SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 issue58The operability of the analyst’s discourse: a lacking encounter and the feminine position author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.31 no.58 Belo Horizonte Sept. 2009

 

Teoria Psicanalítica

 

A teoria freudiana da feminilidade: de Freud a Lacan

 

The Freudian theory on femininity: from Freud to Lacan

 

 

Markos Zafiropoulos; Tradução: Elisa Rennó dos Mares Guia e Paulo Roberto Ceccarelli

Espace Analytique
Círculo Internacional de Antropologia Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O texto propõe uma reflexão sobre a questão da feminilidade. Inicialmente, o autor apresenta a sua leitura das principais posições freudianas sobre a feminilidade e o desejo da mulher. Para Freud, a mulher se completaria na maternidade e sobretudo se tivesse um filho do sexo masculino. Num segundo momento, o autor apresenta as contribuições de Lacan sobre o tema. A partir da dialética de ser ou ter o falo, o autor mostra como Lacan modifica o registro freudiano (ter o pênis para dele gozar) para o registro da satisfação, no que diz respeito ao gozo da mãe, e o coloca no registro do ser mulher, não do lado da satisfação, mas do lado do desejo, registro do desejo que é o oposto do da satisfação, entendida a satisfação como sendo o oposto do desejo. Isto não quer dizer que a mulher não queira ser mãe. Mas que quando a mulher se torna-se mãe, isto não resolve a questão de seu desejo de mulher enquanto mulher, mesmo se, como vimos, o bebê pode funcionar para ela como objeto de satisfação enquanto mãe.

Palavras-chave: Feminilidade, Desejo, Édipo, Falo.


Abstract

In this text, a reflection on femininity is proposed. Initially, the author presents his interpretation of the principle Freudian positions in relation to femininity and to the woman’s desire (wish). According to Freud, maternity would fulfill and complete the woman, above all if her child were of the masculine sex. At a second moment, the author presents Lacan’s contributions on the theme. Around the dialectic argument on being the phallus or having one, the author demonstrates how Lacan modified the Freudian register of satisfaction (having a penis from which to withdraw pleasu-re) focussing, instead, on the the register of enjoyment. According to Lacan, the register of being a woman is not related to satisfaction, rather to wishing and desiring. The register of desire is the opposite of that of satisfaction, as we can understand being satisfied as the opposite of desiring or wishing. This in no way means that the woman does not want to be a mother, but that when she does become a mother, this does not fulfill her womanly desire to be a woman, even when and if, as we have observed, her baby can function as an object of satisfaction as a mother.

Keywords: Femininity, Desire, Édipo, Phallus.


 

 

Para que seja possível perceber neste artigo quais acredito serem os motivos da subversão da teoria freudiana do feminino por Lacan iremos:

1. Primeiramente examinar quais os fragmentos cruciais do corpo freudiano sobre este tema, para situar qual foi, durante toda a sua obra, a posição do pai da psicanálise sobre o que chamo de a questão do feminino, ou seja, sobre a clínica do feminino e suas incidências sociais. Para fixarmos o horizonte de meu comentário sobre este ponto, não entendo como brincadeira a confissão feita por Freud a Marie Bonaparte evocando o crepúsculo de sua obra: "A grande questão continua sem resposta e a qual eu mesmo não poderia jamais ser capaz de responder apesar dos meus trinta anos de estudos sobre a alma feminina: O que quer uma mulher?"1. Se ao final de seu ensinamento Freud indica que a questão do desejo no feminino ficou sem resposta, não podemos dizer que sua obra não deixa de abordar esta questão, muito pelo contrário. Apesar de muito admirar o descobridor do inconsciente, é preciso dizer que sua teoria da feminilidade nos aparece como um impasse.

Impasse que será enfim classificado por aquilo que Lacan chama de seu retorno a Freud, introduzindo em particular a questão o que quer uma mulher? (Que veut la femme?), uma verdadeira subversão da teoria do feminino no campo psicanalítico, da qual é preciso se dar conta.

