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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.31 no.58 Belo Horizonte Sept. 2009

 

Clínica Psicanalítica

 

TETÊ – trincheira de telinhas

 

Tetê – A trench of screens

 

 

Messias Eustáquio Chaves

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Este é um caso clínico de fobia com sintomas obsessivos e histéricos, presentes numa estrutura histérica. O autor publica-o, acreditando ser uma experiência clínica rica, que prova quanto aprendemos com os nossos pacientes. Trata-se de uma fobia de lagartixa, fixada, cristalizada num sintoma, que resistia muito ao deciframento do seu enigma.

Palavras-chave: Demanda, Clínica psicanalítica, Angústia, Fobia, Diagnóstico, Discurso da histérica, Transferência, Sexualidade, Trauma, Recalque, Retorno do recalcado, Sintoma, Fantasia inconsciente, Neurose, Histeria, Repetição, Gozo.


Abstract

This is a case study on a phobia that presents obsessive and histeric symptoms, typically present in a histeric structure. The author has published it, believing it to be a rich clinical experience which proves how much we can learn through our patients. In this case the phobic element is a small lizard, and the symptom firmly fixed and crystilized, an enigma that proved to be extremely resistent to being deciphered.

Keywords: Demand, Psychoanalytical practice, Anxiety, Phobia, Diagnosis, Hysteric discourse, Transference, Sexuality, Trauma, Repression, Return of repression, Symptom, Unconscious fantasy, Neurosis, Hysteria, Repetition, Enjoyment.


 

 

"Que é a angústia?
Não é uma emoção. Ela é um afeto. O afeto não é recalcado. Freud já dizia.
Ele se desprende, fica à deriva.
Encontramo-lo deslocado, enlouquecido, invertido, metabolizado, mas não é recalcado.
O que é recalcado são os significantes que o amarram".
(Lacan, Seminário, Livro 10, Angústia, RJ: Jorge Zahar, 2005, p.23)

 

Entrevistas preliminares – Socorro!... Só corro...

Ela senta-se e corre os olhos pelo ambiente do consultório do psicanalista. Parece calma, mas ela se esconde. Quando começa a falar, a ansiedade aparece. "Doutor, eu lhe pedi esta consulta, por indicação de um médico da minha cidade, porque já não estou aguentando. Só aqui eu posso falar, mesmo assim estou morrendo de vergonha. Tem uns dois anos que eu sofro disso. Já pesquisei na internet, já li, acho que eu tenho síndrome de pânico, mas preciso ter certeza, me tratar e ficar livre desse sofrimento que está acabando comigo. O que sinto é muito esquisito, mas é forte e verdadeiro".

"É... eu morro de medo... Nossa!... É... É medo de lagartixa!"... Ela diz isso com o semblante carregado, pleno de vergonha e constrangimento, olhando para o chão. Escuto em silêncio, com paciência e serenidade. Peço que continue. "Quando vejo uma lagartixa, eu levo o maior susto, entro em pânico, fico desnorteada, sem saber o que fazer. Eu grito, fico apavorada, começo a suar, meu coração dispara, meus olhos escurecem, vou ficando tonta, minhas pernas bambeiam e só penso em fugir. É instantâneo, automático, eu corro pra longe, peço ajuda, quero que matem a lagartixa. Meu marido já não suporta e eu sofro ainda mais. Preciso fazer um tratamento urgente, isso só pode ser uma doença".

Ela prossegue: "É difícil eu aceitar este medo, doutor, mas a verdade é que eu morro de medo de lagartixa. Eu não posso encontrar uma, olhar pra ela, que eu começo a ficar ansiosa, aflita, suando frio, com medo mesmo, com ânsia de sair logo de perto, fugir, porque o medo é ela me picar, me morder, soltar gosma na minha pele, me molhar, me contaminar com o líquido dela, e eu pegar uma doença. Eu não aguento nem olhar pra lagartixa, não posso chegar perto. Contratei carpinteiro e mandei colocar "telinhas de pernilongo" em todas as janelas, presas com moldura e bem fechadinhas, para não passar nada. Fiz algo parecido em todas as portas, colocando borracha e tapando todas as frestas. Mesmo assim, doutor, quando volto do trabalho e entro em casa, se eu vejo uma lagartixa passando do lado de fora da telinha, eu olho pra ela e sinto medo. Nunca estou segura se a lagartixa vai ficar do lado de fora ou se vai conseguir entrar por um buraquinho".

