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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.30 no.56 Belo Horizonte Oct. 2008

 

FOBIA E ANGÚSTIA

 

A cor da castração

 

The Color of Castration

 

 

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do caso clínico de fobia infantil conhecido como “O pequeno Hans”, de Freud, investiga-se detalhadamente a constituição da cadeia significante que sinaliza para a equação castração-angústia-recalque-neurose. A seqüência cronológica de fatos centrais da história é dividida em momentos específicos, ao longo dos quais se articulam teoria e clínica na gênese das fobias.

Palavras-chave: Castração, Angústia, Édipo, Corpo, Recalque, Deslizamento fóbico.


ABSTRACT

Stemming from Freud’s clinical report on a child’s animal phobia, a careful study is done on the process of building a chain of signifiers which points to the equation castration-anxiety-repression. The chronology of the main facts in this case have been divided into specific moments, allowing an overview of theory and clinical aspects in the genesis of phobia.

Keywords: Castration, Anxiety, Oedipus, Body, Repression, Phobic sliding.


 

 

“O interdito é a articulação literal considerada em sua função de limite ao gozo.”
(Serge Leclaire)

 

As marcas mnêmicas inscrevem-se no aparelho psíquico através do corpo, pela via dos sentidos. Porém, da gama de sensações que o corpo nos permite experimentar, de tudo aquilo que nos é possível ver, ouvir, cheirar, degustar e tocar, só algumas delas serão registradas de forma tal que, ressignificadas por vivências futuras, constituirão um significante. Este, desprovido de sentido por si mesmo, mas carregado do afeto que o representa no inconsciente, busca este sentido ligando-se a outro significante e, assim sucessivamente, cria-se uma cadeia pela qual o afeto desliza, rechaçado para longe da consciência nas neuroses e na fobia pelo processo do recalque.

Como se constituiu a imagem fóbica do cavalo branco para “o pequeno Hans”, o célebre caso de fobia infantil descrito por Freud em 1909? Como exemplo emblemático de uma típica neurose edípica, ele nos permite investigar detalhadamente a constituição da cadeia significante que sinaliza para a equação castração-angústia-recalque-neurose e teorizar como o aparelho psíquico escolheu, no mito criado por Hans, um cavalo branco como a terrível imagem da castração. Defendo aqui a hipótese de que esta cadeia se inicia com o significante “médico” e convoco nosso pequeno protagonista de 5 anos a relatar nas próprias palavras (documentadas ou imaginadas por mim) a seqüência cronológica dos fatos centrais de sua história (FREUD, 1909) dividida em momentos específicos, ao longo dos quais nos será possível articular teoria e clínica na gênese das fobias. Sujeito em Psicanálise é sempre do inconsciente; é dele o discurso que tentaremos (re)construir.

Momento zero: os pais.

– Minha mãe é linda e sedutora. Papai é louco por ela. Antes de eu nascer, ela foi tratada de neurose pelo “Professor”, o Dr. Freud (parece que ele conversa com Deus!) (p.45). Ele disse que a doença dela foi “resultado de um conflito na sua meninice” (p.126). Papai acha que foi ela que causou minha “bobagem” por sempre me levar para “mimar” com ela na sua cama quando eu chorava (p.30,33), mesmo quando ele falava para ela não fazer isso. Eu vi isto acontecer muitas vezes. Ela uma vez me disse, depois que Hanna nasceu, que se ela não quisesse ela não ficaria “lotada” de novo, mas papai tinha me dito que quem decidia se ela teria outro bebê era Deus (p.86-87). Parece que mamãe é mais forte que o papai e até mais forte que Deus! Por isso eu pensava que ela devia ter o pipi bem grande! Papai é lindo e branco como um cavalo branco (p.54). Ele gosta muito do “Professor” e escreve sempre a ele sobre mim para aprender tratar da minha “bobagem”. Papai é meu médico (p.35,112).

Comentário: A mãe, desautorizando o pai quanto ao “mimar” e se colocando até acima de Deus quanto à decisão sobre novos filhos, dificulta ou impede a instalação do pai simbólico para Hans, situação que predispõe à fobia e à neurose e mesmo à psicose, pois é através dele que a criança pode se haver com a ameaça inconsciente da castração.

Momento 1: “tenra idade” (p.56). A retenção das fezes.