2. Em um segundo momento, tentaremos mostrar em que medida essa subversão teórica traz consigo mudanças capitais que tocam tanto a clínica do caso e as direções do tratamento quanto a análise do social e até a tomada de posição dos psicanalistas com relação ao que toca mais claramente o desejo das mulheres em nossa modernidade. Desejo das mulheres que constitui a evidência de uma instância mais potente das modificações conhecidas de nossas sociedades ocidentais e suas leis, até então fomentadas "desde sempre", para e pelo desejo dos homens (masculino), para e pelo desejo dos filhos heterossexuais, para dizer como Freud, ou ainda para e por aquilo que Pierre Bourdieu irá magistralmente analisar em sua obra publicada há 10 anos pela Editions du Seuil e intitulada "La domination masculine"2.

Em seu livro, Bourdieu se apoia em Foucault e culpa a psicanálise de uma espécie de naturalização e de desistoricização do desejo, contribuindo para a reprodução dessa dominação masculina que visam combater. Assim como Foucault, Bourdieu parece então abstrair aquilo que se poderia chamar de um breve ponto de vista conservador da psicanálise sobre a questão feminina.

Retomando nosso ponto de vista 1., iremos comentar alguns fragmentos do discurso de Freud onde é possível perceber que ele não vai verdadeiramente contra esta crítica suscitada.

1929, Mal-estar na cultura: ao que se refere às origens da família, o que Freud acredita perceber naquilo que ele nomeia a história primitiva dos povos, ele indica que antigamente "…o macho tinha um motivo para manter ao seu lado a mulher ou de forma mais geral os objetos sexuais; as fêmeas que não queriam se separar de suas crias deixando-as descuidadas, suportavam assim, no interesse daquelas, ficar próximas ao macho, o mais forte"3.

Segundo Freud, desde a origem mítica da família, se o macho desejasse manter para si os objetos sexuais (as fêmeas) – o que é bastante compreensível –, por revanche Freud imagina que as fêmeas ficariam perto do macho não em função de seu desejo sexual pela potência deste macho primitivo, e sim em função da proteção que este macho poderia dar às suas crianças em desamparo. O que merece ao menos ser remarcado é que, do ponto de vista de Freud, a fêmea seria todo o tempo menos casada com seu macho do que com seus pequenos em desamparo. Ou ainda, a fêmea seria "desde sempre", segundo Freud, uma mãe, uma mãe a serviço da instituição familiar, lutando até contra a cultura ou contra as outras instituições sociais que exigem dos homens que eles saiam de seu lar.

Desta forma, Freud explica neste mesmo texto que após o nascimento da família e no curso da história: "...as mulheres entram bastante cedo em oposição à corrente da cultura e estendem sua influência retardatária e diminuidora" sob o desenvolvimento da civilização. Dentro desta lógica, Freud nos explica que: "As mulheres representariam os interesses da família e da vida sexual; o trabalho cultural é sempre mais transformado em dever dos homens, ele lhes atribui tarefas sempre mais difíceis, obrigando-os a efetuar sublimações pulsionais, às quais as mulheres são menos aptas"4. A antropologia psicanalítica de Freud remarca que ao longo da história, as mulheres teriam vivenciado uma "relação de hostilidade" com a cultura e que in fine, isto lhes arranjaria bem, pois aos olhos dos homens elas seriam pouco aptas à sublimação. Para Freud, a sublimação consiste nesta aptidão que permite ao sujeito trocar, sob o comando do supereu ou do ideal, o objetivo sexual por um outro objetivo socialmente valorizado, preservando ao mesmo tempo a intensidade da pulsão. Desta forma, esta faculdade da qual as mulheres seriam menos dotadas do que os homens, é esta faculdade que se opõe ao sexual e que se encontra no cerne do engajamento social ou da produção de bens culturais. E isto que chamamos de o axioma freudiano de desigualdade de aptidão à sublimação entre os sexos emerge bastante cedo sob a pluma de Freud já que a partir de 1908 (em: A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna) ele escreve que "a experiência nos mostra… que as mulheres às quais o dom da sublimação não lhes coube consistem em uma menor proporção..."5 e, acredito que as mulheres, logo que se veem desiludidas com o casamento, caem facilmente em severa neurose, ainda que elas sejam bem de acordo com a época delas: "as portadoras dos interesses sexuais da humanidade..."

