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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte jun. 2010

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

Da psicose extraordinária à psicose ordinária

 

From the extraordinary psychosis to ordinary psychosis

 

 

Nadja Ribeiro Laender

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
International Federation of Psychoanalytic Societies

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Este artigo faz um percurso da psicose extraordinária, com seu quadro nosológico bem definido e ancorado na primeira clínica de Lacan, até a psicose ordinária que prescinde de um desencadeamento para ser definida como uma psicose.

Palavras-chave: Psicose extraordinária, Psicose ordinária, Nome-do-pai, Sintoma, Sinthoma, Forclusão, Complexo de Édipo.


Abstract

This article discusses the difference between extraordinary psychoses with its well defined nosology and articulated by Lacan first clinic and the ordinary psychosis that doesn't need to have delirium or hallucination to be defined as psychosis.

Keywords: Extraordinary psychosis, Ordinary psychosis, Name of the father, Symptom, Sinthome, Forclusion, Oedipus complex.


 

 

Freud ao teorizar os caminhos da neurose esbarra, frequentemente, no terreno da psicose. Em vários dos seus textos mais axiais como "Sobre o narcisismo: uma introdução", "Luto e melancolia", "O inconsciente", "Neurose e psicose", o mecanismo de funcionamento da mente humana se norteia tendo como referência o problema da paranoia, da melancolia e a maneira singular da estruturação do inconsciente em casos de psicose. Apesar de se interessar pela questão, ele preconiza a não utilização da técnica analítica nos tratamentos de casos psicóticos.

Na história da psicanálise, a psicose paradigmática é o caso Schreber com seus delírios e alucinações, que demonstram de forma exuberante os transtornos de linguagem e de pensamento e não deixam nenhuma margem de dúvida quanto ao seu diagnóstico ser considerado como uma psicose. Ao quadro com características inequívocas de psicose denominaremos de psicose extraordinária. Hoje em dia, o que aparece com mais frequência em nossa clínica é a psicose menos florida, sem muito alarde, o que não impede a existência de casos schreberianos. É a psicose compensada, a psicose medicada, a psicose não desencadeada, a psicose em análise, a psicose que desafia o analista quanto ao seu diagnóstico. Ao tentar conjugar as investigações psicopatológicas pelas quais as psicoses se apresentam na atualidade e uma abordagem mais de acordo com o nosso tempo, algumas instituições de orientação lacaniana se utilizam do termo psicose ordinária para tentar delimitar e teorizar esta nova forma de apresentação das psicoses. Com o conceito de psicose não desencadeada ou psicose ordinária se pretende definir um funcionamento psicótico do sujeito sem que se possa localizar um momento efetivo do desencadeamento da psicose. De fato, o desencadeamento revela, sem nenhuma dúvida diagnóstica, a existência de uma estrutura psicótica do sujeito. Quando ocorre o desencadeamento, ele produz efeitos clínicos (delírios e alucinações) inerentes ao que Freud nomeou como um "inconsciente a céu aberto" e Lacan explicou como sendo o retorno no real daquilo que não foi simbolizado devido à ausência de significação fálica.

A psicose ordinária, por prescindir do desencadeamento e de toda a sintomatologia inerente a um quadro clínico de psicose, coloca-se como um desafio para a clínica psicanalítica. Justamente por não se apresentar de forma tão extraordinária, o seu diagnóstico pode dar ensejo a múltiplas especulações: seria um obsessivo grave, uma histérica fronteiriça, um caso borderline? Se nos embasarmos no que se chama hoje de primeiro Lacan, a clínica da psicose possui um operador teórico de enorme relevância: a presença ou a ausência do significante Nome-do-Pai.

 

A forclusão e o nome do pai

A forclusão do Nome-do-Pai designa o mecanismo essencial da psicose e equivale à não inclusão da norma edipiana. O que está excluído do lado de dentro está incluído do lado de fora e retorna sob a forma de delírios e alucinações. Em "Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" a importância do Nome-do-Pai e as consequências de sua ausência são evidentes.

"Para que a psicose se desencadeie, é preciso que o Nome-do-Pai, verwofen, foracluído, isto é, jamais advindo no lugar do Outro, seja ali invocado em oposição simbólica ao sujeito.
É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e o significado se estabilizam na metáfora delirante" (Lacan, 1988: 584).