Diante do silêncio respeitoso e atento do psicanalista, ela prossegue, naturalmente: "É muito chato sentir-se assim, doutor, mas preciso falar. Não dou conta mesmo! Morro de vergonha, mas o que vou fazer? Quando estou com meu marido e meu filho na cama, brincando, alegremente, de repente eu me lembro da lagartixa e fico séria, começo a observar o quarto, o chão, olho debaixo da cama, vasculho tudo com medo de alguma lagartixa me pegar distraída, subir na cama e encostar no meu filho, ou no meu marido, ou em mim, e nos contaminar a todos com a gosma dela. O pior, doutor, é que eu sei que é impossível elas atravessarem as telinhas, pois está tudo extremamente fechado, e mesmo assim eu sinto muito medo. Eu, uma pessoa adulta, uma mulher esclarecida, e o que adiantou ter feito curso superior? Não dá pra entender! Eu não aguento mais esta situação!"

Esta é uma jovem senhora, de 38 anos de idade, que exerce uma profissão em nível superior, inteligente, produtiva, casada, com um filho pequeno, sentindo-se ter um único grande problema manchando a sua vida: o medo verdadeiro e incompreensível de lagartixa, um animalzinho pequeno e inofensivo, mas que a assusta enormemente, deixando-a em estado de pânico. Fez das janelas e portas de sua casa uma verdadeira trincheira de telinhas, o que ajuda, mas não resolve. Basta que apareça uma lagartixa do lado de fora da telinha para que ela sinta medo e comece a passar mal. Daí o seu sentimento de estranheza, de inadequação, de absurdo, de vergonha, de forte constrangimento.

 

Percurso

Durante 12 meses – tempo que durou esta experiência de análise interrompida –, esta analisante forneceu dados clinicamente interessantes e importantes sobre a sua história familiar, do presente e do passado, quase sempre com um discurso autointerpelativo, questionador. Ela se revela "necessitada de ajuda de terapia" e, mesmo sentindo-se constrangida, posiciona-se com coragem e respeito diante do analista, falando abertamente de seus sentimentos, pensamentos, fantasias, lembranças, sonhos, experiências familiares e de trabalho. Desde o início, percebe-se que ela elege o analista no lugar de um sujeito suposto saber sobre a sua "doença" e capaz de livrá-la de todos os seus sofrimentos. Ela nutre esta esperança.

Seus pais são professores, têm nível superior de estudo, e têm "temperamentos" muito diferentes. A mãe é uma figura forte, comunicativa, extrovertida, idealizada, com prestígio social, pois preocupa-se muito com os outros. Teve aneurisma cerebral e esteve internada no CTI de um Hospital. Obteve sucesso no tratamento e seguiu vida normal. O pai, ao contrário, é uma "pessoa muito tímida, insegura e calada", sentindo-se muito inferiorizado diante da esposa, porque ganha um salário menor e tem menos posses do que ela. Lê o dia todo e não se diverte. Ele mesmo se sente inadequado, porque "não sabe dirigir automóvel e nem trocar uma lâmpada".

É a primeira dentre três irmãs legítimas. Depois os pais adotaram mais três filhos; duas meninas e um menino. A família do pai nunca concordou com estas adoções. "Eles estranham a ligação de papai com estes filhos adotivos, como se ele estivesse reparando alguma culpa do passado, tentando compensar alguém". Ouviu uma destas filhas adotivas, jovem adolescente, dizer que o pai estava "interessado nela e que havia tentado estuprá-la". Quanto ao menino adotado, ele era o "reizinho da casa", muito paparicado.