Entre 1908 e 1929, a tese de Freud sobre a questão do feminino não mudou, as mulheres, de acordo com seu ponto de vista, permanecem sendo as porta-vozes dos interesses sexuais da humanidade assim como da família e se elas permanecem sempre menos aptas do que os homens à sublimação, isto se deve agora e desde 1925 a um desacordo edipiano que separa, segundo Freud, o filho da filha, e propiciando a cada um deles um superego muito diferente.

Do que se trata então esta discordância edipiana?

Bem, é que, como sabemos, o menino é organicamente o portador do pênis e ao mesmo tempo muito sensível à ameaça de castração. Assim, explica Freud, o Édipo do menino termina pelo fato de que sob a ameaça de castração brandida pelo pai, a criança renuncia à mãe para, no final do Édipo, identificar-se ao pai introjetando a lei, o superego ou os ideais dos quais o pai é portador.

Ao que toca à travessia do Édipo, é clássico sustentar que o menino renuncie por conseguinte à mãe pela via da castração e que é sob o peso desta ameaça que ele interioriza o robusto sistema de obrigações ou de ideais que o qualificam para as suas futuras atividades sociais e culturais. Mas o que seria feito da menina, pois segundo Freud, em 1925, é precisamente pelo fato de constatar que é privada do pênis como sua mãe, que a menina rejeita a mãe com ódio e entra no Édipo para voltar-se para o pai, a quem pede um pênis. Tudo isso nos parece extremamente lógico e encontra-se classicamente admitido. Mas é necessário remarcar que nada, como vemos, responde à delicada pergunta relativa à saída do Édipo para a menina, uma vez que devido à ausência de pênis ela escapa, como nos mostra Freud, da ameaça de castração, que empurra neste mesmo movimento o menino para dentro da lei e fora do Édipo.

Tirando então todas as consequências deste fato, Freud explica em seguida que a saída do Édipo para a menina seria então mais longa, e que tal fato explicaria também a fraqueza relativa do superego feminino tornando as meninas pouco aptas à sublimação e às atividades culturais de que dependem.

Mas isto seria verdadeiramente convincente? Na verdade não, pois Freud anuncia neste mesmo texto de 1925 que de fato não compreende muito bem quais seriam os mecanismos que levam a menina a sair do Édipo. Em outros termos: Freud aqui não compreende muito bem e no entanto, disso que não compreende, ele deduz o caráter eterno da mulher: falha em seu superego, falha em sua moralidade e falha na capacidade de sublimar.

Mas o que Freud diz exatamente neste artigo de 1925?

Iremos ao texto:

"No menino, indica Freud… o complexo não é simplesmente recalcado, ele se lança literalmente em pedaços sob o choque da ameaça de castração... O motivo da destruição do complexo de Édipo na menina nos escapa. A castração já produziu o seu efeito que consistiu em forçá-la à situação edipiana. O complexo de Édipo escapa então ao destino que o espera no menino; ele pode ser abandonado lentamente... Seus efeitos podem ser longamente adiados na vida mental da mulher... etc."

E continua com as seguintes palavras: "Hesitamos em dizer mas não podemos nos defender da ideia de que o nível daquilo que é moralmente normal na mulher é outro. O seu superego não será nunca tão inexorável, tão independente de suas origens afetivas quanto das que nós exigimos no homem. Estes traços de caráter que todo o tempo foram criticados e censurados à mulher: o fato de demonstrarem um menor sentimento de justiça que o homem… que ela se deixa mais frequentemente que ele guiar nas suas decisões através de seus sentimentos de ternura e de hostilidade..., a modificação da formação do superego, a qual acabamos de mostrar de onde ela deriva, é uma razão suficiente". Seria então a partir do fato de que seu estilo de Édipo está implicado pelas características anatômicas do seu sexo, que a mulher se reencontra, segundo Freud, com um superego mais modesto e que seria igualmente menos apta à sublimação, pouco apta ao engajamento à justiça e à tomada de decisões racionais e finalmente pouco apta à produção dos bens culturais.

Neste fragmento de texto Freud se faz político e diz com autoridade: "Nós não deixaremos que os argumentos das feministas, que desejam nos impor uma perfeita igualdade de posição e de apreciação dos dois sexos, nos desviem de tais conclusões..." E então ele conclui de forma moderada: "…Mas concordamos facilmente que a maior parte dos homens continua muito aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos, em consequência de sua constituição bissexual e de sua herança cruzada, possuem ao mesmo tempo traços masculinos e traços femininos, de modo que o conteúdo das construções teóricas da masculinidade pura e da feminilidade pura continua a ser incerto"6.

