. O Real e o Simbólico ficam dissociados, o que evidentemente gera angústia. Existiria algo da psicose? Não, porque o recalque originário operou e a angústia é a de castração. O Real e o Simbólico se mantêm dessa forma. O Real recobre o Imaginário e o Simbólico vem organizar esse tipo de entrelaçamento (se pudermos pensar, segundo Lacan, em outro modo de enodamento).

Entre o Imaginário e o Real aparece, no campo do Imaginário, a hiância da castração com um limite sem fronteiras, já que será necessário sanção do simbólico para que haja limites. Aí é no terreno do simbólico que a castração fica menos evidenciada.

Sabemos quanto a dimensão do imaginário é refratária à percepção da castração. É onde ela pode ser mais escamoteada. O fóbico pensa que a castração não é um bom negócio.

Melman afirma que o fóbico paga um tributo de ordem imaginária ao Outro com a invenção do animal fobogênico, e não um tributo ao simbólico.

A angústia se produz, vem se presentificar no Outro, nessa demanda enigmática sem limites, diante da qual o ser falante não sabe como satisfazer, em que se oferece tudo em sacrifício para apaziguar essa presença e se ordenar em relação a ela e restabelecer um limite, uma borda que se imponha como hiância.

Entre o sujeito e o Outro, o objeto e o Outro, precisa haver barras para não haver devoração.

A mãe como Outro primordial não barrado apresenta-se como a bocarra do crocodilo, de que Lacan nos fala no Avesso (Seminário XVII), pretendendo devorar, reintegrar o seu produto-filho.

Daí a angústia de castração ter seu motor no ser devorado pelo pai, o qual aparece no Homem dos Lobos substituído pelo lobo devorador e em Hans pelo cavalo que morde.

Na fobia há uma certa regressão à fase oral, onde o Outro se apresenta como um Outro devorador, tal qual aquela mãe crocodilo.

No Seminário XVI, De um Outro ao outro (1968/9), Lacan nos diz: “A fobia não deve ser vista, de modo algum, como uma entidade clínica, mas sim como uma placa giratória (...). Ela gira mais do que comumente para as duas grandes ordens da neurose, a histeria e a neurose obsessiva, e também realiza a junção com a estrutura da perversão; (...) Ela é muito menos uma entidade clínica isolável do que uma figura clinicamente ilustrada, de maneira espetacular, sem dúvida, mas em contextos infinitamente diversos”6.

 

Direção do tratamento

De que é feito este verdadeiro abandono materno do qual o fóbico sofre e que é tão patente no caso de Lúcia? É um abandono, apesar das aparências de solicitude, no sentido de que a passagem para a função paterna só está ligada, para a mãe, a um momento de sugestão, tanto para ela mesma quanto para os outros, e que, por ser precária, pode cessar com o tempo. Esse abandono pode ser apreendido nos vazios de um discurso histérico que só remete às siderações das presenças. Ou seja, somente a presença atual do pai mantém o lugar simbólico do pai.

O discurso da mãe, histérica, situa apenas por sugestão o lugar do pai como pai.

O fóbico foi entregue às placas de sugestão intermitentes no discurso paterno ou materno, em que as palavras estão cheias de sideração que fazem o fóbico rir ou sofrer. Por isto o fóbico desmistifica e desmascara esse logro, mostrando tanto do lado do pai como da mãe, seus pontos falhos no estilo do Rei está nu.

Essa sugestão intermitente do discurso histérico materno provoca efeitos de despersonalização, espedaçamento e vertigem nos fóbicos. Na alternância brutal entre o Real do objeto a e o discurso da neurose desmistificada, o fóbico tem uma apreensão aguda do processo metafórico, mas na recusa do roteiro fantasmático.

Como escutar Lúcia? Elucidando as razões da sugestão materna que mata para ela o espaço e o tempo fazendo “cerca” e talvez, ao distinguir o que estava confundido na histeria da mãe, a saber, fantasma e sintoma, fazendo emergir em sua função organizadora do desejo a ficção do fantasma.