Sempre se achava muito rigorosa com limpeza e, por isso, se autodenominava "obsessiva". Com seis anos de idade espremeu uma lagartixa com os dedos, matando-a. Como é a mais velha das irmãs e a diferença de idade para a segunda é de seis anos, pergunta se uma coisa está ligada a outra. Casada e com um filho de dois anos, muitas vezes se sentia impotente em ser mulher e mãe. Ela se perguntava, literalmente, "o que é ser mulher?". Diz que não sabe ser mulher, que é muito difícil, não sabe amar nem fazer sexo direito, e, como mãe, não teve muito leite para amamentar e nem sabe cuidar bem do filho. Muitos conflitos com a amamentação e com as interferências da sogra. Mas, considera o medo de lagartixa a sua maior "impotência". O marido já não suportava mais este problema e queria a separação, o que a deixava ainda mais angustiada.

Muitas vezes, vindo para a sua sessão de análise, imaginava que não cuidavam bem de seu filho e "ele morreu". Imagina que sua mãe sempre teve problemas sexuais e dificuldades afetivas com seu pai. Ela o chamava de "porco, sujo". Dizem que sua mãe é teatral, fala demais e está sempre achando que alguma coisa de ruim vai acontecer. Não gostava de ouvir a mãe xingando o pai, reclamando dele. Sentia falta do pai ser bravo com a mãe, reagir à altura, não passar por bobo. "Queria, também, que papai fosse mais bravo comigo e me desse força, proteção. Mas, uma coisa aprendi muito com ele; eu gosto de ler, leio bastante e tenho um certo ar de intelectualidade. Devo isso ao meu pai".

Pois bem, após 10 anos de terapia guestáltica, sofrendo do que chamava "síndrome de pânico", me procurou e pediu ajuda terapêutica. Seu marido também se submetia a um tratamento psicoterápico e, num dado momento de seu percurso, resolveu pressionar a esposa, no sentido de juntos migrarem para "uma terapia de casal". Estando em análise há pouco mais de um ano, ela não quis, mas aceitou, sentindo-se na "obrigação" de acabar logo com o seu "pânico", porque as suas "manifestações infantis de medo de lagartixa" colocavam-na próxima de uma separação. Assim, fizeram! Cada um interrompeu o seu percurso individual e foram fazer uma terapia de casal. Depois dessa experiência, não tive mais notícias dela, permanecendo a dúvida se conseguiu se libertar de sua fobia.

Ela me deixou com muitas questões ereflexões, produzindo efeitos a posteriori. Se ela seguisse em frente com a análise, poderíamos chegar a um desfecho clinicamente favorável, comparável ao de José de X? Seu sintoma fóbico é o efeito de um recalcamento junto com um deslocamento secundário, provenientes de fantasia e/ou experiência de sedução passiva em sua primeira infância? Os diversos elementos significantes da montagem do sintoma principal – lagartixa, gosma, entrar pelo buraquinho, contaminar, etc.) – estariam testemunhando o sentido sexual infantil traumático da experiência de vida de Tetê?

 

Algumas considerações teóricas

Aprendi com Freud, com Lacan, com mais alguns outros e, de uma maneira especial com meus próprios pacientes, ao longo de mais de 30 anos de clínica. A minha escuta, desde a primeira consulta, já tecia os rudimentos de um diagnóstico inicial. Falo do diagnóstico estrutural, que aprendemos a fazer baseando-nos na escuta do significante, presente no discurso, na materialidade da fala da paciente e na modalidade da transferência. Com os elementos que eu tinha em mãos, fiz a minha primeira formulação: trata-se de uma fobia de lagartixa numa estrutura histérica. Por que fobia? Por que histeria?