Lacan faz a releitura do complexo de Édipo freudiano que havia sido relegado a um segundo plano pela psicologia do ego e se encontrava restrito aos mecanismos de defesa do ego, ao narcisismo e seus fenômenos imaginários. Ele retoma o Édipo como um fator necessário para que o sujeito seja introduzido no mundo simbólico, demonstrando a importância do Nome-do-Pai na estruturação do psiquismo humano como fator essencial da estruturação edipiana. Se não há Nome-do-Pai o sujeito fica com o registro simbólico comprometido, algo falta. Lacan, no Seminário 3, As psicoses, se utiliza de uma imagem de um tamborete que necessita ao menos de três pés para ficar em pé. Um tamborete com dois pés não se equilibra, o terceiro pé faz com que ele fique estável. Traduzindo para o psiquismo humano e utilizando o esquema L, os dois pés fazem o eixo do imaginário (a----a') e é o terceiro pé que dará a sustentação necessária para mantê-lo de pé, resultando o triângulo a, a', A.

O pai, ao intervir junto à mãe, barra a relação dual e imaginária existente entre a mãe e a criança, proibindo-a de reintegrar o seu produto e sinaliza para a criança que ela não é o objeto que é suposto faltar à mãe, ou seja, o falo. Esta intervenção faz com que o pai apareça como o detentor do falo, aquele que é suposto deter o objeto de desejo da mãe. O processo de simbolização acontece devido a esta mediação do pai que produz a interdição do desejo da mãe e dá ensejo ao aparecimento da instância paterna como metáfora da lei de interdição. "Mas, o ponto em que queremos insistir (...) é a importância que ela [a mãe] dá à palavra dele – digamos com clareza, a sua autoridade – ou, em outras palavras, do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei" (LACAN, 1988: 585). Assim, a instância paterna torna-se a metáfora do Pai, isto é, aquilo que no discurso da mãe representa o pai: o Nome-do-Pai. Significa, também, que o Desejo da Mãe se encontra em outro lugar e que ela está submetida a uma lei, melhor dizendo, o Nome-do-Pai é o novo significante que vem barrar o Outro onipotente e sem falhas. Ele substitui para a criança o significante do desejo da mãe, é o significante da lei no Outro e produz a significação fálica que testemunha a inscrição da castração e, por conseguinte, a introduz no simbólico como sujeito desejante. A metáfora paterna demonstra que o sujeito, por possuir a inscrição do Nome-do-Pai, pode interpretar o desejo da mãe em termos de significação fálica.

Se o Nome-do-Pai inaugura a simbolização para o sujeito, a forclusão do Nome-do-Pai na psicose corresponde à não inclusão da lei simbólica, indicativo de que o complexo de Édipo não conseguiu finalizar o seu percurso com o advento da castração simbólica. Sendo assim, o Outro continua onipotente, não barrado e, por isto, é entendido como consistente e absoluto. A posição estrutural do sujeito na psicose é a de ser o objeto do gozo do Outro, que reproduz o primeiro tempo do Édipo, o da identificação imaginária da criança com o falo que completa a mãe e a coloca (a criança) como objeto do uso caprichoso da mãe. O sujeito na psicose fica à mêrce dos significantes devido à ausência da metáfora paterna que possibilitaria a ordenação de um novo campo, e está preso num momento anterior à inauguração da cadeia significante. Explicando melhor, a criança ao nascer se encontra imersa num mar de significantes. São incontáveis estimulações que, captadas pela percepção, se inscrevem no aparelho psíquico da criança, formando um enxame (essaim) de S1, todos eles destituídos de significações. A partir da extração de um S1 qualquer, um campo de significações se organiza, dando início, com a introdução de um S2, ao deslizamento da cadeia de significantes com a produção de significação. Isto não ocorre na psicose. A ausência da metáfora paterna impede que o S1 se conecte a um S2, o intervalo entre significantes está colabado, impedindo a significação simbólica de advir, demonstrado de forma tão dramática nos delírios e alucinações, representativo de um retorno no real daquilo que não foi simbolizado.

