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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte June 2010

 

TEORIA PSICANALÍTICA

 

A melancolia e suas interfaces com o objeto a1

 

Melancholy and their interfaces with the object "a"

 

 

Breno Ferreira Pena

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O objetivo deste trabalho é investigar a melancolia buscando suas interfaces com o supereu, enquanto objeto a, voz. Para tanto, o autor faz uma exploração do tema em Lacan procurando obter as bases teóricas que justifiquem e fundamentem essa relação no ensino lacaniano.

Palavras-chave: Melancolia, Supereu, Gozo, Objeto a, Voz.


Abstract

This paper inteds to search the interface between the superego as the objetct voice in melancholy. The author bases his work in Lacan to justify and to establish the relations between theory and transmission.

Keywords: Melancholy, Superego, Enjoyment, Object a, Voice.


 

 

Para se pensar as interfaces da melancolia com o objeto a, é necessário primeiro especificar que se trata desse objeto enquanto supereu, como formulado por Lacan no Seminário da angústia. Neste trabalho, portanto, o supereu será pensado a partir de sua dimensão mais real, onde essa instância exige o gozo em uma dimensão fora do significante. Um gozo Outro sem a referência fálica, o que torna a ação do supereu absolutamente mortífera, como pode-se perceber nos casos de melancolia. O surto melancólico com sua culpa delirante e seu empuxo à morte evidencia a ação do supereu em sua vertente mais real, tendo como consequência, muitas vezes, até mesmo o próprio ato suicida. Assim, com o intuito de explicitar as vicissitudes do supereu como objeto a, junto à melancolia, se investigará essa relação no ensino lacaniano.

Para pensar e desenvolver essa ideia de um supereu real, entretanto, foi preciso recorrer a outros autores, de orientação lacaniana, como Miller (1986) e Gerez-Ambertín (2003) que ao trabalharem com esse tema fizeram uma divisão, onde é possível teorizar o supereu nas dimensões real, simbólica e imaginária. Lacan não faz essa divisão do supereu de maneira explícita, no entanto, como o objetivo deste texto é pensar o supereu nessa perspectiva mais real, com suas incidências sobre a melancolia, a ênfase será dada ao supereu lacaniano como objeto a, voz.

Lacan (1962-1963/2005) descreve o objeto a como supereu no Seminário da angústia, e o especifica a partir do objeto voz que, segundo ele, se apresenta no real. Com isso, como frisa Miller, abre-se também a possibilidade de se pensar um outro estatuto para o gozo: "É no Seminário A angústia que o gozo se libera da amarração significante de sua prisão fálica e que nele se demonstra, ao contrário, que são os objetos a que dão corpo ao gozo" (MILLER, 2005, p. 28).

A formalização desse conceito de objeto a, então, só foi possível para Lacan quando ele rompeu com a prevalência do simbólico consolidando um outro estatuto para o real, como o que escapa a qualquer simbolização. É nesse Seminário da angústia, portanto, que Lacan poderá formalizar enquanto tal o objeto a, dando a ele mais quatro formas, além do objeto a voz: objeto oral, objeto anal, objeto fálico e objeto olhar. Dois desses objetos, entretanto, ele faz questão de destacar que estão em outro patamar, o objeto olhar e o objeto voz. Destacará, inclusive, que o supereu enquanto voz é das cinco formas de objeto a trabalhadas nesse Seminário a mais original, um objeto impensável, que surge em um tempo muito primitivo da constituição do sujeito. Com isso, essa voz do supereu, formalizada a partir do objeto a, é uma voz que se apresenta definitivamente no real, ou como o próprio Lacan a define, é um "eco do real"(LACAN,1962-1963/2005, p. 300).

Uma voz que se diferencia totalmente da voz significante que se encadeia na e pela linguagem dentro de uma sonoridade que a modula. A voz do supereu como objeto a é, portanto, apenas um som, completamente irredutível a qualquer significante.

Para dizer dessa voz enquanto objeto a Lacan (1962-1963/2005), inclusive, recorre ao estudo feito anteriormente por Theodor Reik sobre o ritual, onde ele destaca a utilização do chofar. O chofar é um instrumento sonoro, geralmente feito de um chifre de carneiro, que se sopra para se ouvir um som usado pelos judeus em datas especiais para anunciar, por exemplo, o fim do jejum na festa do ano novo e no dia do perdão. O chofar, como indica Lacan, seria a voz do próprio Deus, sendo a materialização da função do objeto a voz, que tem a função de ligar a angústia ao desejo. Portanto, o som do chofar, nesse contexto, tem como função renovar o pacto de aliança com esse Deus, rememorando o pacto com ele na incidência do som, ou seja, é um som que diz da relação do sujeito com o grande Outro:

"O interesse desse objeto está em nos apresentar a voz de uma forma exemplar, na qual, de certa maneira, ela é potencialmente separável. É isso que nos permitirá fazer surgir um certo número de questões que quase não são levantadas. De que voz se trata? Não nos apressemos demais. Veremos seu sentido e seu lugar referenciando-nos pela topografia da relação com o grande Outro" ( LACAN, 1962-1964/2005, p. 274).