A fobia se coloca de uma maneira evidente: seu objeto é a lagartixa, a angústia se apresenta na forma de medo, pânico, horror. A dinâmica é de atração (procurar debaixo da cama, vasculhar as telinhas, buscar a lagartixa com o olhar) e de repulsa (evitar, se afastar, fugir, "socorro", só... corro, somente correr, ir pra bem longe). A hipótese de uma estrutura histérica podemos lê-la, primeiro na fala da paciente, cujas associações apontam para o "discurso da histérica" (ou, histeria), e segundo, na forma da dinâmica da transferência da paciente. Ambos, o discurso e a transferência, fazem um enlaçamento lógico, matemático, estrutural, que apontam para a hipótese de histeria.

Desde o início, ela se coloca no lugar do sujeito castrado, demandando ajuda a um sujeito suposto saber, colocado por ela no lugar do Senhor (do Mestre, do Amo, do Pai). Ela acredita e se submete a essa sua crença, isto é, que ele detém o saber de como livrá-la da sua "síndrome de pânico" (sua angústia, seu medo da lagartixa). Portanto, ele é potente, detentor do falo. Ela confia, ela espera, mas ela está de olho, ela avisa, tudo se passa como se ela dissesse: "cuidado, meu desejo, mesmo que eu não saiba, é desejo de permanecer insatisfeita, e, para conseguir meu intento, vou testá-lo, seduzi-lo, tentar roubar-lhe o bastão e manter o sintoma, a partir do qual uma parte de mim goza".

Ela quer se livrar do sofrimento do sintoma e, ao mesmo tempo, quer mantê-lo, porque d´Isso ela goza. Há o desejo e há o gozo: são lugares diferentes. Há o desejo (do sujeito, no simbólico), há o gozo (do Isso pulsional) e há a defesa (do Eu imaginário). A histeria se estrutura na conjunção da exigência pulsional de gozo, por parte do Isso, e do recalcamento como operação de defesa, por parte do Eu. O resultado é a formação de compromisso entre um e outro, ou seja, a criação do sintoma, para que ele funcione como um efeito do conflito psíquico e seja um monumento híbrido, mantendo um pedaço de censura e um pedaço de gozo. É o que fica como "resto" da operação significante, uma elaboração engenhosa à custa do desperdício da saúde do sujeito.

Como um resto de gozo, o sintoma na histeria se estabelece no corpo, onde busca a sua satisfação pulsional censurada numa forma minimizada, que às vezes nos parece ser bastante ruidosa em seus efeitos, ou seja, fazendo um semblant de verdadeira doença orgânica, como se fosse determinada biologicamente, embora a cura analítica possa conduzir a uma causalidade psíquica capaz de não deixar dúvida alguma. No caso de Tetê, não nos foi dado prazo, a mim e a ela, de chegarmos lá, ao ponto de desamarrar o sintoma e libertá-la da fobia, do gozo deslocado para a lagartixa, objeto "escolhido a dedo", para ficar como representante do gozo fálico, recalcado no inconsciente desta mulher, provavelmente num momento lógico da sua primeira infância, entre os 02 e os 06 anos.

A clínica freudiana não cessa de nos dar testemunho desses traumas sexuais, factuais ou fantasmáticos, vividos por meninas e meninos na primeira infância, quando o agente do trauma se apresenta na forma de um irmão mais velho, um tio, um vizinho ou um outro desconhecido, que seduz e subjuga a criança a um tipo qualquer de abordagem e ato sexual, podendo ir, em alguns casos, até mesmo ao estupro real, o qual, ao invés de ser produto da fantasia, é, na verdade, o estimulador de fantasias sexuais mortíferas e angustiantes, de perigo, horror, pânico. A experiência clínica nos atesta dois tipos possíveis de causalidades da constituição da estrutura histérica: sintomas construídos somente a partir de fantasias sexuais inconscientes, e sintomas construídos a partir do enlaçamento das duas situações, ou seja, de atos e fantasias conjugados.