Alguns autores lacanianos falam que na verdadeira fobia, no fóbico sem análise, não haveria fantasma.

Nas fobias infantis como nas de adulto, observa-se um agarramento exasperado à figura do pai, à presença atual do pai. Esse agarramento caracteriza um salto em direção ao simbólico que retira o peso simbólico do pai na palavra da mãe. É uma tentativa de se agarrar à presença e à palavra do pai após uma renúncia ao modo como esse pai é falado pela mãe. Assim, o abandono de que se fala aqui é a falta de referência, é um abandono a nível simbólico. Pode-se perfeitamente ser abandonado mesmo sendo impecavelmente cuidado. Este é o verdadeiro abandono. Em As Formações do Inconsciente, Lacan fala da enfermidade da metáfora paterna no caso da fobia, isto é, da maneira pela qual o desejo da mãe não é de forma alguma portador do valor simbólico do falo; não faz a passagem, a articulação da presença, de sua imagem, daquilo que ela diz, ao ponto de referência fálico que organiza o gozo.

Quando Freud fala a Hans, ele restaura uma cadeia no discurso cheio de descontinuidade dos pais. Restaura a cadeia simbólica passando da junção de espaços e de palavras à articulação significante.

Voltemos a Lúcia e a seus modos de enumerar os espaços (1ª casa, 2ª...).

Um bebê irmão que nasce desorganiza o espaço. Quando estava com 4 anos nasce o irmão. Data da possível crise fóbica.

A enumeração dos espaços e das paisagens se faz em relação a uma situação do corpo que não é especular, mas reenvia à diversidade pulsional. É uma tentativa de remarcar o real pela contingência. É diferente da enumeração controladora do obsessivo, pois a fobia é uma doença do imaginário – animais são pontos móveis, pluralidade de pontos de fuga, espaços em desorientação.

O fóbico utiliza a presença do acompanhante como proteção contra aquilo que ele teme: o encontro com o olhar. Pois lá onde os outros só encontram olhadelas cúmplices de um gozo repartido, ele encontra o objeto a do olhar bruto. O fóbico espera com ansiedade aquilo que vai parar o trajeto do olhar. O acompanhante é aquele que pode sustentar o fato de dizer “eu” no ponto do espaço rachado pelo olhar e de onde poderia surgir indefinidamente o automaton aterrorizante.

Pensemos em Lúcia e sua irmã.

Identificada com Patrícia, Ticha, a quem não consegue largar, ela Larga Ticha a fim de se fazer um, gruda na irmã que gruda nela. Quem é a lagartixa?

Lúcia diz que é a Ticha, branquela aguada, a irmã.

Mas quem fica embaixo da cama depois da briga dos pais?

Lacan nos diz da suplência do objeto fóbico. Há que se forjar a separação, o corte, a falta. Há que desgrudar, que largar. Caminhar da falta à perda do objeto.

A história de Lúcia, perguntarão vocês, vai longe? Provavelmente em sua estrutura histérica faça hoje outros giros pelo mundo.

E a fobia faz uma estrutura particular? Deixo as indagações abertas à discussão.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Rua Levindo Lopes, 333/1008 - Savassi
30140-911 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31) 3227-2718
E-mail: vansantoro@uol.com.br

Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre a Autora

Vanessa Campos Santoro
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

1 Lacan, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956/7). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.252.
2 Lacan, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956/7). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.211.
3 Lacan, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956/7). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.353.
4 Melman, Charles e outros. A fobia – Estudos clínicos sobre o seminário A relação de objeto. Grenoble – Biblioteca do Trimestre Psychoanalytique, Publicação da Association Freudianne Internationale. Rio de Janeiro: Revinter, 1992.
5 MELMAN, Charles e outros. O nó fóbico. In A fobia – Estudos clínicos sobre o seminário A relação de objeto, 1992, p.116.
6 Lacan, Jacques. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro (1968/9). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p.298.

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