– Desde novinho tive problemas para fazer “lumf” e ficava “lotado”. Me deram remédios (laxantes) e muitas vezes mamãe chamou o médico todo de branco para enfiar um bico no meu traseiro (enema) para trazer o lumf. Dr. L. achou que eu comia demais e reduziu minha comida, o problema melhorou por um tempo mas voltou. Eu não quero soltar meu lumf. Eu fico com raiva e bato os pés no chão quando tenho que parar de brincar para fazer lumf ou xixi. Não gosto que enfiem o bico no meu traseiro porque dói e eu tusso. O médico tira o bico de sua caixa para me castigar. A caixa tem chave e um cabo e parece um “vagãozinho” (“scallywag”, termo alemão com duplo sentido, também usado para abusos de crianças “levadas”) (p.75).

Comentário: Apesar de não valorizado por Lacan (LACAN, 1956-7, p.263), o “complexo anal” de Hans pode ter representado fonte de marcas mnêmicas importantes, como defendem Laplanche e outros autores. Embora Freud reserve o termo “complexo de castração” para o que se refere ao falo e à travessia do Édipo, concorda que vivências pré-edipianas primitivas como a defecação, a separação do seio e o próprio nascimento (protótipo da castração) podem representar para o bebê experiências similares (FREUD, 1909, p.17, nota de rodapé 3). A retenção das fezes apontaria para a posição narcísica da criança, a relutância em ofertar ao Outro o “presente” representado pelo bolo fecal, delineando o “caráter anal” do futuro adulto (FREUD, 1908). Neste contexto, surge a questão: teria Hans se transformado em um neurótico obsessivo, se não tivesse sua fobia animal tratada por Freud através de seu “pai-médico”? Parece muito provável que a “placa giratória” representada pela fobia, segundo Lacan, apontaria para a obsessão se não fosse tratada precocemente, o que enfatiza o inestimável valor da análise infantil.

Momento 2: quase 3 anos (FREUD, 1909, p.16,19). Mamãe também tem pipi.

– Perguntei à mamãe se ela também tinha pipi e ela disse: claro! Outra vez, eu fiquei olhando muito para mamãe sem roupa antes dela ir dormir e ela me perguntou o que eu estava procurando. Eu disse que só queria ver se ela também tinha pipi (Obs.: é a isto que Freud chamou de pesquisas sexuais infantis). Aí ela disse: claro, não sabia? Era isso que eu pensava: papai e mamãe têm pipi, como eu.

Aos 3 anos e meio de idade, dois eventos quase simultâneos (momentos 3 e 4):

Momento 3: a ameaça de castração (p.17).

– Eu queria saber tudo sobre pipis e gostava muito de pegar no meu. Mamãe uma vez me viu pegando e falou brava: “Se fizer isso de novo vou chamar o Dr. A (médico) para cortar fora seu pipi”. Levei um susto mas não fiquei com medo na hora, porque se o médico cortasse meu pipi eu ia fazer xixi pelo traseiro.

Momento 4: o nascimento de Hanna (p.19-20). De onde vêm os bebês?

– Quando mamãe quis me fazer medo e disse que ia chamar o médico para cortar meu pipi se eu ficasse pegando nele, ela já estava lotada com a barriga bem grande. Eu sabia que tinha um bebê lá dentro (p.69,116)! Todos falavam que a cegonha ia trazer o bebê no bico, mas como ela ia fazer isso se o bebê estava na barriga da mamãe? Fiquei muito desconfiado. Mamãe até me mostrou uma figura no meu livro de ilustrações, onde havia um ninho de cegonha numa chaminé vermelha que parecia uma caixa e também um cavalo. Mesmo assim não acreditei porque se o bebê estava na barriga da mamãe, ele não podia estar na caixa de cegonha. Mas então, como ele vai sair da barriga da mamãe? Só pode ser como um lumf! (Obs.: este seria um típico exemplo do que Freud chamou de “teorias infantis sobre a origem dos bebês”). Lembrei que quando eu era novinho e ficava lotado de lumf, o médico todo de branco vinha com sua caixa e enfiava um bico no meu traseiro para trazer o lumf, como a cegonha da estória, que traz o bebê no bico. Nestes dias, muitas vezes ouvi dizer que iam chamar o médico para a mamãe, porque já estava quase na hora dela ter o bebê. Aí entendi que a cegonha era o médico e que ele ia vir todo de branco com sua caixa para trazer o bebê. Por que tentaram me enganar? Isto me deu raiva! Também vou contar muitas mentiras, para os adultos verem como é bom (p.117)! Mas agora me lembrei que é o médico todo de branco com sua caixa que vai cortar meu pipi se eu ficar pegando nele, como mamãe disse. Fiquei com muito medo!

Comentário: A ameaça de castração (momento 3) não amedronta imediatamente, mas passa a ser sentida como real após ressignificação a posteriori por novas vivências.