Eu construo a minha hipótese baseando-me numa possível escolha dos significantes apropriados à construção dos sintomas histéricos em Tetê, à constituição dos traços estruturais e a posterior constância de ambos na forma de manutenção de um gozo fixado, cristalizado e enigmático do pânico relacionado a um "animalzinho pequeno, inofensivo, ridículo". Eis os significantes escolhidos pela paciente na determinação do sintoma: lagartixa, susto, medo, pânico, ser mordida, picada, gosma, molhar, contaminar, vergonha, desnorteamento, grito, apavoramento, suar frio, coração disparar, aflição, olhos escurecerem, tonteira, pernas bambas, matar a lagartixa, fugir, fechar todas as janelas com telinhas presas com molduras, tapar todos os buraquinhos.

Como identifico os traços estruturais próprios à histeria? Primeiro, o recalcamento da representação pulsional. Segundo, o deslocamento para um objeto concreto, a lagartixa, estátua do sintoma, aliviando a paciente de uma angústia terrivelmente difusa. Terceiro, a ambivalência em relação ao sintoma, numa forma de manter o seu desejo permanentemente insatisfeito. Quarto, o modo característico das histéricas de gerenciar o seu desejo, fazendo-o aparecer e acontecer na forma do desejo do Outro. O que o Outro quer de mim? Na falta da resposta, ela vai pedir, demandar, até mesmo suplicar ao Outro – ela na posição de sujeito castrado –, que este lhe dê as respostas sobre a verdade do seu gozo, especificamente, sobre o seu "gozo do sintoma" (um mais-de-gozar), em detrimento da expressão genuína do seu desejo.

Complicado, mas nem tanto, na verdade, esclarece-dor, na medida em que o sintoma neurótico é o sentido da metáfora paterna no inconsciente do sujeito. Pressuponho, junto com Freud, que, num momento lógico da infância de Tetê, ela foi submetida a uma sedução passiva, por parte de um "outrinho qualquer", no lugar do grande Outro, e o seu Eu se defendeu através do recalcamento, arquivando-o no inconsciente. Imagino duas possibilidades de formação deste sintoma, já na idade adulta: 1. se ela fez 10 anos de terapia guestáltica antes de me procurar, teria iniciado esta terapia movida pela fobia da lagartixa? Se foi assim, ela estava com 28 anos, e pergunto: a fobia já durava 10 anos?, de gozo do sintoma? 2. a fobia teria se instalado quando ela se casou? Foi aos 28 anos? Foi aos 35 anos (ela tem um filho de 02 anos) e aos 38 anos ela, então, procura ajuda?

Portanto, teria feito o sintoma de fobia da lagartixa já adulta, ao se casar, por ter sido, inconscientemente, convocada ao exercício pleno de suas funções sexuais como mulher, o que pode ter provocado o "retorno do recalcado" e, segundo Freud, um "segundo recalcamento", ligado ao mesmo tempo a um "deslocamento", formando assim o sintoma histérico, tendo na fobia de lagartixa o seu cartão de visita? Certa vez, ela disse: "Nunca estou segura, se a lagartixa vai ficar de fora ou entrar por um buraquinho", assim ela concluiu uma rede de associações e, naquele momento, eu pontuei; "por um buraquinho?", encerrando a sessão.

Freud fala de "proto pseudos" (a primeira mentira), a mentira da histérica, ou seja, o sintoma é a verdade de uma mentira, porque a verdade mesmo está na outra cena, isto é, no inconsciente. A verdade é o que está antes da formação do sintoma, aquilo que o retorno do recalcado traz; a lembrança da vivência traumática primária. A verdade primária da histérica está na fantasia de sedução e está na pulsão sexual, ambas vestidas de um desejo pronto a ser recalcado. Deduzimos com Freud que a verdade do sintoma é a verdade de uma mentira. Na análise, quando se consegue romper com a defesa do recalque e lembrar-se da causa determinante da formação do sintoma, se houver a completa elaboração dos elementos significantes que o determinaram, isso então será suficiente para desfazer os seus nós. Esta foi uma constatação que pude vivenciar na experiência de análise com outro analisante, aquele que já mencionei – José de X –, alguém que muito me ensinou sobre a estrutura e os sintomas histéricos.