De maneira resumida, percebemos aqui um Freud bastante honesto, bastante afiado, bastante embaraçado e no total pouco convincente.

Se Freud inicia sua argumentação confessando que os motivos que levam as meninas a saírem do Édipo escapam-lhe, no entanto ele não hesita em fazer uma saída hipotética, como vimos, a causa dos traços de caráter "todo o tempo criticados, censurados à mulher", como se esses traços constituíssem então uma espécie de dado não histórico (de qualquer tempo), já que anatomicamente determinados e incontestáveis, trata-se de uma versão mais do eterno feminino que não se distingue realmente daquilo que encontramos no senso comum, onde se sedimentam pré-julgamentos sociais que obstruem a análise e a diligência científica.

Examinando então a fragilidade de sua argumentação, Freud manifesta, como acabamos de ver, um acesso de autoritarismo perante as críticas feministas e antecipa: "Nós não nos deixaremos desviar..." e busca modular o seu ponto de vista explicando pelo viés da bissexualidade que cada um na verdade escapa, em parte, ao caráter de seu gênero, mas de acordo com nosso ponto de vista, ele agrava ainda mais a fragilidade (científica) de seu julgamento, visto que aquilo que ele entende como moralmente fraco na espécie humana é o feminino.

Desta forma, se os próprios homens não atingem nunca verdadeiramente o ideal masculino, isto se deve ao fato de estarem contaminados pelo feminino devido à sua bissexualidade.

Bem, de 1908 a 1929 vemos que o corpus freudiano busca dar conta, via experiência analítica, de uma espécie de eterno feminino que:

1. encontraria suas raízes na diferença anatômica dos sexos, e que

2. se exprime em um déficit de sublimação suposto dar conta do destino social das mulheres inscrito nos limites da família e de seus interesses sexuais, interesses sexuais que as mulheres são, cada vez mais, presumidas a defender contra o desenvolvimento da cultura.

Podemos dizer que se a argumentação de Freud é aqui cientificamente pouco admissível, como vimos até então ela é igualmente historicamente datada.

Mas para Freud trata-se de uma análise do desejo das mulheres?

Sim e não, pois como dissemos de início, para Freud a mulher é entendida através do ponto de vista da mãe, seja ela a mulher primitiva casada tendo os filhos dependentes dela, como vimos nos texto de 1929, seja da forma anunciada por Freud desde 1907: "...que a mulher não pode ao mesmo tempo exercer uma atividade profissional e cuidar dos filhos" e conclui abruptamente que "as mulheres, como grupo, nâo ganham nada com o movimento feminista moderno..." ou ainda: "... de fato, as mulheres nada ganham estudando, e isso em nada melhora sua condição de mulher"7. Após 1908, tudo indica que, para Freud, o ideal feminino nada mais é do que ser mãe, e esta sua posição mantém-se estável ao longo de sua obra e sobretudo quando ele apresenta, enfim, em 1932 este ideal como sendo o ideal das próprias mulheres. Uma vez mais, ele o reivindicará naquilo que considera como a solução ideal do Édipo feminino para explicar, desta vez, que:

"Com muita frequência, em seu quadro combinado de ‘um bebê de seu pai’, a ênfase é colocada no bebê, e o pai fica em segundo plano. Assim, o antigo desejo masculino de posse de um pênis ainda está ligeiramente visível na feminilidade alcançada desse modo. Talvez devêssemos identificar esse desejo do pênis como sendo, por excelência, um desejo feminino"8.

Assim, é importante lembrar que, para Freud, o Édipo das meninas terminaria em excelência pelo desejo do pênis e a identificação ideal à mãe, via posse de uma criança-boneca.

Mas para que esta identificação à mãe constitua o final do Édipo por execelência da posição feminina, ainda que Freud não consiga nos convencer, pois, na realidade, não se vê muito bem como no final do Édipo a filha vai identificar-se com a mãe idealizando-a, uma vez que, para Freud, é pela via da decepção, da rejeição e mesmo do ódio contra a mãe, que a menina – a quem a mãe não deu o pênis – se voltaria para o pai para entrar no Édipo. Neste ponto de vista, Freud é muito preciso, dado que indica já em 1932 e a propósito da entrada no Édipo:

"O afastar-se da mãe, na menina, é um passo que se acompanha de hostilidade; a vinculação à mãe termina em ódio. Um ódio dessa espécie pode tornar-se muito influente e durar toda a vida…"9.