A ausência da metáfora paterna aparece, então, como um traço eficaz para o diagnóstico de psicose. Nome-do-Pai sim indica uma neurose. Nome-do-Pai não indica uma psicose. Se é uma psicose, teremos a ocorrência de P zero (forclusão do Nome-do-Pai) e zero (ausência de significação fálica e os efeitos ordenadores do falo). P zero pode se presentificar como alucinações ou alterações de linguagem, exemplificadas pelos fenômenos de eco do pensamento, diversas formas de automatismo mental como palavras que se repetem sem significação, neologismos e a questão da certeza inabalável que todo psicótico carrega em relação a seus delírios ou alucinações. zero por se caracterizar pela ausência da significação fálica que permitiria a pessoa se localizar como homem ou como mulher na questão da sexuação, retorna como ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao corpo, nas automutilações e vivências ligadas ao corpo que vão desde se sentir manipulado por terceiros até ter a certeza de que já está morto e em estado de decomposição (DrumMond, 2000: 10).

Algumas vezes, antes do primeiro surto, o psicótico encontra-se numa posição dual com a mãe, está no eixo do imaginário a a' descrito acima no esquema L. O pai da realidade, por não ter função simbólica, é apenas mais um entre os outros que povoam o seu imaginário ou sequer existe. O desencadeamento do surto psicótico marca esse tempo de desestruturação da cadeia significante decorrente do encontro com Um-Pai que aparece em posição terceira e desestabiliza a dupla imaginária mãe-filho. O encontro com Um-Pai pode se dar quando o sujeito tem a primeira relação sexual, assim como quando também é chamado a exercer a função simbólica de pai tanto na paternidade quanto em alguma atividade que corresponda à função simbólica paterna. É no momento em que o Nome-do-Pai é chamado a significantizar o desejo do Outro que se instalam os fenômenos alucinatórios e delirantes.

Na ausência de referências simbólicas, o psicótico se utiliza de identificações retiradas de seu cotidiano devido à pregnância do registro do imaginário e da relação especular com que ele medeia sua vida. É o que Lacan vai nomear como compensação imaginária, que funciona como um estabilizador da posição do psicótico. Podemos chamá-la também de prótese imaginária, pois ela permite ao sujeito psicótico uma identidade que supre o Édipo ausente, embora não garanta uma triangulação simbólica. O sujeito continua fixado numa relação especular, sem uma subjetivação efetiva, preso ao eu ideal, que produz um tipo de identificação mimética que reproduz massivamente o objeto da identificação. Não é incomum ele se identificar com figuras de liderança, como professores, médicos, assim como também atores, políticos ou santos. Esta relação faltosa com o simbólico explica os fenômenos de transitivismo, projeção, rivalidade, onde identificação e erotização se confundem.

 

Do sintoma como metáfora ao sintoma como função

Após localizarmos a importância do Nome-do-Pai na estruturação do aparelho psíquico e quais as consequências de sua ausência, faz-se necessário demonstrar que até mesmo a leitura feita do sintoma se modifica com deslocamento do enfoque dado à presença ou ausência do Nome-do-Pai.

Se Freud em seus primórdios entendia o sintoma como uma reminiscência de um trauma efetivamente ocorrido, logo a seguir ele questiona a facticidade do trauma. Ocorre, então, um desdobramento teórico e o sintoma, apesar de continuar a ser um monumento ligado a um evento traumático não necessariamente verdadeiro, demonstra não só a força latente que impulsiona o psiquismo humano como também a parte que revela a estrutura do funcionamento mental. O sintoma por ser sobredeterminado ilustra o conflito entre as instâncias psíquicas, possuindo um sentido latente à espera de decifração. Ele é como o sonho e o ato falho, mensagem do inconsciente carregada de desejo. Tanto para Freud quanto para Lacan, o sintoma encerra em seu bojo um sentido recalcado que inevitavelmente leva ao complexo de castração, e assim determina destinos diferentes no final de cada análise.