Assim, aprendemos com nossos analisantes que a verdade, "de verdade!...", é só Isso, porque é muito difícil dar conta d´Isso, compactuar-se com o Isso, jogar com o real d´Isso. Então, mentimos por Isso!... O ser humano é muito frágil e muito forte, ao mesmo tempo. O real d´Isso é muito familiar e muito estranho, ao mesmo tempo. Por causa d´Isso, diz a verdade o tempo todo: a verdade da mentira!...

Só há um jeito de entender a absoluta verdade da mentira. Isso é coisa de humano, e humanos não dão conta do Real da condição humana. Quando topamos com a verdade do Real d´Isso, estremecemos estranhamente, sentimos um calafrio n´alma. Quando o Real bate à nossa porta ou encostamos um dedinho nele, entramos em pânico, paralisados ficamos, olhos arregalados, estupefatos, tremidos, angustiados, atingidos de cheio pelo que há de mais estranho no existir humano.

O desconhecido, o não sabido, o insuportável, o irredutível, o impossível de ser assimilado, apreendido, totalmente dominado. Estranhamente real, sempre fora do simbólico, objeto causa da angústia, d´Isso que um dia foi tão familiar, e foi cortado, e se perdeu, e foi recalcado, e estranhamente se prendeu, se amarrou, se fixou, se registrou como a, objeto familiarmente perdido e fixado como resto d´Isso, que sobrou do trauma significante da sexualidade infantil, e do recalcado um dia voltou, e se manifestou como angústia no corpo, marcado simbolicamente e imaginariamente pela experiência do espelho no campo do Outro, deixando intacto esse objeto a, como resto invisível escapante ao visível da especularidade, mas matematicamente presente na fantasia inconsciente como tal.

A maneira como eu articulo o que aprendo com Lacan no Seminário da Angústia, é o seguinte: o sujeito, marcado pelo significante, tem por função a subjetividade e suas operações nos campos do simbólico e do imaginário. O objeto a, resto da operação de corte, tem por função causar o desejo e permanecer como ponto de gozo (mais-de-gozar), como pulsão parcial, energia libidinal, sempre invisível, mas operante, inalterável, restinho de real no psiquismo humano, de onde surge a angústia. Ambos, o sujeito barrado (cortado do S) e o objeto a (cortado do A), são resultantes da operação significante primordial. Ambos matematizam a fórmula da fantasia (S ? a), essencialmente necessária ao funcionamento humano como tal, especialmente para lidar com a angústia, com as perdas, com a castração simbólica, com a não relação sexual, com a incompletude do ser, com o real da morte.

Este a, objeto faltante, presente pela ausência, um restinho, um fragmento, um lixinho, é um lixinho poderoso, comparável ao lixo atômico batizado como "Césio de Goiânia"1. É do objeto a que vem a angústia. Somos afetados pela angústia, quando nem a fantasia nem o desejo conseguem servir de escudo frente a um real, manifestando-se através do a. Há pontos de angústia sempre que somos invadidos pelo estranho sentimento das perdas primitivas, familiarmente humanas, registradas no psiquismo como objetos a, o lugar vazio faltante do que foi a queda do mamilo, a queda do cocô, a queda do olhar, a queda da voz, a queda do falo.

A angústia parte do real e se apresenta dentro do corpo imaginário, invade nossos sonhos noturnos e diurnos, e afetados por ela, mensageira do real na experiência humana, nós nos defendemos, inventamos uma mentira qualquer, um mito, às vezes, uma metáfora delirante, e tentamos amordaçar a angústia (o seu grito terrificante), embora ela continue lá, como um ponto de real a nos lembrar que somos humanos e não deuses, marcados que somos pelo efeito significante do corte e da falta. Não tem como fugir da "próton pseudos", ela é estruturante, inconscientemente mentimos, por necessidade, por não termos inicialmente outra saída diante da angústia.