Como então admitir que se a menina entra no Édipo através da rejeição carregada de ódio em relação à mãe, ela sairia por uma idealização desta mesma mãe?

Vemos, por conseguinte, que a teoria freudiana do feminino nos deixa no mínimo perplexos e que, a partir daí, se compreende por que Freud teve, efetivamente, muita dificuldade de localizar em Dora, a jovem que, precisamente, não deseja o pênis do Sr. K, uma jovem que não deseja do ponto de vista da mãe, mas uma mulher que deseja do ponto de vista do pai, que se identifica ao desejo do pai e se deixa levar, por conseguinte, pelo objeto de seu desejo, a Senhora K, ou ainda e outra solução, uma mulher que se identifica não à mãe, mas àquela que permanecerá eternamente a mulher inconsciente do pai morto, a saber, a virgem.

No que diz respeito à análise do feminino, eu me posicionarei aqui para dizer que Freud é, afinal de contas, pouco convincente e eu acrescento que se ele é pouco convincente, é porque ele mesmo não está convencido do que escreve.

Daí o fato que Ernest Jones lembra a Freud o que ele um dia disse a Marie Bonaparte:

"A grande questão que resta sem resposta à qual eu mesmo jamais pude responder malgrado meus trinta anos de estudos da alma feminina: o que quer uma mulher?" (E. Jones. La vie et l’œuvre de Sigmund Freud. T.II, PUF, p.445).

Uma boa parte da minha pesquisa visa tomar ao pé da letra esta confissão tocante de Freud e dela fazer o ponto de partida que levará Lacan a subverter profundamente esta questão no corpus psicanalítico.

Tratarei rapidamente este ponto partindo de Dora pois, como já disse acima, para Dora não existe uma solução inconsciente pela mãe ideal à sua questão a respeito de seu ser feminino; isto implica que esta solução ao ser mulher não pode ser no final do Édipo a de ter, finalmente, aquilo que o pai tem (como sustenta Freud), ou seja, um pênis ou ainda um criança-boneca, mas, sim, de ser:

1. ser como o pai, e esta solução leva a jovem a encontrar o objeto do pai (a senhora K), ou,

2. ser o próprio objeto do pai, ou seja, ser este falo de pureza inalterável que é a virgem para o pai morto, ou ainda,

3. ser este corpo branco da Senhora K (a amante do pai) que tanto teria fascinado Dora e que se apresenta como a outra versão bem mais carnal, agora deste falo que causa o desejo do pai e que Dora quer ser como mulher.

Evidentemente, ser o falo não é tê-lo, e reconhecemos os passos da dialética introduzida por Lacan entre sê-lo e tê-lo, cujo interesse aqui é de esclarecer o que eu chamo da contradição freudiana que acabamos de mostrar, e segundo a qual a menina que entra no Édipo, via ódio contra a mãe, e que se identifica no final do Édipo (se é que ele tem fim) a esta mãe sob o modo de ter o pênis ou de ter a boneca-bebê e que, no cálculo final, se identifica à mãe em um modo ideal.

Não, parece dizer Lacan: Não se deve buscar o ideal materno no final do Édipo na menina, pois o ódio pela mãe perdura grandemente no Édipo da menina.

Entretanto, existe uma espécie de tendência feminina a gozar do pênis, como Freud o mostrou muito bem.

Então, como avançar?

Bem, nada resta a Lacan senão desenvolver sua dialética de ser ou de ter (o falo) modificando o registro do ter freudiano (ter o pênis para dele gozar) para o registro da satisfação, ou ainda, no que diz respeito ao gozo da mãe, ao passo que ele coloca o registro do ser mulher não do lado da satisfação, mas do lado do desejo, registro do desejo que é o oposto do da satisfação, entendido, como sabemos, que a satisfação é precisamente o oposto do desejo.

Daí esta passagem crucial de Lacan citada em 1958 no Livro V do seminário Formações do inconsciente:

"A mulher... se encontra presa a um dilema insolúvel, em torno do qual deve-se colocar todas as manifestações-tipos da feminilidade, neuróticas ou não".

