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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte June 2010

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

A imagem do corpo em Lacan

 

The image of the body in Lacan

 

 

Mara Viana de Castro Sternick

Campo Lacaniano de Belo Horizonte

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A autora discute o corpo na perspectiva da psicanálise lacaniana. Para isso os registros Real, Simbólico e Imaginário são considerados. Inicialmente é especificado, de forma sucinta, o que é cada um desses registros, para depois pensar qual a dimensão que o corpo tem com cada um deles.

Palavras-chave: Corpo, Imagem, Real, Simbólico, Imaginário.


Abstract

The author discusses the body in a lacanian psychoanalysis perspective. For this, the records of Real, Symbolic and Imaginary are considered. Firstly, it is briefly specified, what is each one of them and, secondly, we develop the dimension of the body in each item.

Keywords: Body, Image, Real, Symbolic, Imaginary.


 

 

Lacan, leitor de Freud, não busca a equivalência do corpo investigado no modelo freudiano como pulsional, erógeno e nem tampouco orgânico – embora nenhum desses seja desconsiderado por ele –, mas o corpo vinculado ao gozo, corpo advindo da consequência do significante fornecido pelo Outro e incorporado pelo sujeito, cabendo ao sujeito nomeá-lo através da linguagem. Mas de que corpo trata a psicanálise lacaniana?

Pensamos que para trabalharmos o tema que aqui nos propomos a desenvolver, seria pertinente esclarecermos as modalidades propostas por Lacan em seus registros, como corpo real, corpo simbólico e corpo imaginário. No entanto, não se poderá seguir nessa investigação sem antes especificar de forma bastante sucinta o que é e qual é a dimensão daquilo que Lacan (1953) chamou de registros, ou melhor, de seus "três sistemas de referência" (LACAN, 1953, p. 89), para então depois elucidar o estatuto do corpo nos respectivos registros, dando-se maior ênfase ao registro do Imaginário.

 

Os registros lacanianos

Comecemos pelo Real. Percebemos, em grande parte das vezes que se consulta uma fonte na qual Lacan se refira ao Real, que os registros Simbólico e Imaginário são evocados como recursos para defini-lo. Por isso, não foi em vão que Jean Claude-Milner (2006) intitulou de Os nomes indistintos seu livro, cujo tema central são os três registros. Para definir esse registro lacaniano, o referido autor diz: "um agregado onde não se estabeleça nenhum laço, nenhuma propriedade, nenhuma similitude ou dissimilitude, isso é o real" (MILNER, 2006, p. 49).

Embora o Real lacaniano seja diferente daquilo a que se chama de realidade, por vezes o termo aparece no início do ensino lacaniano de maneira confusa, sendo vítima de certa ambiguidade. É verdade que o emprego desse termo no seio da psicanálise foi feito por Lacan em 1936, mas só a partir da década de 70 ele terá prioridade em seus estudos.

Na perspectiva lacaniana, o Real é o impossível. Sabe-se que o Real não comporta simbolização e, por isso, acaba tendo a dimensão da insistência; na lógica lacaniana, é o que "não cessa de não se inscrever". Sendo assim, urge que se tente dar sentido para aquilo que não tem sentido. Dar sentido ao Real é a função do Simbólico, mas também se sabe que, em contrapartida, o sentido é sempre Imaginário. Como se pode perceber, estamos diante de um embaraço: como dizer de um registro, prescindindo de outro?

O Simbólico é um registro que organiza, ou melhor, ordena. Não é em vão que Lacan refere-se muitas vezes à expressão de Claude Lévi-Strauss "a ordem simbólica", tomando dele tal expressão para lembrar o quanto o Simbólico é o registro responsável por colocar ordem; essa é a função do símbolo e também da linguagem, só a partir dele é que se poderá ordenar o Real e o Imaginário.

Observamos que, desde o início do ensino lacaniano, a ideia da explicação simultânea dos três registros estava presente. Ao se fazer referência ao Real, é preciso mencionar o Simbólico, ao se fazer menção ao Simbólico, mostra-se necessário lançar mão do Imaginário; e é justamente essa a intenção de Lacan, pois, no decorrer do tempo, em um segundo momento de seu ensino, a ideia de pensar os registros concomitantemente tomou consistência de tal forma que foi transformada em um Seminário, RSI, em que se apresentou o enodamento dos três registros, feito aos moldes de um nó borromeu – um nó no qual a separação de qualquer um dos elos faz consequentemente que os outros se desamarrem.