– No dia em que Hanna nasceu, acordei com mamãe tossindo e com um barulhão de gente correndo nas escadas e corredores e eu pensei que parecia um cavalo. Minha cama não estava no quarto de meus pais, porque eu não podia ver a cegonha trazendo o bebê. A cegonha nunca traz o bebê de manhã, porque ninguém pode ver (p.71).

Comentário: Não pode ver a “cabeça da Medusa” (personagem mitológica que tinha serpentes por cabelos e transformava em pedra quem as encarava), símbolo da castração da mãe proposto por Freud, já que o médico é o mesmo que traz o bebê e pode cortar o pipi. Seria esta a associação feita por Hans para justificar o medo de assistir à chegada da irmã, baseada na equação médico-parto-castração? A associação cegonha-médico é reforçada pelas referências a chapéu, “ter a chave certa” e livre acesso à casa, feitas sobre a cegonha (p.69).

– Quando acordei com mamãe tossindo, disse para o papai: “a cegonha virá hoje, com certeza”. Me levaram para a cozinha, eu vi no saguão a caixa do médico de branco, perguntei o que era aquilo e me falaram que era uma maleta. Então eu disse: “a cegonha chega hoje!” O médico vai trazer o bebê! Depois que Hanna nasceu, a mulher que veio com o médico (parteira) pediu na cozinha para fazer chá e eu sabia que era para mamãe, porque ela estava tossindo. Aí me levaram para o quarto da mamãe, mas a primeira coisa que vi foram as bacias cheias de sangue (Obs.: associação sangue-dor-parto-corte). Apontei para uma delas e falei com susto: “mas não sai sangue do meu pipi!” Aí eu pensei: será que o médico cortou o pipi da mamãe quando ele trouxe a Hanna, para castigá-la porque ela não queria soltar o bebê, como eu fazia com meu lumf? Tive muito medo e não olhei para a mamãe (Obs.: a “cabeça da Medusa”).

Momento 5: primeiro contato com Hanna (p.20,72). Ela ainda não tem pipi.

– Quando vi Hanna pela primeira vez, achei que ela era branca e muito pequena, do tamanho de um bebê de cegonha e de um lumf. Estranhei porque ela não podia falar, aí eu pensei que era porque ela ainda não tinha dentes.

Comentário: Em “A Interpretação dos Sonhos” (FREUD, 1900), Freud associa simbolicamente “não falar” à morte e “falta de dentes” à castração, associações que ele reitera no trabalho “Simbolismos nos Sonhos” (FREUD, 1916). Seriam elas aplicáveis ao discurso de Hans? Se afirmativo, suas observações sobre Hanna podem ser traduzidas por “ela ainda não tem pipi, mas vai ter, porque ela está viva”, raciocínio em acordo com a associação pipi-seres animados, que será em breve construída por Hans.

Momento 6: primeiros dias após o parto (p.20). A rejeição à irmã.

– Dias depois que o médico trouxe Hanna, eu fiquei doente com dor de garganta e febre. O médico veio e mesmo com a dor eu disse: “não quero uma irmãzinha”.

Comentário: não estaria Hans rejeitando Hanna por ela representar a prova da imaginada castração da mãe durante o parto? Tal rejeição foi interpretada como “ciúme” pelo pai-médico de Hans, superado só seis meses depois.

Momento 7: Hanna aos sete dias de vida (p.20). A recusa à castração.

– Estavam dando banho em Hanna e eu fui ver, levei um susto e disse: “o pipi dela é ainda bem pequenininho e quando ela crescer ele vai ficar bem maior”.

Comentário: À luz da associação pipi-seres animados, em construção por Hans, a sua fala poderia agora ser traduzida por “ela certamente tem pipi porque está viva, mas não o vejo porque ele é muito pequeno como ela”. Trata-se, como Freud magistralmente propôs, de uma racionalização que visa evitar o pavor inconsciente da castração, isto é, subterfúgio que permite “não querer saber” sobre ela e anuncia o processo do recalque.

Momento 8: 3 anos e 9 meses (p.18). Castração e mortalidade.

– Eu estava na estação ferroviária com papai, vi água saindo da locomotiva e eu disse para ele: “a locomotiva está fazendo xixi, mas onde está o pipi dela?” Eu pensei e falei: “o cachorro e o cavalo têm pipi, a mesa e a cadeira não”. Então, tudo que é vivo tem pipi, por isso mamãe e Hanna têm pipi, como eu e papai.