No que diz respeito à sua satisfação, há primeiro o pênis do homem, em seguida por substituição, o desejo da criança. Não faço aqui senão indicar o que é corrente e clássico na teoria analítica. Mas o que isto quer dizer? Que, afinal de contas, ele obtém somente uma satisfação tão banal, tão fundamental, tão instintiva, que é a da maternidade, de resto tão exigente quanto as vias da linha substitutiva. É por isso que o pênis é antes de tudo um substituto – diria quase um fetiche – que a criança também por certo lado é-lhe em seguida um fetiche. Aí estão as leis pelas quais a mulher chega àquilo que, segundo dizem, é o seu instinto e a sua satisfação natural.

"Inversamente, para tudo o que está na linha do seu desejo, ela se encontra ligada à necessidade implicada pela função do falo, do ser, ou seja, até um certo grau que varia, este falo, enquanto sinal do que é desejado…O fato de que ela se exibe e se propõe como objeto de desejo, identifica-a de maneira latente e secreta ao falo, e situa seu ser de sujeito como falo desejado, significante do desejo do Outro. Este ser situa-a para além do que se pode chamar a mascarada feminina, dado que finalmente tudo que ela mostra de sua feminilidade é precisamente ligada a esta identificação profunda ao significante falo, que é o mais ligado a sua feminilidade"10.

Eis o que a subversão lacaniana operou.

Onde Freud em 1932 indicava que deveríamos "reconhecer este desejo do pênis como um desejo feminino por excelência", para fazer assim da mãe o excelente da mulher, Lacan separa a mãe da mulher e indica que aquilo que é o "mais ligado à feminilidade" é "a identificação profunda ao significante fálico", ou seja, in fine, ao objeto de desejo do Outro.

Esta disjunção entre mulher e mãe explica por que Lacan faz do infanticídio de Medeia o ato que a qualifica pelos séculos futuros como a mulher verdadeira, a mulher verdadeira na sua inteireza de mulher.

Se a mãe sempre foi a figura ideal dos regimes totalitários11 por aquilo que nem se ousa chamar de feminino, compreende-se a importância da subversão lacaniana que rompe definitivamente para o corpus analítico toda cumplicidade com esta opção para mãe. Mas se Lacan rompe esta cumplicidade, não é tanto para posicionar-se no campo do político, mas para dizer o mais claro possível do que se trata o desejo da mulher, do ponto de vista da própria mulher. E deste ponto de vista, o ideal da mulher, de acordo com Lacan, é de ser o objeto do desejo dos homens. Isto nos faz a nossa realidade atual, a de saber que, por exemplo, os pedidos de divórcio são efetivados, de maneira esmagadora, por mulheres (75%). Pedidos para obter a dissolução desta forma de união na qual elas percebem como um naufrágio do desejo.

No final temos:

1. No plano epistemológico: o que é subversivo não é tanto a psicanálise, mas o desejo das mulheres em si.

2. Contrariamente ao que se diz por aí, não é de uma propensão ao amor das mulheres que se deve esperar para reativar o laço conjugal, pois constata-se, ao contrário, que têm sido as mulheres que têm relançado o desejo, ainda que ao preço da ruptura do conforto familiar no qual se perde o desejo.

Se, então, Lacan parece, ao contrário de Freud, jogar a mulher contra a mãe, não é porque Lacan é Lacan, mas porque a mulher é a mulher e seu ser é ligado a esta profunda identificação ao significante fálico que é o mais ligado à sua feminilidade.

A grandeza de Lacan foi simplesmente a de ter formulado claramente esta posição do ser mulher que desnaturaliza o seu desejo, o recoloca na história e, ao mesmo tempo responde a Bourdieu e a Foucault e indica, naturalmente, aos psicanalistas que nós somos uma direção do tratamento eminentemente subversiva nisso que o desejo da mulher – enquanto mulher – é eminentemente subversivo, tal como é próprio do desejo.