O termo Imaginário assume, por vezes, a conotação de ilusão, produzindo elucubrações fantasiosas. Trata-se, porém, em psicanálise, da relação dual que um sujeito estabelece com a formação de sua imagem e de seu Eu. Foi justamente com uma exposição – que passou a ser de conhecimento público – sobre essa questão que Lacan introduziu esse termo na psicanálise, de onde vieram muitos desdobramentos.

O estádio do espelho foi o tema com o qual Lacan se introduziu na psicanálise em exposição realizada por ocasião do XVI Congresso da IPA em Mariembad, durante o mês de agosto de 1932; mais tarde, na sessão de 10 de janeiro de 1968 do seminário sobre O ato psicanalítico, Lacan, lembrando da primeira vez que se referiu a essa teoria publicamente, chamou-a de "vassourinha"1.

A historiadora Elisabeth Roudinesco (2007) nos diz que não existe uma versão original da conferência proferida por Lacan sobre esse tema. No entanto, é sabido que, no meio de sua conferência, ele foi interrompido por Ernest Jones e não pôde terminá-la, e por esse motivo sentiu-se ofendido, abandonando o congresso para assistir às olimpíadas de Berlim. Ainda nos arquivos da historiadora, consta que, embora não exista o texto de Lacan na íntegra, algumas notas foram tomadas por Françoise Dolto no mesmo ano, cujo conteúdo já revela também a tese lacaniana exposta em 1938 através de seus "Complexos familiares".

Com relação à teoria do estádio do espelho, ainda é preciso que façamos algumas considerações. É sabido que Lacan parece ter-se servido da expressão de Henri Wallon2 "estádio do espelho" para formular sua teoria. Este autor foi um dos primeiros escritores a se pronunciar sobre a questão da criança no espelho; publicou, em 1931, ou seja, um ano antes da apresentação de Lacan, um trabalho sobre o estádio do espelho, com o título "Como se desenvolve na criança a noção de corpo próprio", que remete à experiência da imagem da criança no espelho, cuja representação será refletida na maneira pela qual a criança desenvolverá sua cognição.

Outra consideração importante é que Dany-Robert Dufort (1999) nos conta, em seu livro O espelho sofiânico de La Boehme, que Lacan também se apoiou em autores de grande relevância, que certamente serviram de componentes na elaboração teórica sobre o estádio do espelho. São eles: Freud, quando afirma em 1914 que o eu precisa ser desenvolvido; o anatomista holandês Louis Bolk, ao referir-se à pré-maturação; Elsa Köhler, que com a "Psicologia da Gestalt" mostra que uma gestalt (forma) seria capaz de efeitos normativos sobre o organismo; Hegel em sua A fenomenologia do espírito3 e Jacob Boehme com sua teoria do espelho sofiânico4.

Passemos então ao que versa a teoria do estádio do espelho de Lacan. Trata-se do processo pelo qual o bebê passa entre o sexto e o décimo-oitavo mês de vida, e se divide em três tempos que podemos chamar de "lógicos". No primeiro tempo, a criança vê apenas o outro no espelho; no segundo, ela compreende que não se trata do outro, mas sim da imagem que ela tem do outro, e, no terceiro, ela conclui que aquela é sua imagem.

Segundo Lacan (1949), o corpo é vivido pela criança inicialmente como um corpo espedaçado. Espera-se que a criança, após cumprir os três tempos do estádio do espelho, possa organizar, construir e constituir a imagem de seu corpo de maneira uniforme, pois esse é o tempo na vida de uma criança que revela o que ficou capturado e congelado nessa imagem: ainda que o sujeito fique preso nela por toda sua vida, essa construção é fundamental para a constituição de seu Eu.

É certo que a imagem vista pelo sujeito no espelho é um esboço primitivo daquilo que será o seu Eu. Aliás, para Lacan, é especificamente no terceiro tempo do espelho que o Eu se forma, pois, a partir daí, o bebê, após assumir a imagem de seu corpo como sendo sua, poderá identificar-se com ela. Pode-se dizer com Lacan que o Eu é, essencialmente, imaginário. Nesse sentido, Lacan parece estar de acordo com Freud e recorremos, à guisa de lembrança, a dois momentos freudianos que traduzem a harmonia de pensamento entre Freud e Lacan. O primeiro é sobre o nascimento do Eu: "[...] posso ressaltar que estamos destinados a supor que uma unidade comparável ao Eu não pode existir no indivíduo desde o começo; o Eu tem de ser desenvolvido" (FREUD, 1914, p. 93); o segundo: "o Eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal"5 (FREUD, 1923, p.40).