Comentário: “Se cortarem o pipi de uma pessoa ela morre”, seria a tradução de uma conclusão lógica para Hans, para quem o pipi passou a ser “o critério indispensável daquilo que é animado” (p.20, nota 3). Será esta uma fantasia infantil universal ou ela pode ser tomada, a exemplo do “complexo anal” já citado (momento 1), como mais uma indicação de que Hans, se não tivesse sua fobia animal precocemente tratada, viria a desenvolver neurose obsessiva, onde a temática castração-tempo-morte é dominante?

Momento 9: 4 anos e meio (p.34-35). O agente da castração: o cavalo que mordia.

– Quando eu fui a Grunden pela segunda vez, fui visitar Liz em sua casa. Depois ela teve que ir embora, havia uma carroça com um cavalo branco na frente da casa para levar a bagagem para a estação. O cavalo virou a cabeça e o pai de Liz disse a ela: “Não estenda seu dedo para o cavalo branco senão ele te morde”. Fiquei com muito medo e pensei que se o cavalo branco morde dedos, ele também pode morder pipis e cortá-los fora, como o médico de branco com sua caixa vai fazer comigo se eu continuar a pegar no meu pipi. O médico de branco com sua caixa é igual ao cavalo branco com a carroça!

Comentário: Aí está a associação que queríamos demonstrar, na qual o branco é o elo associativo final e assume para Hans função significante de “a cor da castração”, a exemplo do que fizemos em trabalho anterior (COUTINHO, 2006) com base em outro caso clínico de Freud (FREUD, 1918) onde a imagem ameaçadora é a de lobos brancos.

Aos 4 anos e 9 meses (janeiro de 1908), três eventos (momentos 9, 10 e 11):

Momento 10: primeiro sonho de angústia (p.30-31). A-cor-da: castração!

– Um dia acordei chorando, mamãe me perguntou por que e eu disse: “Quando eu dormia, pensei que você foi embora e eu fiquei sem a mamãe para mimarmos juntos”.

Comentário: À luz do mito construído por Hans até aqui, este sonho de angústia poderia ser traduzido por: “acordei chorando porque sonhei que mamãe tinha morrido, porque o médico de branco cortou o pipi dela quando ele trouxe Hanna.” Outra direção interpretativa indica o afastamento da mãe como única forma de evitar-se o castigo da castração, imposto ao desejo incestuoso inconsciente gerado pelo libidinoso “mimar”. O acordar repentino causado por um sonho de angústia é uma das expressões clínicas do que é indizível e intolerável ao psiquismo, que Lacan denominou “encontro com o real”.

Momento 11: irrupção da fobia (8/01/1908).

– Mamãe me perguntou de novo se eu pego no meu pipi, eu disse com medo que só pegava de noite na cama. Neste dia ela me levou para passear em Schönbrunn, onde eu sempre gostei de ir, mas eu estava com medo não sei por que e chorei. Mesmo assim, fui com ela (p.30). Primeiro nós fomos ao rinque de patinação, depois ao café, depois fomos comprar o colete e depois à confeitaria (p.52). Neste dia começou a “bobagem” de medo de cavalo, porque levei um grande susto quando o cavalo do ônibus caiu com as patas para cima fazendo um barulhão. Aí fiquei com medo do cavalo morder ou cair.

Comentário: Por que neste dia irrompeu a fobia? Decerto a ameaça de castração feita por sua mãe 15 meses antes, aparentemente inócua para Hans, foi ressignificada por eventos posteriores propiciando seu efeito retardado, agora evidente (p.99). Porém, o que poderia ter ocorrido especificamente naquele passeio com a mãe, para que o laço associativo final fosse feito e precipitasse a irrupção do fenômeno fóbico? Imagino (ou seja, construo imagens) que no rinque de patinação Hans viu muitas quedas de pessoas como a do cavalo a que ele assistiu e ouviu o ruído produzido por elas, que foi associado ao barulho em sua casa na noite do nascimento de Hanna (“parecia um cavalo”), ocasião em que sua mãe teria sido castrada pelo médico de branco com sua caixa. Após o rinque de patinação, já imerso nestas impressões ameaçadoras, Hans teria visto a mãe tomar chá no café e/ou na confeitaria, que foi associado ao chá que foi dado a ela após o parto de Hanna. Esta somatória de marcas mnêmicas, convergindo para a imaginada castração de sua mãe ao dar Hanna à luz, tendo como agente o médico com sua maleta (caixa), tornou real para Hans a possibilidade de sua própria castração, tendo como agente um cavalo do ônibus que caiu e pode morder. A partir daí está em progresso o deslizamento da cadeia significante na fobia, que se originou com a imagem do médico de branco e sua caixa, passando para o cavalo branco e sua carroça e, assim, sucessivamente a qualquer cavalo, com carroças, ônibus, trens, etc. Voltemos ao relato de Hans:

– Depois que fiquei com medo e chorei, voltei para casa à noite com a mamãe pelo Stadtpark. Eu queria ser “mimado” por ela, porque sabia que eu ia passear no dia seguinte e ver os cavalos; também fiquei com medo do cavalo entrar no quarto (o pai!).