Se Lacan faz de Medeia12:

"Uma mulher verdadeira na sua inteireza de mulher" é que Medeia por seu infanticídio se separada da mãe nela mesmo; ela se separa da mãe nela, pois esta mãe a descompleta como mulher, da mesma forma que a Madeleine de Gide lê no rosto do escritor sua traição como objeto do desejo do homem, traição que ela reconhece como, talvez, só uma mulher possa reconhecer, a saber, por aquilo que ela lê no rosto do amante infiel: "menos nobreza", sublinha Lacan13.

À simples vista desse sinal discreto de traição do desejo "menos nobreza", Madeleine, como vocês sabem, queima as cartas de André Gide, arrancando-lhe, ao mesmo tempo, este "gemido muito particular, que ele extrai deste duplo dele mesmo que eram estas cartas, às quais ele chamava suas crianças..."14.

"Pobre Jasão, conclui Lacan quanto a Gide, partiu para a conquista do Velocino de Ouro da felicidade, ele não reconhece Medeia!"15.

Não, decididamente não, a mãe não é o tornar-se mulher; e subversão ou não, para ser bem claro, é melhor saber disso.

Se, para Freud, os filhos são o equivalente do pênis ardentemente desejado pelas mulheres, onde a mãe faz figura de excelência, vimos com Jasão e com Gide que a criança faz muito mais parte das possessões do pai e que, ao mesmo tempo, quando a mulher que não se completa em ser mãe percebe este porquê, ela terá aceitado se descompletar, desmaia sob seus olhos, ou seja, o desejo do homem. Então, neste momento, a mulher intratável não hesita em desencadear o holocausto das possessões conjugais para reencontrar sua inteireza de mulher; inteireza à qual ela teve que renunciar devido ao desejo do Outro por ela.

Por este movimento, ela, a mulher, dá nova chance ao desejo.

Nesta lógica, a criança ou tê-lo fica do lado dos homens.

E a mulher, ela se encontra inteira do lado do ser.

E se alguns ainda insistem em imaginar, com Freud, que as mulheres representam os interesses da família e, logo, da vida sexual, nós diríamos apenas que nossas Medeias modernas desmentem totalmente este arranjo criado por Freud; ou que elas afirmam muito mais em seus estilos, por vezes temidos, que entre a vida sexual e a família, por um lado, a tendência seria, antes, a vacilar. E, por outro lado, que entre a vida sexual e a família, as modernas Medeias tendem muito mais para a vida sexual ou ainda pelo desejo.

É por isso que elas deixam facilmente o cônjuge quando ele sucumbe, enquanto o homem muito mais prudente neste domínio hesita, mais frequentemente, a deixar a casa.

Não, decididamente não, a mãe não é o excelente do tornar-se mulher. Seu futuro é o de relançar o desejo que, em si, como sabemos, é eminentemente subversivo das instituições sociais onde ele nem sempre está presente; instituições sociais dentre as quais a família vem em primeiro lugar.

Manter a confusão entre vida sexual e família, como o fez Freud, serve para levar a mulher a precipitar-se no papel da mãe e lá realizar-se, reconduzindo ao mesmo tempo as condições da sua própria dominação doméstica, ou ainda comprometer-se em participar de sua própria dominação posto que é exatamente na família que a dominação masculina encontra as suas bases mais seguras, como o indica Bourdieu nestes termos: "É provavelmente à família que pertence o papel principal na reprodução da domesticação e da visão masculina; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima desta divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem"16; esta é a crítica de Pierre Bourdieu e de Michel Foucault.

Por fim, e ao que diz respeito ao déficit de superego ou da sublimação que, de acordo com Freud, constituiria o eterno feminino, basta constatar a participação cada vez maior das mulheres na cultura para certificar-se de que não são estes déficits (supostamente determinados anatomicamente) que poderiam explicar o descaso relativo das mulheres quanto às atividades socioculturais, mas que, ao contrário, são as condições sociais da sua dominação que obstruíam historicamente as suas capacidades de produção dos bens culturais, tais como seu engajamento na cidade ao serviço do que Freud em particular chamava a justiça.

Ao mesmo tempo, e se eu tenho certa razão no que digo, compreender-se-á que, naturalmente, toda a análise do Édipo e da castração feminina deve ser revista e, ao mesmo tempo, as direções do tratamento que tenderiam a descompletar sistematicamente as mulheres para delas fazer mães, que é exatamente o sonho de um obsessivo que, uma vez atingido seu objetivo, abandona a sua mulher que se tornou mãe (devido à interdição edípica), no momento mesmo em que ele esperava da esposa que se tornou mãe, os cuidados que lhe dava a sua mãe, como mostra o Freud de 1932 quando escreve que "Um casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele como mãe"17.