 

O corpo e os registros

Ao percorrer o ensino de Lacan, pesquisando sobre a questão do corpo, verifica-se que ele não a discute de maneira minuciosa, embora faça muitas menções ao corpo ao longo de seu trabalho. Lacan procura articular o corpo sempre que é pertinente, ligando-o ao tema que toma espaço e consistência em seus estudos em uma determinada época. Quando, por exemplo, ele explicita os registros do Imaginário, Simbólico e Real, termos fundamentais ao longo de seu ensino, novas formulações são associadas ao tema do corpo. Durante quase meio século, Lacan dedica seus estudos a esses registros, cada registro ganha um tempo, merecedor de sua atenção, ou melhor, há uma prevalência de ênfase (pode-se dizer que o tempo do Imaginário vai de 1936 a 1953; o tempo do Simbólico, de 1953 a 1976; e o tempo do Real, de 1976 a 1980).

Para Roudinesco e Plon (1998), essa "tópica" modifica-se ao longo do tempo, pois, de 1953 a 1970, o Simbólico exerce a primazia sobre o Real e o Imaginário (S.R.I.); em um outro momento, é o Real que ganha maior espaço, de 1970 a 1978, com o seminário sobre R.S.I. Ao chegar a essa última etapa de seu ensino, Lacan busca entrelaçar os três registros através do nó de borromeu.

O corpo que goza está presente tanto na experiência de satisfação quanto no encontro traumático com o sexo, pois estes determinam as modalidades de gozo. Ambos os momentos são derivados de uma experiência no corpo. No primeiro, tem-se a dimensão de gozo em uma experiência única de prazer, que produz, a partir de então, uma busca compulsiva de objetos que forneçam novamente o mesmo prazer; no segundo, durante uma cena sexual, o corpo da criança pode ter-se excitado, mas, como ela era ainda muito pequena e não tinha entendimento do que era o sexo, tal cena não tomou a dimensão que assume quando é reatualizada no futuro, quando, então, suscitada por outra vivência semelhante, será ressignificada enquanto trauma. Nesse sentido, o corpo Real estabeleceu-se antes e precisará, diante de novos acontecimentos, contar com o recurso do Imaginário e do Simbólico. Mas e o gozo?

O termo "gozo" é um conceito que pertence ao campo jurídico, define o direito de ter um bem, desde que o sujeito possa responsabilizar-se por ele. No campo psicanalítico, podemos dizer, de forma sucinta, que o prazer está ligado à repetição de experiências da infância, e o gozo é o que está para além do princípio do prazer e indica, de alguma maneira, transgressão.

Pensamos que a melhor maneira de explicarmos o gozo é lançando mão da noção de desejo. Sabemos que as proibições são aquelas que mais aguçam o desejo humano, certamente também o proibido pode levá-lo ao deleite quando é possível desfrutá-lo. Por outro lado, o desejo é, em Freud, resposta do arranjo edipiano, pois é o pai o responsável por deixar o sujeito numa posição de desejante após interditar a mãe. Nesse sentido, o pai ou aquele que fizer sua função será aquele responsável por interditar o gozo e cabe ao sujeito fazer uma espécie de arranjo simbólico do que ficou dessa fase. Portanto, se há proibição, e o sujeito sabe dela, há espaço para o desejo e, nesse sentido, não há espaço para o gozo. Ter acesso ao prazer seria apenas se deliciar com uma prova, uma degustação do que pôde ser a relação inicial com a mãe, portanto, do prazer, do qual, dito à maneira freudiana, conhecemos apenas um "princípio"; o excesso, a transgressão, o deleite e o desfrute estão além do princípio do prazer, estão portanto do lado do gozo.

Se o desejo tem por característica ser inesgotável, isso por si só nos mostra o quanto ele é igualmente insaciável. Assim, não há objeto que possa satisfazê-lo, embora o sujeito insista em imaginariamente achar que se satisfará com o consumo de pequenos objetos oferecidos pelo consumo.

Lacan, em seu Seminário 20, indica inicialmente que o sujeito quer continuar a gozar e a não querer saber o motivo pelo qual goza. Mas, afinal, o que é o gozo e para que ele serve? De início, toma-se de pronto a resposta lacaniana: "o gozo é aquilo que não serve para nada" (LACAN, 1985, p. 11). No entanto, o que a clínica nos indica é que há um excesso de gozo impossível de se traduzir em palavras.

Por outro lado, são intrigantes duas passagens de Lacan: primeiro quando afirma que, para gozar, é preciso ter um corpo, e, segundo, quando diz que um corpo pode ser deserto de gozo. O que será que Lacan quis dizer com isso?