Comentário: Aqui o deslizamento da cadeia significante leva finalmente Hans a associar médico-cavalo-pai, tríade que o refere à ameaça de castração. Interessante notar que os extremos dessa tríade, médico-pai, estão fundidos para Hans numa mesma figura, já que era seu pai quem, orientado por Freud, cuidava de sua “bobagem”. O cavalo é o significante intermediário que sinalizará a Hans o perigo imaginário desta fusão e sobre o qual estará depositado o pavor real da castração simbólica. Ser “mimado” pela mãe, com todo prazer libidinal envolvido, impõe o interdito paterno sobre o desejo incestuoso inconsciente de Hans e faz com que o castigo da castração deixe de ser ameaça e passe a ser sentido como iminente e real. Da angústia intensa e paralisante gerada por esta vivência inconsciente, o aparelho psíquico se defende transferindo ao objeto fóbico – o cavalo branco – a função de agente da castração, da qual se pode escapar evitando-o. É revelador lembrar-nos de que a visão da cabeça da Medusa, símbolo eleito por Freud como a imagem da castração, petrificava o observador, representação exemplar daquilo que é a marca fundamental do sofrimento psíquico: a fixidez e a imobilidade. Inibição, que na fobia para Lacan refere-se a movimento, é o que resulta da angústia de castração.

Momento 12: dia seguinte à irrupção da fobia (9/01/1908, p.31).

– No dia depois que minha “bobagem” começou, me disseram de novo para não pegar no meu pipi quando eu fosse dormir à tarde, mas mesmo assim eu peguei por um momentinho; quando acordei perguntaram se eu tinha pego e tive que dizer a verdade. Fiquei com medo de chamarem o médico para cortar meu pipi e com medo do cavalo arrancar meu pipi com mordida.

Momento 13: piora da fobia (p.34).

– Peguei uma gripe muito forte, fiquei de cama por duas semanas. O médico veio e minha “bobagem” ficou muito forte. Tenho medo de sair de casa, só vou até a varanda com medo dos cavalos me morderem.

Momento 14: cirurgia de amígdalas (p.34). Agravamento da fobia.

– Uma semana depois que melhorei da gripe forte, me levaram ao médico para operar minha garganta. Tive muito medo que ele fosse cortar meu pipi também. Minha “bobagem” ficou muito forte, eu não consigo nem ir à varanda com medo do cavalo me morder. Papai disse que minha “bobagem” piorou muito.

Comentário: O evidente agravamento da fobia coincide com sucessivas presenças do médico, que passou a ocupar no inconsciente de Hans o lugar de alarme da castração.

Momento 15: passeio a Schönbrunn (22/03/1908, p.37,38). O deslizamento fóbico.

– Era domingo e fui passear com o papai. Só consegui porque eu não olhava para os cavalos, como mamãe me disse para fazer. Mas em Schrönbrunn tive medo de todos os animais grandes, mesmo daqueles que gostava antes como a girafa e o elefante. Dos bichos pequenos eu não tive medo. Nunca tive medo de pelicano, mas neste dia ele me deu muito susto, porque o bico dele me lembra o bico da cegonha e ela me faz lembrar do médico, aí eu fico com muito medo.

Comentário: O deslizamento fóbico, a partir do significante inaugural “médico”, pode ser esquematicamente sintetizado no diagrama abaixo.

 

 

Conclusão

Lacan assinalou que a fobia é uma situação clínica singular, porque nela pode-se notar o íntimo enodamento simultâneo de inibição, sintoma e angústia (LACAN, 1973). O desejo edipiano e a angústia de castração, referenciais fundamentais da Psicanálise, fazem do estudo aprofundado da fobia a pedra angular da formação teórica do analista.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Av. Pasteur, 89/1003 – Santa Efigênia
30150-290 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31) 3224-7125
E-mail: ah.coutinho@terra.com.br

Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008

 

 

Sobre o Autor

Alberto Henrique Soares de Azeredo Coutinho
Médico. Cardiologista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

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