Na primeira infância, do nascimento aos 06 anos de idade, se o pai de carne e osso assumir a função simbólica de agente da castração, ele propicia a vivência de perda de gozo por parte da criança e barra a angústia consequente, submetendo-a a quantidades suportáveis. Faltou isso no caso de Tetê: inconscientemente ela sentiu "a falta da falta", como diz Lacan2, dando-me em seus relatos a nítida impressão de ter sentido a falta de um "pai bravo", que fizesse uso de sua autoridade e fosse afetuosamente firme em seus cortes simbólicos, nos seus estabelecimentos de limites, dizendo a sua filha com clareza os parâmetros do certo e do errado.

Em sua abordagem da angústia e do objeto a, Lacan nos diz que, no fim de sua obra, Freud designou a angústia como um sinal, mas um sinal distinto do efeito da situação traumática e articulado com o que chamou de perigo ("perigo de vida"), tentando enunciar de maneira mais precisa que "o perigo em questão está ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a"3. De que, então, deve a angústia ser considerada sinal? Lacan acredita que o momento em que entra em jogo a função da angústia é um momento anterior à cessão do objeto, da mesma forma que Freud buscou situar algo mais primitivo do que a situação de perigo. Alinhado com Freud nesta questão sobre o que vem antes, diz Lacan: "a angústia manifesta-se como relacionada de maneira complexa com o desejo do Outro. Indiquei que a função angustiante do desejo do Outro estava ligada a eu não saber que objeto a sou eu para esse desejo"4.

Portanto, Lacan deixa bem claro que a constituição do sujeito se faz em sua relação com o desejo do Outro e que o desejo humano é função do desejo do Outro. É por isso que "a angústia é a única tradução subjetiva do objeto a". E que, "a estrutura da angústia é a mesma da fantasia, ◊ a, a angústia está ligada ao objeto a, a fantasia está ligada ao S, sujeito barrado. É lidar com o desejo e a angústia ao mesmo tempo"5.

Instante de ver, Tempo de compreender, Momento de concluir. É preciso concluir? Finalizar uma inscrição, uma elaboração, uma escrita? É preciso precisar o que é preciso? É preciso precisar o que é impreciso? Por que seria? Não, não é!... Fantasiar é preciso, falar é preciso, caminhar é preciso, fazer arte é preciso, porque morrer é preciso, a falta é precisa e viver não é preciso. Assim, vamos viver caminhando na falta, na imprecisão precisa do mundo, desejando, sonhando, construindo um saber sobre o inconsciente, sobre a arte – da literatura, da poesia, da escultura, da pintura, da música –, um saber do sujeito humano, caminhante... falante... escutando... produzindo... e uma coisa é vital: é preciso respirar.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Domingos Vieira, 348/803 – Santa Efigênia
30150-240 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31)3224-6837
E-mail: mesquio@uai.com.br

RECEBIDO EM: 30/06/2009
APROVADO EM: 24/08/2009

 

 

SOBRE O AUTOR

Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

1 Césio 137, nome químico de grave episódio de contaminação por radioatividade, ocorrido no Brasil, em Goiânia, em 13 de setembro de 1987, um aparelho utilizado em radioterapias foi furtado das instalações de um hospital abandonado na zona central de Goiânia. O instrumento foi desmontado e repassado para terceiros, gerando um rastro de contaminações, que afetou seriamente a saúde de centenas de pessoas. Maiores informações, favor consultar Wikipédia, enciclopédia livre, no http://www.google.com.br
2
"Essencial aprender que a angústia não é sinal de uma falta, mas de algo que devemos conceber num nível duplicado, por ser a falta de apoio dado pela falta". (LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia (1962-1963), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.64).
3 LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia (1962-1963), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.352
4 Idem, p.353
5 Idem, p.357

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