Sabemos que, a partir do século XVII, o corpo aparece como máquina; parece que é a esse corpo que Lacan se refere como "deserto de gozo". Nesse sentido, os excessos de cirurgias estéticas são apontados por Colette Soler (2002) como algo análogo ao que ocorria ao escravo que fabricava um objeto para seu senhor. Diz ainda sobre o uso de órgãos de plástico, como silicones e próteses, que se trata de uma desvitalização do corpo, que, de certo modo, é comandado de maneira mecânica, ou seja, há um corpo, mas um corpo dessubjetivado. Nesse sentido, retoma-se a expressão de Lacan, "corpo vazio de gozo", usada em 1957, no texto "A psicanálise e sua relação com a realidade".

O sintoma leva gozo ao corpo, as enfermidades orgânicas são exemplos disso. O corpo deserto de gozo reduz a excitação psíquica ao nível mínimo. Quando Lacan se refere à incorporação do significante ao corpo, mostra que a linguagem subtrai algo do gozo. Interrogamos, então, qual gozo fica em um corpo deserto? Resposta: o gozo que se fixa nos furos do corpo, ou seja, nas zonas erógenas – são as chamadas, ao modo freudiano, pulsões parciais.

Há, então, o efeito do significante sobre o organismo, quando ele ganha as insígnias da pulsão, pois, desse modo, o corpo passa a ser corpsificado. Nesse sentido, podemos dizer que só quem tem um corpo goza dele, mas para isso é preciso apropriar-se dele através da linguagem. Por isso, para gozar, é preciso ter um corpo.

Lacan (1976), discutindo sobre o corpo próprio, interroga: "Quem sabe o que se passa no seu corpo?", e diz que o sentido do corpo, "para alguns, chega a ser o sentido que dão ao inconsciente" (LACAN, 1976, p. 145). Em sua conferência intitulada "A terceira", Lacan (1974) diz: "A angústia é justamente alguma coisa que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo" (LACAN, 1974, p. 65). Pode-se dizer, com Lacan, que o corpo tende a suportar a angústia, mas cada sujeito tem seu modo particular de manobrá-la. Até onde o corpo suporta?

Lacan busca contribuições em Freud sempre e, em determinados momentos de sua elaboração, em Lévi-Strauss. Lembremos da "Eficácia simbólica", de Lévi-Strauss (1949/1996, p. 216), que pode ser considerado fonte do simbólico ou pelo menos do que aqui discutimos sobre o corpo simbólico. Nesse texto, Lévi-Strauss mostra que o corpo simbólico pode ser subvertido pela linguagem. Vale lembrar um exemplo: uma parturiente, devido às dificuldades de seu parto, pede o auxílio de um xamã para afastar um espírito (Muu) que, segundo a crença, impossibilitava o nascimento do filho. Somente uma canção xamanística poderia auxiliá-la.

Nessa perspectiva, a eficácia da palavra sobre os sintomas patentes nos corpos das histéricas devia-se não apenas ao saber médico de Freud, mas também e principalmente à transferência que suas histéricas com ele estabeleciam. Segundo Lacan (1970), em Radiofonia: "O signo basta para que esse alguém faça da linguagem apropriação como de um simples instrumento; da abstração, eis aí a linguagem como suporte [...]" (LACAN, 1970, p. 401). Interessante o fato de Lacan conceber a linguagem como suporte. O que então o corpo suporta quando a linguagem fracassa? Até que ponto a linguagem pode transformar o corpo? Será que a ciência dá conta do insuportável?

Como se produz o efeito da linguagem sobre o corpo?

São muitas questões que surgem no que concerne ao corpo...

Lembremos os ensinamentos freudianos, segundo os quais há um estreitamento entre corpo e inconsciente; e se Lacan nos diz que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", então é possível dizer de uma aproximação entre corpo e linguagem. É certo que, desde o momento inaugural, na psicanálise, Freud demonstra como e por que um tratamento verbal poderia ser efetivo na cura de sintomas somáticos tais como os que se apresentam na histeria. Mas ousamos dizer que o corpo em sua dimensão simbólica não é um recurso de todo sujeito. Podemos interrogar, o que o corpo é capaz de suportar em função da imagem? Esclareçamos que, ao introduzirmos a palavra "suporte", pensamos em suporte tanto no sentido de sustentar, como, por exemplo, "a linguagem dá suporte à imagem do corpo", como também em suporte associado a aguentar, sofrer, "o sujeito suporta maltratar seu corpo em função de sua imagem".