Lacan, portanto, traz esta relação com o Outro como fundamental para se pensar a voz como objeto, mas alerta que não se trata de uma comunicação primitiva, apesar da comunicação se dar logo no início da constituição do sujeito. Isso porque em sua origem o sujeito não tem nada a comunicar, estando todos os instrumentos de comunicação do lado do Outro, cabendo ao sujeito apenas receber e incorporar este som. A partir disso, Lacan indica que é do Outro que o sujeito vai receber sua própria mensagem, sendo impossível instituir, portanto, em qualquer sujeito o eu sem primeiramente o "tu és" do supereu que se impõe sob a forma do objeto a voz. É um objeto a, voz, que aparece como mensagem, um "tu és" sem atributo, que o sujeito recebe de forma interrompida pelas incidências do supereu:

"Nós o conhecemos bem, acreditamos conhecê-lo bem, a pretexto de conhecermos seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes perdidas da psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos interrompidos do supereu" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 275).

Pensada desta forma é uma voz, como Lacan faz questão de ressaltar, que funciona como imperativo e que, então, demandaria, segundo ele, obediência ou convicção. Neste ponto é possível perguntar e talvez até inferir se Lacan se refere à neurose ou à psicose, pois diz obediência ou convicção demonstrando uma relação de exclusão entre uma e outra. Portanto, parece plausível de se pensar a obediência como algo da neurose, de quem está submetido à lei e tem que obedecê-la ou não, mas sempre tendo que se haver com ela, e a convicção como próprio da certeza psicótica.

Trata-se, portanto, do objeto a voz enquanto supereu, que é literalmente incorporado, por ser algo que não pode ser assimilado pelo sujeito por estar no campo do real. Lacan (1962-1963/2005) inclusive sugere como exemplo da formação do supereu a incorporação dos grãos de areia que a dáfnia precisa incorporar para sobreviver. A dáfnia é um crustáceo mais conhecido como pulga-d'água, que necessita incorporar a areia da praia que funciona como guizos necessários para seu equilíbrio. Assim, da mesma maneira que a dáfnia necessita incorporar a areia em sua constituição, o recém-nascido precisa do grande Outro para lhe trazer a voz, que será incorporada como objeto a. E é, segundo Lacan, por essa voz ser apenas incorporada sem ser assimilada que ela serve de suporte para a função de vazio, que é o vazio do Outro como tal, que incide como voz sobre o sujeito. A voz como objeto separado, portanto, é inserida a partir do Outro, que por sua inconsistência faz com que esta voz ressoe no vazio, vazio de sua falta de garantia.

E é por este vazio apresentado pelo Outro, como ressalta Lacan, que esta voz incide como distinta da sonoridade e disjunta do significante. É a voz como objeto a, não modulada, mas apenas articulada que deve ser desvinculada da fonetização: "A voz, puramente emitida e vocalizada, se diferencia da fonematização, quer dizer, despojada de toda dialética, é isolável e separável" (GEREZ-AMBERTÍN, 2003, p. 228). Portanto, os subsídios para a ideia de um supereu real aparecem nesse Seminário com o supereu enquanto objeto a, voz, que pela intromissão do Outro é imposto ao sujeito e carrega um gozo desprendido do significante, ou seja, um gozo Outro que é real.

É bom frisar, no entanto, que este objeto a, voz, só pode ser pensado nesse momento da constituição do sujeito como causa de tormentos, e não como o objeto a causa de desejos. O objeto a causa de desejo, e não de tormentos, é de outra ordem e se dará apenas mais tarde, na neurose, com a dissolução do complexo de Édipo, que terá como consequência a extração, e não a incorporação, deste objeto a do campo do Outro, através da significação fálica.

O objeto a voz como supereu, portanto, que é incorporado pelo sujeito no início de sua constituição, traz a marca do gozo Outro, que é revivido pelo melancólico a partir de uma vivência da perda, que acarreta como consequência o desencadeamento de um surto psicótico. E talvez não seja por acaso que no Seminário A Angústia Lacan, logo após descrever o supereu real como uma das formas do objeto a, trabalha a melancolia diferenciando-a do luto por sua relação mais radical ao objeto a:

"O que distingue o que é próprio do ciclo mania-melancolia de tudo o que caracteriza o ciclo ideal da referência ao luto e ao desejo, só podemos apreendê-lo ao acentuar a diferença de função entre, por um lado, a relação de a com i (a) no luto, e, por outro, no outro ciclo, a referência radical ao a, mais arraigada para o sujeito que qualquer outra relação, mas também intrinsecamente desconhecida, alienada, na relação narcísica" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 364).

Lacan nesse Seminário, portanto, segue os passos de Freud em "Luto e Melancolia" de 1915 e também apresenta a melancolia diferenciando-a do luto. Afirma que o ciclo da mania-melancolia se difere do luto por este estar atrelado ao ciclo do ideal, ou seja, o ideal do eu sustentado pela castração faz com que o objeto a apareça em sua forma mascarada i(a), pela incidência do Outro no estádio do espelho. Na melancolia, todavia, o processo é outro. O ideal do eu, por não estar referenciado à função fálica da castração, como na neurose, que suporia a incidência do Nome-do-Pai, diante da perda traz a queda dos revestimentos narcísicos do objeto, o que o desvela completamente em sua forma mais arcaica, o supereu real, enquanto objeto a, voz.