Ao fazer a releitura da obra freudiana, Lacan priorizou a palavra com as suas múltiplas significações. Ao registro do simbólico concernem a questão paterna, a delimitação do registro do real e o domínio do registro do imaginário. O inconsciente é estruturado como uma linguagem e o sintoma possui uma mensagem a decifrar. O tratamento se conduz pela liberação da fala plena trazida pelo inconsciente quando se consegue transformar o enunciado (aquilo que está por cima da barra, sentido manisfesto) em enunciação (o que está sob a barra, sentido latente, carrega a verdade do sujeito). O sintoma é linguajeiro e o recurso da assonância semântica é a via régia para liberar a verdade subjacente ao sintoma. Posteriormente, Lacan vai trabalhar a importância da letra e do gozo em detrimento da significação. Assim, o ensino de Lacan possui duas vertentes bastante distintas, embora não excludentes: uma estruturalista e outra borromeana. A primeira considerada descontinuísta e categorial, e a segunda fundada sobre a foraclusão generalizada que deixa de evidenciar o Nome-do-Pai como referência princeps para a questão diagnóstica. Enquanto na primeira clínica a referência norteadora era o Nome-do-Pai – se ele estivesse presente a estrutura seria a neurose e a sua ausência indicaria uma psicose –, na segunda, o que se destaca é a forma particular com a qual cada sujeito faz o enodamento dos três registros, mas, ainda assim, a referência ao Nome-do-Pai permanece. A hiância deixada pela clínica estruturalista propicia o aparecimento de casos em seus intervalos que se perdiam no limbo movediço da falta ou do excesso de sintomas, os quais acabavam por ser diagnosticados como borderlines, casos de difícil acesso, normopatas.

Na primeira clínica, o Nome-do-Pai era entendido como uma categoria representável, na medida em que era ele que constituía efeitos sobre a simbolização da castração, e por isto mesmo a metáfora paterna era considerada como um atributo. Na segunda clínica, com a pluralização dos nomes do pai, a metáfora paterna torna-se uma função. Essa passagem fundamental da ideia de metáfora para a ideia de função é o que marca a diferença da primeira para a segunda clínica. Isto acontece tanto em relação ao sintoma (visto também como função) quanto em relação ao pai, que aparece inclusive como uma função de gozo, confundido com a dimensão do real. Um pai que antes era redutível à função simbólica.

Quando o pai deixa de ser o fator de estruturação e de ordenação da cadeia significante, o que vem ficar com a função de articulação do sujeito com a linguagem é o sintoma, na medida em que o sintoma não é mais apenas metáfora, e exerce a função de cifrar o gozo do sujeito. Melhor dizendo, ele se torna aparelho de sintoma, aquilo que assegura a articulação entre uma operação significante e suas consequências sobre o gozo do sujeito. Ao localizar o gozo, o sinthoma dá uma significação a este gozo e o circunscreve, amarrando a cadeia significante de forma singular que estrutura o psiquismo do sujeito.

A partir daqui, o Nome-doPai é equivalente ao sintoma. O desafio, o horizonte da prática analítica considerada como a segunda clínica é produzir para cada sujeito uma aparelhagem de sintoma própria, singular, como Lacan fez com Joyce, onde ele encontrou um sistema de amarração a quatro e se estabilizou.

O sinthoma deixa de ser entendido enquanto metáfora devido à inexistência de uma mensagem embutida, latente nas expressões sintomáticas desse sujeito. Ao contrário, o que temos é a dimensão do real presentificada nas inúmeras atuações, adições e compulsões que aparecem em nossa clínica e por nós nomeadas como novos sintomas. Em Freud temos a noção do sintoma enquanto metáfora, mas também temos o viés do sintoma relacionado com a pulsão representado pelas reações terapêuticas negativas e compulsões à repetição. Há uma tendência articulada diretamente ao gozo e o fato de se ter uma satisfação substitutiva não quer dizer necessariamente que há uma metáfora. É muito mais do lado do gozo do sintoma que pode aparecer na dimensão do ato dirigido como uma ação sobre o corpo, num registro metonímico.

O que vai ser importante na segunda clínica é menos o efeito de determinação, ou seja, a dominância do simbólico sobre os três registros, do que as maneiras como os registros vão fazer a amarração. Na primeira clínica temos uma perspectiva na lógica da determinação e na segunda temos uma perspectiva inteiramente calcada na lógica das amarrações e dos enlaçamentos. Se uma amarração sintomática pode enlaçar os registros sem a presença do Nome-do-Pai, temos a equivalência entre o sintoma e Nome-do-Pai. Um sintoma pode assumir a função do Nome-do-Pai e o Nome-do-Pai pode ser um sintoma. O que nos permite dizer que ponto de capitonê pode ser tanto o nome do pai como o sintoma. "O ponto de capitonê generaliza o Nome-do-Pai. Mas é uma abreviação: o ponto capitonê em foco é menos um elemento do que um sistema de atar, um aparelhamento fazendo ponto capitonê, fivela, grampo" (deffieux, 1999: 105).