Lembremos dois autores, primeiro Lacan, em seu Seminário 23, quando nos diz que "as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer" (LACAN, 2005, p. 18) e depois Colette Soler (2002), quando interroga: como é possível que a linguagem tenha efeitos sobre o corpo? Podemos verificar que aquilo que escapa à língua é transferido ao corpo, por exemplo, os sintomas corporais em algumas histéricas freudianas: Anna O., Dora e Elisabeth.

Retomando Lacan, em "Função e campo da fala e da linguagem" (1953), o corpo pode ser estudado na dimensão do Simbólico quando ele ganha a roupagem do significante, quando remete à linguagem simbólica e dá a entender que algo de um sujeito, ainda que no discurso do outro, já se faz presente, mesmo antes de nascer. Nos dizeres lacanianos: "os símbolos envolvem a vida do homem [...] antes que ele venha ao mundo, aqueles que vão gerá-lo em ‘carne e osso', trazem em seu nascimento [...] o traçado de seu destino" (LACAN, 1998, p. 280).

Para Lacan (1953), a linguagem tem um corpo quando a fala produz um efeito no outro, isso ele chama do "dom de linguagem", dizendo que ela "é um corpo sutil, mas é corpo" (ibid., p. 302).

Na perspectiva lacaniana, há, na palavra, uma força, a ponto de ela produzir um efeito no Simbólico. Essa é a aposta, mas, "mais ainda, as próprias palavras podem sofrer lesões simbólicas, realizar os atos imaginários dos quais o paciente é o sujeito" (LACAN, 1998, p. 302). Antonio Quinet (2004) nos lembra da charada proposta por Lacan, "o que é que tem um corpo e não existe? Resposta: O Outro, cujo corpo simbólico é constituído de linguagem..." (QUINET, 2004, p. 60). Dessa maneira, só quem tem acesso à linguagem tem um corpo. Dito de outro modo, só aquele que veste a roupagem do significante tem um corpo, esse tenderá ser diferente para cada sujeito. Por isso, cada sujeito tratará seu corpo conforme sua estrutura clínica, mas seria pertinente lembrarmos que não apenas um sujeito psicótico pode arruinar seu corpo, como bem lembra o Marquês de Maricá: "uma cabeça má arruína o corpo inteiro" (MARICÁ, 1940, p.342).

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência:
Rua Padre Marinho, 49/1006 – Santa Efigênia
30140-040 – BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3261-7602
E-mail: maravc@terra.com.br

RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010

 

 

Sobre a Autora

Mara Viana de Castro Sternick
Psicanalista do Campo Lacaniano de Belo Horizonte. Doutoranda em Psicanálise pela UERJ. Professora da Pós-Graduação em Psicopedagogia de UEMG.

 

 

1 Dufour (1999) nos sugere que Lacan coloca sua acepção nos utensílios de limpeza para "reorganizar a casa de Freud" e comenta não ter sido em vão a evocação do estádio do espelho 30 anos depois, justamente quando ele está ministrando um seminário sobre O ato psicanalítico.
2 Embora Roudinesco afirme que não se sabe se houve algum reconhecimento da parte de Wallon por Lacan, Dany-Robert Dufour (1999) considera que Lacan o fez em seu texto sobre "Agressividade em psicanálise" datado de 1948, publicado em seus Escritos, em que enfatiza o "caráter notável das contribuições de Wallon".
3 No texto de Hegel A fenomenologia do espírito, tem-se, em uma das partes, o título: "A verdade da certeza de si mesmo". Além disso, neste texto está desenvolvida a dialética resolutiva do mestre e do escravo e é apresentado o advento da consciência de si. Há, ainda, na proposta hegeliana, o mundo invertido: "o idêntico é não-idêntico a si e o não-idêntico é idêntico a si". Nesse mundo avesso, os termos são desdobrados e é precisamente essa lógica do Um-dividido que está em jogo no estádio do espelho.
4 Jacob Boehme faz parte dos nomes que estudaram a história do pensamento filosófico e científico nos séculos XVI e XVII, com a qual Koyré integrou, na história do pensamento, uma rede de místicos e acabou obtendo diferentes concepções religiosas da época. Em sua obra, o espelho está em jogo. Diz que se o homem é feito a partir da imagem de Deus, mas Deus não tem imagem, Deus só pode, com efeito, conhecer a Si mesmo. Assim, Deus se exprime no homem, criado à sua imagem.
5 Pode-se pensar o fato de os analistas não se terem interessado pelo estudo do corpo por lhes ter parecido que estudar o corpo seria equivalente a estudar o Eu. Certamente, o fato de o Eu ter sido o objeto de estudo de Anna Freud acabou por afastar os analistas lacanianos do tema do corpo durante muito tempo.

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