Não existe aí uma boa parcela do que motiva o desabamento do desejo no casal, pois quando a esposa reduziu seu homem à postura de criança, a única coisa que une os parceiros é aquilo que Lacan chamava em 1938 o amor da larva culminando no fantasma da impotência?

Por último, e para concluir, direi que se este ideal que faz da mulher uma mãe é, frequentemente, o do homem obsessivo, em contrapartida a todas as análises de mulheres e toda história das mulheres, indica que tal ideal não é realmente o da mulher. Fazer passar o ideal do homem como sendo o da mulher é correr o risco de contribuir para manter – graças à força do ideal – a dominação masculina e a sua nocividade em relação ao desejo. Daí a importância da subversão lacaniana da teoria da feminilidade. E acrescentarei, para assinar esta intervenção, que esta teoria lacaniana da mulher identificada ao falo, que subverteu totalmente o campo psicanalítico, seria totalmente incompreensível se não levasse em conta o que chamo de transferência de Lacan a Lévi-Strauss, pois foi efetivamente Lévi-Strauss que, a partir de 1949, ou seja, a partir das Estruturas elementares do parentesco, fez da mulher o objeto por excelência da circulação dos bens e, por conseguinte, a condição da reprodução das trocas sociais e da formação das sociedades.

Que me compreendam bem: não estou dizendo aqui que a mulher não quer ser mãe. Eu digo, com Lacan, que quando a mulher torna-se mãe, isto não resolve a questão de seu desejo de mulher enquanto mulher, mesmo se, como vimos, o bebê pode funcionar para ela como objeto de satisfação enquanto mãe.

 

 

Endereço para correspondência:
Psychanalyse et Pratiques Sociales, Université Paris 7, UFR Sciences Humaines Cliniques,
26 rue de Paradis 75010
Paris – France
E-mail: mzafir@free.fr

RECEBIDO EM: 30/06/2009
APROVADO EM: 24/08/2009

 

 

Sobre o Autor

Markos Zafiropoulos
Diretor de Pesquisa do CNRS; Analista Membro do Espace Analytique; Presidente do Círculo Internacional de Antropologia Psicanalítica.

1 Freud citado por Ernest Jones. In: Jones, E. La vie et l’œuvre de Sigmund Freud. PUF, TII, p.445.
2 Bourdieu, P. La domination masculine. Paris : Seuil,1998.
3 Freud, S. (1923) O mal-estar na civilização. ESB, v.XXI, 1976, p.119.
4 Idem, p.124.
5 Freud, S. (1908) Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. ESB, v.IX, 1976, p.200.
6 Todas estas citações são do texto de Sigmund Freud (1925), Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos".
7 Freud, S. (1907). Os primeiros psicanalistas. In : Ata (I) da Sociedade Psicanalítica de Viena. Paris: Gallimard, 1979, p.220.
8 Freud, S. (1923) A feminilidade. In: Novas conferências introdutórias, Conf. XXXIII. ESB, v.XXII, 1976, p.158.
9 Idem, p.150.
10 Lacan, J. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Paris: Seuil, p.350, lição de 23/4/1958.
11 Como observa a historiadora Gisela Bock, os nazistas fizeram das mulheres alemãs "As mães do povo" e consideravam que a emancipação das mulheres era uma ideia oriunda da "influência Judaica". Já Mussolini, por sua vez, afirmava que as mulheres nascem para tomar conta da casa, terem filhos e carregarem os chifres". O governo de Vichy sustentava que "por natureza e por vocação as mulheres são consagradas à maternidade". De maneira geral, toda política nacionalista insiste na redução da mulher à mãe.
12 Lacan, J. Juventude de Gide ou a letra e o desejo. In: Escritos. Paris: Seuil, 1966. p.761.
13 Ibid.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 Bourdieu, P. A dominação masculina, idem, p.92.
17 Freud, S. (1923) A feminilidade. In: Novas conferências introdutórias, Conf. XXXIII. ESB, v.XXII, 1976. p.164.

Creative Commons License