Nós vamos dizer que esta concepção da clínica do sintoma surge como uma contraposição à primeira formalização dos tipos de sintomas denominada descontinuísta, porque exatamente a clínica descontinuísta se baseia no fator ordenador do Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai tido como um elemento que faz parte do sistema; ao mesmo tempo em que ele está fora, ele está dentro, mas está dentro de maneira a ordenar os elementos do sistema.

Já na clínica do sintoma, na clínica da aparelhagem do sintoma, na clínica borromeana, nós vamos encontrar uma perspectiva continuísta, que enfatiza não as oposições, mas as gradações. O que interessa não é o fator diferencial, não é o elemento do sistema, mas sim o fato de que há diversas formas de aparelhamento do gozo. O que diferencia, portanto, não são mais as oposições, mas as distintas espécies, formas, meios de aparelhamento, as formas de enlaçamento dos diferentes registros.

A grande inovação de Lacan na segunda clínica foi tratar a variabilidade e as gradações dos tipos de sintoma, e recorrer ao uso das topologias dos nós. Com relação à variabilidade do sentido, não é mais o elemento ordenador que interessa, mas o próprio sistema, a própria configuração, a própria maneira em que se dá, em que ocorre o chamado ponto de capitonê. As formas de sentido, a variabilidade de sentido do sintoma continua existindo, a varité1 do sintoma continua existindo, mas ela não decorre mais da presença desse efeito organizador do Nome-do-Pai, mas decorre sim das distintas formas de amarração e de grampeamento dadas pelo aparelho do sintoma. A varité do sintoma já não tem relação com o sentido, mas sim com a verdade do sujeito. Uma verdade que é variável, que retorna das falhas do saber que denotam a variedade de verdades que estão envolvidas no sintoma. Sob esta ótica, o elemento só interessa levando em consideração o sistema. Então, os diversos elementos presentes não interessam mais. Eles não devem ser considerados como na sua própria lógica interna, mas devem ser considerados na medida em que fazem parte de um sistema de organização, de articulação.

Então o Nome-do-Pai vale menos pelo fato de constituir-se como o elemento crucial para produzir uma ordenação do que pela sua equivalência aos sintomas. Se o fator crucial do Nome-do-Pai com relação aos outros elementos era preservar o seu valor transcendente do sistema, agora ele vale como sendo um equivalente à própria aparelhagem do sintoma. Ele assume um valor inerente, intrínseco ao próprio sintoma.

A sessão clínica de Aix-Marseille-Nice trabalha os neodesligamentos como uma expressão maior da psicose ordinária. Eles nos convidam a colocar neste grupo os casos considerados como atípicos se levarmos em conta a forma tipo abordada em Uma questão preliminar, cujo paradigma é o desencadeamento schreberiano devido ao encontro com Um-pai, tendo como consequência Pzero e Phi zero. Os neodesencadeamentos correspondem ao desprendimento da amarração que mantinha os registros juntos, ao enfraquecimento do que fazia a ancoragem do sujeito e às soluções feitas pelo sujeito de significantizar o real e o gozo. Algumas formas levam em conta a temporalidade, e o desencadeamento se revela como um momento de concluir, porque "não somente há todos os fenômenos elementares que precedem, mas precisa-se mostrar como todos eles estão em relação com o desencadeamento" (Arcachon, 1997: 153). Assim, a forma como aquele sujeito constrói sua ligação com o Outro é uma boa indicação para se perceber as várias maneiras encontradas por ele para poder se situar frente ao gozo. Em outras formas, a estrutura do desencadeamento se evidencia pelo encontro com o gozo do Outro, sentido como totalmente enigmático e reduzindo-o ao lugar de objeto, mas é interessante notar como o sujeito se desembaraça e as escolhas que faz para poder remanejar o buraco que se abriu e fazer um nova ligação.

Jacques-Alain Miller, em Arcachon, ao final da conversação, esclarece que a segunda clínica não abdica do Nome-do-Pai enquanto metáfora. No entanto, é necessário entender a metáfora não como substituição mas como função. Assim,

"é mais banal que os outros (...) Somente que, como instrumento, é assim mesmo o mais eficaz. Aliás, notem que Lacan acentuou o saber como fazer aí com o sintoma, ele não reclama outro estatuto para o Nome-do-Pai, pois ele fala em servir-se dele. Pois bem, saber como fazer aí com o sintoma é equivalente a servir-se do Nome-do-Pai. Quer dizer, é da ordem do instrumento" (MILLER, 1997: 186).