O melancólico, como já frisava Freud em "Luto e Melancolia" (1915), não sabe o que perdeu e, assim, não pode reintegrar os traços identificatórios desse objeto, mas, ao contrário, ele se identifica maciçamente ao objeto fazendo que a morte do objeto perdido seja vivida no eu e não fora dele, como no luto. Ele rejeita inteiramente a perda ao introduzir o objeto em seu eu, mas ao mesmo tempo é consumido por esse objeto que, como aponta Lacan (1962-1963/2005), é quem triunfa no processo melancólico.

Assim, pelo fato de o melancólico não estar sustentado via castração, em seu ideal, ele não tem como sustentar a identificação aos traços do objeto dados por i(a). Isso porque o i(a) encontra-se estruturalmente vinculado ao I(A) que foi anteriormente abalado diante da presença da perda. Não é por acaso, portanto, que o sujeito melancólico, fora do registro dos ideais, fica totalmente à mercê do objeto a, que, por não ter sido extraído do campo do Outro como causa de desejo, aparece em sua relação mais primária com o sujeito como objeto rebotalho: "Há aí um real não simbolizado. Desvela-se a própria estrutura do supereu, que toma a dianteira; o sujeito é então tratado sadicamente pelo supereu como rebotalho" ( QUINET, 2002, p. 136).

Pode-se concluir, assim, que o objeto a em sua dimensão mais arcaica, como Lacan propõe para a melancolia, seria esse objeto a enquanto supereu, a forma mais primitiva desse objeto descrita por ele. O supereu nessa perspectiva seria o supereu real que funciona como imperativo de um resíduo mortífero, não simbolizado, carregando um gozo desprendido do significante e, portanto, real.

Um gozo puramente real da não castração que responde ao mandado de um supereu gozador e voraz que exige uma ordem impossível de se cumprir, a não ser no próprio ato do suicídio. As ideias suicidas, inclusive, aparecem na maioria dos melancólicos, apesar de nem todos as realizarem. Além disso, a presença mais arcaica do objeto a, enquanto supereu real, também remete à culpa delirante, tão presente na melancolia:

"Nesse aspecto, o nome do pai, cuja ‘verdadeira função' é ‘unir (e não opor) um desejo à Lei', longe de gerar a culpa, mais faz tamponá-la. Essa é a tese que explica realmente o fato de a culpa só se elevar à certeza delirante nos casos de psicose, precisamente onde falta a mediação paterna" (SOLER, 2006, p. 82).

O melancólico é aquele que torna a ação do supereu ainda mais nefasta, pois, como se sabe, o psicótico, ao não poder utilizar os recursos do desejo para negociar com o supereu, fica totalmente à mercê de seus comandos. Abandonado a um puro funcionamento do gozo por não possuir uma mediação fálica, pela foraclusão do Nome-do-Pai, o melancólico se entrega a um gozo desmedido. O que está em pauta nesse momento, portanto, é a atuação de um supereu real e primitivo que, impulsionado pela pulsão de morte, visa apenas destruir.

O melancólico pela ação do supereu, então, dá testemunho de uma dor que pode ser caracterizada, como frisa Lacan em "Kant com Sade" de 1963, como uma dor de existir pura, que se manifesta em um gozo totalmente fora de qualquer pontuação fálica, pela não estruturação de uma posição desejante. Com isso abre-se a possibilidade de o supereu como objeto a, voz, exigir vorazmente uma contínua incorporação do gozo que nunca é considerada acabada. Diante disso, o supereu atua sobre esses sujeitos, em sua vertente mais primitiva e real, fazendo com que o melancólico seja invadido por um gozo Outro, disjunto do significante que, em muitos casos, é absolutamente mortífero.

 

Bibliografia

FREUD, S. Luto e melancolia (1917 [1915]). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.XIV, p.245-263.         [ Links ]

GEREZ-AMBERTÍN, Marta. As vozes do supereu. São Paulo: Cultura/ EDUCS, 2003.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.         [ Links ]

MILLER, Jacques-Alain. A clínica do supereu. Recorrido de Lacan. Buenos Aires: Manantial, 1986, p.131-147.         [ Links ]

MILLER, Jaques-Alain. Introdução à leitura do seminário 10 da angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n.43, p.7-91, maio 2005.         [ Links ]

QUINET, Antonio. Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Marca d'Água, 2002.         [ Links ]

SOLER, Colette. O que Lacan dizia sobre as mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Ceará, 1709/1003 – Funcionários
30.150-311 – BELO HORIZONTE – MG
Tel.: (31)3221-4045
E-mail: brenopena@hotmail.com

RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010

 

 

Sobre o Autor

Breno Ferreira Pena
Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Mestrando em Psicologia pela PUC-Minas.

 

 

1 Este artigo foi baseado na dissertação de Mestrado que venho desenvolvendo sob a orientação da professora Ilka Franco Ferrari da PUC-Minas.

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