O sinthoma se configura como um sintoma que tem como função fazer com que as coisas fiquem juntas, enodando o real, o simbólico e o imaginário. O Nome-do-Pai por ser apenas mais um tipo de sinthoma pode ser considerado como uma das diversas soluções encontradas pelo sujeito para fazer o seu aparelho de sintoma funcionar. O Nome-do-Pai pode ser considerado tanto como mais um instrumento de amarração dos registros quanto pode ser aquele que define sua estrutura. Vai depender do uso que se faz dele.

Na Convenção de Antibes, a sessão clínica de Lille escreveu sobre o tema "Pesquisas sobre o início da psicose" e abordou a questão de entradas na psicose sem um desencadeamento típico, onde a presença da forclusão do Nome-do-Pai passa quase despercebida devido à ausência de distúrbios de linguagem, aparecendo muito mais na vertente de Phi zero, ligada às questões referentes ao sexo e ao corpo. Somente após um exame acurado, perceberam-se ideias delirantes discretas, assim como certas passagens ao ato (automutilação) e alguns tipos de disfunções corporais (MOREL; WACHSBERGER, 1999: 71-72).

Indicativos de uma ausência do Nome-do-Pai e de um suporte simbólico. Evidenciam a posição dual do sujeito que pode chegar até a representação mimética do outro. Se há um ruptura deste par imaginário, a psicose que estava sustentada por esta identificação se desestabiliza e ocorre o surto psicótico. Esta aderência imaginária remete, ainda, ao conceito de compensação imaginária, descrito por Lacan em seu Seminário 3, As psicoses. Igualmente, a pessoa se utiliza de próteses imaginárias para compensar a ausência de simbolização. A relação especular é que possibilita o não desencadeamento do sujeito.

A sessão clínica de Aix-Marseilles, na Conversação de Antibes, também teoriza esta questão nomeando-a como sobreidentificação. Ela pode ser observada em sujeitos pré-melancólicos que apresentam toda uma série de traços muito mais normativos do que vinculados a questões do ideal do eu. Uma contradição entre dois traços frequentemente leva ao desencadeamento. Esses traços são traços impregnados pelo rigor psicótico, indicando uma identificação literal ao traço significante e não com a sua função de representação. Esses traços são tomados do Outro, traduzem uma cópia de um tipo de ideal, não sendo advindos do eu (moi), mas da norma social. Trata-se de uma efetividade imaginária que leva a uma articulação da identidade do sujeito e se produz pela equivalência do sujeito a cada um dos seus traços sendo, portanto, compatível com o registro do imaginário e a adequação biunívoca entre o sujeito e sua imagem.

A suplência ocorre na articulação do imaginário e do real, possibilita a sua montagem e desmontagem e explica a estabilidade deste tipo de suplência. Apesar disto, o desencadeamento (sempre latente) pode ocorrer por um motivo corriqueiro, situado, às vezes, mais no imaginário do que no simbólico, e sua ocorrência é devido à perda da cobertura imaginária que desestabiliza o sujeito e provoca a eclosão do desencadeamento. A cura se dá pela nova aderência imaginária que irá reconstruir suas identificações.

Parece-nos que a descrição feita acima reafirma e corrobora a tendência detectada na clínica das psicoses, de sujeitos que, por aderirem a ideais impostos pela cultura, conseguem de alguma maneira, apesar da ausência da metáfora paterna, se manter instáveis se apropriando das insígnias dos Outros, fabricando para si vestimentas feitas com remendos imaginários que intermedeiam seus laços sociais e assim, sustentados nessas identificações, os consideramos mais ou menos normais, passando despercebidas as suas pequenas estranhezas ou manias.

As psicoses ordinárias abrem um campo fecundo de perguntas, pesquisa e teorização sobre os limites, as novas fronteiras que separam a loucura da normalidade, a psicose da neurose, que nos ajudam a identificar e definir os sinais, por vezes mínimos, presentes em casos que certamente ficariam à margem da intervenção psicanalítica.

 

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Endereço para correspondência:
Av. Francisco Sales, 1614/604
30150-221 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3281-9689
E-mail: nadjalaender@yahoo.com.br

RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010

 

 

Sobre a Autora

Nadja Ribeiro Laender
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro da International Federation of Psychoanalytic Societies.

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